Criar um Site Grátis Fantástico




ONLINE
1


Partilhe esta Página



Ame com tanta intensidade a ponto de não perceber que ame.

Sonhe com aquilo que desejas, até que  se torne  real.

Acredite em voce, mais que qualquer outra pessoa.

Nunca desista antes de esgotar todas as possibilidades.

Seja insistente e persistente, até que consiga atingir sua meta.

Não deixe que os fracassados sejam seus conselheiros.

Ainda que seu pai ou sua mãe não acredite em voce, continue crendo.

Os vencedores são aqueles que estudam, planejam antes de iniciar qualquer empreitada.

Lembre-se: começar é o primeiro passo.

Não basta acordar, é preciso levantar e caminhar.

Muitas pessoas só acendem na vida apòs a morte de seus conselheiros.

Creia em voce, em seus ideais,sua capacidade. Ainda que pareça impossivel.

Acredite! Não há impossivel para aqueles que trabalham com inteligencia e acreditam em seus ideais.

Sua história será escrita  com o passar dos anos.

Ao túmulo, apenas seguem nosso corpo e nossa história.

Apesar disso faça o que precisa ser feito.

Voce deve ser o autor de sua história.

Poeta Dantas

Coisas que não são coisas.

Entre as coisas mais belas, Vistas como paisagem, está a mulher.

Entre muitas coisas lindas vistas como novidade, está a criança

Uma coisa chama outra e gera outras coisas cada vez mais importantes.

Muitas coisas não são coisas, são apenas maravilhas

Maravilhas naturais, criadas para embelezar o mundo.

Há no mundo muita coisa, que não deveria ser chamada de coisa,

São enfeites naturais, são belezas sem iguais, são frutos da engrenagem,

São ramos que entrelaçam, gerando a coisa maior,

A natureza é magnífica! Suas formas seus traços , suas linhas,

As divisas entre as coisas, são estreitas  e se confundem.

Entre alegria e tristeza, a pobreza e a riqueza,

A linha que divide a sombra e a luz, a sabedoria e a ignorância.

As coisas que mais intrigam, são apenas ilusões.

Alguém acha feio outro acha belo, alguém joga fora, outro ajunta,

Um morre para o outro viver. Um fica rico enquanto o outro empobrece.

Alguém prevê o que pode acontecer e aproveita a oportunidade, enquanto outro ignora.

Alguém planta flores e gosta apenas de dinheiro,

Alguém trabalha com dinheiro, mas gosta mesmo é de flores.

As coisas se dividem, se multiplicam e ao final se somam.

Depois se multiplicam, se somam e ao final se dividem.

Engraçado mesmo são os seres humanos, que se ajuntam, se acasalam, se multiplicam, se dividem e ao final se acabam.

Mas ainda acho bela a complexidade da natureza, entre esse universo imenso, e nós aqui acreditando que somos quem pensamos ser.

 

Poeta Dantas

 

 

CRIANÇA FELIZ

 

SOU UMA CRIANÇA EDUCADA

SOU BONITA E BEM AMADA

 NO ROSTO ME SOBRA SORRISO

E NO CORAÇÃO FALTA NADA

 

TENHO FLORES PRA DOAR

TENHO CARINHO SOBRANDO

TENHO VONTADE ABRAÇAR

EUCHEGO E VOU ABRAÇANDO

 

MEU NOME É ALEGRIA

MEU SOBRENOME FELICIDADE

 ACORDO FELIZ TODO DIA

SEMPRE  ESBANJANDO BONDADE

CRIANÇA FELIZ

 

SOU UMA CRIANÇA EDUCADA

SOU BONITA E BEM AMADA

 NO ROSTO ME SOBRA SORRISO

E NO CORAÇÃO FALTA NADA

 

TENHO FLORES PRA DOAR

TENHO CARINHO SOBRANDO

TENHO VONTADE ABRAÇAR

EUCHEGO E VOU ABRAÇANDO

 

MEU NOME É ALEGRIA

MEU SOBRENOME FELICIDADE

 ACORDO FELIZ TODO DIA

SEMPRE  ESBANJANDO BONDADE

CRIANÇA FELIZ

 

SOU UMA CRIANÇA EDUCADA

SOU BONITA E BEM AMADA

 NO ROSTO ME SOBRA SORRISO

E NO CORAÇÃO FALTA NADA

 

TENHO FLORES PRA DOAR

TENHO CARINHO SOBRANDO

TENHO VONTADE ABRAÇAR

EUCHEGO E VOU ABRAÇANDO

 

MEU NOME É ALEGRIA

MEU SOBRENOME FELICIDADE

 ACORDO FELIZ TODO DIA

SEMPRE  ESBANJANDO BONDADE

CRIANÇA FELIZ

 

SOU UMA CRIANÇA EDUCADA

SOU BONITA E BEM AMADA

 NO ROSTO ME SOBRA SORRISO

E NO CORAÇÃO FALTA NADA

 

TENHO FLORES PRA DOAR

TENHO CARINHO SOBRANDO

TENHO VONTADE ABRAÇAR

EUCHEGO E VOU ABRAÇANDO

 

MEU NOME É ALEGRIA

MEU SOBRENOME FELICIDADE

 ACORDO FELIZ TODO DIA

SEMPRE  ESBANJANDO BONDADE

CRIANÇA FELIZ

 

SOU UMA CRIANÇA EDUCADA

SOU BONITA E BEM AMADA

 NO ROSTO ME SOBRA SORRISO

E NO CORAÇÃO FALTA NADA

 

TENHO FLORES PRA DOAR

TENHO CARINHO SOBRANDO

TENHO VONTADE ABRAÇAR

EUCHEGO E VOU ABRAÇANDO

 

MEU NOME É ALEGRIA

MEU SOBRENOME FELICIDADE

 ACORDO FELIZ TODO DIA

SEMPRE  ESBANJANDO BONDADE

CRIANÇA FELIZ

 

SOU UMA CRIANÇA EDUCADA

SOU BONITA E BEM AMADA

 NO ROSTO ME SOBRA SORRISO

E NO CORAÇÃO FALTA NADA

 

TENHO FLORES PRA DOAR

TENHO CARINHO SOBRANDO

TENHO VONTADE ABRAÇAR

EUCHEGO E VOU ABRAÇANDO

 

MEU NOME É ALEGRIA

MEU SOBRENOME FELICIDADE

 ACORDO FELIZ TODO DIA

SEMPRE  ESBANJANDO BONDADE

CRIANÇA FELIZ

 

SOU UMA CRIANÇA EDUCADA

SOU BONITA E BEM AMADA

 NO ROSTO ME SOBRA SORRISO

E NO CORAÇÃO FALTA NADA

 

TENHO FLORES PRA DOAR

TENHO CARINHO SOBRANDO

TENHO VONTADE ABRAÇAR

EUCHEGO E VOU ABRAÇANDO

 

MEU NOME É ALEGRIA

MEU SOBRENOME FELICIDADE

 ACORDO FELIZ TODO DIA

SEMPRE  ESBANJANDO BONDADE

CRIANÇA FELIZ

 

SOU UMA CRIANÇA EDUCADA

SOU BONITA E BEM AMADA

 NO ROSTO ME SOBRA SORRISO

E NO CORAÇÃO FALTA NADA

 

TENHO FLORES PRA DOAR

TENHO CARINHO SOBRANDO

TENHO VONTADE ABRAÇAR

EUCHEGO E VOU ABRAÇANDO

 

MEU NOME É ALEGRIA

MEU SOBRENOME FELICIDADE

 ACORDO FELIZ TODO DIA

SEMPRE  ESBANJANDO BONDADE

CRIANÇA FELIZ

 

SOU UMA CRIANÇA EDUCADA

SOU BONITA E BEM AMADA

 NO ROSTO ME SOBRA SORRISO

E NO CORAÇÃO FALTA NADA

 

TENHO FLORES PRA DOAR

TENHO CARINHO SOBRANDO

TENHO VONTADE ABRAÇAR

EUCHEGO E VOU ABRAÇANDO

 

MEU NOME É ALEGRIA

MEU SOBRENOME FELICIDADE

 ACORDO FELIZ TODO DIA

SEMPRE  ESBANJANDO BONDADE

CRIANÇA FELIZ

 

SOU UMA CRIANÇA EDUCADA

SOU BONITA E BEM AMADA

 NO ROSTO ME SOBRA SORRISO

E NO CORAÇÃO FALTA NADA

 

TENHO FLORES PRA DOAR

TENHO CARINHO SOBRANDO

TENHO VONTADE ABRAÇAR

EUCHEGO E VOU ABRAÇANDO

 

MEU NOME É ALEGRIA

MEU SOBRENOME FELICIDADE

 ACORDO FELIZ TODO DIA

SEMPRE  ESBANJANDO BONDADE

CRIANÇA FELIZ

 

SOU UMA CRIANÇA EDUCADA

SOU BONITA E BEM AMADA

 NO ROSTO ME SOBRA SORRISO

E NO CORAÇÃO FALTA NADA

 

TENHO FLORES PRA DOAR

TENHO CARINHO SOBRANDO

TENHO VONTADE ABRAÇAR

EUCHEGO E VOU ABRAÇANDO

 

MEU NOME É ALEGRIA

MEU SOBRENOME FELICIDADE

 ACORDO FELIZ TODO DIA

SEMPRE  ESBANJANDO BONDADE

 

 


LIVROS
LIVROS


 

LEIA PARA UMA CRIANÇA

 

 

 

 

 

Cem Noites Tapuias

1- O Filho do Garimpeiro

    À margem dos rios diamantíferos, isto é, daqueles em que cujas areias existem diamantes, reúnem-se homens audaciosos e aventureiros animados por um grande sonho: o encontro de pedras valiosas.

    Quincas Venâncio era um desses garimpeiros. Levava uma vida de pobre, vida difícil e sem conforto, em seu rancho humilde, mas uma esperança enriquecia-lhe o coração: um dia _ e quem sabe não estaria perto? _ um achado precioso o arrancaria daquela miséria. E então haveria de bendizer os sacrifícios corajosamente feitos! Vira chegar a vez de muitos companheiros. Outros veriam chegar a sua!

    A fortuna podia demorar um pouco, mas sempre vinha. A sorte experimentava a paciência dos garimpeiros; as compensações que oferecia, porém, pagavam tudo. O que era preciso era trabalhar continuamente, sem desânimo. E Quincas Venâncio era pertinaz.

    Trabalhava no Rio Poxoreu e morava com seu filho Quinquim perto da mata virgem, tão perto que, à noite, ouviam miados de onça rondando o curral, que era feito de grossos paus bem unidos e fechado por cima como uma jaula.

    Certas noites, o atrevimento da “pintada” passava da conta, e vascas, bezerros, cavalos, cabritos e galinhas faziam um alarido medonho. Quincas Venâncio abria então a janela e dava tiros de carabina para o ar, afugentando a fera. Tudo silenciava a seguir e os animais repousavam tranqüilos até amanhecer.

    Na casinha, apesar de coberta de sapé, pai e filho se sentiam seguros. E o menino se acostumara, de tal modo, às visitas noturnas da “pintada”, que se sentava na rede ao ouvir o miado, à distância, e avisava o pai:

    _ Pai! Aí vem o gatão!

    _ Durma sossegado, meu filho. Não tenha medo que aqui ele não entra, respondia-lhe o garimpeiro, enquanto examinava os cristais que colhera durante o dia, mergulhando no Rio Poxoreu.

    Quinquim vivia naqueles sertões de Mato Grosso desde os três anos. Aos seis, perdera a mãe, de uma febre palustre. E sua vida mudara muito: ela lhe contava comoventes histórias sertanejas e o embalava com cantigas tapuias, de que ele gostava imensamente.

    _ Mãe, cante aquela do serelepe dorminhoco, ele pedia, assim que as pálpebras pesavam de sono.

    E ela, balançando-lhe a rede, cantava numa voz doce e sentida:

    _ Acutipuru, ipurá

    Nerupecê iuarama.

    Repetia o canto, cada vez mais baixinho, até que o menino adormecia.

    Mas o que lhe causava maior prazer era ouvir as lendas e histórias tapuias. Nunca se cansava da história da filha da Cobra-Grande, que mandou buscar a noite na casa de seu pai; do curumim que subiu ao céu nas asas de uma andorinha; dos macaquinhos da boca preta, que nunca achavam tempo para fazer suas casas; da moça que queria a estrela da tarde, para brincar com ela.

    Com a morte da mãe, Quinquim entristeceu e ficou manhoso. Todas as noites,  chorava com saudade dela. Sentia falta de seu carinho, de suas canções dolentes, de suas histórias maravilhosas.

    Quincas Venâncio tudo fazia para alegrar o filho. Levava-o todas as manhãs ao rio, onde inúmeros garimpeiros trabalhavam com ele. O menino ficava entretido, vendo aqueles homens valentes e ambiciosos à cata febril de diamantes, no leito profundo das águas. Mas o que mais o impressionava era ver o pai meter-se dentro de um escafandro e mergulhar em algum poço do rio. Naquela vestimenta impermeável e frouxa, com botas de grossas solas de chumbo, couraça e máscara de metal, parecia um verdadeiro fantasma... E Quinquim ficava pensando na curiosidade que deviam ter os peixes, diante daquele homem estranho, que tinha quatro janelinhas envidraçadas na cabeça, por onde podia espiá-los...

    A princípio tinha medo que o pai morresse afogado. Quincas Venâncio, porém, explicara-lhe que dentro do escafandro não entra água e por isso o escafandrista não se afoga. Mas poderia morrer asfixiado, se a bomba, de repente, deixasse de funcionar. Essa bomba, instalada à margem do rio e ligada ao escafandro por meio de um tubo, é que fornece ar ao mergulhador; seu trabalho, portanto, precisa ser regular, constante e dirigido por um bombeiro de confiança.

    Distraído com o perigoso trabalho do pai, Quinquim se portava durante o dia, como um verdadeiro homem. Andava de cá para lá conversando com os garimpeiros, animando-os, chamando-os por apelidos engraçados, e colecionando os seixos roliços e coloridos, parecidos com ovos de aves que eles lhe traziam sempre estavam de volta à tona d’água.

    Com sua alegria e graça conquistara o coração daqueles rudes homens sem família, que acabaram querendo-lhe bem como a um filho. E não sabiam trabalhar sem a sua companhia.

    À boca da noite, voltava com o pai para casa e já não era o mesmo: tinha medo de sombras, via jaguaretês escondidos nas moitas e o psiu da suindara lhe parecia um chamado de alma do outro mundo.

    _ Que é que você tem, meu filho, que anda tão medroso?! Você nunca foi assim, dizia-lhe o pai, impressionado.

    Mas Quinquim também não sabia explicar. E em casa, seu nervosismo piorava. À hora de dormir, chorava sempre de cortar o coração. E muitas vezes despertava durando a noite, assustado, gritando pela mãe... Quincas Venâncio não sabia mais o que fazer para controlar o filhinho... Perdia horas de sono pensando num meio de curar o menino daqueles terrores noturnos... Supersticioso como era, acreditava em maus-olhados, quebrantos e outras fantasias populares. Quinquim era, para o sertanejo, o garotinho mais esperto e bonito do mundo! E poderia estar sofrendo em conseqüência da feitiçaria de alguma pessoa invejosa, ele pensava.

 

2 - A Professora Borora

 

Certo dia, um mergulhador chamado Chico Pongá disse a Quincas Venâncio:

    _ Você é um homem de sorte!

    _ Não sei por que diz isso. Só tenho achado diamantinhos de pouco valor. Você, sim, é que já apanhou dois daqueles azuizinhos como água de querosene... respondeu Quincas Venâncio.

    _ Que adiantou isso?! Não tenho família, vivo sozinho neste mundo de Deus! Ao passo que você tem um filho que é uma graça, corajoso e alegrinho como um periquito-rei!

    Quincas Venâncio soltou um suspiro e respondeu, olhando para o filho que fazia uma força danada, ajudando a tocar a bomba de ar:

    _ Ah! Meu amigo, você tem razão. Quinquim, não é por ser meu filho, enche a vista da gente. Mas só é alegre de dia. De noite entristece e chora como um urutau agourento...

    _ Por quê? Indagou Chico Pongá, admirado.

    _ Sei lá! Talvez saudade da mãe... desde que ela morreu que ele chora assim.

   _ Sente falta dela, coitado! Carinho de mãe não tem igual neste mundo. Quantos anos ele tem?

    _ Está beirando os sete.

    _ Então, está no ponto de ir para a escola. Quem sabe se não é isso que está lhe faltando? Precisa de companheiros de sua idade para brincar e de uma boa professora para ensinar-lhe as primeiras letras.

    _ Mas como?

    _ Na Vila de Poxoreu, continuou Chico Pongá, há uma professora que nasceu bugra mas ensina melhor que muita gente branca!

    _ Não acredito. Para mim, bugre e fera são a mesma coisa. São traiçoeiros e maus e não aprendem nada.

    _ Você diz isso porque não teve convívio com os índios e não conhece Joana Borora. Não sabe que coração tem ela! Quanta bondade e sabedoria!

    _ Já ouvi falar nessa Joana Borora, educada pelos missionários desde menina. Mas nunca a vi. Quando vou à vila é sempre de corrida.

    _ Pois é pena.a escola dela é um pouco retirada e ela não tem tempo de passear pelas lojas. Está sempre ensinando: de dia as crianças, de noite os mais velhos. Não faz outra coisa. Também sua fama já chegou a Coité, a Cachoeirinha, a Santo Antonio do Rio Abaixo e não há de esperar muito para chegar a Cuiabá.

    _ Será que ela dava um jeito na tristeza do Quinquim?

    _ Na certa.

    _ Qual! Duvido muito!

    _ Não custa experimentar.

    _ Está bem, Chico Pongá. Vou seguir o seu conselho. Este domingo vou dar um pulo em Poxoreu, com o meu garoto, a fim de conhecer Joana Borora, essa prenda nascida no mato... Se você está dizendo a verdade, deixarei o menino com ela.

    _ Vá mesmo que não se arrependerá...

    _ Vai me custar muito, mas já que é para o bem dele... concluiu Quincas Venâncio, prevendo a tristeza de seu rancho, sem aquele companheirinho precioso.

    

3 - A Doença

 

Na manhã seguinte, era um sábado, Quincas Venâncio despertou muito cedo. Como de costume, aprontou o café e tratou de acordar o filho que dormia a sono solto, todo encolhido na rede:

    _ Acorde, Quinquim! O café já está pronto!

    Mas o menino deu um gemido, encolheu-se mais e não atendeu ao pai. Este, desconfiado, passou a mão pela testa do filho e murmurou apreensivo:

    _ Está com um febrão! Será que ele apanhou a maldita palustre?

    Dizendo isto, aprontou uma caneca de café, cortou um pedaço de angu de fubá e veio oferecer ao filho, sacudindo-lhe o ombro:

    _ Você hoje está dorminhoco, Quinquim. Olhe aqui o café!

    Mas qual! Ele nem dava acordo de si. O pai, assustado, sacudiu-o com mais força até que ele se esticou, dando um gemido, e abriu, por fim, os olhos. Quincas Venâncio aproveitou para insistir:

    _ Levante, Quinquim, está na hora! Vamos que hoje vou ensiná-lo a nadar e mergulhar!

    Por um momento, a tentação daquele convite fez brilhar os olhos de Quinquim. Logo, porém, fechando-os novamente, murmurou com uma voz cansada, diferente da sua:

    _ Agora não, pai, me deixe dormir mais um bocadinho.

    _ Você está doente, meu filho? Perguntou-lhe Quincas Venâncio, passando-lhe a mão pela cabeça, carinhosamente. Sente alguma dor? Alguma aflição?

    _ Não, pai; não sinto nada. Mas tenho sono... explicou o menino. E dando as costas, encolheu-se outra vez e continuou a dormir.

    Quincas Venâncio tomou o café preocupadíssimo. Não podia faltar ao trabalho. Mas também não podia forçar o menino a acompanhá-lo, visto que estava indisposto. Que fazer? Não havia outro remédio senão deixá-lo sozinho em casa.

    Foi de coração cheio de angústia que tomou essa decisão. Era a primeira vez que acontecia isso. E só Deus sabia quantas vezes teria de acontecer o mesmo, enquanto não tivesse alguém para tomar conta da casa na sua ausência. Sua dura profissão não lhe permitia ficar no rancho quando o filho adoecesse, ainda mais porque de seu trabalho dependia o trabalho de muitos outros, e, entretanto, Quinquim era muito pequeno pra ficar sozinho por aquelas paragens tão cheias de surpresas e perigos.

    Mas não havia tempo a perder: arranjou no embornal o seu almoço, preparado de véspera, e foi despertar Quinquim de novo, fazendo-lhe muitas recomendações:

    _ Meu filho, você está com lombeira hoje porque não tem dormido direito estas noites. Então durma bastante. Quando tiver fome, levante que seu almoço está pronto. É só tirar das panelas. Está ouvindo?

    Quinquim olhou o pai, apertando os olhos, e respondeu bocejando:

    _ Estou, pai.

    _ Então está bem. Fique quietinho, descansando, que eu quero, na volta, encontrar você são. E repetiu, sorrindo para o filho: sãozinho, sim? Nada de doenças, entendeu?

    _ Entendi, pai, respondeu Quinquim.

    _ Pois, então até de noitinha.

    _ Até, respondeu o menino em voz muito baixa.

    Quincas Venâncio foi até a porta; sentiu o coração apertado; e voltou de novo para perto da rede, para explicar ainda:

    _ Escute, Quinquim.

    _ Estou escutando.

    _ Vou fechar a porta e botar a chave por baixo. Quando eu voltar você abre pra mim?

    _ Abro, sim.

    _ E olhe, outra coisa: não abra a porta para ninguém,viu? Nem saia de casa. A “pintada” também ronda durante o dia, quando está com muita fome... E você sabe que ela é muito atrevida!

    _ Sim, pai.

    _ Até a volta, então.

    _ Até a volta.

    Quincas Venâncio afastou-se sem pressa; saiu, fechou a porta por fora, passou a chave por baixo conforme combinara, e ainda parou um momento pensando que outras recomendações poderia fazer ao filho. Não lhe ocorreu mais nada e se afastou, de alma aflita, a caminho do Rio Poxoreu.

    Dentro do rancho humilde e sem conforto, Quinquim fechou osolhos e adormeceu de novo.

 

4 - O Feliz Achado

 

    Quincas Venâncio trabalhou com o escafandro a manhã toda. No fundo da corrente, catava os seixos, mas seu pensamento estava no filho, cujo vultinho, encolhido na rede, não lhe saía dos olhos. Que teria o coitado? Já estaria de pé? Como se sentiria sozinho?

    Cerca das dez horas, voltou à tona para almoçar. Estava cansado e triste. De longe, Chico Pongá desconfiou e veio comer o farnel a seu lado. Os garimpeiros já haviam notado a ausência do menino, mas não sabiam explicá-la. E Chico Pongá queria indagar ele. Por isso perguntou, sem entrar logo no assunto:

    _ Que tristeza é essa, Quincas Venâncio?

    _ Estou sem sorte, Chico Pongá.

    _ Não dê mau pago a Deus! Basta pensar no filhinho que você tem para não poder falar assim.

    _ Pois é por ele mesmo que eu digo. Imagine que amanheceu com febre e eu tive de deixá-lo sozinho. Não sei como vai se arranjar.

    _ Ora, febre em criança é coisa corriqueira. Passa da noite para o dia. Amanhã estará bom.

    _ Acho que sim. Mas é que ele ficou só. Estou preocupado.

    _ Outra bobagem. Seu filho é um homenzinho, já sabe bem o que faz. Se fosse outro menino não diria nada. Mas Quinquim pode ficar só sem perigo. Não se preocupe. E agora, mudando de assunto: seu mergulho rendeu hoje?

    _ Não. E o seu?

    _ Somente umas “formas” sem importância: um “feijão”, um “ovo de pomba”, dois “lacres” e três “azulinhas”, explicou Chico Pongá, enumerando pedras de várias cores, chamadas “satélites”dos diamantes porque às vezes são encontradas onde eles existem.

    _ Eu nem isso! Nem uma “pretinha” sequer, para consolar.

    _ Não importa, Quincas Venâncio. Nem sempre essas pedras à-toa querem dizer que há diamante por perto.

    _ Isso eu sei. Mas, de qualquer forma, umas pedrinhas pintadas, como essas que você achou, consolam a gente e dão esperanças de encontrar um graúdo, de primeira água!

    _ Qual! Não perca a esperança. Vá mergulhando e catando. Quando menos você esperar, acha um e fica rico!

    Quincas Venâncio havia acabado de fazer a sua refeição. Ergueu-se então e respondeu:

   _ Nesse caso, vou mergulhar de novo para aproveitar o resto do dia, que hoje quero voltar mais cedo para casa.

    Separaram-se. Quincas Venâncio meteu-se em seu escafandro e sumiu na corrente.

    Ao entardecer deu sinal a José Piquete que tomava conta da bomba. Este puxou imediatamente o escafandrista pela corda. Que teria sucedido? Quincas Venâncio costumava demorar mais tempo em suas pesquisas. A surpresa de José Piquete aumentou quando viu que o companheiro saía do aparelho pálido e trêmulo. E indagou assustado:

    _ Que é que houve? Está sentindo alguma coisa?

    Quincas Venâncio moveu a cabeça negativamente e, apontando para uma vasilha em forma de funil que tinha na mão, mal pôde responder:

    _ Veja aí... no calombé...

    José Piquete olhou curioso para o interior da vasilha que continha a colheita de cristais, trazida do fundo do rio, e exclamou, entusiasmado:

    _ Viva Deus! Você está rico, Venâncio! Nunca vi tanto diamante junto!

    _ Não exagere, Piquete. O que você vê ai são alguns diamantinhos pequenos, uns “xibios” de pouco valor. E o resto são cristais sem valia. Mas, olhe: há um que vai me dar um bom dinheiro.

    _ É este aqui, afirmou José Piquete, apanhando um cristal do tamanho de um ovo de pomba e olhando-o contra o sol. Este aqui vale um milhão!

    _ Milhão de que, homem?

    _ Milhão de cruzeiros! De que havia de ser?

    _ Você está sonhando, Piquete! Você está sonhando. Examinou o diamante mais uma vez e acrescentou: É um diamante de valor, está se vendo, mas não alcança este preço.

    _ Quanto aposta?

    _ O que você quiser.

    _ Não, diga você!

    _ Está feito. Se este diamante valer um milhão, eu lhe darei, além da parte a que você tem direito, mais dez mil cruzeiros. Fechado?

     _ Fechado! Concordou José Piquete, cheio de alegria.

    E apertaram-se a mão afetuosamente.

    A conversa foi tão alvoroçada que atraiu outros garimpeiros, mergulhadores, bombeiros e bateadores. E em pouco, todo aquele rancho de aventureiros da fortuna, em número de cinqüenta, estava festejando a feliz descoberta de Quincas Venâncio.

    Chico Pongá foi o primeiro a examinar a gema preciosa e a dar um apertado abraço em seu amigo, perguntando-lhe:

    _ Eu não lhe disse, Venâncio, que você era um homem de sorte? E que sorte! Com esse diamantão você não precisa mais mover uma palha! Pode dormir sossegado e criar o Quinquim na Capital.

    Quincas Venâncio não respondeu. Todos queriam abraçá-lo, examinar a pedra, tocar na mão dele para “pegar” sorte... Afinal, um dos mais entusiasmados com a extraordinária novidade, exclamou convidando o grupo:

    _ Vamos a Poxoreu festejar o sucesso, que o dia de hoje já está ganho!

    _ Vamos! Concordaram todos, dando tiros de carabina para o ar.

    _ Mas eu, infelizmente, não posso, explicou Quincas Venâncio. Tenho que ir ver Quinquim, que deixei em casa, doente.

    _ Pois então vá vê-lo. Se ele estiver melhor, vamos levá-lo também, porque a festa é dele, disse Chico Pongá.

    _ Vá, insistiu Piquete, que nós o esperamos aqui.

    Quincas Venâncio colocou os cristais numa capanga, uma bolsa de couro que costumava trazer a tiracolo, e partiu para casa correndo, mas não tão depressa quanto seu coração desejava.

5 - Mistério!

 

Quincas Venâncio vinha botando a alma pela boca, mas só parou de correr quando chegou ao terreiro de casa. Tinha pressa de rever o filho para saber de sua saúde, mas estava também ansioso para dar-lhe a boa notícia! As preocupações com que saíra pela manhã misturavam-se agora com a alegria que lhe causara aquele achado precioso... De longe, porém, observou que a janela estava aberta e a porta escancarada. E pensou: _ O garoto me desobedeceu, abrindo a porta! Em todo caso é sinal de que já está bom. E entrou pelo rancho, chamando-o:

    _ Quinquim! Meu filho! Estamos ricos! Achei um diamante graúdo, de primeira água! Um bambúrrio!

    Enquanto falava, percorreu a pequena morada e não encontrou ninguém. Sobre o fogão de tijolos viu as panelas cobertas; destampou-as e, pela quantidade de comida, verificou que o filho almoçara com bom apetite, o que lhe causou prazer. Mas era preciso encontrá-lo o quanto antes. Quincas Venâncio foi ao curral; procurou-o depois pelo paiol, pelas pacoveiras que havia nos fundos da roça, gritando sempre:

    _ Quinquim!... Quinquim!... Ó Quinquim!...

    Nada! Ninguém respondia ao seu chamado. A tarde morria. Os pássaros volviam aos ninhos e as galinhas procuravam os poleiros. Onde teria se metido o garoto? Perguntava a si mesmo, intrigado, sem cessar suas buscas. Ah! Com certeza estaria no córrego, brincando com o pequeno monjolo que ele próprio fabricara. Este pensamento o encheu de esperança. Mas no córrego não viu ninguém; as águas deslizavam mansamente, só de quando em quando arrepiadas pela viração da tarde. O silêncio era quase absoluto. Quincas Venâncio estava zonzo, sem saber o que fazer. Chamou, chamou e chamou... Nenhuma resposta! Deu batidas nas moitas de “saia-branca”, desconfiando que o filho se escondera por brinquedo. Só conseguiu espantar “almas-de-gato” que fugiam num vôo rasteiro, soltando pios lamurientos, para ir pousar em moitas mais distantes.

    Foi, então, que lhe ocorreu uma idéia aterradora. O filho poderia ter entrado pela mata, atrás de algum passado, e a temível “pintada” o teria, talvez, surpreendido. Quincas Venâncio tudo fez para afastar esse terrível pensamento, mas não o conseguiu. Correu, então, angustiado, para casa, apanhou a carabina que estava pendurada à parede, colocou o cinturão de balas, fechou a janela e a porta e entrou pela mata, gritando pelo filho. À medida que penetrava, porém, a escuridão ia aumentando e em breve parecia noite fechada. Fazendo porta-voz com as palmas das mãos, o pai, aflito, berrava:

    _ Quinquim!... Quinquim!... Ó Quinquim... im!...

    Sua voz reboava por entre os troncos. De vez em quando, parava um instante, na ansiosa espera de uma resposta, uma queixa, um gemido, qualquer sinal enfim de que o filho ainda vivesse. Em vão! Só escutava barulhos de asas e sussurros de ventos, nas folhas.

    Desesperado, Quincas Venâncio voltou atrás, tirou do curral o alazão marchador, botou-lhe os arreios, montou e partiu a galope na direção do Rio Poxoreu.

 

6 - O Rapto

 

    Os garimpeiros o esperavam à margem do rio. E assim que o viram apontar na picada, sacaram as armas e o saudaram, segundo o costume, com um tiroteio cerrado para o ar.

    _ Viva Joaquim Venâncio! Gritou José Piquete.

    _ Viva nosso milionário! Bradou Chico Pongá.

    E novamente descarregaram as armas. Mas qual não foi a surpresa de todos quando repararam na expressão de desespero de Quincas Venâncio! Fez-se um silêncio geral. Foi quando, sofreando as rédeas do animal, ele falou aos companheiros numa voz surda, cerrando os dentes:

    _ Meus amigos! Aconteceu-me uma grande desgraça!

    A roda fechou-se em torno dele, e perguntas choveram de todos os lados:

    _ Perdeu o diamante? Indagou um.

    _ Quinquim piorou? Interrogou outro.

    _ Encontrou a roça devastada? Quis saber um terceiro.

    Quincas Venâncio meneou a cabeça e explicou:

    _ Mil vezes pior que tudo: perdi meu filho...

    _ Quinquim?! Perguntaram todos a uma voz.

    _ Sim, respondeu simplesmente o desolado pai.

    _ Mas como? Que houve? Teve um ataque de febre? Feriu-se? Indagaram de todos os lados.

    Quincas Venâncio, porém, fazia gestos indecisos, demonstrando não saber explicar, o que deixava atordoados os demais garimpeiros. A muito custo, no entanto, contou com voz trêmula:

    _ Não posso dizer o que houve, nem como foi. Só sei dizer que deixei o menino na rede, adoentado, perrengue, esta manhã, e agora, ao chegar em casa, encontrei a porta aberta e tudo deserto. Chamei por ele e nada... Saí, procurei-o por toda a parte, no pacoval, no córrego e até dentro da mata! E nem sombra dele!... Não sei que fim o coitadinho levou.

    Chico Pongá, animado como sempre, tentou reanimar o amigo:

    _ Não fale assim, Quincas Venâncio, que seu filho aparece de uma hora para outra. Com certeza, curioso e travesso como é, foi dar um passeio e encontrou alguém que o levou à vila. Você sabe que ele é conhecido e querido de todo mundo.

    _ Não pode ser, Chico, infelizmente, não pode ser. Justamente hoje pela manhã recomendei-lhe que não saísse nem abrisse a porta para ninguém. E ele é menino obediente.

    _ Mas você encontrou a porta arrombada?

    _ Não.

    _ Encontrou algum sinal de violência?

    _ Não. Até a chave ainda estava na porta.

    _ Estava? E do lado de dentro?

    _ Do lado de dentro.

    _ Então? Não digo que foi o menino? Olhe, ele abriu a porta e saiu. E se saiu foi para algum lugar onde, na certa, será encontrado.

    _ Encontrado?! E se a “pintada” o pegou? Indagou aflito Quincas Venâncio.

    _ Deixe de estar pensando em bobagem. Se ela pegasse Quinquim, então não deixaria sinal? Pelo menos sangue havia de haver pelo terreiro. Não pense mais nisso. O que precisamos fazer é procurá-lo antes que chegue a noite. E, voltando-se para os companheiros, Chico Pongá concluiu:

    _ Camaradas! Temos que ajudar o amigo Quincas Venâncio. Vamos juntos procurar nosso Quinquim?

    _ Vamos! Concordaram os garimpeiros, sem discussão.

    E assim aqueles homens, que se dispunham a festejar, em conjunto, o achado de um extraordinário diamante, uniram-se para auxiliar um pai extremoso a procurar o seu filho perdido.

7 - Na Vila de Poxoreu

 

Quincas Venâncio chorava de gratidão, diante da solidariedade de seus companheiros de trabalho. E não tocou o animal. Chico Pongá, porém, era homem de iniciativa e tinha de levar adiante o seu plano. Por isso ordenou:

    _ A caminho da vila! E, voltando-se para ele, acrescentou:

    _ Toque, Quincas Venâncio! Vá na frente que nós vamos apanhar a nossa montaria e o alcançaremos logo.

    E assim foi feito. Quincas Venâncio entrou na Vila de Poxoreu, cerca de cinqüenta cavaleiros o acompanhavam.

    Era quase noite fechada. Os poucos habitantes da vila, no entanto, não se haviam recolhido às suas casas: estavam alvoroçados pela rua principal, diante do armazém de um antigo garimpeiro, chamado Nico Manco. A cavalhada venceu em alguns segundos a distância que a separava do local da aglomeração batendo, com estrépito, as ferraduras nas pedras do caminho. Quando os moradores da vila se voltaram, surpreendidos, já Quincas Venâncio e seus amigos desmontavam e amarravam os animais a argolas de ferro, incrustadas na calçada ou em pequenos mourões, e penetravam no recinto, ansiosos por informações e novidades. Dois lampiões de querosene, colocados em cima do balcão, iluminavam as fisionomias daquela gente rústica. Em mangas de camisa, Nico Manco falava tão alto que pareia discursar. Mas, à chegada dos cavaleiros, fez-se silêncio. Passado um momento, porém, reconhecendo Chico Pongá e os demais companheiros, o comerciante perguntou-lhes:

    _ Então já souberam da desgraça acontecida, não é?

    Chico Pongá, percebendo que sucedera qualquer coisa que eles ignoravam, indagou:

    _ Que desgraça?

    _ Pois Joana Borora, a mestra de nossos filhos, foi hoje raptada pelos índios Xavante!

    Houve um sussurro de assombro entre os cavaleiros. E Chico Pongá, compreendendo o que se passara com Quinquim, olhou para Quincas Venâncio com uma expressão de piedade. Como se tivesse havido transmissão de pensamento entre os dois amigos, Quincas Venâncio o olhou no mesmo instante e falou, desanimado:

    _ Ah! Agora já sei o que se passou com meu filho: foi, também, raptado pelos índios!

    Embora não tivesse falado muito alto, todos o ouviram e uma nova emoção contaminou a assistência. Nico Manco não se conteve e perguntou:

    _ Seu filho desapareceu?

    _ Sim, confirmou Quincas Venâncio, no auge da aflição.

    _ Então, não tenha dúvida: teve a mesma sorte da mestra! Disse o comerciante.

    Mas Chico Pongá queria esclarecimentos sobre o que acontecera na vila. E indagou:

    _ Como foi o caso de Joana Borora?

    Nico Manco pôs a mão sobre o ombro de um menino que estava ao seu lado e informou:

    _ Meu filho é que sabe como a coisa se passou. Estava na aula, quando se deu o ataque, e chegou aqui que nem podia dar palavra, de tanto correr! Voltando-se, então, para o menino, acrescentou:

    _ Conte, Antoninho, o que você viu, aqui para os amigos...

 

8 - O Sacrifício de Joana Borora

 

Antoninho deu um salto para cima do balcão, sentou-se de pernas cruzadas, hesitou um pouco, olhando curioso aquelas fisionomias, fatigadas pelo trabalho e pela emoção, e começou a contar:

    _ Nós estávamos na sala fazendo uma cópia que dona Joana tinha passado. Eu quebrei a ponta do lápis e parei para fazer outra. Nisto ouvi um assobio fininho demorado, seguido de um canto de jaó e me levantei para espiar a mata, da janela dos fundos. Olhei, tornei a olhar, mas quem diz que eu descobria o jaó! Continuei a fazer a ponta sempre olhando, e nada! Já ia voltar para o banco quando escutei outro assobio fininho; firmei os olhos e descobri, então, três caras de índios entre as moitas, espiando a escola. Fiquei frio! Só aí percebi muitas outras caras espalhadas pelo mato. Disfarcei meu susto, voltei para meu lugar e chamei a mestra:

    _ Chegue aqui depressa, dona Joana, para ver meu trabalho.

    Ela se aproximou e eu lhe disse em voz baixa, para não espantar a classe:

    _ Mestra, há índios no mato, espiando a escola.

    _ Tem certeza? Indagou ela, também em voz baixa.

    _ Tenho.

    _ São muitos? Perguntou ainda.

    _ Que nem formigueiro, respondi.

    Vi que o rosto dela ficou transtornado, mas não perdeu um momento; sentou-se ao meu lado e avisou a classe, dizendo:

    _ Escutem bem o que vou dizer e façam logo o que eu mandar. Antoninho acaba de ver índios rondando a escola, do lado da mata.

    Aí alguns meninos começaram a falar, mas ela não deixou dizerem nada, explicando, zangada:

    _ Calem a boca e escutem o que eu digo! Estamos correndo perigo de ser atacados. Mas se vocês me obedecerem, nenhum sofrerá coisa alguma. Não precisam pegar os cadernos nem mochilas. Abaixem entre as carteiras pra que eles não vejam vocês e pensem que a escola está deserta. E vão saindo, de quatro, pela porta da frente, sem barulho, um atrás do outro, depressa! Na rua corram o mais que puderem, mas sem gritaria. Não dêem um pio! É preciso que eles não percebam que vocês estão fugindo. Assim que chegarem à vila, peçam socorro para mim! E agora vão! Depressa! Não percam tempo! Eu garanto a vocês que não há de suceder nada! Vão!

     Mal a mestra acabou de falar, saímos engatinhando da sala de aula, alcançamos a porta da frente e desandamos a correr pela vila. Já estava quase aqui quando ouvi um grande alarido de gritos e, trepando numa árvore, espiei para o lado da mata; foi quando vi nossa mestra correr na direção das moitas onde apareciam as caras dos bugres e sumir entre elas.

    Antoninho estava triste quando acabou sua narrativa. O pai, então, retomando o fio da conversa, disse:

    _ O resto da história eu posso contar. Assim que os meninos chegaram dando alarme, eu e todo esse povo que aqui está, corremos em socorro de Joana Borora, mas não encontramos mais sombra dela nem dos índios! A escola estava abandonada, com as janelas e portas abertas, os cadernos dos alunos nas carteiras. Entramos pela mata adentro, mas, por mais que procurássemos, não achamos nada que indicasse o rumo que tomaram.

Quincas Venâncio resmungou, com desconfiança:

    _ Pelo jeito, essa Borora estava era combinada com os bugres, que são gente dela.

    Todos protestaram e Nico Manco respondeu:

    _ Não diga isso, seu Venâncio. Joana Borora nunca faria uma coisa dessas!

    _ Então como é que correu ao encontro deles? Não se explica...

    _ Pois eu explico, continuou o negociante. De toda a nossa busca, só encontramos isto: e mostrou uma flecha emplumada que encostara à parede, acrescentando: os que conhecem suas armas sabe que este tipo de flecha pertence aos Xavante, que vivem espalhados para lá do Rio das Mortes, a mais de dez léguas daqui. E esses índios são justamente inimigos dos Bororo.

     _ Quer dizer que a professora correu, por gosto, para a boca da onça? Indagou Quincas Venâncio, sem compreender.

    _ Está visto que correu, seu Venâncio, mas sabe por quê? Para dar tempo a que os meninos fugissem. Só pode ter sido isso: sacrificou-se para salvá-los!

    _ É extraordinário! Comentaram, ao mesmo tempo, vários garimpeiros.

    Chico Pongá perguntou então, interessado:

    _ E será que ela está com vida ainda?

    _ Por certo que está, disse Nico Manco, os Xavante, quando querem matar alguém, não fazem cerimônia; no mesmo lugar em que a aprisionam, metem a borduna na cabeça da vítima e, como lembrança, deixam a arma de morte junto a ela. Mas o Índio não é sanguinário. Só ataca por vingança ou em defesa da terra, quando sofre alguma injustiça. Demais, nós percorremos as picadas da mata e não vimos sinal algum de violência. Olhe: esta flecha não foi usada. Algum deles a deixou cair ao retirar-se.

    Quincas Venâncio, pensando na sorte do filho, que devia ser bem parecida com a da professora, ainda perguntou:

    _ Mas se eles não a mataram, que pretenderão fazer com ela, seu Nico?

    _ Mantê-la prisioneira, torná-la escrava, para se vingarem dos brancos e dos Bororo que são seus inimigos.

    _ Precisamos libertá-la; uma coisa me diz que, onde ela estiver, estará o meu filho.

    _ Nem há dúvida. E era o que estávamos combinando. Quase todos estes homens têm filhos alunos de Joana Borora. Nosso estima por ela é um fato. Nenhum de nós se negará a qualquer sacrifício para trazê-la de volta.

    _ Pois então, por que estamos perdendo tempo? Vamos embora!... animou Chico Pongá.

    _ Vamos embora, repetiu Quincas Venâncio, procurando a saída da loja.

    _ Calma, seu Venâncio, ponderou Nico Manco. Precisamos armar-nos primeiro; precisamos preparar-nos para uma longa viagem, pois sabe Deus onde iremos encontrá-los!... Esta madrugada partiremos. Combinado?

    _ Combinado! Responderam todos os presentes que se dispersaram, em grupos.

    Pela madrugada, cem cavaleiros, armados e com farta provisão de alimentos, partiram na direção do Rio das Mortes.

 

9 - Na Taba Inimiga

 

    Três dias depois, na aldeia dos índios Xavante, escondida nos confins da Serra Azul, à margem do Rio Noedori, afluente do Rio das Mortes, houve, ao cair a tarde, um rebuliço de festa: é que chegava um grupo de índios, trazendo dois prisioneiros: Joana Borora e Quinquim.

    Joana chegou primeiro; vinha amarrada pela cintura e pelos punhos a uma forte muçurana. Caminhara a pé léguas e léguas tangida pelos indígenas. Durante toda a penosa jornada, fingiu que não entendia a conversa deles. Mas compreendera tudo! Quando menina, aprendera a falar vários dialetos indígenas, inclusive o dos terríveis inimigos de sua gente Borora. E graças a isso, ficou sabendo que a intenção dos Xavante era atrair gente branca para fazer-lhe guerra, em tocaias na floresta, antes que fosse descoberta a situação da taba. Aceitava os alimentos que lhe davam e dormia quando eles dormiam. Em suas veias corria também sangue de bugre o que lhe dava certamente resistência para a caminhada e uma coragem inaudita!

    Quinquim chegou depois; vinha desmaiado de cansaço e medo, dentro de um baquité, uma espécie de cesto comprido, às costas de um possante Xavante.

    Ao entrar no terreiro da taba, libertaram Joana da corda que a manietava e tiraram o menino do baquité, como se tira um franguinho de um jacá. Largaram-no então no solo, estendido como morto. Só aí Joana descobriu que havia mais um prisioneiro! E seu coração bateu descompassado... De onde estava, não podia ver o rosto do garoto e uma dúvida cruel fê-la tremer: estaria ali, maltratado e faminto, um de seus pequeninos alunos?

    Sem demora, inúmeras mulheres se acorreram e se puseram a palrar em torno dela e da criança, como um bando de galinhas assustadas, à vista de alguma cobra. Nisto o cacique, coberto de tatuagens no rosto, no peito e nos braços, surgiu da oca central; espalhou, com um urro, aquele bando de mulheres, e se pôs a falar com o índio do baquité.

    Joana percebeu que o índio explicava ao chefe como apanhara o menino, quando dava milho às galinhas, no terreiro de sua casa. Como gritasse muito, tapara-lhe a boca e carregara-o para o mato, onde, no dia seguinte, se encontrara com os outros do bando. Viera sempre varando por dentro do cerrado fechado, para evitar encontro com os brancos.

    Mas o cacique não estava satisfeito. E indagou, irritado:

    _ Por que não trouxeram os curumins da Borora?

    Por esta pergunta, Joana verificou que eles conheciam a escola há muito tempo e haviam atacado com o plano de agarrar os alunos.

    O índio do baquité respondeu ao cacique que não havia curumim, que a oca da Borora estava vazia. O chefe indagou ainda:

    _ E que tem este curumim branco?

    _ Gritou tanto que morreu de gritar.

    O cacique se abaixou, pôs a mão sobre o nariz de Quinquim e afirmou:

    _ Não morreu não. Está dormindo. E se voltou para examinar a professora. Joana estava pálida e abatida de emoção e cansaço. Mas olhou firmemente o cacique. Este achou-a bela, tanto assim que sorriu e disse na língua geral:

    _ Cunhã porã!

    Mas logo em seguida cuspiu com desprezo, empurrou-a para o lado e disse:

    _ Orarimogodoque!

    Joana viu que ele não se enganara pois orarimogodoque é justamente o nome nativo dos índios Bororo. E ele a desprezava porque os Bororo são pacíficos e amigos dos brancos.

    _ Que devo fazer com os prisioneiros? Perguntou o índio do baquité.

    _ Ponha-os na oca vazia. As nossas mulheres lhes darão alimentos e os obrigarão a trabalhar, de amanha em diante.

    _ Mas o curumim, quando acordar, vai fazer um berreiro enorme e a aldeia acabará sendo descoberta pelo inimigo! Explicou o índio que aprisionara Quinquim.

    _ Pois se ele gritar levem-no para brincar com os nossos curumins, e ele logo se animará. Mas não o deixem fugir, concluiu o cacique afastando-se.

    Joana escutou também estas palavras, mas não deu a menor demonstração de haver compreendido. Continuou a olhar o chão em silêncio, embora uma enorme angústia tivesse invadido seu coração.

    E como já era noite, os prisioneiros foram levados para a oca. Quinquim não dava acordo de si.

    Mal ficaram sós, Joana Borora arrastou-se pelo chão e foi examinar, de perto, o rosto do menino. Em pouco seus olhos se acostumaram ao escuro, e ela percebeu que seu companheirinho era um menino desconhecido e não um de seus queridos alunos. Deitou-se então a seu lado, na terra batida, e dormiu profundamente.

 

10 - A Primeira Noite

 

    Alta noite, Quinquim acordou, chorando e chamando:

    _ Mãe! Mãe! Ó mãe!

    _ Que é, meu filho? Não chore que eu estou aqui, respondeu-lhe Joana Borora, com voz suave e carinhosa.

    Quinquim não se espantou de ouvir uma voz como a de sua mãe, porque ainda estava tonto de sono. E pediu:

    _ Acenda o lampião, mãe.

    Como poderia Joana atender àquele pedido? Numa oca de índios não há lampiões, e luz, na taba, só a das fogueiras... sua inteligência, porém, dava remédio para tudo. Por isso falou assim:

    _ Se eu acender a luz posso acordar seu pai: ele está muito cansado e precisa ir cedinho para o trabalho. Vamos falar portanto bem baixinho!

    Nisto Quinquim sentiu o corpo todo doído e percebeu que estava deitado no chão.

    _ Onde é que eu estou? Perguntou apalpando em torno. Por que não estou na rede?

    _ Você dormiu na rede. Mas teve um pesadelo e caiu...

    _ Um pesadelo? Que é isso?

    _ Sim, um sonho mau, com índios que o atacavam e o levavam prisioneiro, para muito longe...

    _ Então tudo foi um sonho?

    _ Foi, sim. Um sonho horrível! Você gritando...

    _ Então vou para a rede de novo.

    _ Não, meu filho, respondeu Joana Borora, segurando-o. Você já caiu duas vezes! Fique no chão mesmo; senão sonha de novo, cai outra vez, e a nova queda pode ser de mau jeito...

    _ Mas meu corpo está todo doído.

    _ Eu não disse? Dois tombos não são brincadeira! Imagine agora um terceiro! Deite a cabeça aqui no meu colo, que vou lhe contar uma história.

    E Joana Borora não esperou resposta: tomou o menino nos braços e aconchegou-o, maternalmente.

    _ Que história vai ser? Perguntou Quinquim, interessado e consolado com o carinho de Joana.

    _ Uma que você ainda não conhece. Uma história de jabuti. Você se  lembra das aventuras do jabuti?

    _ Qual?... Aquela com a onça?

    _ Aquela e qual mais?

    _ A da aposta com o veado?

    _ Sim... e qual mais?

    _ Aquela com a anta?

    _ Sim... E as outras?

    _ A do caipora, a do teiú, a dos meninos, a do homem...

    _ Muito bem! Já vejo que você se lembra de muitas. Então vou lhe explicar por que razão os índios consideram o jabuti o bicho mais esperto do mato e espalham essas histórias tão divertidas. Você quer saber?

    _ Quero, respondeu Quinquim.

    _ Quem olha um jabuti pensa que ele é o animal mais bobo do mundo, não pensa?

    _ Pensa.

    _ Mas nós sabemos que ele é o mais esperto de todos, não sabemos?

    _ Sabemos.

    _ Então por que será isso? Você sabe?

    _ Não.

    _ É que antigamente os jabutis eram moleirões e bobinhos como parecem ser hoje. Mas um dia, nasceu um jabuti que parecia igual aos outros; era,no entanto, bem diferente, muito curioso, perguntador e doido para saber tudo. Era um bicho extraordinário e tinha o nome de Carumbé _ avisou Joana Borora, acomodando melhor o menino em seu regaço. É a história desse jabuti que vou lhe contar hoje.

    Quinquim sentia-se feliz no aconchego daquele colo que parecia o de sua verdadeira mãe. E Joana Borora, para lhe dar aquela tranqüilidade, procurava esquecer a desgraça que caíra sobre a cabeça de ambos.

    Quando clareasse o dia, o pequeno prisioneiro estaria em melhores condições para conhecer a dura verdade; contava com sua afeição, teria confiança nela. E tudo havia de parecer aos dois menos terrível.

11 - A História de Carumbé

 

E Joana começou a contar:

    _ Carumbé nasceu à beira de um córrego, no fundo da floresta virgem. Era tão pequenino, tão pequenino, que poderia caber na palma da mão de uma criança. Mais parecia uma pedrinha escura e chata, polida pelo rodar contínuo das águas. Isso quando dormia. Acordado, porém, aquele pedregulho criava pernas, botava a cabecinha para fora e se mexia sem parar. Sim, porque o carumbezinho era um andejo de força maior e está para nascer menino mais curioso do que ele.

    Passara os primeiros dias de sua vida olhando as águas que corriam, corriam, sem nunca voltarem para trás. E aquilo o deixava intrigado! O rio não morava no alto da mataria, escondido nalgum buraco da terra?! Por que então as águas nunca voltavam para casa, como ele e seus quatorze irmãos gêmeos faziam, quando era hora de dormir?

    Às vezes esticava o pescoço e ficava olhando para cima. Contemplava as folhas do copado arvoredo, que tapavam quase todo o sol e o céu azul. Cada dia as folhas lhe pareciam mais distantes, mais altas, sempre subindo, subindo, curiosas de ver as nuvens de perto, sem saudade da terra...

    Se olhava em torno, via sempre os mesmos galhos, os mesmos troncos, os mesmos cipós emaranhados, as mesmas raízes contorcidas. E enchia os irmãos de perguntas: Será que na terra só há árvores, árvores e mais árvores?

    Os maninhos, porém, sabiam menos que ele e nem se davam ao trabalho de responder. Só queriam se divertir e catar frutos de taperebá, manjar predileto de todos os carumbés. Mergulhavam no rio, nadavam à vontade e voltavam para a areia, onde dormiam boas sonecas, encolhidinhos, na casca. Carumbé perguntava, perguntava, perguntava, e eles... moita! Desesperado com o silêncio dos irmãos, recorria à D. Jabota, pesadona e pachorrenta, mas sempre atarefada com os arranjos da toca:

    _ Mãe, ó mãe! Me diga uma coisa!

    _ Que coisa, Carumbé?

    _ Será que o mundo é uma floresta só?

    _ Você tem cada pergunta, Carumbé!

    _ Responda, mãe, que eu quero saber. É ou não é?

    D. Jabota tinha a cabeça fraca para pensar e ficava muito atrapalhada. Nunca lhe haviam falado nisso, nem lhe passara tal coisa pela mente. Seus antepassados haviam nascido e vivido naquelas redondezas e seu mundo era aquele mato... por isso hesitava um pouco, mas acabava dizendo:

    _ De certo que é!

    _ Então este mato não tem fim? Indagou ele.

    _ Tem sim, meu filho. Tudo tem fim.

    _ E no fim do mato o que é que há?

    _ Nada.

    _ Nada, o que é, mãe?

    _ Ora, meu filho, que pergunta! Nada, é nada...

    _ Ah! Eu queria ir no fim do mato para ver “nada” como é...

    _ Deixe de estar bobeando, meu filho. Seja como seus irmãos que não fazem perguntas. Olhe: jabuti não precisa pensar... Vá brincar e me deixe sossegada.

    Carumbé ia, mas ia triste, porque não se conformava em deixar de pensar... E tanto assim que ia pensando:

    _ Se é para não pensar, para que então a gente tem cabeça?!

    Desde esse momento já não fazia perguntas nem à mãe nem aos irmãos, mas a si mesmo. E jurou: um dia haveria de dar resposta à todas as suas dúvidas.

    Ora, uma tarde em que o céu estava enfarruscado, ameaçando chuva, ele foi até a beira d’água, olhou para a outra banda e lançou esta pergunta ao vento:

    _ Que haverá do outro lado do rio?

    O vento não respondeu. Nisto, a voz de taboca rachada pareceu zombar dele:

    _ Xué... xué... xué... xué...

    Carumbé voltou-se e deu com um grande sapo. Então indagou:

    _ É o sapo Xué?

    _ É... é... é...é... respondeu o sapo com a mesma ronqueira.

    _ Foi bom o senhor aparecer. Eu queria perguntar-lhe uma coisa...

    _ Que é?... que é?... que é?...

    _ É verdade que o senhor já atravessou o rio?

    _ É... é... é... é...

    _ Então me diga: o que tem do outro lado do mato?

    _ É... é... é... é...

    _ Só mato?

    _ É... é... é... é...

    Então começou a choveu. Carumé voltou desenxabido para a toca, enquanto o sapo grande recomeçava a sua cantilena:

    _ Xué... xué... xué... xué...

    Joana Borora ia continuar a história quando reparou que o menino dormia... A cantilena do sapo Xué dera ótimo resultado. Por isso ela aproveitou o tempo para dormir também até o amanhecer.

 

12 - A Segunda Mãe

 

Quando o dia clareou, Quinquim abriu os olhos e viu Joana Borora já acordada olhando para ele com ternura. Teve um sobressalto e perguntou, sentando-se:

    _ Quem é você?

    _ Psiu! Disse ela, pondo o indicador sobre os lábios. Você é um menino inteligente e corajoso! Escute o que vou dizer e não se espante nem fale alto, porque temos de conversar um segredo. Você gosta de segredo?

    Quinquim respondeu, com um ar meio assustado:

    _ Gosto.

    _ Então me diga o seu primeiro nome.

   O menino esfregou os olhos, arregalou-os para a professora e respondeu:

    _ Meu nome é Quinquim.

    _ Como?

    _ Meu nome é Joaquim Pereira Venâncio, mas me chamam de Quinquim.

    _ Muito bem, Quinquim. Agora você vai ficar sabendo quem eu sou: fui batizada com o nome de Joana Maria dos Anjos, mas me tratam de Joana Borora, porque sou filha de um cacique dos índios Bororo.

    Quinquim teve um sorriso de compreensão e mudou logo de tratamento:

    _ Ah! A senhora é que é a mestra da vila de Poxoreu?

    _ Sou eu mesma! Você me conhecia?

    _ Meu pai que falou. Ele quer em botar na sua escola, para a senhora me ensinar a tomar conta de mim, quando ele estiver no trabalho.

    Só aí Quinquim percebeu que não tinha roupa e que a professora se achava apenas coberta com uma pele de maracajá. Ia indagar a razão disso, quando Joana explicou:

    _ Pois então?! Já estou tomando conta de você...

    Ao ouvir essas palavras, Quinquim, que já estava bem acordado, olhou em volta da oca e para o teto baixo em forma de abóboda, e teve uma decepção:

    _ A escola é este forno?

    _ Não, Quinquim. A escola não é aqui.

    _ Onde é que estamos, então?

    _ Espere, que vou lhe contar. Você se lembra que teve um pesadelo?

    _ Foi sim, um sonho mau.

    _ Isso mesmo: um sonho mau, com índios...

    _ Lembro, sim.

    _ Lembra-se que caiu da rede duas vezes?

    _ É mesmo.

    _ Lembra-se também da história do Carumbé que comecei a contar-lhe? Continuou Joana, a despertar, com cuidado, a memória do menino.

    _ Ah, já sei! Agora estou compreendendo: foi a senhora que em contou a história e eu pensei que era minha mãe que ainda estivesse viva.

    _ Então, vamos fazer um trato: eu fico sendo sua segunda mãe. Está bem?

    _ Está, respondeu Quinquim, sem muito entusiasmo.

    _ Mas as mães e os filhos se abraçam, não é?

    _ É, sim senhora.

    _ Então venha me dar um abraço, meu filho.

    Os dois se abraçaram silenciosamente.

    E foi assim, abraçados, que Joana Borora contou a Quinquim a terrível verdade, falando-lhe baixinho, rente ao ouvido:

    _ Quinquim!

    _ Senhora!

    _ Você tem confiança em sua segunda mãe?

    _ Tenho.

    _ Se eu lhe disser que não tenha medo, você terá medo?

    _ Não.

    _ Então vou lhe contar uma coisa, mas não tenha medo!

    _ Que coisa?

    _ O pesadelo que você teve não foi sonho não.

    _ Então o que foi?

    _ Foi verdade.

    _ Verdade? Perguntou ele, erguendo a voz com assombro.

    Joana apertou-o ainda mais nos braços recomendando:

    _ Quietinho! Foi verdade, mas não aconteceu desgraça nenhuma. Você está vivinho e eu estou aqui para fazer-lhe companhia até seu pai chegar.

    _ Quando é que ele vai chegar?

    _ Chega logo. Qualquer dia. A esta hora já está a caminho. Mesmo que ele demore um pouco, fique descansado que ele chega.

    _ Mas ele sabe onde eu estou?

    _ Na certa sabe. Mas se não souber não tem importância porque ele descobre logo.

    _ E onde é que eu estou? Perguntou ainda Quinquim.

    _ Já vou contar. Mas quero saber primeiro como é que os índios trouxeram você para cá.

13 - O Caso de Quinquim

 

    E o menino começou a contar:

    _ Foi assim: Meu pai me deixou só em casa porque eu estava com muito sono. Assim que o sol esquentou, porém, despertei e pulei da rede. Senti fome e almocei. Meu pai não queria que eu abrisse a porta por causa da “pintada”. Então fui para a janela. Nisso, ouvi as galinhas cacarejando e pensei:

    _ Coitadas! Devem estar com fome. Vai ver que o meu pai se esqueceu delas.

    Enchi uma cuia de milho e abri a porta sem me lembrar da ordem. Fiquei entretido um bocado, jogando milho dentro do galinheiro e vendo a briga delas por causa dos grãos. Quando em virei para guardar a cuia vazia, que susto! Imagine que dei com um índio atrás de mim! Quis correr, mas ele me agarrou com tanta força que quase me quebrou os ossos. Gritei como um doido! Ele, porém, me tapou a boca e, pegando-me ao colo, correu comigo para o mato. Fiquei sem ar, de tanto que ele me apertava a boca. Mas sempre que podia, gritava!... Afinal, lá longe, ele me meteu num cesto, fechou-o e botou-o nas costas. Eu gritei, gritei, gritei, até que não pude mais. Então dormi. Quando acordei, no outro dia, estava solto, mas vários índios me espiavam. Comecei a gritar outra vez. Eles em deram frutas do mato, mas não aceitei. Então me puseram de novo no cesto e tocaram para adiante. E só paravam para abrir o cesto e me oferecer alguma coisa para comer. No princípio, eu só gritava. Acho que não tinha ninguém no mato caçando ou tirando lenha, não é? Ninguém me ouviu!

    Aí eu estava com muita fome e comecei a aceitar tudo que me davam. Até uma perna de macaco, que eles pegaram eu assaram, eu comi... faltava sal, mas estava boa.

    Depois da segunda noite, sentia o corpo doído de estar todo o tempo encolhido, de mau jeito, no cesto. Tive medo, comecei a gritar e a chorar de dor, até que perdi o acordo de mim, acho...

    _ Então, agora, já adivinhou para onde o trouxeram...

    _ Para este forno grande.

    _ Forno, Quinquim? Isto não é um forno, é uma cabana de índio.

    _ Eles moram aqui?! Nós vamos morar com eles?!

    _ Não, esta oca é só nossa! Só nós dois é que vamos morar aqui até que seu pai venha. Você não quer morar comigo?

    _ Quero.

    _ Então? Não estamos tão mal assim.

    _ Mas onde é que eles moram?

    _ Nas outras ocas, vizinhas desta. Quando você sair, verá.

    _ Eu queria ir embora. Por que não vamos?

    _ Porque eles não deixam.

    _ A senhora podia pedir...

    _ Eles não me atendem.

    _ Mas não são seus amigos?

    _ Não, são inimigos. A minha raça é Bororo e eles são Xavante.

    _ Os Xavante não gostam dos Bororo?

    _ Não.

    _ Então estamos presos? Que vai ser de nós?! Perguntou Quinquim, compreendendo afinal todo o horror da situação.

    _ Sim, meu filho, estamos presos, mas não se assuste, porque me prenderam também e eu não tenho medo deles. Sei que eles são valentes, vingativos e guerreiros. Mas não são malvados. E, vendo que o menino começara a tremer, apertou-o de encontro ao peito, explicando:

    _ Faça tudo o que eu mandar, que eles não lhe causarão mal algum. Se seu pai demorar eu arranjarei um jeito de fugir. E quando menos esperarmos, estaremos livres, em Poxoreu, tomando parte de uma grande festa, está bem?

    _ Está, respondeu Quinquim. Mas como foi que prenderam a senhora?

    Joana Borora aproveitou a pergunta para contar ao menino a sua história e encorajá-lo com a certeza de que todos os homens de Poxoreu viriam em socorro deles. Isso somando com Quincas Venâncio e seus companheiros, formaria uma tropa formidável.

    _ E nada de medo, ouviu? Recomendou ela por fim.

    O menino ganhou uma grande animação e sorriu, orgulhoso, imaginando seu pai à frente de tantos cavaleiros invencíveis! Mas ainda perguntou:

    _ Será que ele não vai ficar zangado de eu ter desobedecido?

    _ Não. Ele sabe que você já recebeu um grande castigo... Demais ficará tão alegre quando o encontrar de novo que vai esquecer tudo!

    Levantando-se, então, meio acurvada para não bater no teto da oca, disse:

    _ Agora, vamos sair, para ver como é que vão tratar seus hóspedes. Vamos comer o que eles nos derem e vamos fingir que tudo é muito gostoso.

    _ Mas eu vou sair nu? Indagou, aflito, Quinquim.

    _ Você vai sair só com a roupinha que Deus lhe deu. Não se envergonhe. É preciso viver entre os índios como eles vivem.

    E tomando a mão do menino, a professora levou-o para o terreiro.

 

14 - Os Espinhos de Ouriço

 

    Àquela hora da manhã, toda a maloca estava deserta: os homens deviam andar na caça, os curumins brincavam nas moitas, as mulheres tomavam banho no rio. Isso queria dizer que os Xavante não tinham cuidado com os prisioneiros: uma mulher e um menino não precisam ser muito vigiados. Sabiam, além disso, com certeza, que a fuga era impossível!

    A princípio, Quinquim caminhou hesitante, com receio de rever os índios que o haviam aprisionado. Olhou para as cabanas construídas em torno do terreiro circular. Admirou-se que, em todas, a abertura de entrada fosse tão baixinha que não daria para um homem, alto como seu pai, entrar de pé. Mas o vozerio das mulheres, lápara as bandas do rio, vinha até ele. E Joana perguntou:

    _ Quinquim, você sabe nadar?

    _ Um pouquinho. Meu pai ia me ensinar.

    _ Pois então vamos ao rio, que eu ensino. Assim, quando seu pai chegar, você já sabe e lhe faz uma surpresa. Quer?

  _ 



Ler mais: http://encontos.webnode.com.br/products/cem-noites-tapuias/
Crie o seu website grátis: http://www.webnode.pt

 

 

AUTORIA, PESQUISA, REVISÃO, ORGANIZAÇÃO: JOSÉ CARLOS DUTRA DO CARMO.

SITEwww.sitenotadez.net, já acessado por quase 10 milhões de pessoas.

E-MAILsitenotadez@sitenotadez.net

As mais belas crônicas escritas pelos escritores mais consagrados do Brasil.

Ler é estimulante e essencial.

A leitura habitual e incessante provoca experiências místicas e rompe muros da mediocridade e da ignorância, inspirando o espírito a avançar em direção da luz, da sabedoria e do aprendizado ilimitado.

Um texto pode fazer-nos vivenciar épocas de guerras, tristezas e alegrias.

Nada desenvolve mais a capacidade verbal que a leitura de livros, que até nos ajudam a sonhar e a pensar com mais nitidez.

Enfim, a boa leitura enriquece a alma e o espírito.

IMPORTANTÍSSIMO. Informo aos escritores, seus representantes legais e respectivas editoras, detentores dos direitos autorais dos textos que aparecem neste arquivo, que eles serão imediatamente removidos do SITE caso assim o queiram.

1. ADÉLIA PRADO. Depois de muita e boa chuva, Célia voltava de Belo Horizonte para sua casa no interior do Estado. Era bom viajar de ônibus, vendo, parecia-lhe que pela primeira vez, o verde rebrotando com força. Ouviu um passageiro falando pra ninguém: que cheiro de mato! Sol farto e os moradores desses conjuntos habitacionais de caixa de papelão e zinco, que brotam como grama à margem das rodovias, aproveitavam pra esquentar o couro rodeados de criança e cachorro. Os deserdados desfilavam, a moça e seu namorado com bota de imitação de peão boiadeiro iam de mãos dadas, com certeza à casa de uma tia da moça, comunicar que pretendiam se casar. Uma avó gorda com seu neto também passou, ela de sombrinha, ele de calcinha comprida de tergal. Iam aonde? Célia fantasiou, ah, com certeza na casa de uma comadre da avó, uma amiga dela de juventude. O menino ia sentir demais a morte daquela avó que lhe pegava na mão de um jeito que nem sua mãe fazia. Desceram três moços de bermuda e camisa do Clube Atlético Mineiro, e um quarto com grande inscrição na camiseta: SÓ CRISTO SALVA! Camiseta e bermuda não favorecem a ninguém, ela pensou desgostosa com a feiúra das roupas. Bermudas principalmente, teria que se ter menos de dez anos pra se usar aquela invenção horrorosa. Teve dó dos moços que só conheciam futebol e dupla sertaneja. Foi um pensamento soberbo, se arrependeu na hora. Tinha preconceitos, lembrou-se de que gostara muito de um jogo de futebol em Londrina, rodeada de palavrões e chup-chup com água de torneira e famílias inteiras se esturricando gozosamente entre pão com molho e adjetivos brutais, prodigiosamente colocados, lindos e surpreendentes como as melhores invenções da poesia. Concluiu sonolenta, o mundo está certo. Uma criança começou a chorar muito alto: quero ficar aqui não, quero sentar com meu pai, quero o meu pai. A mãe parecia muito agoniada e pelo tom do choro Célia achou que ela abafava a boca da criança com uma fralda ou a apertava raivosa contra o peito, envergonhada de ter filha chorona. Suposições. Tudo estava muito bom naquele dia, não sofria com nada, nem ao menos quis ajudar a mãe, botar a menina no colo, estas coisas em que era presta e mestra. Assistia ao mundo, rodava macio tudo, o ônibus, a vida, nem protagonista nem autora, era figurante, nem ao menos fazia o ponto naquele teatro perfeito, era só platéia. Aplaudia, gostando sinceramente de tudo. Contra céu azul e cheiro de mato verde Deus regia o planeta. Estava muito surpresa com a perfeita mecânica do mundo e muitíssimo agradecida por estar vivendo. Foi quando teve o pensamento de que tudo que nasce deve mesmo nascer sem empecilho, mesmo que os nascituros formem hordas e hordas de miseráveis e os governos não saibam mais o que fazer com os sem-teto, os sem-terra, os sem-dentes e as igrejas todas reunidas em concílio esgotem suas teologias sobre caridade discernida e não tenhamos mais tempo de atender à porta a multidão de pedintes. Ainda assim, a vida é maior, o direito de nascer e morar num caixote à beira da estrada. Porque um dia, e pode ser um único dia em sua vida, um deserdado daqueles sai de seu buraco à noite e se maravilha. Chama seu compadre de infortúnio: vem cá, homem, repara se já viu o céu mais estrelado e mais bonito que este! Para isto vale nascer.

2. ADÉLIA PRADOTenho um pouco de pudor de contar, mas só um pouco, porque sei que vou acabar contando mesmo. É porque lá em casa a gente não podia falar nem diabo, que levava sabão, quanto mais... ah, no fim eu falo. Coisa do Teodoro, ele quem me contou, você sabe, marido depois de um certo tempo de casamento fala certas coisas com a mulher. O seu não fala? Pois é, e de novo tem um tempão que aconteceu. Lembra aquela história dos queijos? Igual. Demorou um par de anos pra me contar. O pessoal dele é assim, sem pressa. Tem uma história deles lá, que o pai dele, meu sogro, esperou 52 anos pra relatar. Diz ele que esperou os protagonistas morrerem. Tem condição? Mas o Teodoro — foi quando a gente mudou pra casa nova — teve de ir nas Goiabeiras tratar um marceneiro e passou, pra aproveitar, na casa da tia dele, a Carlina do Afonso, e encontrou lá o Gomide. Tou encompridando, acho que é só por medo do fim, mas agora já comecei, então. Então, diz o Teodoro, que o Gomide tirou do bolso do paletó uma trouxinha de palha de milho, cortadas elas todas iguaizinhas e amarradas com uma embirinha da mesma palha. Escolheu, escolheu, pegou uma bem lisa e bem branquinha, tirou o canivete do outro bolso, lambeu a palha pra lá, pra cá, e ficou um tempão lhe passando firme a lâmina, do meio pras pontas, de ponta a ponta, entremeando com lambidas. Depois, ainda segurando a palha entre os dedos, foi a hora de tirar e picar o fumo de rolo bem fininho. Ia picando e pondo na concha da mão. Acabou, guardou o rolo e ficou socavando o fumo na mão com a ponta do canivete. Depois pegou a palha, mais uma lambida e foi pondo nela o fumo, espalhando ele por igual na canaleta formada, pressionando bem pra ficar bem firme. Deu mais uma lambida na parte mais próxima do fumo e com os polegares e indicadores foi enrolando o cigarro devagarinho, uma enrolada e uma lambida, uma enrolada e uma lambida. Com o canivete dobrou uma das pontas para o fumo não escapar, tirou a binga do bolso, acendeu e pegou a pitar. Agora é que vem, ai, ai. Teodoro falou que o tempo todo da operação ele não despregava o olho daquilo. Disse que nem sabe o que tia Carlina arengava, só punha sentido no Gomide fazendo o pito. Diz ele que foi uma coisa tão esquisita — esquisita, não —, tão encantada que ele ficou de pau duro. É isso. Falou também que ficou doido pra sair dali, comprar palha, fumo de rolo e repetir tudo igualzinho ao Gomide. Eu entendo. Quando conheci o Teodoro, ele fumava e eu achava muito emocionante. Tenho muita saudade de quando não existia essa amolação de cigarro dar câncer, nem de mulher ser magra. A gente tinha mais tempo para o que precisa, não é mesmo? Será que faz mal mesmo? Colesterol, depois de tanto barulho, estão falando que já tem do bom. Qualquer dia vou pedir ao Teodoro pra dar uma fumadinha, só pra fazer tipo.

3. ADÉLIA PRADO. E o locutor da festinha continuou empolgado, fazendo bonito pra sua mulher, que deixara, naquela noite, comparecer ao seu trabalho, tendo-lhe adquirido, ele próprio, o convite. ... "porque, além de militar reformado da PPMG, é ainda o proprietário do animado Bar Central, o avô da nossa Lesliene, a feliz aniversariante desta noite.” Quando disse "nossa Lesliene”, acreditou desapontado que a mulher não salvava sua inventividade narrativa. Arrependeu-se de tê-la trazido e insistiu com o moço do vídeo para que filmasse mais à esquerda do palco, a mesa da dona da festa. De verdade, queria mesmo é que a mãe de seus filhos não aparecesse no filme; uma mulher que não passava uma sexta-feira sem encher latas e latas de biscoitos e só sabia ir em festa daquele mesmo jeito: saia preta, blusa de seda, por fora, pra disfarçar as ancas e arquinho na cabeça — putisgrila —, desse tinha vários de diversas cores, devia se achar nua sem o arco nos cabelos, logo ele, um homem conhecido, com aquele talento incrível para animar festas. “... agora, senhoras e senhores, o momento tão esperado em que a nossa — olhou de novo pra mulher olhando pra ele embevecida, se esquecendo de ficar em pé —, a nossa festejada Lesliene, a menina-moça da noite, vai apagar as merecidas velinhas.” Ai, será que estava certo dizer “merecidas velinhas”? Achou ótimo ser o locutor e estar dispensado de dançar com a mulher, que não conseguia terminar o pratinho, bebendo guaraná em pequenos goles. Pensou ter sido um erro tê-la trazido à festa. Se sentia desconfortável, inseguro dos adjetivos, querendo tirar a gravata e mostrar pras pessoas o que o roqueiro doidão mostrou durante um show e acabou preso. Gente do céu, o que está acontecendo comigo? Olhou para o avô, da Lesliene. Um filho da mãe, esse "militar reformado" espancador de presos. Nem que a marica estica eu falo mais o nome dele aqui, E essa Lesliene está me saindo uma perua e tanto. Então isto é salto para uma menina de quinze anos? “... e agora, senhores — esqueceu das senhoras —, o Toniquinho do Arlindo vai tocar a valsa que a aniversariante dançará com o pai dela.” Não disse "o talentoso músico Antônio Miranda, filho do nosso popular Zico Miranda, tocará a valsa que Lesliene dançará com o seu progenitor". Meio escondida por uma coluna do salão, sua mulher ainda não terminara os salgadinhos. Finíssima. Lembrou que ela lhe aconselhara trocar de camisa, "você fica melhor com a de linho creme". Teve vontade de chorar e ao mesmo tempo sentiu raiva daquele amor paciente e silencioso, capaz de morrer por ele. Foram pra casa calados. Quando se virou pro canto, um homem roubado, ela disse: você fala tão bonito, Raimundo! — Pois você fique sabendo que de hoje em diante não pego mais bico de locução noturna. Já tou cheio disso. Vou reabrir minha oficina que é melhor negócio. — Acho pena, você fala tão bem! — Cremilda, se eu te pedir, você nunca mais põe arquinho no cabelo? Dá pra sua irmã aquele conjunto de saia e blusa? Você me perdoa? Não entendia bem o discurso do marido, estranho naquela noite, mas era uma verdadeira mulher, fez como Nossa Senhora, disse sim ao senhor. E Raimundo fez com ela o que faz um homem competente para deixar feliz sua mulher.

4. ADÉLIA PRADO. Tinha, como direi, eu, que sou uma senhora a seu modo pacata e até pudica, uma, ou melhor, um derrière esplendido. Não é preciso ser homem pra essas avaliações. Firme em definidos e perfeitos contornos, rebelde ao disfarce das saias e anáguas daquele tempo, inscrevia-se na cara de sua dona, que, movendo os olhos como as ancas, subia a rua em falsa pudicicia, apregoando-se: tenho. Os homens ficavam loucos. Eu era mocinha boba e escutei no armazém do Calixto ele dizer pro Teodoro, meu futuro marido, naquele tempo preocupado em fazer bodoques de goma: eh, ferro! O Vicente não vai dar conta daquela ali, não. É preciso muita saúde. Calixto falava com o Teodoro do que eu suspeitava serem os tesouros da Oldalisa e ela nem aí, toda toda, sobe e desce rua. Exatamente o que era me escapava, só podia ser coisa de homem e mulher. Felicitei-me por estar viva e participar de segredos tão  excitantes. O Vicente era muito magrinho, não jogava bola, não nadava, "não salientava em nada", o Vicente Cisquim. Pois foi dele que a Raimunda — como o Calixto chamou ela naquele dia — gostou.  Casaram e tiveram pencas de filhos. O Calixto ficou chupando o dedo. Ser bonitão e dono de armazém não contou ponto pra ele. Pois é, falou o Teodoro, hoje, assim que botou o pé em casa: O que é a tecnologia, hein? Tecnologia? É o avanço da medicina. Teodoro falava era do avanço do tempo. Tou aqui matutando, disse ele, porque a Oldalisa escolheu o Vicente, não tem base. Tô vendo aquela dona pegando as compras no caixa e... Plim! Era ela, a velha senhora. A Oldalisa do Vicente? É. O Vicente estava junto? Não. Estava com duas alianças e um menino, neto dela com certeza. Será que o Vicente morreu da praga do Calixto? Acho que não, porque eu procurei o traseiro da Oldalisa e nada da olda, só mesmo a lisa, magra e murcha. Ter encontrado a Oldalisa expropriada de seu dote mais tentador deixou Teodoro bem filosofante sobre as agruras do corpo. Teria ele também sido um apaixonado da Oldalisa e eu corrido sérios riscos? Porque amor não olha idade, não é mesmo? Agora, daquela do escritório eu tive, medo não, por causa de meus outros poderes, tive inveja. A uma cintura de vespa seguia-se, instruída e fatal, o que a Oldalisa trazia com inocência. Batia à máquina, agarradinha no Teodoro, de saia justa e batom cor de sangue. O apelido dela na firma era Corrosiva, e foi Teodoro quem pôs. Se chamava Rosiva, a perigosa. Imagina o risco que eu corri.

5. AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA. O CRONISTA É UM ESCRITOR CRÔNICO. O primeiro texto que publiquei em jornal foi uma crônica. Devia ter eu lá uns 16 ou 17 anos. E aí fui tomando gosto. Dos jornais de Juiz de Fora, passei para os jornais e revistas de Belo Horizonte e depois para a imprensa do Rio e São Paulo. Fiz de tudo (ou quase tudo) em jornal: de repórter policial a crítico literário. Mas foi somente quando me chamaram para substituir Drummond no Jornal do Brasil, em 1984, que passei a fazer crônica sistematicamente. Virei um escritor crônico. O que é um cronista? Luís Fernando Veríssimo diz que o cronista é como uma galinha, bota seu ovo regularmente. Carlos Eduardo Novaes diz que crônicas são como laranjas, podem ser doces ou azedas e ser consumidas em gomos ou pedaços, na poltrona de casa ou espremidas na sala de aula. Já andei dizendo que o cronista é um estilita. Não confundam, por enquanto, com estilista. Estilita era o santo que ficava anos e anos em cima de uma coluna, no deserto, meditando e pregando. São Simeão passou trinta anos assim, exposto ao sol e à chuva. Claro que de tanto purificar seu estilo diariamente o cronista estilita acaba virando um estilista. O cronista é isso: fica pregando lá em cima de sua coluna no jornal. Por isto, há uma certa confusão entre colunista e cronista, assim como há outra confusão entre articulista e cronista. O articulista escreve textos expositivos e defende temas e idéias. O cronista é o mais livre dos redatores de um jornal. Ele pode ser subjetivo. Pode (e deve) falar na primeira pessoa sem envergonhar-se. Seu "eu", como o do poeta, é um eu de utilidade pública. Que tipo de crônica escrevo? De vários tipos. Conto casos, faço descrições, anoto momentos líricos, faço críticas sociais. Uma das funções da crônica é interferir no cotidiano. Claro que essas que interferem mais cruamente em assuntos momentosos tendem a perder sua atualidade quando publicadas em livro. Não tem importância. O cronista é crônico, ligado ao tempo, deve estar encharcado, doente de seu tempo e ao mesmo tempo pairar acima dele.

6. AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA. AMOR-O INTERMINÁVEL APRENDIZADO. Criança, ele pensava: amor, coisa que os adultos sabem. Via-os aos pares namorando nos portões enluarados se entrebuscando numa aflição feliz de mãos na folhagem das anáguas. Via-os noivos se comprometendo à luz da sala ante a família, ante as mobílias; via-os casados, um ancorado no corpo do outro, e pensava: amor, coisa-para-depois, um depois-adulto-aprendizado. Se enganava. Se enganava porque o aprendizado de amor não tem começo nem é privilégio aos adultos reservado. Sim, o amor é um interminável aprendizado. Por isto se enganava enquanto olhava com os colegas, de dentro dos arbustos do jardim, os casais que nos portões se amavam. Sim, se pesquisavam numa prospecção de veios e grutas, num desdobramento de noturnos mapas seguindo o astrolábio dos luares, mas nem por isto se encontravam. E quando algum amante desaparecia ou se afastava, não era porque estava saciado. Isto aprenderia depois. É que fora buscar outro amor, a busca recomeçara, pois a fome de amor não sabia nunca, como ali já não se saciara. De fato, reparando nos vizinhos, podia observar. Mesmo os casados, atrás da aparente tranqüilidade, continuavam inquietos. Alguns eram mais indiscretos. A vizinha casada deu para namorar. Aquele que era um crente fiel, sempre na igreja, um dia jogou tudo para cima e amigou-se com uma jovem. E a mulher que morava em frente da farmácia, tão doméstica e feliz, de repente fugiu com um boêmio, largando marido e filhos. Então, constatou, de novo se enganara. Os adultos, mesmo os casados, embora pareçam um porto onde as naus já atracaram, os adultos, mesmo os casados, que parecem arbustos cujas raízes já se entrançaram, eles também não sabem, estão no meio da viagem, e só eles sabem quantas tempestades enfrentaram e quantas vezes naufragaram. Depois de folhear um, dez, centenas de corpos avulsos tentando o amor verbalizar, entrou numa biblioteca. Ali estavam as grandes paixões. Os poetas e novelistas deveriam saber das coisas. Julietas se debruçavam apunhaladas sobre o corpo morto dos Romeus, Tristãos e Isoldas tomavam o filtro do amor e ficavam condenados à traição daqueles que mais amavam e sem poderem realizar o amor. O amor se procurava. E se encontrando, desesperava, se afastava, desencontrava. Então, pensou: há o amor, há o desejo e há a paixão. O desejo é assim: quer imediata e pronta realização. É indistinto. Por alguém que, de repente, se ilumina nas taças de uma festa, por alguém que de repente dobra a perna de uma maneira irresistivelmente feminina. Já a paixão é outra coisa. O desejo não é nada pessoal. A paixão é um vendaval. Funde um no outro, é egoísta e, em muitos casos, fatal. O amor soma desejo e paixão, é a arte das artes, é arte final. Mas reparou: amor às vezes coincide com a paixão, às vezes não. Amor às vezes coincide com o desejo, às vezes não. Amor às vezes coincide com o casamento, às vezes não. E mais complicado ainda: amor às vezes coincide com o amor, às vezes não. Absurdo. Como pode o amor não coincidir consigo mesmo? Adolescente amava de um jeito. Adulto amava melhormente de outro. Quando viesse a velhice, como amaria finalmente? Há um amor dos vinte, um amor dos cinqüenta e outro dos oitenta? Coisa de demente. Não era só a estória e as estórias do seu amor. Na história universal do amor, amou-se sempre diferentemente, embora parecesse ser sempre o mesmo amor de antigamente. Estava sempre perplexo. Olhava para os outros, olhava para si mesmo ensimesmado. Não havia jeito. O amor era o mesmo e sempre diferenciado. O amor se aprendia sempre, mas do amor não terminava nunca o aprendizado. Optou por aceitar a sua ignorância. Em matéria de amor, escolar, era um repetente conformado. E na escola do amor declarou-se eternamente matriculado.

7. AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA. FAZER 30 ANOS. Quatro pessoas, num mesmo dia, me dizem que vão fazer 30 anos. E me anunciam isto com uma certa gravidade. Nenhuma está dizendo: vou tomar um sorvete na esquina, ou: vou ali comprar um jornal. Na verdade estão proclamando: vou fazer 30 anos e, por favor, prestem atenção, quero cumplicidade, porque estou no limiar de alguma coisa grave. Antes dos 30 as coisas são diferentes. Claro que há algumas datas significativas, mas fazer 7, 14, 18 ou 21 é ir numa escalada montanha acima, enquanto fazer 30 anos é chegar no primeiro grande patamar de onde se pode mais agudamente descortinar. Fazer 40, 50 ou 60 é um outro ritual, uma outra crônica, e um dia eu chego lá. Mas fazer 30 anos é mais que um rito de passagem, é um rito de iniciação, um ato realmente inaugural. Talvez haja quem faça 30 anos aos 25, outros aos 45, e alguns, nunca. Sei que tem gente que não fará jamais 30 anos. Não há como obrigá-los. Não sabem o que perdem os que não querem celebrar os 30 anos. Fazer 30 anos é coisa fina, é começar a provar do néctar dos deuses e descobrir que sabor tem a eternidade. O paladar, o tato, o olfato, a visão e todos os sentidos estão começando a tirar prazeres indizíveis das coisas. Fazer 30 anos, bem poderia dizer Clarice Lispector, é cair em área sagrada. Até os 30, me dizia um amigo, a gente vai emitindo promissórias. A partir daí é hora de começar a pagar. Mas também se poderia dizer: até essa idade fez-se o aprendizado básico. Cumpriu-se o longo ciclo escolar, que parecia interminável, já se foi do primário ao doutorado. A profissão já deve ter sido escolhida. Já se teve a primeira mesa de trabalho, escritório ou negócio. Já se casou a primeira vez, já se teve o primeiro filho. A vida já se inaugurou em fraldas, fotos, festas, viagens, todo tipo de viagens, até das drogas já retornou quem tinha que retornar. Quando alguém faz 30 anos, não creiam que seja uma coisa fácil. Não é simplesmente, como num jogo de amarelinha, pular da casa dos 29 para a dos 30 saltitantemente. Fazer 30 anos é cair numa epifania. Fazer 30 anos é como ir à Europa pela primeira vez. Fazer 30 anos é como o mineiro vê pela primeira vez o mar. Um dia eu fiz 30 anos. Estava ali no estrangeiro, estranho em toda a estranheza do ser, à beira-mar, na Califórnia. Era um homem e seus trinta anos. Mais que isto: um homem e seus trinta amos. Um homem e seus trinta corpos, como os anéis de um tronco, cheio de eus e nós, arborizado, arborizando, ao sol e a sós. Na verdade, fazer 30 anos não é para qualquer um. Fazer 30 anos é, de repente, descobrir-se no tempo. Antes, vive-se no espaço. Viver no espaço é mais fácil e deslizante. É mais corporal e objetivo. Pode-se patinar e esquiar amplamente. Mas fazer 30 anos é como sair do espaço e penetrar no tempo. E penetrar no tempo é mister de grande responsabilidade. É descobrir outra dimensão além dos dedos da mão. É como se algo mais denso se tivesse criado sob a couraça da casca. Algo, no entanto, mais tênue que uma membrana. Algo como um centro, às vezes móvel, é verdade, mas um centro de dor colorido. Algo mais que uma nebulosa, algo assim pulsante que se entreabrisse em sementes. Aos 30 já se aprendeu os limites da ilha, já se sabe de onde sopram os tufões e, como o náufrago que se salva, é hora de se autocartografar. Já se sabe que um tempo em nós destila, que no tempo nos deslocamos, que no tempo a gente se dilui e se dilema. Fazer 30 anos é como uma pedra que já não precisa exibir preciosidade, porque já não cabe em preços. É como a ave que canta, não para se denunciar, senão para amanhecer. Fazer 30 anos é passar da reta à curva. Fazer 30 anos é passar da quantidade à qualidade. Fazer 30 anos é passar do espaço ao tempo. É quando se operam maravilhas como a um cego em Jericó. Fazer 30 anos é mais do que chegar ao primeiro grande patamar. É mais que poder olhar pra trás. Chegar aos 30 é hora de se abismar. Por isto é necessário ter asas, e sobre o abismo voar.

8. AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA. A MULHER MADURA. O rosto da mulher madura entrou na moldura de meus olhos. De repente, a surpreendo num banco olhando de soslaio, aguardando sua vez no balcão. Outras vezes ela passa por mim na rua entre os camelôs. Vezes outras a entrevejo no espelho de uma joalheria. A mulher madura, com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz grega, tem qualquer coisa de Melina Mercouri ou de Anouke Aimé. Há uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosamente. A adolescente não sabe ainda os limites de seu corpo e vai florescendo estabanada. É como um nadador principiante, faz muito barulho, joga muita água para os lados. Enfim, desborda. A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem algo do repouso da garça sobre o lago. Seu olhar sobre os objetos não é de gula ou de concupiscência. Seus olhos não violam as coisas, mas as envolvem ternamente. Sabem a distância entre seu corpo e o mundo. A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco, inteira. Não é um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs. A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem dos dentes e dos olhos, nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em suas formas. E até no gozo ela soa com a profundidade de um violoncelo e a sutileza de um oboé sobre a campina do leito. A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria. Ela chorou na madrugada e abriu-se em opaco espanto. Ela conheceu a traição e ela mesma saiu sozinha para se deixar invadir pela dimensão de outros corpos. Por isto as suas mãos são líricas no drama e repõem no seu corpo um aprendizado da macia paina de setembro e abril. O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela conhece seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa. Sei que falo de uma certa mulher madura localizada numa classe social, e os mais politizados têm que ter condescendência e me entender. A maturidade também vem à mulher pobre, mas vem com tal violência que o verde se perverte e sobre os casebres e corpos tudo se reveste de uma marrom tristeza. Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho interior. Talvez a sua aura se inscreva melhor no olho exterior, que a maturidade é também algo que o outro nos confere, complementarmente. Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos revelador. Cada idade tem seu esplendor. É um equívoco pensá-lo apenas como um relâmpago de juventude, um brilho de raquetes e pernas sobre as praias do tempo. Cada idade tem seu brilho e é preciso que cada um descubra o fulgor do próprio corpo. A mulher madura está pronta para algo definitivo. Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça de Siena à tarde acompanhando com o complacente olhar o vôo das andorinhas e as crianças a brincar. A mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta para ir à Grécia. Descolou-se da superfície das coisas. Merece profundidades. Por isto, pode-se dizer que a mulher madura não ostenta jóias. As jóias brotaram de seu tronco, incorporaram-se naturalmente ao seu rosto, como se fossem prendas do tempo. A mulher madura é um ser luminoso é repousante às quatro horas da tarde, quando as sereias se banham e saem discretamente perfumadas com seus filhos pelos parques do dia. Pena que seu marido não note, perdido que está nos escritórios e mesquinhas ações nos múltiplos mercados dos gestos. Ele não sabe, mas deveria voltar para casa tão maduro quanto Yves Montand e Paul Newman, quando nos seus filmes. Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro marido não sabem o que perderam em não esperá-la madurar. Ali está uma mulher madura, mais que nunca pronta para quem a souber amar.

9. AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA. ANTES QUE ELAS CRESÇAM. Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.É que as crianças  crescem. Independentes de nós, como árvores, tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença. Crescem como a inflação, independente do governo e da vontade popular. Entre os estupros dos preços, os disparos dos discursos e o assalto das estações, elas crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância. Mas não crescem todos os dias, de igual maneira; crescem, de repente. Um dia se assentam perto de você no terraço e dizem uma frase de tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura. Onde e como andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu? Cadê aquele cheirinho de leite sobre a pele? Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços, amiguinhos e o primeiro uniforme do maternal? Ela está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça. Ali estão muitos pais, ao volante, esperando que saiam esfuziantes sobre patins, cabelos soltos sobre as ancas. Essas são as nossas filhas, em pleno cio, lindas potrancas. Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão elas, com o uniforme de sua geração: incômodas mochilas da moda nos ombros ou, então com a suéter amarrada na cintura. Está quente, a gente diz que vão estragar a suéter, mas não tem jeito, é o emblema da geração. Pois ali estamos, depois do primeiro e do segundo casamento, com essa barba de jovem executivo ou intelectual em ascensão, as mães, às vezes, já com a primeira plástica e o casamento recomposto. Essas são as filhas que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias e da ditadura das horas. E elas crescem meio amestradas, vendo como redigimos nossas teses e nos doutoramos nos nossos erros. Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos. Longe já vai o momento em que o primeiro mênstruo foi recebido como um impacto de rosas vermelhas. Não mais as colheremos nas portas das discotecas e festas, quando surgiam entre gírias e canções. Passou o tempo do balé, da cultura francesa e inglesa. Saíram do banco de trás e passaram  para o volante de suas próprias vidas. Só nos resta   dizer “bonne route, bonne route”, como naquela canção francesa narrando a emoção do pai quando a filha oferece o primeiro jantar no apartamento dela. Deveríamos ter ido mais  vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir  sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de colagens, posteres e agendas coloridas de pilô. Não, não as levamos suficientemente ao maldito “drive-in”, ao Tablado para ver “Pluft”, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas merecidas. Elas cresceram sem que esgotássemos nelas todo o nosso afeto. No princípio  subiam a serra ou iam à casa de  praia entre embrulhos, comidas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscinas e amiguinhas. Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de sorvetes e sanduíches infantis. Depois chegou a idade em que subir para a casa de campo  com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma aqui na praia e os primeiros namorados. Esse exílio  dos pais, esse divórcio dos filhos, vai durar sete anos bíblicos. Agora é hora de os pais na montanha  terem a solidão que queriam, mas, de repente, exalarem contagiosa saudade daquelas pestes. O jeito é esperar. Qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco. Por isso, os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável afeição. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto. Por isso, é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que elas cresçam.

10. AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA. O VESTIBULAR DA VIDA. Um enduro sem moto, um rali sem carro, uma maratona onde, ao invés de atletas, correm paraplégicos, cegos, presidiários, grávidas e doentes em suas macas, esta é a imagem que nos deixa este vestibular realizado esta semana, mobilizando centenas de milhares de jovens em todo o país. Várias fotos mostram jovens correndo desabalados dentro de seus jeans justos e camisetas palavrosas em direção ao portão da universidade, como se fossem dar um salto tríplice. Como se fossem dar um salto sem vara. Como se fossem dar um salto na vida. Ao lado, aparecem parentes incentivando o corredor-saltador, aparecem colegas gritando em torcida. Correi, jovens, correi, que estreita é a porta que vos conduzirá à salvação! E ali está, como São Pedro, um porteiro ou guarda, que vai bater a porta na cara do retardatário, que chorará, implorará, arrancará os cabelos num ranger de dentes, enquanto, saltitantes, os mais espertos pulam (ocultamente) um muro e penetram o paraíso (ou inferno da múltipla escolha). A Telerj declarou que teve que acordar mais de 10 mil jovens pelo despertador telefônico. Carlinhos Gordo, o maior ladrão de carros do país, estava entre os 39 presidiários que, no Rio, fizeram, mesmo na cadeia, o exame. Mais de trinta deficientes visuais tiveram que tatear as 51 folhas em braile. Maria Alice Nunes teve um filho e saiu da maternidade com o recém-nascido no colo para enfrentar o unificado. Um índio cego — o guarani José Oado, 24 anos — disputa uma vaga em História (ou na história?). Andréa Paula Machado, 17 anos, teve que interromper o exame escrito várias vezes, para o prazer oral do bebê que, entre uma mamada e outra, voltava ao colo da avó. Dois fiscais que transportavam as provas no caminho de Petrópolis morreram num acidente. Um estudante com rubéola fez, num posto médico, prova ao lado de outro com catapora. Todas as idades ali estavam representadas: Márcia Cristina da Silva, 13 anos, vejam só!, já começou a treinar para o vestibular de Medicina em 88, e neste só achou difícil a prova de literatura. Mas lá estava também Edgar Carvalho, 73 anos, advogado, trocando as delícias da aposentadoria pela idéia de se tornar médico e ainda ser útil aos outros. Por isto, discordo da jovem que o interpelou acusando-o de estar tirando a vaga de outro. Socialmente é melhor um velho de 73 anos que qualquer dos jovens que faltaram à prova porque dormiam, que não foram classificados porque achavam que vestibular era loto e vivem a ociosidade daninha à custa de seus pais. Mas, de todos os casos, impressiona mais o de Maria Regina Gonçalves, uma enfermeira de 38 anos. Vejam que estória mirabolante. Lá vai a nossa Maria Regina. Mas não vai simples­mente. Vai grávida. Vai grávida, mas não é uma grávida amparada pelo seu marido, mas uma grávida solteira, enfrentando o mundo com sua barriga e coragem. No entanto, hora e meia antes do exame, em São Cristóvão, é assaltada por três marmanjos covardes, que tomam dela os documentos, 200 mil cruzeiros, e o pior: lhe dão uma porção de safanões, num exercício de sadismo matinal. Maria Regina poderia depois disto voltar chorando para casa e ficar lamuriando o resto da vida. Fez o contrário: foi em frente, embora, ao chegar no local, soubesse que uma outra colega, também assaltada, desistira do exame. Maria Regina deu um jeito, arranjou até cópia xerox de sua carteira de identidade, fez a prova, comprometendo-se a mostrar os outros documentos mais tarde. Mas, de noite, teve uma hemorragia. Pena que os ladrões não pudessem ver a cena, pois ficariam mais felizes. O médico lhe ordena "repouso absoluto". Ela ali "repousando", mas agoniada, porque a burocracia lhe exigia comprovações de documentos para validar os exames. Como desgraça pouca é bobagem, quatro dias depois morre o pai de seu namorado, daí a uns dias ela aborta e teve que ficar mesmo internada. E vede agora, ó filhinhos e filhinhas do papai, que esbanjais vossos corpinhos sem destino nas praias da irresponsabilidade! Maria Regina foi a primeira colocada (nota 96) no concurso para Enfermagem e Sanitarismo. Tirou primeiro lugar e seu nome não apareceu na lista. Ainda vai ter que provar que existe. Mas já impetrou mandado de segurança. É claro que vai ganhar.

11. AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA. NEM COM UMA FLOR. "Até hoje só bati numa mulher, mas com singular delicadeza". Vinicius de Moraes. Um amigo ia passando pela Avenida Atlântica quando viu um homem batendo numa mulher dentro de um carro estacionado. Resolveu parar e chamar a polícia. Mas iam passando pelo calçadão dois garotões atléticos que vendo o tumulto pararam também para saber. Meu amigo então lhes explica que o sujeito estava batendo na mulher. — Mas a mulher não é dele? - indagou o garotão. — E só porque é dele pode bater? - diz o amigo. — É, nessa você me pegou, cara. Nesta semana a OAB descobriu que em Imperatriz, no Maranhão, nos últimos cinco anos, maridos mataram 30 mulheres. Mas o fizeram por uma razão muito clara: não queriam pagar pensão nem partilhar os bens na separação. Diante desta estatística da terra de Sarney, os machos da terra de Tancredo ficam humilhados, porque eles só matam mulher por "traição", e, mesmo assim, em menor escala. Mas vou lhes contar outra estória: uma amiga estava em São Paulo numa conversa sobre espancamento de mulheres. De repente, falou-se de um conhecido professor que havia espancado a mulher (coisa, aliás, que acontece em várias faculdades do país). Reparem bem, estamos falando de gente fina. Não se trata de cachaceiros na subida do morro, do sujeito massacrado pela vida que chega em casa escorraçando as crianças, cães e mulheres. Estamos falando de gente inteligente, formada, com anel no dedo, que toma coquetéis com a gente e cita Marx, Hegel et caterva. Vai daí, alguém, comentando a razão por que o professor teria batido na mulher, sendo ele uma pessoa célebre, indaga: - Mas, afinal, ele é ele, e ela quem é? Na primeira estorinha vocês viram que um acha que a mulher é propriedade privada do marido, e por isto pode apanhar. Quer dizer: é igual quando a gente tem um cavalo ou cão. Já na segunda narrativa, a titulação acadêmica ou a importância hierárquica justifica a violência sobre o mais fraco. E a mulher, do ponto de vista muscular, é geralmente mais fraca que o homem. Por isto faz muito sentido quando na favela ao lado ouço as mulheres que apanham gritar: "Covarde! Vai bater num homem". E um garotão esclarecido, que estuda lutas marciais, ao ouvir a estória do professor espancador, observou: "Eu queria ver esse professor crescer para cima de mim".As estorinhas como essas são intermináveis. Lá vai outra. Uma amiga estava dando uma entrevista à televisão e o assunto era exatamente o espancamento de mulheres e a necessidade de se criar uma delegacia especial no Rio, como Franco Montoro criou em São Paulo, só para atender mulheres. E lá ia explicando o bê-á-bá da violência dos homens sobre as mulheres, lembrando que, quando uma mulher é violentada ou espancada, nas delegacias comuns têm que passar por vexames e cantadas, que os homens vêem a vítima como culpada, porque nossa sociedade nos convenceu de que a mulher é sempre uma Eva pecadora. Lembrava que em alguns países, além das delegacias para mulheres, há associações estruturadas para esconderem as vítimas, porque sabem que se muitas delas voltarem para casa serão até assassinadas. E foi explicando que em alguns lugares dos Estados Unidos existe um tratamento para maridos violentos, em sessões comuns, uma espécie de Associação de Alcoólatras Anônimos (os Espancadores Anônimos), que se curam e se tratam em grupo, porque isto é uma doença pessoal e social. Mas enquanto minha amiga dava a entrevista, os câmeras estavam indóceis. Parecia que o assunto era com eles. E aí, não agüentaram, interromperam a entrevista e um disse: — a gente trabalha na rua o dia inteiro, chega em casa cansado e a comida não está pronta, o que é que há? Ela está querendo apanhar! E a amiga tentou explicar: — então é só você que trabalhou? Ela não batalhou por aí em dupla jornada? Imagine se toda mulher fosse bater em marido que traz pouco ou nenhum dinheiro para casa? Os câmeras continuaram resmungando durante a entrevista. Não sei o que aconteceu quando eles chegaram em casa. Mas se houvesse na cidade uma delegacia para defender o direito das mulheres certamente pensariam duas vezes. Talvez não chegassem em casa sobraçando flores. Mas seguramente chegariam menos arrogantes.

12. AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA. VELHO OLHANDO O MAR. Meu carro pára numa esquina da praia de Copacabana às 9h30m e vejo um velho vestido de branco numa cadeira de rodas olhando o mar à distância. Por ele passam pernas portentosas, reluzentes cabeleiras adolescentes e os bíceps de jovens surfistas. Mas ele permanece sentado olhando o mar à distância. O carro continua parado, o sinal fechado e o estupendo calor da vida batia de frente sobre mim. Tudo em torno era uma ávida solicitação dos sentidos. Por isto, paradoxalmente, fixei-me por um instante naquele corpo que parecia ancorado do outro lado das coisas. E sem fazer qualquer esforço comecei a imaginá-lo quando jovem. É um exercício estranho esse de começar a remoçar um corpo na imaginação, injetar movimento e desejo nos seus músculos, acelerando nele, de novo, a avareza de viver cada instante. A gente tem a leviandade de achar que os velhos nasceram velhos, que estão ali apenas para assistir ao nosso crescimento. Me lembro que menino ao ver um velho parente relatar fotos de sua juventude tinha sempre a sensação de que ele estava inventando uma estória para me convencer de alguma coisa. No entanto, aquele velho que vejo na esquina da praia de Copacabana deve ter sido jovem algum dia, em alguma outra praia, nos braços de algum amor, bebendo e farreando irresponsavelmente e achando que o estoque da vida era ilimitado. Teria ele algum desejo ao olhar as coxas das banhistas que passam?  Olhando alguma delas teria se posto a lembrar de outros corpos que conheceu? Os que por ele passam poderiam supor que ele fazia maravilhas na cama ou nas pistas de dança? Me lembra ter lido em algum lugar que o inconsciente não tem idade.  Ah, sim, foi no livro de Simone de Beauvoir sobre "A velhice". E ali ela também apresentava uma estatística segundo a qual por volta dos 60 anos poucos se declaram velhos; depois dos 80 anos, só 53% se consideram velhos, 36% acham que são de meia-idade e 11% se julgam jovens. Não sei porque, mas toda vez que vejo um senhor de cabelos brancos andando pela praia penso que ele é um almirante aposentado. Às vezes, concedo e admito que ele pode ser também da Aeronáutica. Por causa disto, durante muito tempo, vendo esses senhores passeando pela areia e calçada, sempre achava que toda a Marinha e Aeronáutica havia se aposentado entre Leblon e Copacabana. Mas esses senhores de short e boné branco que passam às vezes em dupla pelo calçadão, são mais atléticos que aquele que denominei de velho e, sentado na cadeira, olha o mar. Ele está ali, eu no meu carro, e me dou conta que um número crescente de amigos e conhecidos tem me pronunciado a palavra "aposentadoria" ultimamente. Isto é uma síndrome grave. Em breve estarei cercado de aposentados e forçosamente me aposentarão. Então, imagino, vou passear de short branco e boné pelo calçadão da praia, fingindo ser um almirante aposentado, aproveitando o sol mais ameno das 9h30m até cair sentado numa cadeira e ficar olhando o mar. Me lembra ter lido naquele estudo de Simone de Beauvoir sobre a velhice algo neste sentido: "Morrer, prematuramente, ou envelhecer: não há outra alternativa." E, entretanto, como escreveu Goethe: "A idade apodera-se de nós de surpresa." Cada um é, para si mesmo, o sujeito único, e muitas vezes nos espantamos quando o destino comum se torno o nosso: doença, ruptura, luto. Lembro-me de meu assombro quando, seriamente doente pela primeira vez na vida, eu me dizia: "Essa mulher que está sendo transportada numa padiola sou eu." Entretanto, os acidentes contingentes integram-se facilmente à nossa história, porque nos atingem em nossa singularidade: velhice é um destino, e quando ela se apodera de nossa própria vida, deixa-nos estupefatos. "O que se passou, então?  A vida, e eu estou velho", escreve Aragon. Meu carro, no entanto, continua parado no sinal da praia de Copacabana. O carro apenas, porque a imaginação, entre o sinal vermelho e o verde, viajou intensamente. Vou ter de deixar ali o velho e sua acompanhante olhando o mar por mim. Vou viver a vida por ele, me iludir que no escritório transformo o mundo com telefonemas, projetos e papéis.  Um dia, talvez, esteja naquela cadeira olhando mar à distância, a vida distante. Mas que ao olhar para dentro eu tenha muito que rever e contemplar.  Neste caso não me importarei que o moço que estiver no seu carro parado no sinal imagine coisas sobre mim. Estarei olhando o mar, o mar interior e terei alegrias de nenhum passante compreenderá. Li esta crônica há mais de 10 anos, no Jornal do Brasil - Rio de Janeiro, se não me falha a memória. Achei-a tão bonita que recortei o jornal e guardei num daqueles lugares que só por acaso a gente acaba voltando. Foi o que aconteceu. Mexendo em meus papéis, encontrei-a e voltei a me emocionar ao lê-la. Apresso-me em dividí-la com os amigos do Releituras.

13. ALCÂNTARA MACHADO. A ELOQÜÊNCIA E O BRASILEIRO. A eloqüência marca Sloper que nos desgraça é com certeza resultado da preocupação de fazer literatura a muque. Entre nós quase toda a gente pensa que literatura é arrevezamento, ginástica verbal, ilusionismo imaginoso, hipérbole sublime. E devido a isso mesmo há no Brasil muitos cavalheiros que falam mas poucos que dizem. Falam até debaixo d'água. Não dizem coisa nenhuma. De tal forma que hoje em dia o conceito de literatura é até pejorativo. — Não presta para nada esse artigo. É só literatura. Aí está. A culpa é inteirinha dos que a ela se dedicam, banalizando-a, pondo-a ao alcance de toda a gente, com o objetivo de embasbacar até um limpador de trilhos da Light. Aliás para ser franco, ninguém se diverte mais do que eu com as asneiras dengues e sonoras dos oradores de minha terra. Sou leitor fanático dos apanhados jornalísticos das sessões no nosso Congresso, na nossa Câmara Municipal, das excursões políticas, das reuniões de agricultores, comerciantes e homens de letras, de todas as assembléias, de todas as festanças e comemorações discursadas. Leitura ainda mais hilariante que a dos livros de Jerome K. Jerome. Nem se compara. Entre os nossos vereadores e parlamentares, principalmente, há cada campeão em matéria de retórica edição Quaresma da gente ficar de boca aberta. Até entrar mosca. É verdade. Pessoal danado para dizer bobagem com ênfase. Nunca vi. A idéia vem sempre vestida de cores escandalosas, amarrada com laçarotes de penteado de negra, toda arranjadinha para dar bem na vista. Todos os discursos têm um trechinho imutável que eu não me canso de saborear. É quando o orador alude humildemente à miséria cearense dos seus dotes oratórios. É assim: O Sr. Sesostris da Cunha — Embora reconheça, Sr. presidente, que minha desautorizada voz, tão desafeita à tribuna, vem quebrar a harmonia (não apoiados gerais). O Sr. Amazonas Neto — V.ex. é um belo orador. Todos nós o ouvimos sempre com imenso prazer (apoiados gerais). O Sr. Sesostris da Cunha — Muito obrigado a v. ex. Como ia dizendo, Sr. presidente, sem embargo... Delicioso. E fatal. Mas, sobretudo, delicioso. Eu sei que estou sendo irritante. Paciência. Sei perfeitamente que nesta terra o que eu estou fazendo se chama falar mal. Paciência. É sempre melhor do que falar bem. Compreendam-me. João Filipe, que foi ministro de Floriano e hoje é professor jubilado da Politécnica do Rio, velhinho moço de sarcasmo estupendo, desabafou certa vez comigo: — Eles são bestas e não querem que a gente tome nota. Eu tomo, sim.

14. ALCÂNTARA MACHADO. A SOCIEDADE. — Filha minha não casa com filho de carcamano! A esposa do Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas. Teresa Rita misturou lágrimas com gemidos e entrou no seu quarto batendo a porta. O Conselheiro José Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando o fraque. O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rita do escritório para o terraço. O Lancia passou como quem não quer. Quase parando. A mão enluvada cumprimentou com o chapéu Borsalino. Uiiiiia-uiiiiia! Adriano Meli calcou o acelerador. Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou de novo. Continuou. Mais duzentos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a Rua da Liberdade. Pouco antes do número 259-C sabe: uiiiiia-uiiiiia! — O que você está fazendo aí no terraço, menina? — Então nem tomar um pouco de ar eu posso mais? Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido de Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no terraço. — Entre já para dentro ou eu falo com seu pai quando ele chegar! — Ah meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus! Adriano Melli passou outras vezes ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para a Avenida Paulista. Na orquestra o negro de casaco vermelho afastava o saxofone da beiçorra para gritar: Dizem que Cristo nasceu em Belém... Porque os pais não a haviam acompanhado (abençoado furúnculo inflamou o pescoço do Conselheiro José Bonifácio) ela estava achando um suco aquela vesperal do Paulistano. O namorado ainda mais. Os pares dançarinos maxixavam colados. No meio do salão eram um bolo tremelicante. Dentro do círculo palerma de mamãs, moças feitas e moços enjoados. A orquestra preta tonitroava. Alegria de vozes e sons. Palmas contentes prolongaram o maxixe. O banjo é que ritmava os passos. — Sua mãe me fez ontem uma desfeita na cidade. — Não! — Como não? Sim senhora. Virou a cara quando me viu. ...mas a história se enganou! As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episódios de farra muito engraçados. O professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de óculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum! — Meu pai quer fazer um negócio com o seu. — Ah sim? Cristo nasceu na Bahia, meu bem... O sujeitinho de óculos começou a recitar Gustave Le Bon mas a destra espalmada do catedrático o engasgou. Alegria de vozes e sons. ...e o baiano criou! — Olhe aqui, Bonifácio: se esse carcamano vem pedir a mão da Teresa para o filho, você aponte o olho da rua para ele, compreendeu? — Já sei, mulher, já sei.

15. ALCÂNTARA MACHADO. APÓLOGO BRASILEIRO SEM VÉU DE ALEGORIA. O trenzinho recebeu em Magoarí o pessoal do matadouro e tocou para Belém. Já era noite. Só se sentia o cheiro doce do sangue. As manchas na roupa dos passageiros ninguém via porque não havia luz. De vez em quando passava uma fagulha que a chaminé da locomotiva botava. E os vagões no escuro. Trem misterioso. Noite fora, noite dentro. O chefe vinha recolher os bilhetes de cigarro na boca. Chegava a passagem bem perto da ponta acesa e dava uma chupada para fazer mais luz. Via mal e mal a data e ia guardando no bolso. Havia sempre uns que gritavam: — Vai pisar no inferno! Ele pedia perdão (ou não pedia) e continuava seu caminho. Os vagões sacolejando. O trenzinho seguia danado para Belém porque o maquinista não tinha jantado até aquela hora. Os que não dormiam aproveitando a escuridão conversavam e até gesticulavam por força do hábito brasileiro. Ou então cantavam, assobiavam. Só as mulheres se encolhiam com medo de algum desrespeito. Noite sem lua nem nada. Os fósforos é que alumiavam um instante as caras cansadas e a pretidão feia caía de novo. Ninguém estranhava. Era assim mesmo todos os dias. O pessoal do matadouro já estava acostumado. Parecia trem de carga o trem de Magoarí. Porém, aconteceu que no dia 6 de maio viajava no penúltimo banco do lado direito do segundo vagão um cego de óculos azuis. Cego baiano das margens do Verde de Baixo. Flautista de profissão dera um concerto em Bragança. Parara em Magoarí. Voltava para Belém com setenta e quatrocentos no bolso. 0 taioca guia dele só dava uma forga no bocejo para cuspir. Baiano velho estava contente. Primeiro deu uma cotovelada no secretário e puxou conversa. Puxou à toa porque não veio nada. Então principiou a assobiar. Assobiou uma valsa (dessas que vão subindo, vão subindo e depois descendo, vêm descendo), uma polca, um pedaço do Trovador. Ficou quieto uns tempos. De repente deu uma coisa nele. Perguntou para o rapaz: — O jornal não dá nada sobre a sucessão presidencial? O rapaz respondeu: — Não sei: nós estamos no escuro. — No escuro? — É. Ficou matutando calado. Claríssimo que não compreendia bem. Perguntou de novo: — Não tem luz? Bocejo. — Não tem. Cuspada. Matutou mais um pouco. Perguntou de novo: — 0 vagão está no escuro? — Está. De tanta indignação bateu com o porrete no soalho. E principiou a grita dele assim: — Não pode ser! Estrada relaxada! Que é que faz que não acende? Não se pode viver sem luz! A luz é necessária! A luz é o maior dom da natureza! Luz! Luz! Luz! E a luz não foi feita. Continuou berrando: — Luz! Luz! Luz! Só a escuridão respondia. Baiano velho estava fulo. Urrava. Vozes perguntaram dentro da noite: — Que é que há? Baiano velho trovejou: — Não tem luz! Vozes concordaram: — Pois não tem mesmo. Foi preciso explicar que era um desaforo. Homem não é bicho. Viver nas trevas é cuspir no progresso da humanidade. Depois a gente tem a obrigação de reagir contra os exploradores do povo. No preço da passagem está incluída a luz. O governo não toma providências? Não toma? A turba ignara fará valer seus direitos sem ele. Contra ele se necessário. Brasileiro é bom, é amigo da paz, é tudo quanto quiserem: mas bobo não. Chega um dia e a coisa pega fogo. Todos gritavam discutindo com calor e palavrões. Um mulato propôs que se matasse o chefe do trem. Mas João Virgulino lembrou: — Ele é pobre como a gente. Outro sugeriu uma grande passeata em Belém com banda de música e discursos. — Foguetes também? — Foguetes também. — Be-le-za! Mas João Virgulino observou: — Isso custa dinheiro. — Que é que se vai fazer então? Ninguém sabia. Isto é: João Virgulino sabia. Magafere-chefe do matadouro de Magoarí, tirou a faca da cinta e começou a esquartejar o banco de palhinha. Com todas as regras do ofício. Cortou um pedaço, jogou pela janela e disse: — Dois quilos de lombo! Cortou outro e disse: — Quilo e meio de toicinho! Todos os passageiros magarefes e auxiliares imitaram o chefe. Era cortar e jogar pelas janelas. Parecia um serviço organizado. Ordens partiam de todos os lados. Com piadas, risadas, gargalhadas. — Quantas reses, Zé Bento? — Eu estou na quarta, Zé Bento! Baiano velho quando percebeu a história pulou de contente. O chefe do trem correu quase que chorando. — Que é isso? Que é isso? É por causa da luz? Baiano velho respondeu : — É por causa das trevas! O chefe do trem suplicava: — Calma ! Calma! Eu arranjo umas velinhas. João Virgulino percorria os vagões apalpando os bancos. — Aqui ainda tem uns três quilos de colchão mole! 0 chefe do trem foi para o cubículo dele e se fechou por dentro rezando. Belém já estava perto. Dos bancos só restava a armação de ferro. Os passageiros de pé contavam façanhas. Baiano velho tocava a marcha de sua lavra chamada Às armas cidadãos! 0 taioquinha embrulhava no jornal a faca surrupiada na confusão. Tocando a sineta o trem de Magoarí fundou na estação de Belém. Em dois tempos os vagões se esvaziaram. O último a sair foi o chefe, muito pálido. Belém vibrou com a história. Os jornais afixaram cartazes. Era assim o título de um: Os passageiros no trem de Magoarí amotinaram-se jogando os assentos ao leito da estrada. Mas foi substituído porque se prestava a interpretações que feriam de frente o decoro das famílias. Diante da Teatro da Paz houve um conflito sangrento entre populares. Dada a queixa à polícia foi iniciado o inquérito para apurar as responsabilidades. Perante grande número de advogados, representantes da imprensa, curiosos e pessoas gradas, o delegado ouviu vários passageiros. Todos se mantiveram na negativa menos um que se declarou protestante e trazia um exemplar da Bíblia no bolso. O delegado perguntou: — Qual a causa verdadeira do motim? O homem respondeu: — A causa verdadeira do motim foi a falta de luz nos vagões. O delegado olhou firme nos olhos do passageiro e continuou: — Quem encabeçou o movimento? Em meio da ansiosa expectativa dos presentes o homem revelou: — Quem encabeçou o movimento foi um cego! Quis jurar sobre a Bíblia mas foi imediatamente recolhido ao xadrez porque com a autoridade não se brinca.

16. ANTÔNIO CARLOS DE FARIA. O futuro de uma cueca de listras. O teatro da escola está repleto de alunos do ginásio. Os garotos acompanham com olhos enormes cada movimento, cada palavra do padre pesquisador de fenômenos paranormais. O sacerdote vai tecendo argumentos científicos que demolem tudo o que chama de superstição. Trata-se de um homem inteligente. Sabe que nos jovens corações que o ouvem se enraíza uma semente de conflito em relação a qualquer religiosidade. A fé não precisa ser obscura, ele repete. Para consolidar sua argumentação, convoca um voluntário a se submeter a uma sessão de hipnose. O garoto voluntarioso que se apressa em ir até o palco nem se lembra de que naquele dia está usando a odiada cueca de listras que ganhou de uma tia. Depois de ouvir duas ou três invocações, fica semiconsciente. Nesse estado, segue as sugestões do hipnotizador. Vira-se de um lado para outro, inclina-se para trás e para frente até que suas calças se desarranjam ligeiramente e revelam o terrível segredo. Nem os risos da platéia o despertam, o que é uma consagração ainda maior para o padre que, ao contar até três e estalar os dedos, liberta o hipnotizado da submissão. Assim, encerra-se a preleção, pois o sinal para o reinício das aulas já soa. Os demais alunos não arredam pé do teatro, mesmo com o terceiro toque fatal que precede a chamada nas salas de aula. Todos esperam com avidez para ver como será o despertar do hipnotizado. Acordou com o padre perguntando pelo seu nome e querendo saber se ele se lembrava de algo. Não, não se recordava de nada sobre os últimos minutos. Com naturalidade, como alguém que apenas se ausentara para ir à padaria, ajeitou as calças. Percebeu o afloramento da cueca de listras, mas teve presença de espírito para não a transformar em ator principal de uma farsa involuntária. Esse desempenho neutralizou a sanha dos colegas, que esperavam se divertir um pouco mais com um embaraço de sua parte. O padre insistia em perguntar por onde ele teria estado durante a hipnose e, diante da ausência de respostas, pôde concluir que o inconsciente era um manancial de riquezas inexploradas. Um universo de onde brotam as fantasias e, particularmente, as ilusões humanas. Mesmo grogue, o menino registrou com interesse essa descrição sobre a fonte do ilusório. Mais tarde foi aprender como as ilusões, inclusive a única reverenciada pelo padre, tentam tornar suportável a angústia de se desejar algo que não há. Um desejo que nos torna únicos e especiais, posto que as outras formas de vida apenas vivem, consumindo-se até o fim inevitável. Essas idéias, naquele dia, ainda eram tênues formações, sem merecer ser centro de atenção do menino. Esse era então um privilégio ocupado pela cueca de listras. Dela, o menino conseguiu se livrar pouco depois. Quanto às ilusões, o processo de libertação vem sendo mais árduo e me exige novos esforços todos os dias.

17. ANTÔNIO CARLOS DE FARIA. Cardápio existencial. -E se a vida for como um cardápio? A pergunta pegou Rosinha de surpresa. Ela levantou os olhos do menu e se deparou com o marido em estado reflexivo. -Ora, Alfredo, deixe de filosofar e escolha logo o seu prato. Os dois haviam saído para jantar e estavam na varanda do Bar Lagoa, de onde se pode ver um cantinho de céu e o Redentor. -Rosinha, pense nas conseqüências do que estou dizendo. Se a vida for como um cardápio, nós talvez estejamos escolhendo errado. No lugar da buchada de bode em que nossas vidas se transformaram, poderíamos nos deliciar com escargots. Experimentar sabores novos, mais sofisticados... -Por que a vida seria como um cardápio, Alfredo? Tenha dó. -E por que não seria? Ninguém sabe de fato o que é a vida, portanto qualquer acepção é válida, até prova em contrário. -Benhê, acorda. Ninguém vai aparecer para servir o seu cardápio imaginário. Na vida, a gente tem que ir buscar. A vida é mais parecida com um restaurante a quilo, self-service, entende? -Boa imagem. Concordo com o restaurante a quilo. É assim para quase todo mundo. Mas quando evoluímos um pouco, chega a hora em que podemos nos servir a la carte. Rosinha, nós estamos nesse nível. Podemos fazer opções mais ousadas. -Alfredo, se você está querendo aventuras, variar o arroz com feijão, seja claro. Não me venha com essa conversa de cardápio existencial. Além disso, se a nossa vida virou uma buchada de bode, com quem você pensa experimentar essa coisa gosmenta, o tal escargot? -Querida, não reduza minhas idéias a uma trivial variação gastronômica. Minha hipótese, caso correta, tem implicações metafísicas. Se a vida for como um cardápio, do outro lado teria que existir o Grand Chef, o criador do menu. -Alfredo, fofo, agora você viajou na maionese. É o cúmulo querer reconstruir o imaginário religioso baseado no funcionamento de um restaurante. Só falta você dizer que nesse seu céu, os anjos são os garçons! Nesse momento, dois chopes desceram sobre a mesa. Flutuaram entre as mãos alvas, quase diáfanas, de um dos velhos garçons do Bar Lagoa. Alfredo e Rosinha trocaram olhares de espanto e antes que pudessem dizer que ainda não haviam pedido nada, o garçom falou com voz grave: -Cortesia da casa. Já olharam o cardápio?

18. ANTÔNIO CARLOS DE FARIA. Ao sentir o afloramento da angústia, a Glorinha não tem dúvidas. Vai sempre ao shopping, onde compra um acessório, algo extremamente essencial, com o poder de tornar sua vida menos faltosa. Daquele tipo que logo depois é apenas mais um item supérfluo dentro de casa. O Leopoldo, quando fica angustiado, procura encontrar a cara metade. Já a encontrou algumas vezes, tanto que em alguns casos paga pensão decidida em Justiça, comprovando o quanto a tal metade era cara. Hoje, procura opções mais baratas, mas continua pagando. Quando o Joselito se angustia, toma um porre. Para ele, não cola essa história de que copo vazio está cheio de ar. Copo vazio deixa o Joselito angustiado. Afinal, não vê graça em apenas respirar. O Godofredo é zen, ou pelo menos está se esforçando para ser. Quem sabe assim arranja um jeito de neutralizar a maldita angústia que o consome. Ele aprendeu técnicas de meditação e relaxamento. Sua esperança é encontrar um mestre iluminado que lhe revele o sentido da dor. Por enquanto só encontrou paliativos, mas ele não desiste. A Luísa já passou dessa fase. Ela não busca mais o mestre. Já o encontrou e toda semana vai reverenciá-lo em um culto que a deixa em êxtase. A sensação dura algumas horas. Quando a angústia volta, ela começa a falar silenciosamente com o mestre. Conversa bastante, para ver se a maldita passa. O Júlio arranjou um jeito de lucrar com a angústia. Quando ela bate, ele pinta um quadro. Quanto maior for a bendita, mais prazer ele destila com os pincéis e as tintas. A energia flui dos cantos mais escuros para a claridade da tela. É certo que ele ainda não vendeu nenhum quadro. Seu lucro não é monetário. Por enquanto é um ganho pessoal, intransferível. Uma sensação de gozo que perdura na obra artística. Ele já tentou explicar seu método de relação com a angústia para os amigos. Logo percebeu que esse não é um conhecimento que se possa dividir, mesmo com quem se goste. Melhor do que falar, é mostrar seus quadros. Alguns amigos não entendem o que Julio pinta. Eles ficam angustiados vendo seus quadros. O pintor se angustia quando os amigos ficam assim. Aí ele pinta outras telas. De uns tempos para cá, o Júlio também resolveu escrever crônicas, algumas vezes poesia. Um crítico, que não entendeu nada, disse que o texto do Júlio era hermético como uma pintura abstrata. O pintor-cronista-poeta ficou maravilhado.   

19. ANTÔNIO CARLOS DE FARIA. Não consigo deixar de pensar nisso. -Nisso o quê? -Como teria sido o mundo sem Colombo. Nós nem estaríamos aqui nesse botequim bebendo chope e papeando... -Então, salve Colombo! Deixe de pensar nele. Viva o presente e, principalmente, pague o que me deve. -Você não entendeu. Não estou pensando em Colombo. Estou pensando no que teria sido o mundo sem ele. -Com ele ou sem, os europeus iriam acabar chegando ao Rio de Janeiro e hoje alguém iria estar tomando chope em um botequim como esse. Tudo seria mais ou menos igual. Até um caloteiro como você iria existir. -Você está enganado. Sem Colombo, nós não estaríamos aqui. Sem ele, iria prevalecer o método de Portugal, que eram as cabotagens em torno da África e da Ásia. Um processo muito mais lento. Em qualquer lugar em que vissem mulher bonita, os portugueses paravam e se punham a fazer versos e a tocar suas guitarras. -Eles estavam certos, quer coisa melhor do que mulher, poesia e música? -Mas perceba as conseqüências. Seguindo as cabotagens, os portugueses chegariam ao Japão, como fizeram realmente, mas talvez demorassem muito mais para se arriscar em linha reta ao Oriente. Foi a loucura de Colombo que fez os portugueses virem direto para a América. Se dependesse deles, isso poderia ter demorado mais, quem sabe uns duzentos anos. -E daí? Um pouco antes, um pouco depois, terminaria tudo como estamos vendo agora. -De forma alguma. Sem as Américas, não haveria batatas no cardápio da Europa. Sem batatas, a população européia iria continuar passando fome, crescendo devagar. Não haveria o excedente que criou o exército de mão-de-obra de reserva, a mais valia. Não teria havido a Revolução Industrial. -Você não acha que está exagerando um pouco? -Claro que não. Sem Colombo, não teria havido luta de classes e as revoluções que balançaram o mundo no último século. -Aonde você quer chegar com essa conversa? -Ora, meu ponto de vista é claro. A ousadia de Colombo criou o mundo como o conhecemos. É preciso ser ousado, é preciso ir além do convencional. -Ainda não entendi o que quer dizer esse papo todo. -Bom, você mesmo podia ser mais ousado e fazer um gesto inesperado. Por exemplo, poderia perdoar essa dívida que veio me cobrar. -Tenha paciência. Está me achando com cara de Jesus Cristo? Essa conversa toda é apenas mais uma forma de você adiar o pagamento. Você está me enrolando. -Longe de mim essa idéia! Mas continuando nosso assunto, como teria sido a história do mundo sem Jesus Cristo? Você já pensou nas conseqüências?

20. ANTÔNIO CARLOS DE FARIA. Não consigo deixar de pensar nisso. -Nisso o quê? -Como teria sido o mundo sem Colombo. Nós nem estaríamos aqui nesse botequim bebendo chope e papeando... -Então, salve Colombo! Deixe de pensar nele. Viva o presente e, principalmente, pague o que me deve. -Você não entendeu. Não estou pensando em Colombo. Estou pensando no que teria sido o mundo sem ele. -Com ele ou sem, os europeus iriam acabar chegando ao Rio de Janeiro e hoje alguém iria estar tomando chope em um botequim como esse. Tudo seria mais ou menos igual. Até um caloteiro como você iria existir. -Você está enganado. Sem Colombo, nós não estaríamos aqui. Sem ele, iria prevalecer o método de Portugal, que eram as cabotagens em torno da África e da Ásia. Um processo muito mais lento. Em qualquer lugar em que vissem mulher bonita, os portugueses paravam e se punham a fazer versos e a tocar suas guitarras. -Eles estavam certos, quer coisa melhor do que mulher, poesia e música? -Mas perceba as conseqüências. Seguindo as cabotagens, os portugueses chegariam ao Japão, como fizeram realmente, mas talvez demorassem muito mais para se arriscar em linha reta ao Oriente. Foi a loucura de Colombo que fez os portugueses virem direto para a América. Se dependesse deles, isso poderia ter demorado mais, quem sabe uns duzentos anos. -E daí? Um pouco antes, um pouco depois, terminaria tudo como estamos vendo agora. -De forma alguma. Sem as Américas, não haveria batatas no cardápio da Europa. Sem batatas, a população européia iria continuar passando fome, crescendo devagar. Não haveria o excedente que criou o exército de mão-de-obra de reserva, a mais valia. Não teria havido a Revolução Industrial. -Você não acha que está exagerando um pouco? -Claro que não. Sem Colombo, não teria havido luta de classes e as revoluções que balançaram o mundo no último século. -Aonde você quer chegar com essa conversa? -Ora, meu ponto de vista é claro. A ousadia de Colombo criou o mundo como o conhecemos. É preciso ser ousado, é preciso ir além do convencional. -Ainda não entendi o que quer dizer esse papo todo. -Bom, você mesmo podia ser mais ousado e fazer um gesto inesperado. Por exemplo, poderia perdoar essa dívida que veio me cobrar. -Tenha paciência. Está me achando com cara de Jesus Cristo? Essa conversa toda é apenas mais uma forma de você adiar o pagamento. Você está me enrolando. -Longe de mim essa idéia! Mas continuando nosso assunto, como teria sido a história do mundo sem Jesus Cristo? Você já pensou nas conseqüências?

21. ANTÔNIO CARLOS VILLAÇA. QUANDO EU CHEGAR AO CÉU! Quando eu chegar ao Céu, de manhã, de tarde ou de noite, não sei ainda, pedirei para ir à biblioteca de Deus, onde curiosamente bisbilhotarei — com respeito — algumas obras. Quero reler a Invenção de Orfeu, de nosso Jorge de Lima, sofredor, telúrico e místico, homem bom, cirenaico, assim lhe chamou Rachel de Queiróz, quando ele morreu, novembro, 15, do ano de 1953. E pedirei, sim, para conversar com Manu, Manuel Bandeira, que se chamava Neném. Matarei saudades do dentuço Manuel, que foi o melhor ser humano que conheci, neste mundo. E gostaria de conhecer Chiquita do Rio Negro, que recusou casar se com Ataulfo Nápoles de Paiva, conviva do baile da ilha Fiscal. Escrevi sobre Chiquita. Li a sua biografia, escrita por Garrigou-Lagrange. Meu Deus, convocaria Jaime Ovalle, o tio Nhonhô, que morreu com a idade de Jorge de Lima. Ali, na biblioteca do Céu, conheceria o estupendo Ovalle, o do Azulão, o bêbedo místico, o amigo de Manuel, íntimo de Londres e de Nova York. Por fim, suplicaria para falar com João Guimarães Rosa, poliglota, com quem tão poucas vezes falei. E evocaria a posse do seu sucessor, na Casa de Machado. Esqueci-me completamente dessa posse, ai de mim. E fui. Lá estava eu, 1968. Um ano depois da morte de Rosa. Mário Palmério falou sobre ele, como seu herdeiro. E gostei tanto do discurso, equilibrado, lúcido, original. Se me lembro. Foi procurar cartas íntimas de Rosa para grande amigo, médico e fazendeiro em Minas, Moreira Barbosa. Cartas de outrora. Deliciosas, fraternais, confiantes, de pura entrega. Reveladoras do ser complexíssimo, fechado, carente, que gostava de disfarçar, despistar, ir e vir, comensal do mistério. Saudarei a uns e outros na largueza dadivosa do Céu, turbilhão de amor, como dizia o insaciável Léon Bloy.

22. ANTÔNIO MARIA. O pior encontro casual da noite ainda é o do homem autobiográfico. Chega, senta e começa a crônica de si mesmo: "Acordo às sete da manhã e a primeira coisa que faço é tomar o meu bom chuveiro". Como são desprezíveis as pessoas que falam no "bom chuveiro!" E segue o parceiro: "Depois peço os jornais, sento à mesa e tomo meu café reforçado". Ah, a pena de morte, para as pessoas que tomam "café reforçado!" E a explanação continua: "Nos jornais, vocês me desculpem mas, a mim, só interessa o artigo de Macedo Soares e as histórias em quadrinhos". Nessa altura o autobiográfico procura colocar-se em dois planos, que lhe ficam muito bem: o que ele julga de seriedade política (Macedo) e o outro, de folgazante espiritual (histórias em quadrinhos). E vai daí para outra modesta homenagem a si mesmo: "Aí, então, é que vou me vestir. Quanto à roupa, nunca liguei muito, mas, camisa e cueca, tenha paciência, eu mudo todo dia". O "tenha paciência" é porque está absolutamente certo de que estamos com a camisa e a cueca de ontem. "Acordo minha senhora, pergunto se ela quer alguma coisa e vou para o escritório". Gente que chama a mulher de "minha senhora" está sempre pensando que: não acreditamos que eles sejam casados no civil e no religioso; no fundo, desconfiamos de que sua mulher lhe seja infiel. E vai adiante o mal-feliz: "Só aí vou para o escritório, mas nunca antes de passar no jornal, para ver se há alguma coisa". Esse "passar no jornal" é um pouco difícil de explicar. Mas todo homem banal tem muita vergonha de não ser jornalista e alude sempre a um jornal, do qual tem duas ações ou pertence a um primo, ou amigo íntimo. Vai por aí contando sua vidinha, que termina, melancolicamente, com esta frase: "À noite, eu sou da família!". Bonito! "Visto meu pijama, janto, deito no sofá e vou ver a televisão, com as crianças em cima de mim". Está aí o retrato perfeito do cretino nacional. E, o que é triste, além de numeroso, está em toda parte. Que horror me causam as pessoas do "bom chuveiro", do "café reforçado", os de "Macedo Soares e das histórias em quadrinhos" (os que gostam só de Macedo Soares ou só de histórias em quadrinhos são ótimos), que precisam dizer que mudam camisa e cueca todos os dias, as que citam "sua senhora" e os que "passam no jornal, antes de ir para o escritório". Nossa maior repulsa, ainda, por quem janta de pijama e deita no sofá, com as crianças em cima. Ah, essa gente me procura tanto!

23. ANTÔNIO MARIA.  Esta noite... esta chuva... estas reticências. Sei lá. Quem seria capaz de abrir o peito e mostrar a ferida? De dizer o nome? De lembrar, sequer lembrar, o rosto? Quem seria capaz de contar a história? De chamar o maior amigo, ou melhor, o inimigo, e dizer: — Estou me sentindo assim, assim, assim... A humanidade está necessitando, urgentemente, de afeto e milagre. Mas não sabe onde estão as mãos, nem os deuses. E, quando souber, vai achar que as mãos e os deuses são de mentira. Os olhos de todos estarão cheios de medo, os olhos das jovens raparigas, os olhos, os braços, o ventre e as pernas das jovens raparigas, receosos de pagar com os que fazeres do sexo. Nesta noite, com esta chuva, as jovens raparigas não são importantes. Apenas uma tem importância. Mas quem seria de todo livre e descuidado, a ponto de dizer o seu nome? De pensar o seu nome? Você diria em público o nome da Amada? E suportaria ouvi-lo? Não, não; o nome dela, em sua boca ou na dos outros, é tão proibido como sua nudez (dela). Não há diferença. E por que você não se transforma no homem banal, que se encharca de álcool, para apregoar a desdita? Seria mais fácil. Talvez alguém lhe chamasse de porco e você revidasse com um soco no rosto, um só rosto, de todo o Gênero Humano. Viria a polícia, que simplifica tudo, generalizando. E tudo se transformaria em notícia: "Preso o alcoólatra, quando injuriava e agredia a Família Brasileira, na pessoa de um sócio do Country". Há poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das escolhas seria desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas, igualmente pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte, mesmo em combate, é burlesca. Uma pergunta, que não tem nada a ver com o corpo desta canção. Quem saberia discriminar o ódio do amor? Ninguém. Os psicologistas e analistas têm perdido um tempo enorme. Ontem à noite, voltando para casa, senti-me espectador de mim mesmo. E confesso que, pela primeira vez, não achei a menor graça. Saíra, pela primeira vez, de óculos e o porteiro do edifício me recebeu com esta agradável pergunta: — Que é que houve? O senhor está mais velho? Tirei os óculos e, fitando-o, esperei as desculpas. Mas o homem continuou: — O que é que houve? De ontem para cá, o senhor envelheceu. Tinha pensado que, sem os óculos... Não estou escrevendo para ninguém gostar ou, ao menos, entender. Estou escrevendo, simplesmente, e isto me supre: contrabalança, quando nada. Esta noite, esta chuva — e poderia escrever as coisas mais alegres, esta noite. Neruda, coitado, as mais tristes. Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco, para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida.

24. ANTÔNIO MARIA. Dia claro. Primeiras horas do dia claro. Havíamos bebido e procurávamos um café aberto, para uma média, com pão-canoa. Quase todos estavam fechados ou não tinham ainda leite ou pão. Fomos parar em Ipanema, num cafezinho, cujo dono era um português e nos conhecia de nome de notícia. Propôs-nos, em vez de café, um vinho maduro, que recebera de sua terra, "uma terrinha (como disse) ao pé de Braga". Não se recusa um vinho maduro, sejam quais forem as circunstâncias. Aceitamo-lo. Nossa grata homenagem a José Manuel Pereira, que nos deu seu vinho. Nesse café, além de nós, havia um casal, aos beijos. As garrafas vazias (de cerveja) eram quatro sobre a mesa e seis sob. Beijavam-se, bebiam sua cervejinha e voltavam a beijar-se. Não olhavam para nós e pouco estavam ligando para o resto do mundo. Em dado momento, entraram dois rapazes e pediram aguardente no balcão. Ambos disseram palavrões, em voz alta. O casal dos beijos e da cerveja parou com as duas coisas. Outros palavrões e o cabeça do casal protestou:— Pára com isso, que tem senhora aqui! Um dos rapazes dos palavrões:— Não chateia!— Não chateia o quê? Pára com isso agora! Um dos rapazes do palavrão:— E essa mulher é tua mulher?— Não é, mas é mulher de um amigo meu! A briga não foi adiante. Todos rimos. O dono da casa, os rapazes dos palavrões, o casal. Está provado que: quem sai aos beijos com mulher de amigo não tem direito a reclamar coisa alguma.

25. ANTÔNIO MARIA. Aconteceu na Avenida Copacabana, esquina de Santa Clara. Uma jovem senhora chamou o guarda e apontou o homem, encostado a um poste:— Prenda este homem, que ele está se portando inconvenientemente. Era um homem magro, pálido, vestido em casimira velhinha. Não tinha cara de gente má. Ao contrário, seus olhos eram doces e mendigos. O policial segurou o homem pela lapela. O homem não se mexeu. Apenas levantou os olhos e perguntou: - Por quê? A senhora estava uma fúria e dizia num fôlego só:— Há uma hora este cidadão me segue. Começou no lotação. Desceu quando eu desci. Entrei numa loja e ele entrou também. Andei um quarteirão e ele andou também. Entrei no mercadinho e ele entrou também...— E lhe disse alguma coisa?— Não. Só olhava. O guarda soltou a lapela do homem. O homem agradeceu. O guarda dirigiu-se ainda à mulher:— Mas ele só olhava?— Sim. Mas olhava de maneira obscena. O guarda perguntou, então, ao homem:— Você olhava de maneira obscena?— Sim. Não sei mentir. Mas qualquer um no meu lugar faria o mesmo. 0 senhor já viu ela andar? 0 guarda viu depois, quando a mulher desistiu da prisão do seu espectador e foi andando. Não se deve explicar muito, mas é preciso que se diga: era uma moça brasileira. Uma moça de formato brasileiro, com movimentos brasileiríssimos. Dessas que deviam ter, como certos automóveis, uma tabuleta às costas, onde se lesse: "Amaciando".

26. ANTÔNIO MARIA. Quem me dera um pouco de poesia, esta manhã, de simplicidade, ao menos para descrever a velhinha do Westfália! É uma velhinha dos seus setenta anos, que chega todos os dias ao Westfália (dez e meia, onze horas), e tudo daquele momento em diante começa a girar em torno dela. Tudo é para ela. Quem nunca antes a viu, chama o garçom e pergunta quem ela é. Saberá, então, que se trata de uma velhinha "de muito valor", professora de inglês, francês e alemão, mas "uma grande criadora de casos".Não é preciso perguntar de que espécie de casos, porque, um minuto depois, já a velhinha abre sua mala de James Bond, de onde retira, para começar, um copo de prata, em seguida, um guardanapo, com o qual começa a limpar o copo de prata, meticulosamente, por dentro e por fora. Volta à mala e sai lá de dentro com uma faca, um garfo e uma colher, também de prata. Por último o prato, a única peça que não é de prata. Enquanto asseia as "armas" com que vai comer, chama o garçom e manda que leve os talheres e a louça da casa. Um gesto soberbo de repulsa. O garçom (brasileiro) tenta dizer alguma coisa amável, mas ela repele, por considerar (tinha razão) a pronúncia defeituosa. E diz, em francês, que é uma pena aquele homem tentar dizer todo dia a mesma coisa e nunca acertar. Olha-nos e sorri, absolutamente certa de que seu espetáculo está agradando. Pede um filet e recomenda que seja mais bem do que malpassado. Recomenda pressa, enquanto bebe dois copos de água mineral. Vem o filet e ela, num resmungo, manda voltar, porque está cru. Vai o filet, volta o filet e ela o devolve mais uma vez alegando que está assado de mais. Vem um novo filet e ela resolve aceitar, mas, antes, faz com os ombros um protesto de resignação. Pela descrição, vocês irão supor que essa velhinha é insuportável. Uma chata. Mas não. É um encanto. Podia ser avó da Grace Kelly. Uma mulher que luta o tempo inteiro pelos seus gostos. Não negocia sua comodidade, seu conforto. Não confia nas louças e nos talheres daquele restaurante de aparência limpíssima. Paciência, traz de sua casa, lavados por ela, a louça, os talheres e o copo de prata. Um dia o garçom lhe dirá um palavrão? Não acredito. A velhinha tão bela e frágil por fora, magrinha como ela é, se a gente abrir, vai ver tem um homem dentro. Um homem solitário, que sabe o que quer e não cede "isso" de sua magnífica solidão.

27. ANTÔNIO MARIA. Dinheiro — Preciso 35 mil cruzeiros empréstimo, boas referencias. Pago no vencimento 50 mil 30 dias.— Mas, a gente vai separar por quê? — perguntou o marido. A conversa começou cerca da meia-noite, e eram oito da manhã. Marilda só dizia que ia separar e que não ficava mais nem um dia. Na hora de explicar o motivo, se trancava. A pergunta "você tem um novo alguém", Jaribe lhe fizera umas mil vezes. Marilda se arrepiava da cabeça aos pés, com a forma "um novo alguém". Foi quando Jaribe levantou, foi no armário e, de urna malinha da Varig, trouxe um Smith Wesson 38, carga dupla.— Fala, Marilda. Se não falar eu me mato aqui mesmo. Marilda não sabia daquele revólver. Nunca vira, antes, alguém com um revólver na mão. Sentiu uma náusea. A violência, qualquer espécie de violência, lhe nauseava. Pediu:— Guarde o revólver que eu falo. Jaribe atirou o revólver, de qualquer maneira, no armário.— Vai, fala. Marilda ergueu metade do corpo e recostou no espaldar da cama. Tinha que falar. Um homem nunca se conforma em separar-se sem ouvir, bem direitinho, no mínimo 500 vezes, que a mulher não gosta mais dele, por que e por causa de quem. Já mulher, não (pensava). Basta que o homem lhe diga uma vez que quer ir embora, nasce-lhe um brio, um ódio poderoso, uma espécie de soberba, tão grande, que ela se veste toda, pega um telefone, pede um táxi e sai. Mulher (pensara Marilda, a noite inteira) pode não ter muita vergonha nos outros lugares. Mas, na cara, tem. Mulher não se importa de vestir o menor dos biquínis e deixar que a vejam, horas. Mas não consente que o homem que a despreza lhe olhe a cara, um só minuto. Mas tinha que falar, porque homem, enquanto não sabe do pior, não sossega. E começou, Marilda, sem um segundo de sono (seis "dexas"), recostada no espaldar.— Escuta, bem. Você sabe que eu tenho minhas coisas, não sabe? Fala. Sabe ou não sabe? — Mas conta.— Você vai dizer que eu sou louca, se eu disser que, no terceiro mês de casada, não agüentava ouvir ou dizer seu nome. Nós estamos casados há dois anos e três meses, não é? Pois bem, qual foi a última vez que você me ouviu chamar você pelo nome? Jaribe fez uma rápida busca no tempo e só lembrou de Marilda a chamá-lo de "meu bem". Ou, então, quando não havia ninguém perto, falar assim: "hei"!... e dizer o que queria. Marilda continuava:— Tentei o seu sobrenome. Você se lembra que, de junho a agosto do ano passado, eu passei chamando você de Carvalho? Mas não podia continuar. Mulher chamar marido pelo sobrenome é humilhante demais.— Mas meu nome é tirado da Bíblia — ... apelou Jaribe. Marilda continuou:— Mas não é só isto. Você fala umas coisas que não há mulher que agüente. Houve uma pausa, que Jaribe se apressou em quebrar:— Por exemplo? Marilda preferia não dizer. Ajeitou-se no espaldar da cama, puxando o lençol acima dos seios, pois naquela posição a camisola não estava dando conta. Mulher não diz nada sério, não assume mesmo a mínima dignidade, se houver qualquer de suas pudícias à mostra. Marilda puxou o lençol até o pescoço.— Eu estou esperando — insistiu Jaribe. E Marilda falou o resto:— Outra coisa: você fala "menas".— Como assim?— Você diz muito: "menas gente".Jaribe a amava como um louco. Sentia, por dentro, uma dor enorme. Aquela dor da falta de ginásio. Mas queria saber tudo:— E você tem um novo alguém? Marilda botou o rosto dentro das mãos e começou a chorar. Chorava e falava, ao mesmo tempo:— Me manda embora! Me manda um mês para fora pra ver se a gente conserta! Deixa eu ficar dois meses no Paraná com a família da minha madrasta! Vai, arranja um dinheiro e me manda! Depois a gente acerta. Jaribe o que queria era esperança. Como todo homem que sente perder a mulher, queria a esperança de ainda retê-la. Tivesse ou não "um novo alguém", ele queria Marilda. Honra? O que é honra? Em que parte do corpo está localizada? Com a lucidez dos enganados, Jaribe descobria todas as verdades da vida. Pobre Jaribe! Iria arranjar o dinheiro, custasse o que custasse. Com uns 35 mil cruzeiros, solucionaria o problema. Qualquer agiota lhe emprestaria 35 por cinqüenta, em trinta dias. Qualquer um. O próprio contador da Importadora. Se falhasse, era só botar um anúncio no Jornal do Brasil. Naquela efusão de suas esperanças, pensou: "Por que será que a Condessa comprou a Tribuna?". Pôs-se de pé.— Olha, Marilda. Você vai para o Paraná, sim. Depois de amanhã. Fica lá, descansa, passa o tempo que quiser e depois volta.— Faz uma coisa — pediu Marilda —. Você me escreve, tá?— Claro. Você vai para descansar. E Jaribe foi para o banheiro, alentado por todos os maus alentos. Vigiar-se-ia dali por diante quando falasse. Precisava de Marilda. Retê-la-ia, custasse o que custasse. E, coitado, em tudo o que pensava, não estava mais que estruturando sobre o absurdo.

28. ANTÔNIO PRATA. QUASE. Como nunca levou jeito para a música nem para a arte da carpintaria, Osmar dos Santos formou-se advogado — profissão que muito lhe convinha, visto que não nascera para outra coisa senão para advogar. Rosinha Carvalho, por sua vez, já aos treze sabia comandar uma casa como ninguém: lavava, passava, cozinhava e fazia magníficos arranjos de flores. Certa vez passou por Bauru, onde residia a moça, um amigo do Dr. Carvalho que, abismado com os arranjos, felicitou: "Mas que lindo arranjo de flores, Rosinha!" Dr. Carvalho, bom pai e conhecedor das artes varonis para atingir a cópula, muito prudentemente acertou três tiros no homem, que morreu ali mesmo. Mas Osmar nunca ficou sabendo do ocorrido, posto que não nascera em Bauru nem nunca por lá passara (a bem da verdade, só saíra uma vez de sua cidade, indo para São Vicente a trabalho) e, sendo assim, não ficou chocado e pôde continuar com sua nobre ocupação sem maiores (nem menores) tormentos. Rosinha chorou um pouco, mas depois resignou-se com a fatalidade e continuou com seus lindos arranjos. Rosinha, bela moçoila e prendada como só, já estava em idade de casar. Osmar, advogado com o diploma na parede e a bela tabuleta na porta, também. Eis que um dia quis o destino, esse cosedor de histórias, unificador do diverso, carpinteiro da vida, que Rosinha fosse a Pirajuí, cidade mui bela onde habitava, entre muitos outros, Osmar. Rosinha iria acompanhar a mãe num encontro com umas primas distantes, a respeito de uma herança deixada por um tio. Antes do ocaso, partiam numa caravana com mais três capangas e duas mucamas muito limpinhas rumo a Pirajuí. Em lá chegando, foram direto à casa das primas, que, com chá e biscoito, as receberam de forma cordial e hospitaleira. Como faltava açúcar, dona Isaura Carvalho, mãe de Rosinha, mandou-a à mercearia, acompanhada de uma das serviçais. Por acaso ou não, ocorreu que, neste mesmo instante, Osmar se deu conta de que havia acabado suas cigarrilhas, tão importantes em sua rotina e em sua nobre ocupação, dando-lhe um ar austero que um bom advogado precisa ter. Assim sendo, levantou-se e rumou à mercearia, a mesma já mencionada, para onde também ia nossa querida Rosinha. Osmar chegou primeiro e pediu as cigarrilhas. Abriu o pacote e pegou uma. Quando já ia saindo, chegava Rosinha. Infelizmente, ocupado que estava em acender seu precioso tabaco, Osmar não avistou Rosinha,tendo ela, portanto, jamais se casado com ele.

29. ANTÔNIO PRATA. PRIVADA I: O HOMEM E SUA OBRA. "Este ódio de tudo o que é humano, de tudo o que é 'animal' e mais ainda de tudo que é 'matéria', este horror dos sentidos (...) tudo isso significa (...) vontade de aniquilamento, hostilidade à vida, recusa em se admitir as condições fundamentais da própria vida". Nietzsche. O Homem é o novo rico da natureza. Assim que nos demos conta de que éramos os únicos na vizinhança que falávamos, fazíamos as quatro operações e conseguíamos encostar o dedão no mindinho, ficamos profundamente, irremediavelmente bestas. Cobrimos a pele com panos, penteamos o cabelo pra trás, passamos uma salivinha na sobrancelha, dissemos: adeus, bicho! e saímos da selva. Nem mal deixamos o bosque, passamos a esnobá-lo e a condenar as atitudes de todos os seus habitantes. Nós éramos superiores! Nós dominávamos a natureza! Nós usávamos ferramentas, meias e fio dental! Novo rico que se preze, no entanto, dá bandeira. Há sempre um douradinho além da conta, um sotaque suburbano escapando num momento de exaltação, um conversível rosa com a placa mom ou dad. Com a humanidade também é assim. Por mais que consigamos trocar nossos odores naturais por mentol, eucalipto ou tutti-frutti, gastemos um bilhão de dólares em pesquisa para criar lâminas capazes de raspar perfeitamente nossos pêlos e cubramos toda a crosta da terra com asfalto e carpete sintético, um ato sempre nos denunciará o passado selvagem, a natureza animal: a cagada. Ali não tem desculpa, não tem disfarce. A merda é nossa ligação perene com a floresta, com o barro de onde viemos. Aí não tem talher nem tailleur nenhum que nos diferencie da arara ou do tamanduá. Nus como as trutas, acocorados como os cães, expelimos a verdade universal, fisiológica, cilíndrica e obscura que por tanto tempo tentamos ocultar. Somos animais! Temendo uma reflexão mais elaborada sobre o assunto, e sabendo das conseqüências que tamanha verdade traria uma vez revelada, desde cedo cuidamos de camuflar o assunto. Fizemos com a bosta o que fazemos com as putas, as drogas e tudo aquilo que é necessário existir, mas não é preciso divulgar; marginalizamo-la. Condenamos as fezes ao ostracismo. No início, enquanto vagávamos nômades, a coisa era bem fácil. O sujeito simplesmente se afastava um pouco da horda, fazia o que tinha de fazer e ia embora, deixando as sujeiras para trás. Estávamos literalmente cagando e andando. Quando os primeiros povos dominaram as técnicas de irrigação e, portanto, a agricultura, passaram a viver fixos num determinado local, e defecar ficou um pouquinho mais complicado. O sujeito tinha que sair da aldeia, andar um pouco, achar uma moita, cavar um buraco, fazer e enterrar. Durante muito tempo a coisa rolou assim, trabalhosa, mas sem maiores problemas. Foi o crescimento da população e das aldeias que começou a complicar o processo. A moitinha ia ficando cada vez mais longe de casa, corria-se sempre o risco de se encontrar um conhecido por lá e, pior de tudo, cavar um buraco de segunda mão. Dizem que foi um bretão chamado Walter Collins que teve a brilhante idéia: cavar um buraco bem fundo no quintal de casa e cercá-lo por paredes. Em pouco tempo a invenção de Walter, assim como suas iniciais, já podiam ser vistas em grande parte do mundo. Parecia que o problema havia sido solucionado. Mas veio a revolução industrial, o grande êxodo para as cidades e os quintais, como se sabe, foram pra cucuia. Talvez tenha sido esse o momento mais difícil da humanidade frente aos seus excrementos, o clímax entre o Homem e sua sombra animal. Tivemos que trazer a bosta para dentro de nosso próprio lar. Para que isso fosse possível, bastava que jamais assumíssemos o verdadeiro fim do aposento que covardemente, eufemisticamente, chamamos de banheiro. Sim, meus caros, para não dar nas vistas, inventamos o chuveiro, a banheira, a higiene bucal, o secador de cabelo, o rímel, o blush e o batom, a acne e os tratamentos antiacne e todas as outras coisas para se fazer ali. Além disso, criou-se um arsenal para se disfarçar o cocô: sprays com odor de rosas, sachês que deixam a água da privada azul, verde ou rosa, exaustores, bidês e papeis higiênicos perfumados. Ali, naquele ambiente cientificamente controlado, podemos aliviar as nossas necessidades com o máximo distanciamento possível. Após dar a descarga, nosso cocô é mandado para esgotos submersos, que desembocam em rios que vão dar lá longe no oceano. Sanamos o problema por enquanto, mas é só uma questão de tempo. Todo esse cocô está se unindo, formando o maior movimento underground do mundo. Nossas cidades, nossos países estão boiando sobre rios de merda. Fala-se muito no fim do petróleo e no fim da água, mas não será assim que nós morreremos. Numa incerta manhã um cidadão dará a descarga e, como na piada, ouvirá o estrondo: o subsolo, entupido, explodirá. A verdade, reprimida por séculos e séculos, emergirá. Só nesse dia todos perceberão o tamanho da cagada em que nos metemos desde o dia em que resolvemos sair da floresta. E não haverá sachê nem bom ar que dê jeito. Como se sabe, só as baratas sobreviverão.

30. ANTÔNIO PRATA. ASCENSÃO. Faz apenas um segundo que Woopy Goldberg terminou de anunciar: "and the Oscar goes to João Arlindo, from Brasil! With the film “Batuque”, mas ele permanece imóvel. E com uma ereção daquelas não vai levantar mas nem fodendo — me perdoem o trocadilho. Com a calça fininha do smoking alugado, e de cueca samba-canção então... Seria um vexame sem precedentes, compartido via satélite por mais de um bilhão de pessoas de Belford Roxo a Pequim, passando pela casa da tia Conceição, que acaba de dar o primeiro soluço de felicidade, e pelo bar do Pedrão, onde nesse instante todos os amigos se levantam das cadeiras e pulam de alegria. João terá que tomar alguma atitude. E rápido. Mas qual? Já se passaram três segundos desde que anunciaram seu nome. Três segundos é pouca coisa. E o tempo que leva para a pessoa perceber que é com ela, abraçar o companheiro do lado, esticar as pernas e começar o longo caminho da poltrona até o palco, tremendo que nem vara de marmelo (segundo dizem aqueles que já viram uma vara de marmelo). E o que demora para a tradução simultânea (que nunca é simultânea, e às vezes tampouco tradução) repetir o nome do ganhador, do filme e do país de origem do filme. Mas depois de seis, oito segundos, a coisa já vai começar a ficar esquisita. Por que o cara não levanta? — se perguntará o quase um quarto da humanidade que acompanha o acontecimento. A câmera já está mostrando João, e em no máximo dez segundos Rubens Ewald Filho fará algum comentário. A Woopy Goldberg — quem sabe? — também. E aí? Já se passaram cinco segundos e João sente-se como naquelas cenas em que o herói vai correndo pelo píer e não sabe se salta ou não salta no barco que zarpa, levando sua amada, ou como o jogador que caminha em direção à bola e tem que escolher de que lado baterá o pênalti. A situação de João é ainda pior do que as descritas, porque não se trata de optar entre duas possibilidades, mas de inventar sua própria saída — e será que existe alguma? 0 tempo que leva um pinto da ereção completa à broxada total é superior ao que se pode esperar na poltrona, depois que já anunciaram que você é o ganhador do Oscar sem causar estranhamento. Além do mais, as únicas coisas que passam pela cabeça de João são os rios de suor que descem, caudalosos, em direção às costas. Sete segundos. Rubens Ewald Filho comenta que João Arlindo, "o filho pródigo da cinematografia nacional, está tão emocionado diante do primeiro Oscar brasileiro, que mal consegue levantar-se da poltrona!". Mal sabe Rubens que, caso João se levante agora, mais olhos verão a sua pródiga ereção do que viram o homem pisar na lua! Nove segundos. 0 coração de João está a 210 bps, e o fluxo sangüíneo só faz perpetuar seu estado de desesperação. Isso é o Oscar, meu amigo, não é uma festa de debutantes em Mogi das Cruzes! É o maior ritual global o circo do Império e, na situação em que se encontra João será comido pelo sarcasmo de mais de um bilhão de leões-telespectadores! E entrará para a mitologia contemporânea como "o cineasta que teve uma ereção no Oscar", e assim será comentado nas rodas globais: "Oh you mean: that brazilian director who had an erection during the Oscar ceremony? Yes, of course I remember! How could I forget?!" "Hombre, João Arlindo es el tío aquel de la erección, verdad?" "Hein kraft nich däs ereckcionaz, nun?", e durante algumas semanas seu nome será mais digitado na Internet do que o de Britney Spears, do Michael Jackson e da Madonna juntos. João sabe muito bem disso. Onze segundos. Woopy Goldberg vai de novo ao microfone: "João, are you there?!". Como conseqüência 1 bilhão, 234 milhões, 187 mil e 27 pessoas riem, pois sentem compartilhar a estranheza diante daquele premiado que não se levanta. Essas 27 são os amigos lá no bar do Pedrão, que ainda se abraçam e agora pulam ao som de “Aquarela do Brasil”, oportunamente colocada pelo próprio Pedrão (versão do Canal 100, por Valdir Calmon e sua orquestra). Tia Conceição, por entre um soluço e outro, observa preocupada a demora do Joãozinho em sair da poltrona. Rubens Ewald Filho comenta: "Gente, será que tá acontecendo alguma coisa com nosso querido João Arlindo?". Antes que Rubens Ewald acabe seu comentário, no entanto, o cineasta brasileiro já sumiu do enquadramento da câmera que até então o mostrava: entre o segundo 12 e o 13 João Arlindo se atirou da poltrona e estatelou-se no chão do corredor. Agora, sobre o tapete vermelho ele se contrai, esperneia e baba, da forma que sempre ouviu dizer que fazem os epilépticos. Diante do silêncio de um quarto da humanidade, da Woopy Goldberg, do Rubens Ewald Filho e da tia Conceição, o primeiro cineasta brasileiro a receber um Oscar é retirado de maca. E, a despeito da insistência do pessoal da emergência em esticá-lo, ele consegue colocar-se de ladinho, e é assim, em posição quase fetal, que some pelas coxias do enorme teatro, sem deixar notar a ereção. Tia Conceição não agüenta de desespero e morre do coração. O pessoal do bar do Pedrão, perplexo, continua abraçado e olhando o telão. Será só no segundo 124 que esboçarão um movimento, quando o celular do Serginho, ligado no sistema vibratório, tremer no bolso de sua calça. Do outro lado da linha, uma voz muito conhecida dirá: "Caralho, Serginho, cês não vão acreditar no que me aconteceu!".

31. ANTÔNIO PRATA. RECEITA. Fazer um texto não é difícil. Como tudo na vida, basta que sigamos um método. Depois de muitos estudos sobre o assunto, tendo consultado desde os mais ancestrais pergaminhos ciganos da Checoslováquia até as últimas pesquisas científicas norte-americanas, juntei conhecimento suficiente para produzir um pequeno tratado sobre o tema. Se o publico aqui não é por vaidade ou capricho, mas porque acho que todo conhecimento deve ser compartido. Dessa forma, tenho esperança, chegará o dia em que todo o saber humano poderá ser reunido e centralizado em um único programa de computador, ou software — que é o termo correto — e vendido a preços módicos nas bancas de jornal, postos de gasolina ou virão grátis nas compras acima de 50 reais nos supermercados Mambo. Aí vai, portanto, a minha modesta contribuição. Como escrever um texto. Assim como para fazer uma sopa é preciso, antes de mais nada, escolher os ingredientes, para escrever um texto é necessário, primeiramente, selecionar as palavras que vamos usar. Se para os ingredientes da sopa vamos ao mercado, para encontrarmos as palavras recorremos ao dicionário. Algumas considerações desnecessárias (porém interessantes). O dicionário é superior ao mercado em muitos aspectos. Em primeiro lugar, porque no dicionário o preço das palavras não cresce a cada dia — como ocorre com os legumes no mercado —, posto que todas são de graça. Ademais, os dicionários podem ser guardados na estante da sala, o que seria impossível de se fazer com um mercado — não por sua forma, muitas vezes retangular como os dicionários, mas devido ao tamanho (mais provável seria guardar a estante da sala no mercado, mas isso seria inútil tendo em vista que nosso objetivo não é dar cabo da estante e sim escrever um texto). Há uma diferença básica entre os mercados e os dicionários: se nos primeiros os produtos entram novos e saem assim que fiquem velhos, no segundo não se encontra um só artigo novo, pois ser velho é condição sine qua non para estarem ali. Apesar das considerações anteriores, é impossível provar logicamente a superioridade de um mercado sobre um dicionário ou vice-versa. Prova disso é que podemos tanto encontrar dicionário em um bom mercado, como mercado em um bom dicionário. Assim sendo, deixemos de lado essas comparações inúteis e voltemos ao tema em questão: como escrever um texto. Agora sim, como escrever um texto, parte I: Ritmo. Tanto os pergaminhos ciganos da Checoslováquia como os cientistas norte-americanos estão de acordo em um ponto: um texto deve ter ritmo. Por isso, uma vez aberto o mercado, perdão, o dicionário, é importante ter em mente que um bom escrito leva um número equivalente de palavras pequenas, médias e grandes. Um método infalível na hora de separar as palavras é, sempre que escolhermos uma curta, como chá, lua ou oi, buscarmos imediatamente uma comprida, como halterofilismo, mononucleose ou antropomorficamente. Assim que você sentir que já tem em mãos um bom número de palavras curtas e longas — isso depende do tamanho do texto que quiser escrever —, parta para a busca de um número igual de palavras médias, tais como sudorese, abobado ou alicate. Aconselha-se anotar essas palavras num papel, com lápis ou caneta, ou datilografá-las num computador ou máquina de escrever, de acordo com as condições infra-estruturais de cada um. (O texto final, no entanto, poderá ser escrito de muitas outras maneiras, como com sangue nas paredes, com canivete num tronco de árvore ou com um arco de violoncelo nas areias de Jericoacoara, dependendo não só das condições infra-estruturais como do efeito desejado. Isso fica a cargo do autor.) Parte II: Etiqueta ou bom senso. Se para uma sopa de batatas precisamos de muitas batatas e para uma sopa de beterraba muitas beterrabas, para um texto triste precisamos de palavras tristes, para um texto audacioso de palavras audaciosas e para um texto semi-erótico de palavras semi-eróticas. Se o autor tem em vista um texto fúnebre, por exemplo, não cairão bem as palavras lantejoula ou meretrizes, assim como num convite de casamento dificilmente se poderá usar a palavra excremento (apesar de, todo o apelo que a rima possa ter). É sempre bom observar essa pequena, porém importante, formalidade da escrita. Parte III: Pontuação. Nesta altura o futuro autor já tem consigo um bom número de palavras, harmoniosamente divididas entre curtas, médias e longas, anotadas em alguma superfície de celulose ou cristal líquido. Chegou a hora de condimentar essas palavras. Os pontos são no texto o que os temperos são para a sopa, e é importante saber usá-los. Para cada cinco palavras, em média, o autor deverá ter uma vírgula. Para cada dez, um ponto. Para cada 15, uma interrogação e/ou uma exclamação. Algumas dicas: para um texto mais picante, acrescente muitas exclamações. Nunca use muitas interrogações se o texto se destina a um grande público. Por último, evite as crases, os tremas e o ponto-e-vírgula, pois são de sabor muito forte e devem ser usados com parcimônia, assim como o gengibre ou o curry na culinária. Parte IV: Prosa e poesia. Tendo os ingredientes e os temperos todos à frente, é chegado um momento muito importante, a hora de se decidir que tipo de texto se quer escrever. Há somente dois, prosa e poesia. É muito fácil diferenciar um do outro: os de poesia são fininhos e as frases se colocam umas sob as outras, formando pequenos blocos. Ao final de cada um desses tijolinhos, pula-se uma linha e começa-se um novo. Os textos de prosa são mais consistentes, e as linhas ocupam toda a extensão da página, desde a margem esquerda até a direita. Se o autor é preguiçoso ou está terrivelmente atrasado para algum compromisso, convém fazer uma poesia. Nesse caso, vale a pena seguir alguns passos. 1 — Volte ao dicionário e busque algumas interjeições como Oh! e Ah!. Não economize também nas reticências, exclamações e interrogações. São pequenos detalhes, mas muito úteis. Mesmo a mais simples das frases, se antecipada por uma dessas palavrinhas e seguida por esses pontos, ganhará um novo alento, uma vaguidão que facilmente será confundida com profundidade, como você pode comprovar no exemplo a seguir: Antes: Havia casas azuis. Depois: Oh! Havia casas... Azuis?! Caso o futuro autor disponha de mais tempo e motivação, e deseje escrever um texto em prosa, não encontrará grandes dificuldades. Basta pegar todas as palavras previamente selecionadas e dispô-las sobre a página. Não é preciso lavá-las nem deixá-las de molho. Tente sempre mesclar as pequenas, médias e grandes. Lembre-se de que os pontos, as exclamações e interrogações vão sempre ao final das frases, e os acentos em cima das palavras. A cada seis ou sete linhas, termine uma frase no meio da folha e comece outra embaixo, depois de um espaço. Isso se chama parágrafo. Os antigos pergaminhos da Checoslováquia demonstram alguma preocupação quanto à importância do sentido e da clareza em um texto. As últimas pesquisas norte-americanas, no entanto, provam que essas questões são absolutamente irrelevantes. Uma rápida visita a uma biblioteca demonstrará que há textos dos mais absurdos impressos por aí, e que nem a clareza nem o sentido são as características que fazem deles clássicos ou novelinhas baratas, exemplares da Academia Brasileira de Letras ou calço para mesas. Por último, cabe destacar que um texto, ao contrário de uma sopa, não alimenta, não esquenta, nem pode ser servido com conchas. Assim como até hoje não tive notícias de nenhuma ONG ou instituição beneficente que saia pelas madrugadas frias distribuindo textos e cobertores para mendigos (embora não seja uma má idéia). Não podemos deixar de mencionar que um texto resulta mais prático que uma sopa, pois pode ser guardado na estante da sala e não precisa ser resfriado nem muito menos congelado. Apesar das considerações anteriores, é impossível provar a superioridade de um texto sobre uma sopa ou vice-versa. Mesmo porque, é possível encontrar tanto letras em boas sopas, quanto sopas nas boas letras. Assim sendo, vamos ficando por aqui. Afinal, os textos e as sopas, os mercados e os dicionários, as palavras grandes, os ingredientes, eu, você, os cientistas norte-americanos e os pergaminhos da Checoslováquia nos assemelhamos numa única coisa: todos, em algum momento, chegamos ao fim.

32. ANTÔNIO PRATA. PRA LUA. Não foi assim logo de cara. Claro, seu Julião e dona Neuza já tinham reparado numa coincidenciazinha aqui, uma sorte acolá, mas só foram perceber que Julinho tinha mesmo um dom especial no verão de 1984, em Caraguatatuba, assim que o moleque acabou de chupar o quinto picolé, de manga. Quinze minutos antes, ao acabar o primeiro sorvete, um Fura-bolo, Julinho pulou de alegria: o palito viera premiado, dando direito a mais um. Até aí, nada de mais... Acontece que o segundo sorvete (um Esquimó) também dava direito a outro, assim como o terceiro (de coco), o quarto (tangerina) e provavelmente todos os que chupasse se, no quinto picolé — a barriga do garoto já estava parecendo uma tela do Pollock, tantas as gotas de diversas cores que escorriam em direção à sunga verde-limão—, o sorveteiro não tivesse dado com a tampa de isopor em sua cabeça e saído soltando os palavrões mais cabeludos, cujos significados Julinho só viria a descobrir muitos anos mais tarde, na perua do colégio, numa tarde de maio — o que não vem, absolutamente, ao caso. O que nos interessa é que nessas férias Julinho ganhou três quilos e o respeito de toda a criançada de Caraguá, com quem trocava os palitos premiados por pipas, baldinhos de areia, favores e até uma bicicleta com buzina, cestinha e farol. (A bicicleta, infelizmente, teve que ser devolvida assim que uma mãe apareceu no guarda-sol da família, trazendo um filho choroso numa mão, 45 palitos premiados na outra e exigiu a anulação da troca.) Apesar de já saberem que ali tinha coisa, foi só quando Julinho estava na quinta série, na época que surgiram as Raspadinhas, que seus pais realmente se deram conta do potencial econômico de seu dom. Enquanto a maioria dos mortais gastava tubos do dinheiro naqueles cartões lotéricos e, na melhor das hipóteses, ganhava 50 centavos — gastos em mais uma Raspadinha que, claro, não dava em nada —, Julinho sempre tirava a sorte grande: era só raspar a camada prateada e sair pro abraço. Em alguns meses, a família comprou uma cobertura, casa na praia, carro importado e jet ski. Não fosse o processo promovido pela Associação Brasileira dos Donos de Casas Lotéricas — que deu queixa na polícia dos prejuízos causados pelo gordinho que aparecia sempre chupando um picolé, comprava uma Raspadinha e limpava os caixas dos estabelecimentos — e a família, em pouco tempo, entraria nas listas das mais ricas do Brasil. Em entrevista ao vivo no programa do Gugu, logo após serem absolvidos no processo — com o acordo de que Julinho jamais jogasse em qualquer tipo de loteria federal —, seu Julião, o pai, disse que não tinha truque nenhum: "O garoto é assim, desde pequeno: rabudo. Pede par, sai quatro, ímpar, dá cinco e, no amigo secreto do Natal, sempre é tirado pelo tio Leôncio, meu cunhado, que dá os melhores presentes." Dona Neuza, a mãe, acrescentou orgulhosa: "Hum-hum..," Desde o lance das Raspadinhas, seu Julião e dona Neuza já não trabalhavam: como os pais de um craque ou de um desses cantores mirins, dedicavam-se exclusivamente a desenvolver o talento do filho. Passavam o dia colocando tampas de margarina e embalagens de chocolate em envelopes e respondendo a perguntas tipo “qual é o sabão que deixa limpão"; "a bateria que nunca arria"; "o refrigerante que faz splash" ou "o absorvente da executiva moderna". Toda manhã, antes de ir para a escola, Julinho punha as cartas no correio: eram casas, caiaques, home theatres, férias em estâncias hidrominerais, fins de semana em hotéis-fazenda, um ano de supermercado grátis e outros prêmios que não acabavam mais. Dona Neuza pôs botox, silicone, clareou os cabelos e entrou numas de Feng-Shui; seu Julião fez implante capilar, montou um bar espelhado na sala da cobertura e fazia churrasco todos os domingos; Julinho tinha um minibugue, fã-clube, todos os bonequinhos dos Comandos em Ação, Passaporte da Alegria vitalício no Playcenter e a Tilibra estava prestes a lançar uma linha de cadernos com sua foto na capa. Apesar de todo o sucesso, Julinho estava entediado. Não havia nada que quisesse que não conseguisse: quando jogava futebol, para qualquer lugar que chutasse, a bola entrava; todo dia tropeçava com carteiras cheias de dinheiro e, quando ficava doente e perdia uma prova na escola, o professor faltava. Era muito fácil. Além do quê, não agüentava mais chupar picolé. Sem uma dificuldade, por menor que fosse, um empecilhozinho qualquer, as coisas perdiam a graça. Andando de lá para cá com seu minibugue pelas ruas do condomínio, Julinho lamentava: "Se ao menos eu tivesse que preencher algum formulário, ou pagar uma mensalidade, ou fazer duzentas abdominais toda manhã, eu sentiria que estou tendo algum trabalho, mas assim, do nada, não tem graça!". Tudo o que ele queria, como sempre nesse tipo de história, era ser como as outras crianças. Mas como? Foi por acaso, caminhando pelo Centro de São Paulo, num dia desses em que o céu cinza parece apenas a metáfora que um escritor previsível criou para espelhar a nossa nublada configuração interna, que Julinho deu de cara com o lugar mais impressionante que seus olhos já haviam visto, um mercado onde se podiam encontrar ovos de dinossauros vietnamitas, videocassetes chineses, múmias maias, DVDs pornográficos da Hungria, parentes distantes, lança-mísseis russos e até amor verdadeiro — a galeria Pajé. E foi ali, entre um Rolex falsificado e um cachorrinho de pelúcia (que era ao mesmo tempo dicionário eletrônico, liquidificador e chapinha para cabelos), que Julinho encontrou a lâmpada árabe. Haddad, o vendedor, garantiu que a preciosidade era do século XIII e havia sido roubada pessoalmente do Museu de Bagdá, durante a invasão americana. Julinho, contando, como sempre, com a própria sorte, não vacilou. Assim que chegou em casa e começou a lustrar a lâmpada com a manga da camisa, o ambiente encheu-se de fumaça, ouviu-se uma explosão e, depois de uma chuva de purpurina e lantejoulas, lá estava ele, translúcido e obeso, pairando a um metro do chão: o gênio da lâmpada! — Ó amo querido, me libertaste da terrível prisão! Como recompensa, concedo-te três pedidos. Diz-me apenas quais são teus desejos e logo os satisfarei! Julinho nem pestanejou: — Primeiro eu queria ser como os outros, não ter tanta sorte: me dar bem às vezes, mal em outras, ter que me esforçar para conseguir o que quero. Segundo, já que a sorte me abandonará, quero apenas garantir uma regalia: que todas as mulheres que posam para a Playboy queiram fazer sexo comigo até o fim da vida. Terceiro, desde criança que penso nisso: por que chamam esse objeto dourado de lâmpada, se ele mais parece um bule? O gênio, com aquela cara séria e atenta que gênio faz nessas horas, respondeu: — Meu amo: teus desejos são uma ordem! Mais fumaça, mais chuva de purpurina e lantejoulas e, quando tudo se acalmou, no lugar que antes o gênio sobrevoava, havia um bilhete: “Caro amo, temo avisar-te que ocorreu uma falha na execução de teus desejos. Acontece uma vez a cada mil anos o que nós, gênios da lâmpada, chamamos de paradoxo retroativo. Teu primeiro desejo foi imediatamente aceito e teu azar, portanto, começou ali mesmo, fazendo com que os efeitos desse gênio não tenham efeito nenhum. Em outras palavras: tudo continuará como antes, tu continuarás sortudo. Se fizeres sexo com playmates ou descobrires por que esse bule é uma lâmpada será porque nasceste virado para a lua, não por conta de meus serviços. Agora, devo ir-me, haverá uma convenção de gênios da lâmpada no Rotary Club de Ribeirão Preto e não posso perdê-la por nada. Adeus e obrigado." Julinho, desesperado, resolveu jogar a toalha. E a toalha, no caso, era ele mesmo: olhou seu quarto pela última vez, derramou uma lágrima de despedida e saltou pela janela da cobertura. Enquanto caía, pensava no infortúnio de não ter nenhum infortúnio, na desgraça da graça a ele concedida e, sabe-se lá por quê, num short amarelo de que gostava muito quando era pequeno. Vinte e cinco andares e sete segundos depois, para surpresa dos pedestres, lá estava ele, vivo e consciente, estatelado sobre uma Kombi azul. Naquele momento, ainda zonzo por causa da queda e surdo com o esporro do japonês, que reclamava dos estragos causados ao veículo e perguntava como era que ele ia fazer agora para trazer o shimeji de Cotia todo dia, Julinho compreendeu sua sina: era imortal, sortudo demais para morrer. Uns dizem que foi o tombo, outros comentam que a coisa já vinha de longe, que ele sempre teve um parafuso a menos, mas o fato é que todo dia, desde o salto, Julinho tenta, inutilmente, tirar a própria vida. Depois de beber cianeto (estava vencido), cortar os pulsos (a faca quebrou), enforcar-se (a árvore tombou) e tentar todos os outros métodos conhecidos e desconhecidos de suicídio — chegou até a alimentar-se por uma semana só de detergente de maçã —, Julinho perdeu de vez o juízo. Vaga doido pelo mundo, magro, descalço e barbudo. De vez em quando, engole espadas, caminha sobre brasas, deixa jamantas passarem por cima de seu corpo e faz cooper em campos minados de Angola, sempre em vão. Para piorar, uma multidão de fiéis o segue aonde vá, acreditando ser a volta de Jesus à Terra. Alguns rabinos discutem se é ou não o messias, as playmates não lhe dão sossego e produtores de televisão ligam todo dia, insistindo em fazer um documentário para o Discovery Channel. Agora, por exemplo, Julinho está em Foz do Iguaçu, chorando arrependido da remota manhã em que foi pedir aquele maldito Fura-bolo em Caraguatatuba. Em instantes se atirará do alto da mais alta das cataratas — de onde será resgatado, alguns minutos depois, vivo e limpinho, pelos bravos homens do Corpo de Bombeiros do Brasil.

33. ANTÔNIO TORRES. POR UM PÉ DE FEIJÃO. Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom. Pode até haver anos melhores, mas jamais será a mesma coisa. Parecia que a terra (á nossa terra, feinha, cheia de altos e baixos, esconsos, areia, pedregulho e massapê) estava explodindo em beleza. E nós todos acordávamos cantando, muito antes do sol raiar, passávamos o dia trabalhando e cantando e logo depois do pôr-do-sol desmaiávamos em qualquer canto e adormecíamos, contentes da vida. Até me esqueci da escola, a coisa que mais gostava. Todos se esqueceram de tudo. Agora dava gosto trabalhar. Os pés de milho cresciam desembestados, lançavam pendões e espigas imensas. Os pés de feijão explodiam as vagens do nosso sustento, num abrir e fechar de olhos. Toda a plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum, uma festa comum, feito gente. O mundo era verde. Que mais podíamos desejar? E assim foi até a hora de arrancar o feijão e empilhá-lo numa seva tão grande que nós, os meninos, pensávamos que ia tocar nas nuvens. Nossos braços seriam bastantes para bater todo aquele feijão? Papai disse que só íamos ter trabalho daí a uma semana e aí é que ia ser o grande pagode. Era quando a gente ia bater o feijão e iria medi-lo, para saber o resultado exato de toda aquela bonança. Não faltou quem fizesse suas apostas: uns diziam que ia dar trinta sacos, outros achavam que era cinqüenta, outros falavam em oitenta. No dia seguinte voltei para a escola. Pelo caminho também fazia os meus cálculos. Para mim, todos estavam enganados. Ia ser cem sacos. Daí para mais. Era só o que eu pensava, enquanto explicava à professora por que havia faltado tanto tempo. Ela disse que assim eu ia perder o ano e eu lhe disse que foi assim que ganhei um ano. E quando deu meio-dia e a professora disse que podíamos ir, saí correndo. Corri até ficar com as tripas saindo pela boca, a língua parecendo que ia se arrastar pelo chão. Para quem vem da rua, há uma ladeira muito comprida e só no fim começa a cerca que separa o nosso pasto da estrada. E foi logo ali, bem no comecinho da cerca, que eu vi a maior desgraça do mundo: o feijão havia desaparecido. Em seu lugar, o que havia era uma nuvem preta, subindo do chão para o céu, como um arroto de Satanás na cara de Deus. Dentro da fumaça, uma língua de fogo devorava todo o nosso feijão. Durante uma eternidade, só se falou nisso: que Deus põe e o diabo dispõe. E eu vi os olhos da minha mãe ficarem muito esquisitos, vi minha mãe arrancando os cabelos com a mesma força com que antes havia arrancado os pés de feijão: - Quem será que foi o desgraçado que fez uma coisa dessas? Que infeliz pode ter sido? E vi os meninos conversarem só com os pensamentos e vi o sofrimento se enrugar na cara chamuscada do meu pai, ele que não dizia nada e de vez em quando levantava o chapéu e coçava a cabeça. E vi a cara de boi capado dos trabalhadores e minha mãe falando, falando, falando e eu achando que era melhor se ela calasse a boca. À tardinha os meninos saíram para o terreiro e ficaram por ali mesmo, jogados, como uns pintos molhados. A voz da minha mãe continuava balançando as telhas do avarandado. Sentado em seu banco de sempre, meu pai era um mudo. Isso nos atormentava um bocado. Fui o primeiro a ter coragem de ir até lá. Como a gente podia ver lá de cima, da porta da casa, não havia sobrado nada. Um vento leve soprava as cinzas e era tudo. Quando voltei, papai estava falando. - Ainda temos um feijãozinho-de-corda no quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o milho para quebrar, despalhar, bater e encher o paiol, não temos? Como se diz, Deus tira os anéis, mas deixa os dedos. E disse mais: - Agora não se pensa mais nisso, não se fala mais nisso. Acabou. Então eu pensei: O velho está certo. Eu já sabia que quando as chuvas voltassem, lá estaria ele, plantando um novo pé de feijão.

34. ARMANDO NOGUEIRA. PELADA DE SUBÚRBIO. Nova Iguaçu, quatro horas da tarde, sábado de sol. Dois times suam a alma numa pelada barulhenta; o campo em que correm os dois times abre-se como um clarão de barro vermelho cercado por uma ponte velha, um matagal e uma chácara silenciosa, de muros altos. A bola, das brancas, é nova e rola como um presente a encher o grande vazio de vidas tão humildes que, formalmente divididas, na verdade, juntam-se para conquistar a liberdade na abstração de uma vitória. Um chute errado manda a bola, pelos ares, lá nos limites da chácara, de onde é devolvida, sem demora, por um arremesso misterioso. Alguns minutos mais tarde, outra vez a bola foi cair nos terrenos da chácara, de onde voltou lançada com as duas mãos por um velhinho com jeito de caseiro. Na terceira, a bola ficou por lá; ou melhor, veio mas, cinco minutos depois, embaixo do braço de um homem gordo, cabeludo, vestido numa calça de pijama e nu da cintura para cima. Era o dono da chácara. A rapaziada, meio assustada, ficou na defensiva, olhando: ele entrou, foi andando para o centro do campo, pôs a bola no chão e, quando os dois times ameaçavam agradecer, com palmas e risos, o gesto do vizinho generoso, o homem tirou da cintura um revólver e disparou seis tiros na bola. No campo, invadido pela sombra da morte, só ficou a bola, murcha.

35. ARMANDO NOGUEIRA. PELADAS. Esta pracinha sem aquela pelada virou uma chatice completa: agora, é uma babá que passa, empurrando, sem afeto, um bebê de carrinho, é um par de velhos que troca silêncios num banco sem encosto. E, no entanto, ainda ontem, isso aqui fervia de menino, de sol, de bola, de sonho: "eu jogo na linha! eu sou o Lula!; no gol, eu não jogo, tô com o joelho ralado de ontem; vou ficar aqui atrás: entrou aqui, já sabe." Uma gritaria, todo mundo se escalando, todo mundo querendo tirar o selo da bola, bendito fruto de uma suada vaquinha. Oito de cada lado e, para não confundir, um time fica como está; o outro jogo sem camisa. Já reparei uma coisa: bola de futebol, seja nova, seja velha, é um ser muito compreensivo que dança conforme a música: se está no Maracanã, numa decisão de título, ela rola e quiçá com um ar dramático, mantendo sempre a mesma pose adulta, esteja nos pés de Gérson ou nas mãos de um gandula. Em compensação, num racha de menino ninguém é mais sapeca: ela corre para cá, corre para lá, quiçá no meio-fio, pára de estalo no canteiro, lambe a canela de um, deixa-se espremer entre mil canelas, depois escapa, rolando, doida, pela calçada. Parece um bichinho. Aqui, nessa pelada inocente é que se pode sentir a pureza de uma bola. Afinal, trata-se de uma bola profissional, uma número cinco, cheia de carimbos ilustres: "Copa Rio-Oficial", "FIFA - Especial." Uma bola assim, toda de branco, coberta de condecorações por todos os gomos (gomos hexagonais!) jamais seria barrada em recepção do Itamarati. No entanto, aí está ela, correndo para cima e para baixo, na maior farra do mundo, disputada, maltratada até, pois, de quando em quando, acertam-lhe um bico, ela sai zarolha, vendo estrelas, coitadinha. Racha é assim mesmo: tem bico, mas tem também sem-pulo de craque como aquele do Tona, que empatou a pelada e que lava a alma de qualquer bola. Uma pintura. Nova saída. Entra na praça batendo palmas como quem enxota galinha no quintal. É um velho com cara de guarda-livros que, sem pedir licença, invade o universo infantil de uma pelada e vai expulsando todo mundo. Num instante, o campo está vazio, o mundo está vazio. Não deu tempo nem de desfazer as traves feitas de camisas. O espantalho-gente pega a bola, viva, ainda, tira do bolso um canivete e dá-lhe a primeira espetada. No segundo golpe, a bola começa a sangrar. Em cada gomo o coração de uma criança.

36. ARMANDO NOGUEIRA. MÉXICO 70. E as palavras, eu que vivo delas, onde estão? Onde estão as palavras para contar a vocês e a mim mesmo que Tostão está morrendo asfixiado nos braços da multidão em transe? Parece um linchamento: Tostão deitado na grama, cem mãos a saqueá-lo. Levam-lhe a camisa levam-lhe os calções. Sei que é total a alucinação nos quatro cantos do estádio, mas só tenho olhos para a cena insólita: há muito que arrancaram as chuteiras de Tostão. Só falta, agora, alguém tomar-lhe a sunga azul, derradeira peça sobre o corpo de um semi-deus. Mas, felizmente, a cautela e o sangue-frio vencem sempre: venceram, com o Brasil, o Mundial de 70, e venceram, também, na hora em que o desvario pretendia deixar Tostão completamente nu aos olhos de cem mil espectadores e de setecentos milhões de telespectadores do mundo inteiro. E lá se vai Tostão, correndo pelo campo afora, coberto de glórias, coberto de lágrimas, atropelado por uma pequena multidão. Essa gente, que está ali por amor, vai acabar sufocando Tostão. Se a polícia não entra em campo para protegê-lo, coitado dele. Coitado, também, de Pelé, pendurado em mil pescoços e com um sombrero imenso, nu da cintura para cima, carregado por todos os lados ao sabor da paixão coletiva. O campo do Azteca, nesse momento, é um manicômio: mexicanos e brasileiros, com bandeiras enormes, engalfinham-se num estranho esbanjamento de alegria. Agora, quase não posso ver o campo lá embaixo: chove papel colorido em todo o estádio. Esse estádio que foi feito para uma festa de final: sua arquitetura põe o povo dentro do campo, criando um clima de intimidade que o futebol, aqui, no Azteca, toma emprestado à corrida de touros. Cantemos, amigos, a fiesta brava, cantemos agora, mesmo em lágrimas, os derradeiros instantes do mais bonito Mundial que meus olhos jamais sonharam ver. Pela correção dos atletas, que jogaram trinta e duas partidas, sem uma só expulsão. Pelo respeito com que cerca de trezentos profissionais de futebol se enfrentaram, músculo a músculo, coração a coração, trocando camisas, trocando consolo, trocando destinos que hão de se encontrar, novamente, em Munique 74. Choremos a alegria de uma campanha admirável em que o Brasil fez futebol de fantasia, fazendo amigos. Fazendo irmãos em todos os continentes. Orgulha-me ver que o futebol, nossa vida, é o mais vibrante universo de paz que o homem é capaz de iluminar com uma bola, seu brinquedo fascinante. Trinta e duas batalhas, nenhuma baixa. Dezesseis países em luta ardente, durante vinte e um dias — ninguém morreu. Não há bandeiras de luto no mastro dos heróis do futebol. Por isso, recebam, amanhã, os heróis do Mundial de 70 com a ternura que acolhe em casa os meninos que voltam do pátio, onde brincavam. Perdoem-me o arrebatamento que me faz sonegar-lhes a análise fria do jogo. Mas final é assim mesmo: as táticas cedem vez aos rasgos do coração. Tenho uma vida profissional cheia de finais e, em nenhuma delas, falou-se de estratégias. Final é sublimação, final é pirâmide humana atrás do gol a delirar com a cabeçada de Pelé, com o chute de Gérson e com o gesto bravo de Jairzinho, levando nas pernas a bola do terceiro gol. Final é antes do jogo, depois do jogo — nunca durante o jogo. Que humanidade, senão a do esporte, seria capaz de construir, sobre a abstração de um gol, a cerimônia a que assisto, neste instante, querendo chorar, querendo gritar? Os campeões mundiais em volta olímpica, a beijar a tacinha, filha adotiva de todos nós, brasileiros? Ternamente, o capitão Carlos Alberto cola o corpinho dela no seu rosto fatigado: conquistou-a para sempre, conquistou-a por ti, adorável peladeiro do Aterro do Flamengo. A tacinha, agora, é tua, amiguinho, que mataste tantas aulas de junho para baixar, em espírito, no Jalisco de Guadalajara. Sorve nela, amiguinho, a glória de Pelé, que tem a fragrância da nossa infância. A taça de ouro é eternamente tua, amiguinho. Até que os deuses do futebol inventem outra.

37. ARNALDO JABOR. SINAIS DOS TEMPOS. Tem uma pedra no meio do caminho... Essa pedrinha na praia de Marrocos é o pretexto para a explosão, conflitos antigos... Já existe tensão em Ceuta, uma cidade de 70 mil habitantes na costa de Marrocos, há uma briguinha em torno de Melila, também na costa. Essa guerra da pedrinha é a caricatura perfeita desse falso mundo global, onde árabes e judeus lutam por pedaços de deserto, onde Índia e Paquistão vivem rosnando, depois do Kuwait, Bósnia etc. Será que a Espanha está com medo de outra invasão dos mouros? Será que é influência do atual preconceito contra árabes na síndrome internacional de Bush? Ou será que o desejo de guerra é anterior aos motivos? Eu acho que a causa só se explica pela frase de Nélson Rodrigues: “só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana, e mesmo assim tenho minhas dúvidas sobre o Universo.”

38. ARNALDO JABOR. OCIDENTE "ORIENTAL". O Ocidente inventou a "solução". O Oriente inventou o Maktub, "tinha de ser assim". O Ocidente quer "resolver” as coisas. O Oriente acha que a vingança é um prato que se come frio. O Ocidente quer o “progresso”. O Oriente não sabe o que é isso. O Ocidente fala em “liberdade”, em indivíduo. O Oriente são formigueiros pobres com um só rosto. Para o Ocidente, a morte é a pior coisa. Para o Oriente, a morte é quase igual à vida. Ou seja, nosso primeiro passo tem de ser a desesperança. Só com muito dinheiro jorrando lá, com muita diplomacia, talvez se possa minorar o terror. Mas, pela lógica da doutrina Bush, teríamos de atacar também a Indonésia, a Síria, a Líbia, o Irã, de modo a raspar do mapa 3 bilhões de islâmicos. A solução só começará se acabarmos com a idéia de solução. O Ocidente terá de ser mais Oriente e conviver pacientemente com essa tragédia do século XXI.

39. ARNALDO JABOR. BOLA DE CRISTAL. Em geral, a bola de cristal é para ver o futuro. Mas nestas questões do adultério entre a coisa pública e privada, Sudam, Sudene, briga de ACM e Barbalho o desejo dos envolvidos é apagar o passado. As frases de defesa são sempre as mesmas: meu passado ilibado... eu nunca... jamais fiz... é como se não tivesse havido passado. Ninguém estava lá... eu não era eu... Desde as capitanias hereditárias, desde o império, dinheiro público e empresário privado deu em assalto ao povo e ao país. Agora, ver o futuro é muito difícil. Mesmo com bola de cristal, quem poderia prever que Jáder Barbalho, aquele humilde vereador de esquerda, seria tão poderoso e rico no futuro? Quem poderia prever que ele seria presidente do Senado? Quem poderia prever que no século XXI o Brasil estaria paralisado por antigas questões como essa? Nosso presente tem sido um passado que não acaba nunca.

40. ARNALDO JABOR. MAIS REALISTA QUE O REI. Há muitos anos, os brasileiros revoltados com a política já elegeram um rinoceronte votadíssimo chamado "Cacareco". Só que o Cacareco não arrastou consigo hienas, macacos ou tamanduás para o poder. Mas o Enéas, aquele homem que parece estar de cabeça pra baixo, trouxe consigo vários bichos que não foram votados nem por suas mães. E pior... Dos novos deputados, só 33 foram eleitos cara a cara. O resto, foi por legenda ou carona. E não se consegue reformar a lei eleitoral, porque ninguém quer fidelidade partidária, nem poucos partidos, nem voto distrital. A maioria prefere o atraso, porque facilita a malandragem. E o absurdo é que talvez... Talvez se consiga cassar os dois Cacarecos apenas por causa de um detalhe... De residência. Contra a má fé eleitoral não se pode nada, pois as anomalias políticas estão bem protegidas pela Constituição de 1988, que por medo de uma nova ditadura, criou uma democracia engessada e sem defesas.

41. ARNALDO JABOR. QUEM EXPLICA? A verdade é simples. A mentira é enfeitada. Assistimos a repetição óbvia da verdade de dona Regina e os rebolados verbais de Arruda e ACM para encobri-la... Na versão dos senadores, dona Regina seria uma louca, que sem ordens, sem pedido, só por consulta reuniu uma equipe e passou a madrugada violando o painel para dar de presente a... ninguém... orque nem ACM, nem Arruda teriam pedido nada... Dá uma sensação de absurdo, ver o Brasil paralisado diante deste circo. A pergunta que eu gostaria de fazer é: por quê? Um senador, ou deputado rouba na Sudam, tudo bem, entende-se... Mas painel? Por quê? Foi rivalidade política de Arruda contra Luís Estevão? Ou foi ACM querendo controlar a mente dos senadores? Foi “puxa saquismo” de Arruda? Ou foi pura delinqüência? Terá sido o desejo de ACM de se autodestruir? Será que foi o prazer perverso de sabotar a democracia? Por que fizeram isso? Como disse o jornalista Carlito Maia: “Freud explica? Não. Fraude explica.”

42. ARNALDO JABOR. MISÉRIA E RANCOR. O que mais choca nessa guerra suja é a eficiência dos traficantes, comparada com o desencontro dos agentes da lei, que ficam batendo cabeça uns nos outros. A anormalidade nisso tudo não está apenas do lado do crime. Eles são fruto de décadas de miséria e rancor. A anormalidade está também nos órgãos que não conseguem nem bloquear celulares. Os incapazes somos nós, aprisionados em burocracias, em tradições corruptas, em velhas táticas. A sociedade não fez nada quando as favelas e periferias eram pequenas. A miséria era dócil, podia ser ignorada. Agora, o combate ao crime passa primeiro pelo reconhecimento de nosso fracasso. Precisamos de novas formas de luta. O crime deixou de ser apenas um caso de polícia. A experiência prática das polícias tem de ser unida ao poderio estratégico das Forças Armadas. O crime no Brasil virou um problema de estado maior.

43. ARNALDO JABOR. NÃO BASTA INDIGNAÇÃO. Estamos indignados. Mas o perigo da indignação é que ela nos purifique e nos alivie. Que nos faça esquecer que a tragédia tem dois lados. Nossa tragédia é a incapacidade total que temos demonstrado para combater o crime. O inimigo não é só o tráfico. O inimigo é também a desorganização, a falta de verbas, de armas, a falta de vontade política e de imaginação para lutar essa guerra suja, porque é uma guerra. O crime no Rio e em São Paulo não se combate com batidas policiais, espasmos que cessam quando passa a crise do momento. Assim nunca ganharemos. O crime tem as verbas do pó, das armas, o crime é rápido - tem a vantagem de não ter burocracia. Não adianta só subir morro. A solução começa pela vigilância das fronteiras, passa por uma imensa estratégia policial. E militar. O tamanho do problema exige uma imensa solução. Precisamos de um estado maior contra o crime. Que assuma que uma guerra já foi declarada.

44. ARNALDO JABOR. A MÃO INVISÍVEL DO MERCADO. Como explicar esta onda de erros que desmoralizam os Estados Unidos, desde que Bush assumiu? Esse senhor já foi eleito naquela esquisita contagem de votos... Parecia que a América era um curral eleitoral subdesenvolvido. Aí, o homem entrou e só aprontou roubadas!? Conseguiu unir o mundo árabe todo contra a América. Foi contra o protocolo de Kyoto, na base do dane-se a poluição mundial. Fechou as fronteiras a produtos emergentes, na base do dane-se a América Latina. Agora, nem a economia americana, dona do mundo, escapa? Ditaram-nos regras de rigor contábil, equilíbrio fiscal, e agora vêm com esses escândalos? A explicação talvez seja a seguinte: a mesma sensação de onipotência que faz o Bush ignorar o mundo e errar tanto na política faz as grandes corporações instituírem a corrupção descarada. É a doença dos grandes impérios, que caem por se sentirem inatingíveis. A queda de Roma começou assim... Estamos em pânico: a tal mão invisível do mercado deu para bater carteiras assim... (O comentarista faz o típico gesto usado para roubos.)

45. ARNALDO JABOR. PASSOS PARA TRÁS. Já tivemos a queda do muro de Berlim, quando acabou o comunismo. Ahhh... bons tempos, ingênuos, viva a democracia! Mas logo descobrimos que havia outras guerras frias escondidas. O muro é a cara dos impasses insolúveis de hoje. É a cara do Bush e sua arrogância imperial, é a cara da política de direita de Sharon. Ai que saudades das portas abertas de Rabin e de Barak. Eles nos ensinaram que só os países poderosos como Israel podem acabar com conflitos, por benevolência e até por superioridade cultural, mas a estupidez da política interna não deixa. Por isso, pensando bem, temos de ser "modernos". Boa idéia, os muros, já temos. A muralha da China, há 3 mil anos, contra os mongóis. Poderia haver muro entre a Índia e Paquistão, entre o Irã e o Iraque. Pode ter um entre México e USA para não entrar chicano imigrante. Até aqui podiam pintar muros em volta das favelas, contra o tráfico. Quem está fora não entra e quem tá dentro não sai. É, o século 21 está andando para trás...

46. ARNALDO JABOR. FANATISMO NÃO SE COMBATE COM FANATISMO. A “América” é uma invenção do cinema. A moda, o amor eterno, o happy end... São invenções de Hollywood para exportar cultura e poder para o mundo todo. Até que, no 11 de setembro, o filme catástrofe inspirou Bin Laden, mudando o Ocidente com um final trágico. Pensamos que a “América” ferida ficaria mais humilde. Ao contrário, o filme de guerra e vingança de Bush é o grande sucesso há mais de um ano. Mas já surgem outras produções. A “América” inteligente, humanista, está acordando. O mal de Saddam e o sinistro bem de Bush vão criar uma nova era crítica, como nos anos 60. Os americanos vão descobrir que fanatismo não se combate com fanatismo. Só a tolerância dissolve a loucura. O faroeste de Bush, com o mal de um lado e o bem de outro, será um fracasso de bilheteria. As marchas vão crescer nas universidades e ruas da “América”, e o mundo poderá ter um happy end, se a direita fanática de lá ou de cá não continuar a fazer novos filmes de terror.

47. ARNALDO JABOR. CONSEQÜÊNCIAS E CAUSAS. Existem conseqüências e existem causas. Esses dados do IBGE mostram dados sobre nossa miséria que não servem para absolutamente nada. Apenas ficamos deprimidos por ouvirmos o que já sabíamos. A grande pesquisa que o IBGE ou a ONU deviam fazer seria outra. Por exemplo: quantos milhões de dólares são sonegados no Brasil por bancos e empresas que não pagam Imposto de Renda? Quem são eles? Por que não se consegue prender esses homens? Como planejar um país com oligarquias regionais que impedem qualquer planejamento central? Por que não se conseguiu fazer a reforma da Previdência que nos tasca 60 bilhões por ano? Quanto foi roubado do povo em obras superfaturadas nos últimos cinco anos? Quantos bilhões são tirados do tesouro pela indústria de liminares? E por aí vai... A gente precisa é de estatísticas sobre as elites, as oligarquias, sobre a riqueza. Dos que amam o atraso porque ele dá lucro. Essa é a pesquisa que precisamos conhecer. Não adianta nos chocarmos com a pobreza sem conhecer e atacar os mecanismos que a produzem.

48. ARNALDO JABOR. VERDADEIRA GUERRA FRIA. A América tem três métodos de negociar: dividir para mandar, fato consumado e bode na sala. Esse acordo com o Chile busca dividir os latinos em relação a qualquer política de bloco, como o Mercosul. O segundo ponto é o fato consumado. Conseguem o interesse principal e depois se "revêem os pontos mais polêmicos", como reza o acordo com o Chile. É o fato consumado. E tem o bode na sala. Criam-se exigências terríveis e depois cedem um pouco. Se você põe um bode na sala berrando e cheirando mal, quando você tira, os bobos têm um alivio: ah, tudo melhorou, e aceitam as regras. Por trás de tudo isso, a América só tem uma idéia fixa. Controlar a economia do hemisfério. O perigo da Alca não são tarifas assim ou assado, são as regras que impedem os estados de criar restrições aos capitais estrangeiros. Não há na mente americana a idéia de toma lá dá cá. Só existe "império". E nós? Eles são tão fortes, que se jogarmos duro, quebramos a cara, se aceitarmos tudo... Quebramos a cara também. Como diria Lenine, o que fazer, Lula?

49. ARNALDO JABOR. VEM AÍ UMA NOVA REFORMA CULTURAL. O Bush dá à América um novo objetivo. Revoltas estavam fora de moda... Nos anos 90, achávamos que o mundo ia dar certo e que protesto era coisa de maluco ou comunista. Mas, graças a Bush e sua direita, a face real do reacionarismo bélico, a pior face da América está aparecendo. Para Bush, a globalização é apenas a imposição dos valores republicanos ao mundo. Mas, graças a ele, as marchas já começaram. A jovem América, que aperfeiçoa a democracia, despertou, e já marcha, e canta... E não só contra a guerra, mas pela ecologia, pelo respeito a outras culturas. Vai surgir na América uma nova reforma cultural, sem a ingenuidade hippie e utópica do ‘paz e amor’. Agora, a luta será pela democracia real, pois já sabemos que o mal e o bem do mundo passam pela economia. Ninguém agüenta mais esse mercado sangrento. E isso vai mudar nossas vidas. Pois, na verdade, só a poderosa América muda a Humanidade. Quem diria? Bush vai causar um progresso cultural sem querer, com a contribuição de seus erros absurdos.

50. ARNALDO JABOR. O PREÇO DO PODER. Você sabe o que é um pato manco? É o nome que os americanos dão a um presidente que acabou o mandato mas ainda não saiu do cargo. Ninguém liga mais pra ele. E ele fica por ali, mancando... Quééémmm... Quéeém... O país esteve esse ano todo sob suspense, e, agora, está sem chefia clara. Apesar da transição democrática comandada por FHC, que não quer ser só um pato manco. Mas um pato cooperativo... Vemos que sobra um perigoso vazio para picaretas e sabotadores. Parlamentares já querem aumento. A nova oposição até do neo-PFL prepara vingancinhas contra Lula, como no salário mínimo, o governo também aproveita para medidas chatas como o aumento de gasolina. E mesmo boas notícias não se explicam. Por que os meninos de Wall Street baixaram o risco-Brasil? Porque quiseram. O Lula descobre que os poderes sobre o país são muitos. Dentro e fora, de fisiológicos a especuladores. Estamos vendo que entre o pato manco e o sapo barbudo há muito poder oculto. Governar no Brasil é pular armadilhas e evitar cascas de banana.

51. ARNALDO JABOR. DIFÍCIL, MAS POSSÍVEL. Política e poesia. Razão e emoção. No dia do centenário do poeta Carlos Drummond de Andrade, Arnaldo Jabor tenta mostrar que essa equação de opostos ainda é possível. Drummond era o poeta da desesperança, mas hoje não há só a fome de comida no Brasil. Há uma fome de esperança também. O Brasil está faminto de emoção. FHC traçou um mapa racional, lógico, que tem de ser percorrido. FHC foi talvez a razão. Lula começa como coração, essa onda de fé talvez possa acionar uma grande vontade política e conseguir reformas, que apenas a lógica e a técnica não conseguiram. Talvez entremos num período novo, em que as duas épocas se fortifiquem. Lógica e amor. Pois, como dizia Drummond: que pode uma criatura senão entre criaturas amar? Amar e esquecer, amar e mal-amar, amar, desamar, amar? Esse é o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, a doação ilimitada a uma completa ingratidão. E na concha vazia do amor, a procura medrosa, paciente, de mais e mais amor.

52. ARNALDO JABOR. A SERVIÇO DE OSAMA. A grande guerra que está sendo travada hoje é entre um mundo em que muitos países opinem ou um mundo em que só o mais forte manda. Bush quer provar que destrói Saddam, o que o pai não conseguiu. Mas não é só isso. Bush também quer afirmar seu poderio contra um multilateralismo que ele não entende. Bush obedece à máquina de guerra da indústria que o elegeu. São 500 bilhões de gastos militares. As armas precisam de uma guerra. As bombas desejam explodir. Bush está frustrado com esse gesto de Saddam. Pois a guerra é sua salvação na política americana. Sua mediocridade só pode ser oculta sob a capa de um cowboy vingador. O Osama deu a ele em 11 de novembro o pretexto de ser uma vítima. Com essa desculpa, ele tem executado sua política irracional. Bush quer desmoralizar a ONU, a Europa e afirmar que esse papo de democracia internacional acabou. Ou seja, Bush esta fazendo tudo que o Osama mandou: vai botar o mundo contra a América e pode destruir o Ocidente. Bush é o mais obediente homem-bomba de Osama.

53. ARNALDO JABOR. TEM DE PARAR TUDO. Você sabia que no Rio já morreu mais gente na guerra do tráfico do que na guerra Israel-Palestina? Pois é, comentar o quê, se o poder público não consegue nem bloquear celular na prisão? Basta botar aquelas telas de arame de galinheiro em volta, sabiam? Comentar o quê, se não conseguem nem prender um preso dentro da prisão? O Fernando Beira-Mar está preso, comando chacinas de dentro da Bangu I. Por que não seguram ele? Porque ele tem milhões de dólares? Comentar o quê? E ainda não é Colômbia não. Comentar o quê? Todo mundo sabe o que fazer, polícia, Justiça, governo... Não fazem por quê? Por que a burocracia impede ações emergenciais, o por que não querem? Por que ainda não calaram Fernandinho, nem que seja no celular? Por que ninguém quer matar a galinha dos ovos de ouro? Tem de parar tudo. Governar, hoje no Brasil, é reformar a polícia, só isso. O resto pode esperar. Comentar o quê? O nosso 11 de setembro é esse – só que nossas torres de comando já caíram há muito tempo.

54. ARNALDO JABOR. PINGUE-PONGUE DE SANGUE. O maior feito de Osama foi que ele deflagrou uma onda de loucura no mundo. Ele deu uma idéia simples aos loucos e ressentidos do Oriente e da miséria: a morte como um cachorro louco e invisível em todas as esquinas. A morte vinda de lugar nenhum. E o que mais exaspera o Bush e todos nos é a perda do controle sobre a vida social. O Ocidente sempre achou que podia prever, organizar a sociedade. Agora isso é impossível. Há dois bilhões de homens no Islã, e a grande maioria nos odeia, mesmo os pacíficos consideram os terroristas heróis. Como controlar isso? E a onda de violência contamina a todos, do maluco de Washington, aos traficantes do Rio e São Paulo, que dizem assim: boa idéia! Virou... Moda. E vamos nos acostumando aos corpos despedaçados nas discotecas e em Gaza. E nossas vinganças também serão cada vez mais banais. Breve haverá grandes massacres aqui e lá. Podemos organizar sistemas de vigilância. Mas a idéia de solução... Já era. Solução não há mais. Só o problema. Teremos de conviver com esse pingue-pongue de sangue para sempre.

55. ARNALDO JABOR. A CHANCHADA CONTINUA. José Lewgoy era mais que um ator. Era uma personagem brasileira. Fazia parte do trio de ouro da chanchada. Grande Otelo era o neguinho safado, Oscarito, o branquelo malandro e Lewgoy o eterno vilão, milionário malvado, traficante, bandido de Faroeste, mágico de turbante, grego de camisola. Seu período de grande fama foi nos anos 50, quando o cinema brasileiro fazia o pastiche dos musicais e americanos, quando não tínhamos um cinema próprio e ficávamos na caricatura do cinema dos outros. Nesses atores havia uma cor brasileira profunda, de um tempo sem TV, com rádio e cinema, mas que marcou os fundamentos do moderno teatro e cinema no Brasil. Mas José Lewgoy era muito mais que um cômico. Ator de fina formação, foi de “Carnaval no Fogo” até Shakespeare, e ajudou a definir o moderno cinema brasileiro. Era um homem bom e só fazia papel de canalha. E se foi. Devemos chorar a morte deste bandido tão querido. Pois tantos outros de verdade ainda ficaram por aqui. Lewgoy foi para o céu, mas a chanchada continua...

56. ARNALDO JABOR. SAUDADES DE EVITA. Evita surge e morre justamente no início da decadência da riqueza da Argentina no início do século XX. Era uma riqueza sem base, passageira, que contaminou a consciência argentina com uma ilusão irrealizável. Sonhando com Evita, que pregava justiça pela caridade e assistencialismo, a Argentina passou os últimos 50 anos sem se preparar para uma democracia real, produtiva. De certo modo, Evita parece a própria América Latina. Ela é o mito substituindo a verdade política, ela é a esperança infundada num milagre, ela é o desejo de justiça secular sem os instrumentos para realizá-la, ela e Peron eram o substitutivo paternalista e populista de uma democracia que jamais vinga entre nós. Hoje, depois de uma vaga euforia democrática dos últimos anos, mergulhamos de novo no populismo e no milagre impossível. Hoje, como há 50 anos, estamos na mesma. Sem base. Sem cultura política. Sem dinheiro. Não temos de chorar mais por Evita. Temos de chorar pela permanência do seu mito. Santa Evita é a santa padroeira da tragédia latino-americana.

57. ARNALDO JABOR. PERNAS DE PAU EM ECONOMIA. Afinal de contas em quem acreditar nesta ciranda financeira? O Sr. John Taylor, sub-secretário do Tesouro americano, diz: não há motivo para se preocupar com a economia do Brasil. “As políticas fundamentais estão certas." Também o porta-voz do FMI, Thomas Dawson, diz: “o desempenho do Brasil tem sido bom.” Mas, aí, a senhora Lisa Schineller, da Standard & Poor, diz: “o Brasil é um perigo!" Por que? Essa senhora quer nossa caveira? Não. É que ela trabalha numa empresa para aconselhar as velhinhas do Kentucky e os aposentados que investem aqui. Claro que as agências sempre julgam pelo pior, para não errar e perder freguês. E como os USA estão na maior crise, com escândalos e calotes, eles falam para as velhinhas: "vende Brasil, para cobrir os prejuízos daqui". Nós pagamos o pato do vexame americano. E o pior é que os fracassomaníacos daqui também acreditam nos índices e apostam tudo contra o Brasil. Só se esquecem que o Brasil também são eles. É, gente, somos craques no futebol e pernas de pau em economia.

58. ARNALDO JABOR. ESTAMOS VIRANDO A FICÇÃO. Assistindo a essas reportagens... O que me espanta é que a gente se espante. Há uma normalidade profunda na vida desses traficantes e suas ligações com a policia. Por que nos espantamos? É tudo tão normal, tão previsível... É preciso que os poderes parem de considerar o tráfico apenas um caso de polícia. A tese é assim: o traficante é um homem que caiu em pecado, transgrediu a lei e tem de ser punido pelos homens de bem. Isso é apenas a metade da verdade. As velhas verdades não bastam mais. Novos conceitos têm de surgir para dar conta dos fatos novos. O mundo do tráfico, do crime nas periferias, já é um novo país, uma nação desgraçada onde o único comércio lucrativo é o pó. Esse país tem leis próprias, moral própria, associações entre pobres de farda e pobres no crime. A solução só poderá vir pelo reconhecimento desta nova pátria miserável. Ou pela legalização das drogas, ou então por uma guerra profunda, feita de armas, fronteiras vigiadas e mais importante: o saneamento da miséria. Porque a verdade é que esse novo país está virando a realidade. E nós estamos virando a ficção.

59. ARNALDO JABOR. AS COISAS QUEREM A GUERRA. Ninguém quer a guerra. Nem a ONU, nem a Europa, ninguém. Nem é o Bush que quer a guerra, são as coisas. É a indústria bélica, é a lógica dos canhões, das bombas inteligentes. Há uma máquina desejante nos USA querendo, melhor dizendo, precisando guerrear. O próprio Bush é filho dessa máquina que o elegeu, que o desejou, a máquina da indústria de armas, a máquina do tabaco, a maquina do aço. Essa máquina começa no antigo desejo de domínio que os americanos têm desde seu nascimento como país. O mercado como guerra. É a mesma máquina que deseja o lucro total, o domínio econômico. Hoje as coisas mandam mais que os homens. Bush obedece as coisas. Provavelmente atacará perto do 11 de setembro. Mas não apenas como resposta ao ataque do Osama. A máquina também precisa mostrar ao mundo todo seu poder imperial. A guerra não vai adiantar nada. Só vai unir o Oriente todo contra nós. O mundo entrou numa fase onde nenhuma palavra basta, nem razão, nada. Só a lógica das coisas. O desejo das coisas. E as coisas não falam, mas as coisas podem destruir o mundo.

60. ARNALDO JABOR. A VERDADE VAI TER DE APARECER MAIS. No primeiro turno, todo mundo era contra o governo, inclusive o Serra. É melhor ser contra, dá mais voto. Serra não podia bater muito no Lula para não deixar subir o Garotinho. Lula, absoluto, não bateu muito no FHC, para ter alianças futuras. Por isso, Serra foi governista light. Por isso, Lula foi oposição light. No segundo turno, a verdade vai ter de aparecer mais... Agora, vai haver polarização de novo. Lula vai ter de ser mau com o governo. Serra vai ter de defender o governo,. Mas... Se Lula ficar revolucionário demais, perde, se ficar light demais, perde, também se Serra ficar contra o governo perde voto. Se ficar muito a favor, perde também. Serra, que foi seco no primeiro turno, vai ter de sorrir e ser emocional. Lula, que foi emocional, vai ter de ser mais racional. O problema é que os dois pensam parecido. Os dois querem mudança. Os dois têm origem de esquerda. O Lula fundou o PT. O Serra fundou a AP - Ação Popular. Ambos querem política industrial, desenvolvimento, um novo nacionalismo. Os dois são parecidos... A diferença é na maneira de agir. A solução seria um mix dos dois. Razão e emoção para o bem da democracia.

61. ARNALDO JABOR. BUSH E SHARON ODEIAM A DEMOCRACIA. Já vejo em minha bola de cristal: o Iraque vai ser atacado, o Arafat assassinado, a Europa vai se rearmar e a China vai virar real perigo atômico. Osama deve estar rindo: Sharon e Bush fazem tudo o que ele quer. Vão destruir o ocidente por ele. A verdade é que tanto o Bush quanto Sharon querem acabar com a ONU. Acabar. Querem enterrar a ONU feito sapo de macumba. Por quê? Porque a ONU é a democracia internacional, é a igualdade das nações diante da razão. E tanto o Bush quanto o Sharon, que é uma espécie de genérico do Bush, odeiam democracia e razão. O que eles querem é um mundo impossível, sem árabes, sem diferenças, um mundo habitado por bilhões de bushes e sharons. Um mundo igual a eles - violentos e irracionais. Isso só vai mudar quando começarem a chegar os cadáveres dos jovens americanos, e esses loucos se saciarem de sangue e de erros. Um dia a opinião pública da própria América vai frear isso, como fez com o Vietnã, expulsando esse imperador louco. Ate lá, o lema dessa época será aquele do general fascista: “abaixo a inteligência, viva a morte!”

62. ARNALDO JABOR. EUA QUEREM SER DITADORES INTERNACIONAIS. Fica meio ridículo falar sobre o Iraque. Ninguém vai ouvir, nem o Sadam, nem o Bush vão ouvir, nem o Osama, que está no fundo da caverna. Só interessa saber o que essa guerra suja pode mudar em nossas vidas, com essa política de ação preventiva do caubói Kid Bush. Que é isso? É a política do valentão paranóico que diz assim: "vou dar uma porrada naquele cara ali antes que ele bata em mim." Bush pode decretar, por exemplo, que a Colômbia e o Brasil estão na rota do terror e do tráfico e transformar a América Latina num novo teatro de guerra. E como para eles guerra e mercado são quase a mesma coisa, os EUA podem um dia decidir que a Alca tem de sair do jeito que eles querem e que quem se opuser é terrorista. Ação preventiva é sentença sem julgamento, é ditadura internacional. Mas que país latino pode botar o dedo na cara do Bush e berrar: “como é que é? Vai encarar?” Nós estamos quebrados, sob o FMI, sem armas. É, mas mesmo assim vem aí um novo nacionalismo. Com esse conto do vigário da globalização, o Bush está nos obrigando a isso.

63. ARNALDO JABOR. COMENTARISTA FANTASMA. Boa noite. Eu sou comentarista político, mas ninguém me conhece, eu sou o comentarista fantasma, mudo de emissora quando quero, eu posso dizer qualquer coisa, pois ninguém me vê, eu posso fingir isenção, posso fazer picaretagens. E não posso nem ser despedido nem cassado, pois eu não tenho rosto... É assim que se comporta a maior parte dos deputados desse país, pois só 33 têm rosto. A maioria da Câmara não tem rosto. Bloqueia, exige, cria crises e não é responsável por nada. Tudo é sempre culpa do Executivo. Poucos foram eleitos cara a cara com o eleitor. Como cobrar alguma coisa de parlamentares que não foram eleitos? Nenhum tem fidelidade partidária, mudam de partido segundo as conveniências. A maioria não tem nem culpa, nem nada. Só interesses. Vai ser fogo o Lula governar com esses fantasmas. E sem as medidas provisórias, que os fantasmas destruíram, para paralisar a presidência. Deus... Será que um dia haverá uma reforma eleitoral no país? Só uma grande reforma política, com parlamentarismo, poderia evitar essa vergonha que nos paralisa. Não. Não permitiremos. Seremos eternamente os fantasmas contra a democracia...

64. ARNALDO JABOR. TUDO PELA SATISFAÇÃO. Há muitos anos saiu num jornal popular uma manchete famosa: “matou a mãe sem motivo justo”. E o que chocou nessa notícia é que parecia haver um motivo justo pra se matar a mãe... E nosso país ultimamente virou o carnaval dos psicopatas. Suzane mata os pais. Empregada espanca velhinha. E agora esse Gustavo mata a avó a facadas... Parece que os assassinos estão encontrando motivos pra matar parentes. Não há motivos, claro, mas há um estímulo no ar para esses crimes. A sociedade de consumo nos ordena satisfação o tempo todo. Coma, beba, vista, ame, transe. Só que é impossível realizar tantos desejos. E o consumo foi virando uma espécie de droga. Só muito doidão como o Gustavo pode se dar conta do desejo infinito. O excesso de ofertas nos deixa sempre insatisfeitos. E, pior, tudo que seja frustração a desejos tem de morrer. Some-se a isso o espetáculo banal da violência, e temos o tal "motivo justo". Quase um slogan: “mate quem impedir seu desejo”. É... Um amigo meu falou que só dorme de porta trancada: "sei lá o que meus netos estão aprontando"...

65. ARNALDO JABOR. SOBRE A VERDADE. Quando a dona Regina mentiu, na primeira vez... ela estava mostrando a verdade de seu medo. Depois, por medo, disse sua verdade. Quando Arruda mentiu, mostrou a verdade de sua esperteza política. Capaz de mentir com verdade... Quando depois ele confessou em lágrimas sua verdade, disse que dona Regina, sem ordens, por gentileza, saiu correndo e lhe trouxe a lista graciosamente. Será verdade? ACM... Mentiu no depoimento inicial. Hoje disse que mentiu por amor...amor ao Senado e para proteger a pobre dona Regina... Qual a verdade? Toninho Malvadeza ou Toninho Bonzinho? A verdade é que se não houvesse o laudo técnico provando a violação do painel as mentiras seriam as verdades. As verdades vieram pelo medo!!! E pela metade, pois reparem que cada um empurra a culpa para o inferior. ACM ferra Arruda que ferra dona Regina. A verdade é que o Brasil esta parado no meio de uma crise mundial e o Congresso nesta palhaçada. A verdade é que nesta guerra de vaidades e sabotagens... Esses políticos querem que o Brasil se dane, para ver triunfar suas mentirosas verdades.

66. ARNALDO JABOR. SURPRESA? O que espanta é essa surpresa toda com a roubalheira da Sudam. Todo mundo soube sempre que onde o governo dá grana subsidiada para empresários haverá roubo... E pior que roubo é o falso progresso, o atraso social e econômico que ele provoca. Nesse país paralítico não adianta a gente achar que a roubalheira e a imoralidade são acidentes de percurso, são "crimes num mundo honesto". É importante que a gente entenda que a Sudam já foi planejada para isso, assim como a Sudene...a antiga Sunamam, tantas outras... Há 400 anos que o Brasil foi planejado para ser esse casamento sujo entre empresários e dinheiro público. O mecanismo funciona porque as leis foram feitas para não punir, assim, vale a pena apostar na lentidão da justiça... Ninguém tem medo da lei. Outra causa é o equívoco de que o estado tem de subsidiar empresários... O governo tem é de sanear a economia para que com juros baixos os bancos privados financiem verdadeiros empresários e não esses vagabundos impunes que povoam o Brasil todo. Sempre que houver o nome “superintendência de desenvolvimento”, ali haverá mentira e atraso... Roubo no Brasil não é acidente. É norma...

67. ARNALDO JABOR. A DIREITA NO PODER. Boa idéia! Se tem franco atiradores no teto, a gente bombardeia o hotel onde há centenas de jornalistas. Bummmm!!! Ahhh... Foi sem querer... Não leva a mal, não... A intenção era boa... O problema é que a intenção não era boa. Não foram gafes. Foram desejos, o desejo de bombardear a Al Jazeera também: "vamos arrasar a TV Globo do deserto". Vitoria Clark, a porta-voz bodeada do Pentágono, comentou: "é, cobrir a guerra é perigoso... Quem mandou? A gente avisou..." E o general porta-voz da coalizão disse: "os EUA estavam sendo atacados do hotel". É verdade, os jornalistas estavam atacando-os com a liberdade de opinião. Essa direita americana quer matar a informação, fora e dentro da América... Bush também morde e assopra. Esse papo de Estado Palestino que ele propõe é para adoçar-nos a boca. O Sharon já disse: "nem pensar em tirar os assentamentos de Gaza". Mais grave que a guerra é o mundo que querem criar. Não respeitam culturas nem diferenças, só querem nosso choque e nosso medo. O mundo vai sofrer com violência e trapalhadas. O império americano será uma mistura de cowboys e homens-aranha com os Três Patetas.

68. ARNALDO JABOR. O CÚMULO DO EGOÍSMO. Houve muitos fatos positivos nesse governo. Fim da inflação. Melhorou educação. Melhorou a saúde. E por que a distribuição de renda é ruim? Culpa do governo? Não. A culpa é de alguma coisa anterior e acima desse governo e de qualquer governo que entre. A culpa é de um tipo de "rico" brasileiro. Mas não dos ricos que trabalham, criam empregos, e crescem junto com o país. Não. Eu falo do rico que vem desde a colônia, há séculos. É o rico que preda e mama no estado. É o rico que não produz., o rico financeiro que acumula, não investe e manda bilhões para fora. É o rico que não paga Imposto de Renda nem imposto nenhum. É o rico parasita. É o rico que corrompe o estado para seus interesses privados e impede qualquer planejamento sério. É o rico que paralisa até os ricos que querem produzir. Esse rico brasileiro não é capitalista. Ele vive do nosso atraso, que lhe dá lucro. É o rico e suas ricas famílias que mandam num estado, as famosas oligarquias. Nem revolução acaba com eles. Só a democracia pode desfazer as oligarquias brasileiras e os donos do poder sujo. A má distribuição de renda é culpa deles.

69. ARNALDO JABOR. NOVIDADE POLÍTICA. A frase mais profunda que houve foi: "a esperança venceu o medo". A era FHC teve um importante papel para o dia de hoje. FHC comandou uma tecnologia política moderna, combatendo salvações demagógicas e preservando a democracia debaixo de grande crises econômicas e políticas. FHC acertou e errou. Mas, mesmo seus acertos não foram bem entendidos, pois seu governo esqueceu que havia uma população querendo participar. FHC não fez nem um honesto populismo, deixando a população fora da viagem de seu governo. Com medo das armadilhas da fisiologia e da economia, na era FHC a política virou uma arte para poucos especialistas, praticada na solidão dos conchavos de Brasília. Por isso, e além do povo, FHC ficou também desamparado. Viramos um país de números e estatísticas e de... Medo. Medo de ousar. Com medo das utopias loucas, acabamos com medo da esperança. Com a vitória de Lula, o povo se sente no poder, com um líder igual a ele. Se Lula e o PT mantiverem a esperança respeitando a complexidade técnica que FHC praticou, Lula poderá ser uma 4ª via, um grande governo popular e democrático. Se isso acontecer, o governo de Lula pode virar um novidade política para o mundo todo.

70. ARNALDO JABOR. O BRASIL VIROU UM SANDUÍCHE. Quem é e qual o curriculum do secretário do tesouro americano, Paul O'Neill? As respostas, com Arnaldo Jabor. O Brasil virou um sanduíche. De um lado, brasileiros apostando no dólar e torcendo pelo próprio fracasso: "oba, tomara que o Brasil quebre para eu ganhar grana!" Do outro, as declarações estúpidas dos direitistas do Bush. O’Neill é o rei da grossura. Quando houve gestões para ajudar a África miserável, ele disse: “nem me falem de compaixão”. Pela África, essa nova gafe do O'Neill devia ser dirigida para dentro da própria casa. Quem está desviando dinheiro são as empresas que ele, Bush e Cheney protegeram. E os três são acusados também de maracutaias. Bush está exterminando com a política de globalização. Os EUA fazem o contrário do que dizem, só pensam neles e já abandonaram qualquer amabilidade, partindo para um bruto imperialismo militar e econômico. Vão usar o Iraque para que esqueçam seus roubos internos. Essa declaração do O'Neill revela a visão de mundo do governo americano: “só existimos nós; o resto são os ‘bárbaros’". A única globalização que estão conseguindo é a globalização do ódio dos "bárbaros" contra a América.

71. ARNALDO JABOR. É PARA SENTAR E CHORAR. Arnaldo Jabor critica os que sempre vêem na ideologia mais em voga a cura para todas mazelas do mundo. A realidade acaba sempre os desautorizando. Os idiotas sempre esperam a chegada de um mundo bom. Eu sou um deles. Primeiro acreditamos no socialismo, na justiça e igualdade. Mas tudo acabou numa mistura de falência e corrupção. Aí os idiotas acreditaram no capitalismo salvador. “A globalização e o mercado vão resolver a vida dos subdesenvolvidos.” Deu zebra: os pobres só pioraram e não teve colher de chá para país pobre, emergente. "É”, pensamos nós, os idiotas, “mas os EUA são um país ético e confiável!!!" Outro bode: a Enron roubou, a World Com roubou, outras roubaram e agora a Merck meteu a mão grande. Mas, ainda com esperança, os idiotas pensam: “ahhh, mas amanhã o Bush vai à TV fazer um discurso indignado contra esses crimes!!!” Outra zebra: a imprensa norte-americana mostrou que o Bush também enriqueceu assim. Ele e o vice dele, o Dick Cheney. Os dois ficaram ricos com informações privilegiadas em suas empresas, a Harken e a Halliburton, na década de 80. Quer dizer, o capitalismo onipotente faz o que quer no mundo e no plano ético os EUA estão virando a Nigéria. Aí, nós, os idiotas da esperança, sentamos no meio fio e choramos lágrimas de esguicho.

72. ARNALDO JABOR. É TUDO IGUAL. Existem dois tipos de tragédia: tragédia súbita e tragédia preparada. Existe um avião que explode, um piano que cai sobre tua cabeça, um infarto fulminante. Mas existem as tragédias brasileiras preparadas. Qual a receita para essas tragédias? Bem... Pegue-se um ingrediente básico, a miséria. Junte-se a ignorância, a inconsciência do perigo numa balsa cheia ou numa encosta deslizante. Adicione uma pitada de desrespeito do poder pela vida dos pobres e pummmm! Temos explosões no shopping, mortos no fogo e na água. Depois temos mães chorando, bombeiros procurando corpos e as autoridades falando em "tomaremos providências enérgicas". Depois não se fala mais nisso. Eram tragédias evitáveis, mas foram preparadas como um bolo maldito. Vocês se lembram de Vila Soco, em Cubatão? Centenas de pessoas foram fritas como torresmo ou batatinhas pelos canos de petróleo. Essas cenas se repetem todos os anos. Nem precisa mandar repórter para filmar os mortos. Basta pegar no arquivo. É tudo igual. Talvez num dia sujo do futuro isso nem mais seja notícia. “Ai que chatas essas desgraças monótonas, que se repetem sempre.” A única tragédia que não foi prevista pelos podres poderes foi a violência. Ninguém contava com que um dia os miseráveis teriam armas e dinheiro da cocaína. E aí, pela primeira vez, as elites estão sentindo o arrepio do perigo.

73. ARNALDO JABOR. GOVERNO SURPRESO? Surpresa? Como o presidente da República diz que foi pegado de surpresa? É inacreditável, doentio que um governo com três agências de energia não soubesse do perigo. O que aconteceu? Um governo preocupado só com ajuste fiscal e com reformas desconstrutivas não se preocupou com o desenvolvimento de infra-estrutura. Um governo que nunca soube se explicar à opinião pública ficou com medo de dar notícias ruins e resolveu se auto-enganar, tipo, tudo bem, Deus é brasileiro... É a síndrome do marketing, das pesquisas de opinião, da imagem. No desejo de combater o crônico pessimismo brasileiro, o governo inventou a bandeira tucana do otimismo irresponsável... O tradicional desprezo do brasileiro pelas questões técnicas. No país só temos bacharéis, literatos e ideólogos que odeiam o mundo real. Houve também o inferno das sabotagens da oposição e o inferno dos conchavos dos coronéis e fisiológicos, que não deram um dia de trégua a FHC. Até ACM teve culpa, enfiando um ministro como Tourinho, que passou dois anos dizendo: racionamento? Nem me falem nisso... E houve também o monetarismo frio do ministério da fazenda, desestimulando investimentos, gastos públicos vetados pelo maravilhoso deus FMI. A única vantagem deste apagão é descobrirmos que esse papo de Brasil moderno é furado. Continuamos um gigante com pés de barro.

74. ARNALDO JABOR. BUSH A CONTRAGOSTO. George Bush sonhava em governar de frente para os americanos e de costas para o mundo. Mas, atropelado pelo onze de setembro, se lançou a uma cruzada contra o terrorismo. A contragosto, teve que se envolver no conflito no Oriente Médio e já tem um plano para derrubar o ditador iraquiano, Saddam Hussein. Isso sem falar nas brigas compradas no cenário internacional, sendo que a mais recente foi a rejeição ao tribunal permanente para julgar crimes de guerra. Arnaldo Jabor. Depois do 11 de setembro, achamos que o golpe terrorista provocaria mais humildade na América do Norte. Ficariam menos arrogantes e isolacionistas. Engano. Ficaram mais imperiais. Por isso, os USA estão contra qualquer repartição de poder. Devem um granão a ONU, para desmoralizá-la. Querem mandar na Otan, na OEA, deram a gafe de apoiar o golpe frustrado na Venezuela. Dai, não apóiam o Tribunal Penal Internacional. Eles têm medo que crimes americanos possam ser julgadas por outros países. Pois o Bush não decretou há pouco que os USA são o bem? E nós? Somos o quê? Os USA querem uma Guerra Fria qualquer que os absolva e justifique. E nisso Bush não pára de errar. Está unindo o mundo árabe e os emergentes contra os USA. Aliás, ontem o Bush acusou Cuba, Síria e Líbia de fabricação de armas biológicas. Cuba? Ali nos trópicos, debaixo de bloqueio há trinta anos? Difícil. Lembrem que se provou que aquele antrax terrível era produzido na América do Norte. E mais: por que os USA conseguiram expulsar da Opaq da ONU o brasileiro Bustani? Porque ele queria tratar os usa democraticamente apenas com um membro da organização e não como o dono do mundo. Bill Clinton, onde está você, agora que precisamos tanto de um democrata?

75. ARNALDO JABOR. O SAPO E A COBRA. Acho que um "choque de capitalismo" pode nos arrancar do atraso sim, acho que a "instantaneidade" do mundo de hoje pode fazer algum bem ao caos paralítico do Brasil patrimonialista. Mas entre remédio e veneno há quase nada. Ignorantes de direita e de esquerda não vêem isso. Saudosistas da utopia sabotam as reformas e se agarram ao passado, enquanto deslumbrados liberais abrem as pernas e anseiam pelo estupro do futuro. A verdade óbvia, solar, é que o plano da Alca traz embutido o nosso destino - feito por eles. Isto é o fato histórico mais grave, mais assustador para nosso futuro. A sensação que tenho é a estória do sapo e da cobra. Já viram como se alimentam as jibóias e as jararacas? Joga-se um sapinho na jaula. O bichinho pula de pânico pra todo lado e a cobra fica imóvel, olhando. Ele pula daqui, pula pra lá e acaba hipnotizado, seduzido, entrando obediente na boca aberta da serpente. Tenho pavor de que isso nos aconteça. Nossos 500 anos de dependência, deslumbramento e ignorância apontam para isso. Claro que há uma consciência difusa do perigo, claro que dentro e fora do Itamaraty se fala em nossos "interesses comerciais", em "integração com Europa e Ásia", em "defesa do Mercosul", mas o perigo é imenso porque os brasileiros não sabem negociar e, por abstratos, bacharelescos e molengas, se perdem em bravatas vazias para compensar medo e despreparo técnico. Corremos o grave risco da "síndrome do sapinho", de morrermos seduzidos pela boca da cobra, até vagamente honrados com a devoração. O essencial é considerar a Alca o problema nº 1 do país, nosso terremoto, nosso dilúvio, nosso perigo de extinção. É fundamental que o Itamaraty (e todos) se toquem para o assustador horizonte e não empurrem nosso destino histórico com a barriga. O ministro Celso Lafer obtemperou: "A Alca não é destino; é opção". Espero que sim. Negociadores, diplomatas progressistas, uni-vos! Temos tudo a perder.

76. ARNALDO JABOR. FREUD EXPLICA MUITAS POSIÇÕES POLÍTICAS. A psicanálise é uma grande arma para a ciência política. Principalmente no Brasil, à beira das eleições, com todos os ódios e neuroses aflorando. Por trás das ideologias e certezas de cada um, jaz o trauma, pulsando como uma velha ferida - a neurose, o sintoma. Há uma doença manchando a bandeira política de cada um. Imaginemos uma sessão de análise de grupo. No centro, um psicanalista de charuto e barba. Em volta, intelectuais pensando o Brasil. Psicanalista - o que fazer diante da realidade brasileira? O Amante do Povo - Doutor... é tão terrível ver a miséria deste país... Eu sofro tanto com isso... Psi - O senhor é miserável? - Não... ganho até bem... Psi - O senhor luta por eles? - Não; só choro. Psi - Essa 'dor' pelos pobres lhe traz muito lucro. Sente-se 'bom'. Eles não ganham nada com isso. O próximo!... O Erudito - Eu sei tudo, doutor. Inclusive do seu Freud. Eu li tudo. Não há saída... só me resta ficar aqui na universidade pensando na aporia (bem sem saída) histórica em que estamos, não há um 'telos' (luz no fim do túnel) possível... Como filósofos, não podemos sacrificar nossa 'gravitas' (seriedade) com uma 'praxis' (prática-teórica) que seja apenas um 'ersatz' (quebra-galho) da verdadeira revolução... Psi - 'Acabou o tempo da reflexão; começa a ação (Marx)'... O senhor tem inveja de quem vai à luta... A filosofia para o senhor é apenas um mecanismo de defesa. O Radical Durão - Temos de encarar os problemas do país radicalmente, sem frescuras. Essas complexidades democráticas modernas, ambigüidades políticas são coisas de veado! Psi - O senhor tem medo da complexidade ou medo de ser veado? O próximo!... A Vítima - Só eu estou certo! Apanhei muito em 69. Tortura, porrada. Psi - O senhor acha que se santificou no pau-de-arara? Nunca o senhor se sentiu tão puro e nobre como durante a ditadura, não é? Orgulhe-se da luta, não das porradas. Mesmo um grande herói torturado pode errar politicamente. O Limpinho - Doutor... Eu tenho nojo desses políticos, desta sordidez... Como artista e pensador, eu me mantenho longe desse lixo todo, deste horror brasileiro... Eu sonho com um Brasil novo, puro... Psi - O senhor lava as mãos a toda hora? Não olha as próprias fezes? Sexo e beijo de boca aberta nem pensar, né? O Infeliz - Doutor, eu estou chorando assim porque minha vida é uma frustração... Ser a favor dos pobres nos leva ao fracasso. Eu poderia ter ganho dinheiro, mulheres, sucesso, mas sou de esquerda. Psi - O senhor fracassou porque é de esquerda ou é de esquerda porque fracassou? O Sonhador - Só amo as utopias, doutor... Este governo vive no administrativismo, na política do possível... Essas reformas podem funcionar na prática; na teoria não funcionam. Só amo o sonho... Sem sonho, não ganhamos nada e, se ganharmos, perdemos o sonho... Psi - O senhor ainda mora com sua mãe, não? O Paranóico - O mundo atual é um conto-do-vigário em que caímos. Há uma conspiração política aí fora para nos destruir... Tudo que parece ser, não é. Querem me pegar desprevenido pelas costas. Psi - O senhor é gay? - Se disser isso de novo, eu lhe mato!!!... E vocês?!... Estão me olhando por quê? (foge gritando). O Anal - Este país não tem jeito. Só uma grande catástrofe, uma tempestade de merda consertava isso aí... Só depois de uma grande cagada política, aí, sim, purificados, teríamos a bonança... Psi - Seu pai lhe batia muito, quando você se sujava nas calças? O Mártir Imaginário - Tiradentes foi esquartejado... Frei Caneca enforcado... Como é belo o martírio dos que morreram pela salvação do Brasil... Grandes heróis mortos... Psi - O senhor acha a vitória uma 'coisa de burguês'... Não é?... Se o senhor fizesse sucesso, seu pai falido lhe castraria? O Nostálgico - Ahhh... como era verde o meu vale!... Ai, como era bom antigamente... Vida mais simples, todos se amavam... Aí chegou o neoliberalismo e estragou tudo. Psi - O senhor ama a utopia em marcha à ré? Deve ter sido uma criança mimada, filho único... Aí, nasceram os irmãozinhos, não foi? O Imutável - Pode mudar o mundo. Eu não mudo um milímetro em minhas idéias... Há valores de que não abdico! Psi - O senhor tem medo de mudar de sexo? De virar mulher?... ("Arghh!" - mais um que foge gritando). O Militante do Ar - Avante povo! Para as barricadas! Revolução ou morte! Psi - O senhor já pegou em armas? Ahh, não? Fica em casa de pijama torcendo pelo 'povo' como quem torce pelo Palmeiras? É um caso de quixotismo preguiçoso ou militância imaginária... O 'Bode Preto' - Tudo é uma bosta... Tudo é cronicamente inviável... Beco sem saída... Não há luz no fim do túnel... Psi - O senhor é paulista? Se tudo é uma bosta, sobra apenas o senhor - o único que presta... Isso é narcisismo de paulista engarrafado no caos urbano da cidade... Tome Prozac e vá para a Bahia!... Eu estou aí dentro... E você, leitor intelectual e neurótico, 'meu semelhante e irmão', onde você se enquadra?

77. ARNALDO JABOR. O QUE AS MULHERES SERÃO PARA AS GERAÇÕES FUTURAS? Acabo de voltar do carnaval na praia, onde fiz uma triste constatação: tá dominado, tá tudo dominado!!! Só dá funk! O "neo forró" tenta uma reação, mas suas letras não são cafajestes e não trazem a "alegria compulsória" que o brasileiro tanto gosta. Aí não dá, né, pô?! Como é que o cara quer fazer sucesso sem tratar mulher como lixo?! Esses forrozeiros, vou te contar... A indústria do CD pirata vai tratar de enfraquecer esse negócio, mas o jabá e a televisão devem insistir na onda por um bom tempo. Xuxa, Luciano Huck, Raul Gil, Gugu, enfim, toda essa gente boa vai se virar pra ganhar em cima. A Bandeirantes até já vai lançar um programa semanal com duas horas de duração dedicado ao funk. Isso, claro, até o "Tigrão", a mente por trás do "movimento", ser domesticado, o que, em termos mercadológicos, significa botar um terninho e gravar uma babinha pra novela das oito da Globo. O "Tigrão", aliás, deu uma elucidativa entrevista pra revista VIP de março. Eu digo elucidativa, pois ele dissipa a névoa de ignorância (por parte do público) que encobria alguns aspectos do "movimento". Vejamos: em determinado trecho da entrevista, "Tigrão" diz: "...As pessoas gostam desse erotismo. Mas, se você analisar, as letras nem são tão pesadas. Elas têm duplo sentido, até porque o público infantil ouve funk". Muitas coisas interessantes nessas sentenças! Então vamos por partes: "...se você analisar, as letras nem são tão pesadas". Eu analisei e ele está certo. Quem, em sã consciência, poderia achar pesada a letra do funk "Máquina de Sexo", que diz: "Máquina de sexo, eu transo igual a um animal / A Chatuba de Mesquita do bonde do sexo anal / Chatuba come cu e depois come xereca / Ranca cabaço, é o bonde dos careca"? Nota-se a leveza de termos como "sexo anal", "cu", "xereca" (!) e "cabaço". "Elas têm duplo sentido...". Procurei demais e não achei o duplo sentido no funk "Barraco III": "Me chama de cachorra, que eu faço au-au / Me chama de gatinha, que eu faço miau / Goza na cara, goza na boca / Goza onde quiser". Ah, agora entendi! "Goza na cara" é porque o cara ficava tirando sarro da menina pelas costas. Aí ela diz "Goza na cara!". Que coisa... "...até porque o público infantil ouve funk". Eis uma verdade e a preocupação do "Tigrao" se justifica. Foi pensando nas crianças que o garoto Jonathan, de 7 anos (ele mal tem coordenação motora para reproduzir a coreografia) foi incentivado a gravar o funk "Jonathan II", de edificante letra: "De segunda a sexta, esporro na escola / Sábado e domingo, eu solto pipa e jogo bola / Mas eu já estou crescendo com muita emoção / E eu já vou pegar um filé com popozão". 7 anos!!! 7 anos!!! Pô, foi mal... A culpa é minha, gente grande, feia e besta, que não entendo. Então, vamos lá, repetir o discurso de dez em cada dez apresentadores de programas femininos e de auditório: todo mundo junto, um, dois, três e já: "A malícia está na cabeça do adulto, a criança só quer se divertir. Onde já se viu, se preocupar com uma coisa dessas. Das crianças que passam fome na rua ninguém fala nada...". Aplausos entusiasmados e urros de apoio, por parte do auditório. É bom que se diga que as crianças que passam fome nas ruas são um sério problema social, cuja resolução deve ser uma das prioridades máximas de qualquer governo (detalhe sem importância: os funks da moda não passam nem perto dessa questão. Mas, beleza, vamos lá...). Só que é um problema do governo, a gente não tem nada com isso, não é mesmo? Ao invés disso, vamos dar risada e incentivar o moleque de 7 anos (7 anos!!!) a "pegar um filé com popozão". Afinal, nunca é cedo demais pra mostrar pro papai que se é um garanhão, que não deixa passar nenhuma cachorra. Isso é que é uma infância saudável! E pensar que eu perdi tanto tempo assistindo "Bambalalão", "Sítio do Pica-Pau Amarelo" e ouvindo aqueles discos da "Turma do Balão Mágico". Ao invés disso podia estar por aí, transando umas cachorras... Enquanto a gente dá risada, a molecada vai crescendo com a certeza de que mulher não passa de uma bunda e um par de peitos siliconados, que gosta de ser chamada de cachorra e que acha que só um tapinha não dói. Se "só um tapinha não dói", o primeiro deveria ser dado no popozão dos tigrinhos e cachorrinhas que curtem essas coisas. Depois a gente não entende o motivo do aumento dos índices de violência contra a mulher e porque ela é tão desrespeitada na sociedade. Será que não é óbvio? Você, cadela... quero dizer, mulher que está lendo isso, levante-se e lute! Não seja uma cachorra! Um tapinha dói, sim! Exija respeito antes que nós, homens, acreditemos que é isso mesmo que vocês querem. Deponham as Xuxas, Carlas Perez, Feiticeiras, Tiazinhas, Enfermeiras, Internéticas,Vampiras, Fernandas Abreu e Vanessinhas Pikachu de seus reinados de miséria intelectual! Conto com vocês!!! E lembrem-se sempre da cada vez mais pertinente frase de Oscar Wilde: "Todo crime é vulgar, assim como toda vulgaridade é criminosa."

78. ARNALDO JABOR. O OCIDENTE ESQUECEU HIROSHIMA E NAGASAKI. Há 57 anos, no dia 8 de agosto de 1945, um piloto americano pintou na fuselagem de seu avião o nome de sua mãe querida: "Enola Gay." Depois, voando sobre o Japão, num belo dia de sol, despejou a bomba atômica que derreteu em 30 segundos cerca de 100 mil pessoas, em Hiroshima. Ele viu com prazer e espanto o cogumelo em chamas se erguendo ao céu e, contente da missão cumprida, voltou à base, sendo que, no dia seguinte, outro aviãozinho matou mais 100 mil e transformou também Nagasaki num deserto de metal derretido. Nunca esqueceremos o Holocausto que matou milhões de judeus, mas fugiu-nos da lembrança Hiroshima e Nagasaki, com seus fulminantes tornados de fogo. Por quê? - se a extinção em massa dos japoneses é tão apavorante quanto os fornos alemães, pois fez em um minuto o trabalho de anos dos nazistas? O que mais me choca na bomba de Hiroshima é a rapidez anglo-saxônica do feito, a eficiência tecnológica, sem trens de gado humano, sem prisioneiros magros sofrendo, sem a linearidade suja dos nazistas, sem pilhas de cadáveres capazes de nausear até o Himmler. A bomba americana foi um "feito tecnológico", uma "vitória" da ciência, o fruto sujo de Einstein. Hiroshima foi o início da pós-modernidade técnica, guerra limpinha, do alto, prefigurando a Guerra do Golfo. Os nazistas eram loucos, matavam em nome de um ideal psicótico e "estético" de "reformar" a humanidade para o milênio ariano. A bomba americana foi lançada em nome da "Razão". Foi uma bomba de "democratas" do bem, raspando da face da Terra os últimos "japorongas", seres oblíquos que, como dizia Trumam em seu diário secreto: "São animais cruéis, obstinados, traidores, fanáticos." Eram considerados inferiores seres de olhinho puxado, que podiam ser fritos como "shitakes" na frigideira. O Holocausto judeu nos horroriza pelo dia-a-dia burocrático do crime, pelo seu cotidiano "normal", com burocratas contabilizando pacientemente quantos óculos sobraram nas câmaras de gás, quantos dentes de ouro... A bomba A foi rápida e eficiente como uma nova forma de detergente, um potente "mata-baratas". Ainda hoje é fascinante ler a racionalização dos americanos para justificar a morte de dois "Maracanãs" cheios, como se desinfetassem um shopping center. A bomba de Hiroshima explodiu diante da humanidade já anestesiada pela banalização de 20 milhões de mortes na 2.ª Guerra e pelo massacre dos judeus - foi o coroamento pavoroso das trincheiras da 1.ª Guerra. A bomba explode quase como um alívio, como escreveu Truman: "Eu queria nossos garotos de volta ("our kids") e ordenei o ataque para acelerar essa volta." Outra "razão" era que Hitler estaria próximo de conseguir uma bomba A, argumentaram generais falcões e cientistas, como Einstein (antes, para Roosevelt) e Oppenheimer. A destruição de Hiroshima e Nagasaki não era "necessária". O mundo não estava em perigo diante da invasão de ETs, como era a opinião dos milicos sobre os "japs"; o Japão estava de joelhos, se rendendo, querendo apenas preservar o imperador Hiroito e a monarquia instituída. A "razão" real era que o presidente e os "falcões" queriam testar o brinquedo novo. Truman escreve em seu diário, depois do primeiro teste da Bomba, como um garoto entusiasmado com um "Lego": "É incrível! É o mais destruidor aparelho já construído pelo homem! No teste, fez uma torre de aço de 60 metros virar um sorvete quente!" A outra grande "razão" americana para o ataque era a vingança. Os USA tinham de vingar Pearl Harbour. As duas bombas caíram "de surpresa", exatamente como fora o ataque japones, anos antes. Além disso, queriam intimidar a União Soviética e Stalin, pois a guerra fria já assomava no horizonte. E, por fim, queriam dar também um show de som e luz para o mundo todo, uma superprodução a cores que enfeitasse a marcha do império. Assim como os nazistas elaboraram uma "normalidade" burocrática para a "solução final", os americanos criaram uma lógica "científica" para seu crime. Por isso, Hiroshima não sujou o nome da América tanto quanto o Holocausto manchou para sempre o nome dos alemães. Até hoje, quando se fala em alemão, pensa-se em Hitler, enquanto Hiroshima quase soa como uma catástrofe "natural", inevitável, um brutal remédio no calor da guerra. O crime dos alemães justificou e absolveu o crime americano. E como os americanos saíram limpos dessa? Creio que, naquele momento infame do Ocidente, não havia conceitos disponíveis para condenar esse crime; o mundo pensante estava todo dentro de um grande lixo, numa vala comum de detritos humanistas. A época estava morta para as palavras, não havia mais sentido diante dos fatos. Só restou, na Europa, o desalento, a literatura do absurdo, o existencialismo, o suicídio filosófico, o niilismo em meio às ruínas. Enquanto, na América, longe de tudo, da Ásia e da Europa, só aconteceu a euforia do papel picado caindo na 5.ª Avenida, sobre os heróis da "vitória" da democracia. Era o início de uma era de prosperidade e esperança, dos musicais de Hollywood, pois o "eixo do mal" estava vencido e derretido. Alegria que durou até 1949, quando os comunas explodiram a bomba H, quando começou a guerra fria.

79. ARNALDO JABOR. O SAPO ENTRA SOZINHO NA BOCA DA COBRA. O Congresso americano acaba de aprovar o "fast track" para o Bush poder negociar com "independência" as regras da Alca. No entanto, no texto da TPA (o nome desta autorização) estão mantidos no texto mecanismos que permitem ao Congresso monitorar negociações para produtos considerados sensíveis, que são justamente os que mais interessam ao Brasil. Por isso, me pergunto: por que o Brasil tem de continuar aceitando a inevitabilidade da Alca? Claro... bem sei das injunções políticas e econômicas de um país que tem de negociar com o FMI e o Tesouro americano, sei de nossas fragilidades do momento, de nossa dependência de suas políticas imperiais e do medo por sanções não-explícitas que eles podem nos aplicar. Mas, isso não pode justificar a política do "sapinho e da cobra", como escrevi num artigo de um ano atrás: "A sensação que tenho é a estória do sapo e da cobra. Já viram como se alimentam as jibóias e jararacas? Joga-se um sapinho na jaula. O bichinho pula de pânico pra todo lado e a cobra fica imóvel, olhando. Ele pula daqui, pula pra lá e acaba hipnotizado, seduzido, entrando obediente na boca aberta da serpente. Tenho pavor de que isso nos aconteça." Acho que um "choque de capitalismo" pode nos arrancar do atraso, sim, acho que a "instantaneidade" do mundo de hoje podem fazer algum bem ao caos paralítico do Brasil patrimonialista. Mas, entre remédio e veneno há quase nada. A verdade óbvia, solar, é que o plano da Alca traz embutido o nosso destino - feito por eles. Isto é o fato histórico mais grave, mais assustador para nosso futuro. Por isso, cito aqui também um artigo antigo do embaixador Rubens ??Ricupero, onde ele diz: "É preciso vigilância reforçada na negociação de normas gerais de comércio, se queremos no futuro evitar sofrimentos como este que amargamos no momento. E jamais aceitar de novo sob qualquer pretexto delegar a organizações de que não fazemos parte a tarefa de definir para nós as regras que devemos seguir. (...) Com os subsídios proibidos hoje pela OMC, nem o Delfim Neto poderia ter estimulado a exportação de manufaturados ou, se JK ressuscitasse, não poderia mais implantar a indústria automobilística..." E repito um trecho de entrevista de outro embaixador corajoso, Samuel Pinheiro Guimarães, que o Itamaraty encostou por "inconveniência": "Com a Alca, os Estados Unidos realizariam seu desígnio histórico de incorporação subordinada da América Latina a seu território econômico e à sua área de influência político-militar.(...) Não há, na política e no direito internacional, nenhum processo de negociação, em nenhum foro, em nenhuma região, em nenhuma organização, que tenha de ser aceito passiva e de forma submissa pela sociedade como irreversível." Quando falo da "cobra e do sapinho", é porque me assusta a fragilidade tradicional dos brasileiros em negociações com os gringos, com sua tradição francesa de punhos de renda, sem a objtividade rude dos americanos quando querem conseguir uma concessão de algum emergente. Há algum tempo o diretor da CIA declarou que a agência existe hoje para fazer espionagem industrial e comercial. A meta atual dos Estados Unidos é fazer do Ocidente uma grande economia sem fronteiras, com excecão das fronteiras deles, claro. Para nós, a diplomacia é a arte do meneio; para eles, é uma linha reta, bruta, mercantil. Americano trabalha com a política do "bode na sala", como me disse o embaixador Pinheiro Guimarães. Eles colocam uma exigência absurda, lutam por ela, e quando recuam, apenas chegaram aonde queriam desde o início. Exemplo? Fingiram forçar a Alca para 2002 e acabaram "concordando" com a Alca em 2005, onde sempre esteve. Nós achamos que foi uma "conquista". É o "bode na sala". Quando tiram o bode, o alívio parece uma vitória. Por essas e outras, corremos o grave risco da "síndrome do sapinho", de morrer seduzidos pela boca da cobra, até vagamente honrados com a devoração. Para os americanos, protestantes, amantes do lucro e da riqueza, a vitória é orgulho. Para nós, a vitória traz culpa, medo. Eles amam o sucesso. Nós, católicos e ibéricos educados para a obediência e dependência ao Rei, cultivamos o fracasso. Os americanos inventaram o mito do pan-americanismo, da "boa vizinhança", de que estamos "no mesmo barco" do Ocidente, mas na verdade têm um grande desprezo por nós. Ocultam isso e sabem, como ninguém, cooptar nossas elites deslumbradas, tanto as comerciais como as intelectuais. Americano considera o comércio uma atividade militar. Na crise asiática, quando o Japão imaginou criar uma espécie de FMI regional, Robert Rubin e Larry Summers voaram correndo num jato militar para impedir esse ganho de poder para os japorongas. Eles trabalham como um time, e têm a coalizão de formigas. Para eles, o detalhe é tão importante quanto o todo. Mas, para nós, dividem as questões com grande formalismo jurídico, dividem sempre, para provocar dispersão. Ex.: "Abram o mercado", eles dizem. "Só se vocês acabarem com sobretaxas", dizemos. "Ah... uma coisa não tem nada a ver com a outra", retrucam... Dividem os temas para nos dividir. São craques. Como já escrevi: "Para negociar com os americanos, precisamos urgentemente aprender a negociar como os americanos." Nosso destino está em jogo. Podemos morrer na praia do século 21. E se me repito hoje, citando-me, é porque ninguém mudou. Nem eu (quem sou eu, pobre de mim?...) nem os USA nem o Brasil, que pode agir como o sapinho entrando na boca da cobra.

80. ARNALDO JABOR. O CRIME CRESCENTE É UM FRUTO DO PROGRESSO. Afinal de contas, o que está acontecendo? Parece que tudo se move a direção do abismo. De repente, a morna vida brasileira começa a correr em alta velocidade, como um grande ventilador de excrementos. O Brasil é assim: ou nada acontece ou tudo acontece. E diante da angústia do incontrolável, corremos em busca de "sentido". A mídia congrega e acentua nosso pânico, na esperança de uma explicação, nem que seja do apocalipse. Aí, sentimo-nos dentro de uma conspiração de demônios: dengue, seqüestros, assassinatos, escândalos, tudo se soma num grande esqueleto estruturado para nos apavorar. A consciência anda mais devagar que as coisas. Nosso entendimento vem sempre depois, quando já é tarde demais. É impossível entender o que está rolando no Brasil, se nos aferrarmos a pontos de vistas imutáveis. Os fatos estão além das interpretações. Há algo em comum entre a globalização desumana e a violência caótica: ninguém sabe o que fazer. Mudou tudo no País. Foram se acumulando décadas de desleixo e preguiça, pequenos crimes, pequenas loucuras administrativas, pequenos movimentos sísmicos e, de repente, o que era uma realidade vira outra. As quantidades viraram qualidade. Para pior. Houve no Brasil um "salto qualitativo" para baixo na defesa pública. O crime crescente não é fruto da miséria; é fruto do progresso. Do progresso tecnológico e empresarial de um país torto. O tráfico de cocaína é uma megaempresa e o contrabando de armas e os seqüestros são derivados dos bilhões de dólares que giram sob a lama das favelas. O tráfico capitalizou a miséria. Antigamente, havia três ou quatro marginais românticos: Zé da Ilha, Cara-de-Cavalo, Mineirinho. Hoje, populações inteiras vivem à custa do único emprego que pintou nas periferias: droga. Antes, havia corrupções de ninharias; hoje, que policiais ganhando merrecas agüentam ver passar intocados quilos dourados de pó? Que adianta prender pés-de-chinelo? Há que atacar os Conselhos de Administração globalizados da cocaína. Eles jantam nos Jardins. Não temos conceitos adequados para o país que explode à nossa frente, estamos desamparados com nossas velhas palavras, velhas idéias, velhas leis. Enquanto o ritmo do crime, da miséria, da loucura voam com imensa liberdade, nós nos arrastamos no passo preguiçoso dos políticos burgueses. O Executivo e o Congresso são incapazes da emergência. Resolveram analisar os 200 projetos contra o crime só a partir de abril. O ritmo do Judiciário também é feito pela protelação, pelo arreglo, sem instâncias terminativas, libertando assassinos e ladrões, atrasando mais ainda, do alto de seus palácios de mármore, as polícias sem armas e sem dinheiro. A primeira vontade diante do imprevisto é correr para trás, em busca de antigas certezas. Infelizmente, não há nada de útil nos velhos baús. Não há mais caminho racional em uma sociedade de mil camadas, de labirintos dentro de labirintos, se anulando, se bifurcando. A realidade brasileira (e os discursos sobre ela) se parece cada vez mais com as vielas das periferias. A favela com seus becos, buracos, armadilhas, socavões e desvãos é a cara da vida nacional. Os criminosos pensam e vivem assim: pela linguagem dos labirintos, das "quebradas", sem nenhuma esperança de solução, de futuro. E nós, os "limpinhos", diante desse quebra-cabeça, esperamos "soluções" lineares. Que "solução"? Não há mais solução. Chorem, esperançosos iluministas, chorem donas de casa sonhando com o aniversário de casamento, chore neoliberal acreditando na "mão" do mercado, uivem comunas empedernidos que acreditam em planejamento cnetral, berrem românticos clamando por uma era de grandezas, danem-se filósofos embrenhados em tautologias e ressentimentos. Ainda olhamos o presente através de um espelho retrovisor. Temos de esquecer a velha idéia do "conjunto", acabou a utopia de um mundo coerente. Temos de criar uma política em leque, em "rizomas", em muitas frentes, e os instrumentos são muito mais a imaginação, a invenção. Não há mais unidade a ser "re-feita" (se é que já existiu...); só há "unidades", módulos, favos de fel, ilhas do mal, buracos quentes, becos escuros, como nas favelas. A maneira de combater a violência, a corrupção policial, armas, todas essas "novidades" do crime global não será por grandes discursos nem por gestos totalizantes. Ao contrário, temos de quebrar correntes sucessivas, linhas contínuas, sucessividades. Temos de "quebrar" e não de "re-cobrar", salvar, recolar. Nunca vai-se restaurar o velho sonho de harmonia de classe média. Temos de quebrar os cinturões de miséria nas periferias pela invasão de núcleos de emprego e batalhões de saneamento e educação, invadir as periferias com bilhões de dólares subtraídos do FMI para criar ilhas de indústrias, de cooperativas, de centros de produção. É isso: custa bilhões de dólares sim - e daí? Bem menos que o roubo dos bancos. Não adianta mais a racionalidade sobre o óbvio. Chega, basta de diagnósticos perfeitos que não levam a nada. Todo mundo sabe da doença. Faltam os remédios. Temos de trabalhar com erros e tentativas, com riscos ideológicos, com imaginação, com alianças espúrias, até com mentiras estratégicas. Temos de derrubar nossos parnasos, esquecer ideologismos que consolam e levam à preguiça com boa consciência e ao nada. A eficiência e o pragmatismo dos criminosos nos ensinam o ritmo da ação. Se bobearmos, viramos Colômbia.

81. ARNALDO JABOR. TODOS NÓS QUEREMOS SER CANIBAIS. Eu ia escrever uma artigo sobre o atual canibalismo político no Brasil, sobre o campeonato de denúncias para saber quem é mais ladrão, ao som de procuradores sapateando em fitas como bailarinas espanholas mas... cansei e resolvi ir à real thing e escrever sobre o canibal Hannibal, criação luminosa do Anthony Hopkins, agora no filme de Ridley Scott. O filme é ruim, mas é bom de ver, se é que me entendem. Hoje, só me interessam as informações "filmológicas" das fitas; qualidade, se houver, é um brinde casual. Por "filmologia" refiro-me à disciplina dos anos 60, criada pela turminha do Gilbert Cohen-Séat (quem ainda se lembra?), de modo a entender tendências sociais que o cinema revela. O que me interessa nesse filme é a extraordinária personagem do canibal dr. Hannibal Lecter. Ele é uma rica metáfora da gelada ética que se instala no mundo. Hopkins criou uma figura que nos fascina como poucas no imaginário desta fronteira de milênios. Hannibal é um achado e a razão de seu sucesso não é somente a qualidade do ator. Os oscars recebidos, o estouro de bilheteria mostram que Hopkins acertou na mosca, trouxe à luz algum desejo difuso no ar do tempo. Hannibal é inteligentíssimo, amante do belo, com uma extrema elegância culta. E o grande achado é que a pessoa mais civilizada do mundo é também um canibal. Ninguém comete crimes com mais finesse que ele. Hannibal busca quase uma forma de arte, praticada com invenção e maestria na devoração e no assassinato. Há em Hannibal um eco da perversão iluminista de Sade, com a precisão dos cortes, a geometria da crueldade, o rigor estético do mal. Há, como em Sade, o desejo de refutar a moralidade de um "antigo regime", de ir além do permitido, de provar a mediocridade da piedade, da hipocrisia do bem. Há quase uma "bondade" na crueldade de Hannibal. Hopkins (alcoólatra e famoso perverso inglês) criou uma personagem exemplar e contemporânea. Diante de Hannibal, todos nos sentimos meio babacas, antigos, caretas. Na literatura do horror, Hannibal é um marco novo; vai além dos vampiros e "dráculas", figuras ilustres do romantismo. O vampiro era uma homenagem ao amor sublime, a uma sexualidade idealizada e agônica, quando os escravos da paixão ansiavam pelo êxtase da dentada no pescoço. Com Hannibal não há a nostalgia triste dos vampiros. Ele é um "reformador de costumes". Hannibal quer exterminar os medíocres e, espantosamente, sonha com um mundo belo. Ele despreza suas vítimas e o único perigo que corre é o de se apaixonar pela policial Clarice Starling, ex-Jodie Foster e atual Julienne Moore. A cândida policial o emociona e Hannibal vê em Clarice uma beleza que desejaria para o mundo todo. "Não te devoro porque o mundo fica mais bonito com você...", diz ele no "O silêncio dos inocentes". Hannibal é pós-moderno (arrghh!...). Ele nos acena com um delicioso futuro primitivo, com uma volta à animalidade perdida, depois de tantos séculos de ciência. É como se ele dissesse: "Nenhum saber, nenhuma ética, nenhuma religião vai apagar o animal feroz que há em nós. A humanidade é um caso perdido e eu sou a prova disso..." Cada vez somos mais como ele, no darwinismo social que se instala. Já somos mais sozinhos, mais avessos à compaixão, mais frios. Para sobreviver, precisamos "não ver" o sofrimento dos outros, a injustiça e a desigualdade. Queremos ser tocados pela graça da impiedade. Daí, o fascínio do assassino. Nada mais atraente que a psicopatia elegante. Todos queremos ser como Hannibal. Além disso, Hannibal nos dá a rara oportunidade de, no escurinho do cinema, torcer pela vitória do perverso, pelo triunfo do mal. Isso nos excita como a mais louca liberdade. A vitória do crime liberta secretamente nosso canibalismo secreto de milênios. Schwarzenegger, Van Damme, Mel Gibson estariam lutando "pelo Bem", pela sociedade civil. A violência nesses filmes é hipócrita, exibida como chamariz comercial, mas dissimulada pela boa ação dos heróis da lei. O sangue, as explosões de corpos são mostrados como os "horrores do mal" e assim faturam bilhões, pagos por nosso sadismo enrustido. Com Hannibal, podemos nos repastar na perversão, sem barretadas ao bem, feito sexo sem pecado... Na realidade, Hannibal é um ícone da guerra narcísica do mundo atual. Estamos cada vez mais sozinhos como Hannibal. O canibalismo social está por baixo de nossos desejos. Queremos amar sozinhos, vencer sozinhos, devorar o mundo como devoramos sushis em balcões yuppies, queremos nos apropriar da vida ferozmente, sem competidores. Em "American Psicho", o criminoso é uma anomalia. Hannibal é sofisticado e invejável em sua inteligentíssima frieza. Quando falamos em "comer" mulheres ou homens, sonhamos com uma sexualidade canibal livre dos problemas do amor. Acabamos de ver as escolas de samba, com mulheres se oferecendo completamente nuas e um grande supermercado de corpos, como pedaços de comida em prateleiras. Há dez anos, na estréia do "O silêncio dos inocentes", escrevi o seguinte: "Os crimes frios são o prenúncio dos futuros extermínios de massa. Como ficou arcaica a compaixão, queremos ser tocados pela graça da frieza. (...) O que nos fascina na personagem de Hopkins é que ela parece estar mais além de uma moral antiga e que ela contempla, do outro lado do Bem, uma nova realidade. Hannibal parece saber mais do que nós, que ainda vivemos mergulhados em dúvidas morais e culpas. O canibal e doutor Hannibal Lecter nos olha do futuro.

82. ARNALDO JABOR. REALITY SHOWS MATAM FOME DE VERDADE. Ah... é? Querem show de realidade, reality show? Pois aqui vai um artigo-realidade, com todas as suas dúvidas, informe rascunho, sujo texto, tudo que me passar pela cabeça enquanto escrevo. Será a verdade de minha mentira ou a mentira de minha verdade? Besteira, deixa de filosofias baratas... Deixa eu ver... Nelson Rodrigues dizia que a novela era importante para satisfazer nossa fome de mentiras. O show de realidade é para satisfazer nossa fome de verdade. O Paulo Emílio, o grande crítico de cinema, dizia que vamos ao cinema como ao bordel - em busca de ilusão. É isso aí... só que a televisão não é no escurinho do cinema, que tem algo de secreto, de fuga, algo que ficou no fundo dos anos 30-40. Não; a TV é com luz acesa, a TV é uma vitrine na tua sala, com ofertas de sabonete e de amores. TV não vende ilusão; vende desejos e os desejos crescem. A ficção, no cinema e na TV, não está dando conta do horror da realidade, do real-espetacular de hoje. Que filme teve mais impacto que o reality show do Osama Bin Laden no dia 11 de setembro? Nunca a ficção foi tão real. As notícias e a ilusão se uniram em quatro aviões caindo do céu americano, porque, como sabemos, a TV é dividida em dois mundos: "The news is bad, the ads are good", como disse alguém. (Quem? McLuhan, Daniel Bell? "As notícias são más, os anúncios são bons" - (NB: 'news' é singular mesmo...) Naquele dia, o sonho explodiu. Naquele dia, descobrimos que a realidade não estava morta e que ela se movia com o timing ideal dos filmes... e tudo num curta-metragem de 20 minutos. Portanto, depois do 11 de setembro, como 'entreter', como fazer um desgraçado esquecer do mundo que estoura lá fora, que ilusão se pode ter, quando o horror não te deixa dormir no sonho e na mentira? E não só os deliciosos horrores que te satisfazem o rancor, mas também que ilusão te aquecerá para você esquecer o que viu na TV, a maravilha que poderia ser tua vida, quando você é apenas um excluído, sem grana para pagar um reles tênis ou uma sórdida geladeira? (Misturo 'tu' com 'você', oh... gramáticos, como na vida real) Além disso, nos dias de hoje, você não se deixa mais enganar com musicais românticos, você não é mais amansado por Fred Astaire e Cid Charisse dançando no escuro, você está indócil, querendo existir. Aí, Hollywood saca isso e resolve te dar mais "entretenimento", aumenta a dose da droga, mais na veia, mais, e porradas a granel e efeitos especiais e mais sexo, sexo, sexo... Mas, não adianta muito, porque... até onde pode ir um filme pornográfico, até onde?Até o interior do corpo, até o intestino pelo olho do ânus, pelas vaginas a dentro para achar a alma? E você também não tem como comer aquelas gatas de seios siliconados, musas virtuais, e tuas punhetas se encerram num triste jato de nada na mão molhada. No meu delírio teórico, eu pensei: "Ahh... o reality show atende a um desejo do homem comum de ver a própria concepção, a 'cena primária', como dizem os psicanalistas, ver pelo buraco da fechadura, edipicamente, papai e mamãe transando na cama sagrada do drama burguês." Mas, não. É mais que isso, mermão. Isso apenas 'faz parte'. Você quer mesmo é invadir a TV como os assaltantes invadem uma casa. Você quer ver o que acontece no mundo dos que amam, dos que consomem, dos que existem. Você quer 'ver'; não sabe bem o quê ainda, mas quer ver o que te escondem, ver algo que te é negado. Você quer estar onde tem tudo: iogurte, carro do ano, Jade, cerveja com mulher boa, carros sport, luxo no shopping virtual da tela, você quer morar lá dentro como uma rosa púrpura do Cairo." Mas, aí, você bateu na tela de vidro e não entrou, na emissora o porteiro te barrou, e você viu que teu sonho era impossível. Foi então que as televisões do mundo perceberam tua desesperada vontade de existir e te disseram: "Você pode entrar se for selecionado e sair daqui com corpo e alma, com identidade, você pode nascer como o Bam Bam nasceu para a vida!" O reality show é o quebra-galho do sonho do socialismo que morreu, onde todos seríamos multidões cantantes. O reality show é democracia de massas cobrando ingresso. Mas, aí, nova surpresa. O SBT quis mostrar a verdade cotidiana de gente famosa, de personagens 'de ficção' da mídia. Enquanto isso, a Globo mostrou a aura que pode aflorar de anônimas e banalíssimas pessoas. E o ibope subiu ao avesso. Descobriu-se que você não quer ver famosos e gostosas, como a Tiazinha e a Feiticeira revelando aos poucos sua 'verdadeira' face ou mesmo sua verdadeira bunda. Você não quer ver a Tiazinha lavando roupa e a Feiticeira varrendo a casa. Não. Você quis ver os anônimos florindo e brilhando. Você quis ver uma beleza que vai aparecendo na convivência de gente boba como você, gente que chora sem motivo, gente que fala com boneco, gente que vomita. Mais do que ver 'sacanagem' ou 'cena primária', você descobre (e as TVs também) que quer ver o vazio, o nada do cotidiano, descobre que quer o alívio da informação e o vazio da verdade. A verdade é vazia, não-transcendental, a verdade está na pausa, no tédio, na falta de assunto, você quer o alívio do nada. O sucesso do Big Brother esteve na verdade que se infiltrou quando nada acontecia, entre os momentos em que mentirosamente eles fingiam sofrer ou amar. O sucesso se deveu ao nada, ao tempo morto. Ali, no irrelevante, arde uma verdade profunda, sem nome, sem efeitos. Naqueles instantes, nasce alguma coisa que se parece com tua vida. Você quer ver o que acontece quando nada acontece. Na verdade, você quer ver quem é você. Qual será tua próxima fome?

83. ARNALDO JABOR. MULHERES PENSAM E FALAM COM O CORPO. Afinal de contas, o que quer a mulher? - perguntou o Freud, segurando seu charuto fálico. Bem, a mulher não quer nada porque ela não existe, respondeu o Lacan. Tem razão - existem as mulheres, com data, geopolítica, classe social. E aqui na TV, janela virtual do Brasil, surgiram agora quatro mulheres falando do que "querem" na televisão. Elas estão no canal GNT, no programa Saia Justa: Rita Lee, Fernanda Young, Marisa Orth e Monica Waldvogel. O programa está batendo todos os recordes da TV a cabo, comemoram Letícia Muhana, diretora da GNT, e Suzana Villas Boas, produtora-executiva do show das quatro meninas que, aliás, é ao vivo, quase um reality show. As razões do sucesso total? Acho que sei. O mundo masculino está cansando as pessoas; não é à toa que Roseana bateu alto nas pesquisas, que Rita Camata é chamada para vice, que Marina Silva, a corajosa e sensual seringueira, pode vir a ser vice de Lula. Ninguém agüenta mais aqueles sujeitos de terno, com seus bigodes e gravatas, decidindo os destinos mais finos da nação. A visão da mulher poderá ser mais democrática, mais tolerante, mais sutil nesta época tão dura de transição para uma democracia social - se é que ela virá... O que há de novo no Saia Justa é que, normalmente, se convocam as mulheres para mostrar que estão "integradas" no mundo atual. Nesse programa, ao contrário, as mulheres estão é "estranhando" o mundo. Essa é a diferença. As mulheres se integram no mercado, muitas imitam à perfeição os homens no trabalho, com seus tailleurs e invisíveis bigodes, mas em geral são vistas com uma curiosidade desdenhosa pelos machos oficiais da mídia. Saia Justa é um território livre. Rita Lee é aquele luxo. Faz um low profile defensivo, mas nós sabemos que São Paulo não seria a mesma cidade se ela não existisse. Sob a capa de roqueira, ela é uma mulher política, faz uma análise cultural do País, desde os Mutantes. A escritora Fernanda Young é a pós-modernidade se expressando, uma mistura de mãe punk com intelectual pop, ostentando uma autoparódia na cara da gente, como arma crítica. Marisa Orth, a anti-Magda, inteligentíssima, destrói a caretice e a peruíce, tanto como atriz quanto como personagem, e Monica Waldvogel, sensata e doce, com o crivo da razão jornalística, faz o copidesque que orquestra um sentido para as idéias que explodem no belo cenário de Carla Caffé, sob a luz de cinema de Rodolfo Sanchez. Em Saia Justa, as mulheres pensam com o corpo; suas reflexões são sempre repassadas de uma subjetividade emocionada de onde sai um pensamento não-fálico, não definitivo. Novalis escreveu que "a mulher é o ponto de transição do corpo para a alma". Nessa imprecisão está a sua riqueza, principalmente nestes tempos submissos a um "pensamento único". Às vezes, escrevo sobre as mulheres no Brasil de hoje. Mas sou um pobre macho perplexo. Por isso, aqui vão algumas perguntas às meninas do Saia Justa: Vocês não acham que as brasileiras comuns desconhecem a liberdade sonhada pelas feministas? O que vemos aqui é uma libertação da "mulher-objeto". Elas não estão virando "sujeitos" livres, mas querem ser mercadorias sedutoras, como um BMW, uma Ninja Kawasaki... O "objeto" é feliz, não sofre. As mulheres querem a felicidade das coisas. Querem ser disputadas, consumidas, como um bom eletrodoméstico. Verdade ou mentira? A gente viaja pelo mundo e vê que as européias ou americanas não ficam apregoando uma sexualidade berrante pelas ruas. Por que as brasileiras se exibem tanto como gostosas, peitos de silicone, coxas lipoaspiradas, bunda soerguida, vagina indomável, sorriso largo e debochado? Será isso prova de liberdade ou de fragilidade? Elas têm de oferecer sua carne nua o tempo todo porque são inseguras? Elas não prometem carinho; prometem "funcionamento". Não é por acaso que são chamadas de "avião" ou de "máquina"... As mulheres brasileiras são amigas ou inimigas dos homens? Por serem oprimidas, é válido que a brasileira use uma estratégia de controle sobre os machos, a sedução pela histeria, pela fragilidade fingida, pela dissimulação da competência? Pode a brasileira "viver sem mentir"? O que é a perua? A perua seria uma conseqüência disso? Quais as categorias de peruas? A perua malvada é o "outro" do machão?... E a bunda? Não merece uma reflexão? As bundas estão virando uma utopia. Não há mais o que mostrar. Nunca as mulheres foram tão nuas no Brasil... Já mostraram o corpo todo, as vaginas, o interior delas... Só restará, um dia, os intestinos... O que mais? A revolução feminista no Brasil será apenas esse strip-tease geral, essa dança da garrafa? O sexo total que nossas gostosas prometem é impossível. Os peitos de silicone estão cada vez maiores, estão virando depósitos de leite venenoso. A libertação da mulher no Brasil de hoje é uma vingança conservadora? Sim ou não? Ou "sei lá"? Ou não é nada disso e minhas críticas não passam do medo de um machista metido a fino? Será que toda essa loucura feminina, essas capas de revista, essas roupas de mau gosto em coquetéis e Caras, esses falsos brilhantes, essas gargantilhas com nome de marido, essas "ladies" querendo ser prostitutas e vice-versa, essas multidões de meninas lindas querendo se salvar pela passarela ou bordel, será que tudo isso, no fim das contas, não vai adoçar uma ordem excludente e discriminatória de séculos, por uma doce miscigenação de costumes e loucuras? Será que isso tudo não é bom? Talvez esteja surgindo no País, com vices e danças do ventre, uma nova política através de olhos femininos. Os homens têm destroçado tudo. Só as mulheres podem nos responder. E salvar. Talvez.

84. ARNALDO JABOR. ENTRE O CELIBATO E O CASAMENTO, O CORAÇÃO BALANÇA. Outro dia, d. Paulo Evaristo Arns declarou-se a favor do celibato opcional para os padres. Mas, seria difícil a vida de um padre casado. Além de servir a Deus, ter de cuidar do lar. Imaginemos um padre casado. - Chegou tarde hoje, hein! - disse d. Silvaneide, mulher do padre, morena, seios fartos, fogosa, ex-dançarina de pagode, depois arrependida, depois beata, acendedora de velas do altar e amante do pároco, hoje casada com ele. - Meu anjo... esta época de Natal é difícil... mais de 30 confissões... - Confissão, o cacete!... Você fica ouvindo aquelas sacanagens ali no confessionário e depois vai se encostar naquela filhinha de Maria que ajuda na sacristia... a tal de Abigail, com aquela carinha de sonsa, beijando sua mão... Não sou cega não, meu filho... - Estava trabalhando por dinheiro... mulher... já entrei no cheque especial... o bispo me prometeu um extra por confissões em cascata... É incrível... os pecados estão mudando... o que tem de corrupção, de cheques sem fundo... Não há mais pureza ou arrependimento... só sexo sem culpa... - É aí que você gosta, não é?... Se excita mais com a "santinha" da sacristia... - Meu bem, nem tenho forças... só penso em você... e nas contas a pagar... - (Chorando) Você não me ama mais... (ela se ajoelha, lágrimas jorram). - Meu amor... nada disso... olha... vamos sair... se eu tivesse dinheiro te levava ao Crazy Love, aquele motel novo... mas... olha, vou mostrar que te adoro, agora!... Vai pro quarto! Prepara-te para receber o sagrado sacramento do matrimônio!... - (Debochada) Que milagre é esse? A gente não transa desde a Páscoa... Agora não quero. Nosso problema é dinheiro... Você podia pegar umas esmolas daquele cofrinho; o sacristão não fazia isso? - Eu sou um servo de Deus! Quer que eu seja ladrão? Acordo às 5 da manhã... às 6 já estou rezando missa. A igreja está quebrada; com a crise, ninguém dá mais esmola... Eu tenho de varrer a sacristia... Vou comprar as flores mais baratas lá no Jacarezinho, de ônibus, para enfeitar os casamentos e batizados, que são as únicas graninhas que eu descolo... e ainda tenho de ouvir os xingamentos do bispo, que está com mal de Alzheimer e pensa que eu sou o Satã... Vive me exorcizando...Você pensa que é fácil? Pensa? Me dá até vontade de voltar ao celibato, ficar trancado na clausura, vendo a Xuxa na TV e chorando pra Jesus... é melhor... Olha, Silvaneide, eu me orgulho de ser honesto!... - Você não é honesto, não... Você é burro. Vamos acabar na rua da amargura... Não estamos mais na época de São Francisco não... É mercado global, meu filho... Era do espetáculo... - Por que os evangélicos estão com esse sucesso todo?... Porque são espertos... descolam aqueles 10 por cento ali dos otários... numa boa... cantam... dançam... Show business! - Ontem mesmo, teu filho falou que... - aliás, ele anda com uns caras estranhos, cabeça rapada, tatuagem... - ele diz que é "anjo do inferno"... Sei lá o que é... Mas ele disse assim, na minha cara: "Papai é otário... Veja o bispo Macedo... tem TV... milhões... tudo... Eu vou entrar para a igreja evangélica... Dá um granão...!" A única pessoa que tem dinheiro aqui é a tua filha... que, aliás, vive em baile funk... diz que é popozuda... não sei onde ela arranja tanta grana... (O padre cai chorando na poltrona esfarrapada com a mola aparecendo). - Deus do céu!... Isto é um inferno!... (soluçando) Ontem cheguei... e a empregada estava cantando uns pontos de macumba com a cozinha cheia de velas... Umbanda na casa do padre? E a vizinhança ouvindo: "Evém, evém, Oxossi atravessando as matas!" Tem cabimento? Despede ela já! - Eu? Despedir?... Nunca!... Empregada boa é difícil de achar... Depois, sei lá, roga aí uma praga... (Ele chora mais alto; ela se condói). - Meu querido... não quero te humilhar não... mas, você tem de ter ambição... Quer ver uma idéia boa? Vamos abrir uma lojinha de objetos sacros... reliquiazinhas... água benta... a gente compra as garrafinhas e você benze... você não pode benzer? Ai, que lindo... a gente ganhava um dinheirão... santinhos... gravuras... CDs de música... - Minha filha... eu não sou comerciante... - Ahh... imagina, querido... uma lojinha linda, cheia de velinhas e, na porta, o nome: "Presentes de Deus". Ou então... o nome em inglês, mais moderno: "God's Gifts"... ahh... Você subiria na carreira; já imaginou você bispo ou... oh, sonho louco!... você, cardeal... Nós dois em Roma... Você todo de vermelho... chiquérrimo... Nós, íntimos do papa?... - Silvaneide... ouve... ouve bem... eu tenho um segredo para te contar... Eu pensei muito, passei noites em claro e resolvi... - Resolveu o quê, vai me largar?... - Não, querida, ouve! (O pobre sacerdote começa a dançar, com os braços para cima e dando pulinhos pela sala). - Que é isso? Enlouqueceu? - Silvaneide... minha filha... bata palmas para Jesus!!! (chorando e rindo) Palmas para o Senhor, Silvaneide... Aleluia!! Estou aprendendo a dancinha do padre Marcelo Rossi!... Olha só... (O pároco-marido pulava e batia palmas, berrando) "Palmas para Jesus... ôôôô... palmas pro Senhor!" A Abigail, que você odeia, está me ensinando... olha só... (E pulava feito uma perereca do Senhor) Palmas para Jesus!!! E, então, d. Silvaneide, ex-pagodeira arrependida e ex-beata apaixonada, viu de novo o seu amor ali, pulando e cantando e agarrou-se feliz ao corpo do padre amado. - Meu amor!... este é meu homem! Vamos vencer! Já te vejo pulando diante de milhares de fiéis... vou fazer uma batina dourada pra você, com uma capa de roqueiro... Meu Rossi, meu Ozzy Osbourne, meu Xandi, meu Zeca Pagodinhho... Deus é mais!!! É , d. Paulo, talvez o celibato seja mesmo melhor que o casamento.

85. ARNALDO JABOR. PEDOFILIA NA IGREJA É CONSEQÜÊNCIA DO CELIBATO. No velho colégio de padres onde estudei, a entrada dos alunos já era um desfile de velada pedofilia. O padre reitor - ah... tempos antigos de batinas negras, rosários nas mãos, panos roxos nos ombros, tristeza infinita nas clausuras - postava-se imóvel, na porta do colégio, numa pose paternal e severa, com os braços erguidos e as mãos oferecidas para os alunos que chegavam. Passavam por ele duas filas de dezenas de meninos, beijando servilmente suas mãos abençoadas. Havia algo de veadagem naquilo, aquela negra batina imóvel, divina, como um manequim, as mãos beijadas com chilreios e devoção por mais de 500 meninos de calças curtas. Eu ainda me lembro do vago cheiro de sabonete e cuspe no dorso cabeludo da mão do padre. Centenas de meninos de pernas nuas eram pastoreados por tristes noviços e "irmãos leigos". Só se pensava em sexo naquele colégio. Eu via as mães dos alunos, lindas, com seus penteados e decotes imitando a Jane Russel ou Ava Gardner, fazendo charme para os padres na força de seus verdes anos, enlouquecidos pela castidade obrigatória. E eu me perguntava: "Meu Deus... por que padre não pode casar?" Lembro-me do tremor dos jovens padres, excitados pelas madames pintadíssimas, indo se trancar em negras clausuras, entregues ao "vício solitário", indo depois bater no peito e chorar sua culpa diante das imagens silenciosas. E esses mesmos padres nos diziam: "Cada vez que você se masturba, morrem milhões de pessoas que iam nascer. É um genocídio!" E nós, além do pecado, sofríamos a vergonha de ser pequenos "Hitlers" de banheiro. Eu pensava: "Por que tanta onda sobre nossos pobres pintinhos, por que essa energia que sinto em minha carne é feia, criminosa?" Vivíamos ajoelhados em confessionários, ouvindo envergonhados a voz e o hálito do triste sacerdote nos sentenciando a dezenas de Ave-Marias e Padre-Nossos. Tudo era sexo no colégio; essa palavra terrível estava em toda parte, como uma ameaça vermelha; o Diabo nos espreitava até detrás das estatuas de Santa Tereza em êxtase, nas coxas dos anjinhos nus, nos seios fervorosos das beatas acendendo velas. A pedofilia na Igreja é conseqüência direta do celibato. É óbvio que se a força máxima da vida é esmagada, a Igreja vira uma máquina de perversões. Claro. E de homossexualismo, visível em qualquer internato religioso. Outro dia, o Contardo Calligaris escreveu com precisão que a pedofilia não está só na carne do jovem assediado; a pedofilia é mais geral, abstrata, no prazer do domínio sobre os mais fracos, na pedagogia infantilizante das jovens "ovelhas" - como nos chamam os pastores de Deus - imoladas em sua inocência. Eu vi o Diabo naquele colégio: rostos angustiados, berros severos e excessivos nas aulas, castigos sádicos, perseguições a uns e carinhos protetores a outros. Eu mesmo fui assediado por um padre famoso (que muitos colegas meus da época se lembram) que era notório comedor de menininhos; ele fazia mágicas e teatrinhos, para ser popular entre os meninos e, um dia, tentou me beijar num canto da clausura. Criado na malandragem das ruas, fugi em pânico. E falei disso em confissão com outro padre, que mudou de assunto, como se fosse uma impressão minha, como se a pedofilia fosse uma prática necessária à manutenção do celibato, exatamente como os cardeais americanos estão fazendo hoje. O problema da Igreja com o sexo leva-a a uma compreensão quebrada da vida, leva-a a aceitar a Aids, a condenar o aborto, o controle social da natalidade e a outros erros maiores - superestruturas dessa falência originária, desse vazio fundamental. Lembro-me da descrição da eternidade no inferno, onde queimaríamos para sempre, sob o garfo dos Diabos, condenados por uma reles punhetinha: "Imaginem que o planeta seja um grande diamante, o metal mais duro do universo. De cem em cem anos, um passarinho vem voando e dá uma bicadinha na Terra. O dia em que toda a Terra for esfarinhada pelas bicadinhas, esse é a duração da eternidade." E eu sofria, me esvaindo nos banheiros, pensando naquele passarinho que bicava o mundo, enquanto eu acariciava o outro medroso passarinho se preparando para uma vida de traumas e medos. O prazer era um crime. A partir daí, tudo ficava poluído, manchado de culpa; a alegria virava falta de seriedade, a liberdade era um erro, as meninas eram seres inatingíveis com seus peitinhos e bundinhas. Até hoje, vivo dividido entre as santas e as "impuras"; quantas dores senti na vida pelo cultivo desses ensinamentos, que transformava as mulheres em perigos horrendos, Liliths demoníacas, tão ameaçadoras quanto o imenso desejo que tínhamos por elas. A mulher, como Eva, era a origem de todos os males. Delas saíam a vida e a morte, delas saía o prazer pecaminoso, o mal do mundo. Esta base criminal gera desde a burca até o strip-tease, numa antítese simétrica. Hoje piorou. O mundo virou uma incessante paisagem de bundas e seios nus, de pornografia na publicidade, que nos espreita no trânsito, nas ruas, na TV. Já imaginaram esses padres vendo a Feiticeira e a Tiazinha, de terço na mão, trancados em escuras celas, sob o voto de castidade? Essa é a minha idéia de inferno. Uma das grandes desvantagens da Igreja Católica diante de outras religiões é o celibato. Daí, em cascata, surgem problemas que justificam a queda do prestígio da Igreja na era do espetáculo e da desconstrução de certezas. Rabinos casam, pastores protestantes casam. Budistas "do it", xintoístas "do it", hindus "do it", mesmo muçulmanos "do it". "Let's do it", pobres padres trêmulos de desejo, no meu remoto passado jesuíta e no presente do sexo massificado.

86. ARNALDO JABOR. EU JÁ FUI O INIMIGO PÚBLICO NÚMERO 1. Vocês já foram o inimigo público um do país? Não? Eu já fui. Em 97, meu chefe sempre presente, Evandro Carlos de Andrade, pediu-me para comentar a festa do Oscar, ao vivo. Fi-lo. E quase fui linchado, como contarei adiante. Em minha pobre vida, tive a experiência de ser cineasta. Passei anos lendo os Cahiers du Cinéma e o Positif, no tempo do "cinema de autor" dos anos 60, época em que criticávamos a linguagem careta de Hollywood e as ciladas que se escondiam por trás dela. Para nós, o cinema americano era o supremo inimigo, agente do imperialismo, correio de mensagens colonizadoras sobre nossa mente, vendedor de produtos de sua indústria, narrador superficial dos movimentos da alma, propagandista do sonho americano, sonegador da verdade da existência pelo happy end obrigatório, maniqueísta do sim e não, do bem e do mal, do bad guy e do good guy. Passaram os anos... e eu continuo pensando a mesma coisa. Apenas relativizei o lado "maligno ideológico" deles. O que eles sempre quiseram é dinheiro, do nosso mercado interno, claro. O resto eram fantasmas da guerra fria. De modo que, quando o Evandro me chamou para comentar o Oscar, eu disse: "Vou esculhambar... hein." E ele: "Fale o que quiser." Podem perguntar a ele pelo e-mail interestelar. E lá fui eu comentar o Oscar, para todo o território nacional. Ao vivo. Trancados numa salinha da TV Globo, íamos comentando, Renato Machado, Rubens Ewald e eu. Nossos únicos espectadores visíveis eram os técnicos, os cameramen nos olhando. Comecei dizendo que achava o Robin Williams um canastrão de quinta. Os técnicos riam e faziam sinais de "positivo" com o polegar. Pensei: "Estou agradando, estou conscientizando o povo brasileiro sobre as mentiras da linguagem de Hollywood." Aí, fui me animando e resolvi tacar fogo na festa das estrelas. Sentia-me onipotente, desconstruindo a maciça propaganda americana, vingando Glauber contra o monstro ianque. Debochado, falei que o Titanic, que estava ganhando todos os prêmios, era um abacaxi, que o filme só merecia o Oscar de melhor engenharia naval, falei que o Leonardo DiCaprio era meio babaca e afrescalhado, que aquela menina do filme era gordinha e chata. Os negões da técnica rolavam pelo chão e eu nem percebia a sombra de preocupação nos olhos de Renato Machado. E fui em frente, cada vez mais ousado. Falei que o único filme que merecia algo era o Kundum, do Scorcese, filme chatérrimo, mas "de arte", falei que o James Cameron era ridículo quando berrou "I am the king of the world", em suma, me embalei na função "revolucionária" de salvar a mente dos brasileiros que estavam em casa, tomando cerveja, de bermudas, com os amigos, deliciados com a festa máxima do luxo yuppie no dourado pavilhão Dorothy Chandler, o Olimpo do sucesso universal invejado por todos, onde as estrelas cintilam, diante das bocas abertas de fascinados brasileiros. E critiquei tudo, o Billy Cristal, as piadas felizes de um povo rico, enquanto o Ewald me olhava com a condescendência sombria que dedicamos a bêbados arruaceiros. Acabou o programa e eu, herói, me ergui, feliz de minha tarefa "desalienante". Eu estava vingado daqueles que tomavam nosso mercado e não compravam nossos filmes. Foi quando começaram a chegar os e-mails para a Globo. O mais respeitoso começava com "Ao canalha Jabor..." Ainda assim, me sentia um Sansão atacado por filisteus feridos de morte. "Os inteligentes me saudarão", pensei. Mas os e-mails, telefonemas, faxes aumentavam, todos numa assustadora unanimidade crítica. "Amanhã serei elogiado nos jornais...", pensei, enquanto Ewald e Renato se enfiavam pelos corredores, pálidos. Ainda assim, fui para casa na madrugada com a agridoce sensação de ser um polêmico artista dividindo as opiniões do povo. No dia seguinte, oscilavam torres de e-mails na redação, vindos do País inteiro, dirigidos até a família Marinho, todos pedindo minha cabeça: "Despeçam o sem-vergonha, ponham esse rato no olho da rua!" "Como pode ele chamar o grande Robin Williams de canastrão?" Esse era meu supremo crime. Parecia que eu tinha dito que Cristo não era filho de Deus. Eu era o inimigo do povo, de Ibsen, eu era Al Capone, o Cara de Cavalo, eu era o Collor no impeachment. Nas ruas, transido de vergonha, me esgueirava por becos e esquinas. Os mais tímidos apenas me apontavam de longe. Um sujeito grandão se aproximou, me segurou pelo braço: "Cara, eu tenho cara de burro?" "Não...", balbuciei. "Então tu vai me explicar por que o Titanic é uma bosta..." Descobri aterrado que o "espectador brasileiro" não existia mais. Todos eram americanos. Corro para casa e vejo no computador que tinham aberto um site chamado: "Eu odeio o Jabor." Corri a amigos meus, minhas filhas, mas percebia que, sob as palavras de consolo, rolava uma vaga hipocrisia, jazia a concordância com a opinião geral. Eu me consolava pensando: "Essa depressão é boa para diminuir meu narcisismo... Bem-feito, seu mascarado!..." Até hoje, de vez em quando, alguém toca nessa ferida aberta. Por isso, jamais comentarei o Oscar. Direi apenas, do fundo de minha miséria, meus favoritos do Oscar. Eu vos escrevo do passado. Hoje é sabado e vocês estão me lendo na terca-feira, aí no futuro. Vamos ver se eu acertei. Melhor filme: Moulin Rouge, apesar do clima de clipe. Melhor ator: Sean Penn, perverso, rico, profundo. Melhor atriz: Judy Dench. Melhor diretor: David Lynch, por Muholland Drive. Será que acertei algo? Acho difícil. Afinal, eu não passo de um invejoso cineasta comuna dos anos 60, de um pobre país importador de imagens e exportador de aço, laranjas e sapatos sobretaxados nos Estados Unidos.

87. ARNALDO JABOR. GLAUBER: A ROCHA QUE VOA NUM LABIRINTO. Há 21 anos, Glauber Rocha nos deixou, no dia 22 de agosto. Eu nunca tinha visto alguém morrendo, nunca vira o momento misterioso da passagem. Em volta da cama de sua agonia, os amigos se agarravam como náufragos nas bordas de um barco que ia partir. Estávamos assustados, porque o Glauber era o pulmão por onde respirávamos, o coração que batia por nós e que agora fraquejava. Ele estava ali, ignorando-nos, concentrado não sei em que filme interior, em que roteiro para as estrelas. Parecia mesmo um astronauta, coberto de fios e tubos de respiração. Subitamente, Glauber se ergueu, como se fosse acordar, ressuscitar, como num milagre. Mas era a última convulsão e ele se aquietou e flutuou para longe. Vocês, jovens que me lêem, podem pensar: "Deixe de idealizações com esse tal de Glauber... Afinal de contas, todo mundo morre..." Mas, não é literatura; morria ali a mais rica síntese das idéias de uma época brasileira: melancolia com esperança, a romântica fome de salvar o País, unindo poesia e política. Esta semana surgem dois filmes sobre o nosso "profeta alado": o filme de Silvio Tendler, O Labirinto Glauber, e o documentário de seu filho, Eryk, A Rocha Que Voa. Neles se vê muito dessa fome de entendimento e salvação, que os garotos de hoje não têm mais, por sabedoria e... ignorância. "O sujeito que morre fica logo desinformado...", pensei, ao sair da Clínica Bambina, quando ele morreu e eu vi que o "incessante e vasto universo" continuava mudando, ali em Botafogo, menos o Glauber, coitado. Glauber, desinformado como todo morto, não soube da democratização de 85, não soube de Tancredo, nem de Sarney, nem de Collor, nem daquele que Glauber apelidara de "nosso Errol Flynn", FHC, "o príncipe da sociologia", com uma ponta de ironia. Glauber preferiu morrer, porque sacou que seu desejo de absoluto era impossível. Ele percebeu que não ia suportar o mercadinho em que nos vendemos, não ia suportar a mediocridade anunciada em suas antenas de profeta. "Ahh... loucura..." - dirão os analistas -, "ele tinha um narcisismo patológico, fazia uma idealização da revolução..." Tudo bem... mas ele conseguiu momentos em seus filmes em que a arte parece tocar o real na tela. Em Deus e Diabo e Terra em Transe ele conseguiu explicar o Brasil. Há o momento seminal de Terra em Transe, onde ele sintetiza as forças brasileiras que estão além da mera luta de classes, as oligarquias com sua cobiça e sua estupidez. Ali, no clímax da zona geral, o povo dança e canta entre ladrões, pelegos , demagogos, polícia, Igreja, bacharéis, prostitutas, todos num emaranhado barroco que culmina com o Jardel Filho tapando a boca de um sindicalista burro e falando para a tela: "Vocês já imaginaram o 'povo' no poder?" Foi a maior porrada na sociologia simplista dos derrotados de 64, o que lhe valeu o ódio eterno daqueles que vêem os pobres como uma divindade intocável e não como destituídos e manipulados. Daquela seqüência, saíram o teatro de Zé Celso e o tropicalismo, se bem que Caetano já era um prenúncio pós-moderno e Glauber, o último dos torturados "modernistas". Naquela seqüência de Terra em Transe, estava o País de hoje, nessa suja orgia pré-eleitoral. Seus filmes trouxeram a idéia da complexidade contra os dualismos fáceis. Ele não era o guerreiro radical que pensam hoje. Ele trouxe a sobredeterminação, a dúvida para as certezas fáceis, o choque dos contrários. Quem fez isso antes? Ele foi o primeiro a apontar as razões da derrota em 64, ele foi o primeiro a falar em alianças, e teve a coragem de tentar (oh, ingênuo patriota...) cooptar o poder militar para um projeto nacional. Desesperado com a burrice das esquerdas, paralisadas por dogmas, tentou o saudável sacrilégio de imaginar uma adesão de militares para a abertura que vinha com Geisel, para além de qualquer vitimização rancorosa e masoquista. As patrulhas só faltaram empalá-lo como 'reacionário', 'adesista', logo ele, que buscava uma saída qualquer para a ditadura e o subdesenvolvimento. O que morreu com o Glauber? É difícil explicar para os jovens do mercado. Antes, lutávamos contra uma realidade complexa (que subestimávamos), sonhando com uma solução utópica e totalizante. Era o 'uno' contra o 'múltiplo'. Hoje, é o contrário; esboça-se entre neo-revolucionários uma luta que é diversificante, contra o totalitarismo das corporações capitalistas. Hoje, a luta é para dissolver, não para unir. Agora, os novos combatentes não sonham com o absoluto; sonham com o relativo. São defensores do vazio, da ecologia, da cultura não-descartável, do inútil, do que não é 'mercável'. Eles lutam contra inimigos sem rosto: a eficiência corporativa, a abolição do humano pela máquina (a máquina como o homem produtivo perfeito). Hoje, o inimigo principal não é mais a 'burguesia' gorda e fumando charuto; o inimigo é um método empresarial. Antes, as esquerdas pensavam em unidade. Hoje, o capitalismo corporativo é que almeja uma 'unidade'. Glauber não desejava uma revolução simpática, para dar comidinha aos pobres. Ele queria um terremoto épico, cheio de som e fúria, com explosões de tragédias e apoteoses, ele queria uma revolução que esmagasse a mediocridade, uma celebração do impossível e não a prudente organização social apenas. Hoje, o Brasil está parecidíssimo com Terra em Transe. Glauber era uma espécie de Rimbaud, buscava uma felicidade social imensa, queria, como ele, "olhar o céu e ver praias infinitas cobertas de brancas nações em júbilo!". Por isso, não havia lugar para ele no mundo. O protagonista de Terra em Transe diz: "A poesia e a política são demais para um homem só." Mas, mesmo sabendo disso, Glauber tentou até o fim. E morreu disso.

88. ARNALDO JABOR. GOLPISTAS QUEREM PROVAR QUE DEMOCRACIA É IMPOSSÍVEL. Diante do golpismo descarado que assola o país, eu te digo: se o projeto de reformas administrativas e técnicas que este governo tentou implantar não se concluir, se a sabotagem chamada "oposição" conseguir reverter a busca de um mínimo de racionalidade econômica, dentro de algum tempo, estaremos à beira de uma ruptura institucional, com a destruição dos fundamentos da economia e a volta da velha zona geral brasileira. Em psicanálise, sabe-se que a dificuldade de curar um neurótico é que ele "deseja" o mal que o aflige. Estamos assistindo a um caso de brutal "resistência" ao projeto do governo FHC, que quis fazer uma revolução possível nas estruturas absurdas do Estado brasileiro. O ódio vai mais além de FH. Odeiam a agenda que ele pretendeu e que, talvez, morra na praia. O precário imaginário político brasileiro, a soma de seus cacoetes, ilusões, preconceitos, esse imaginário feito de restos de getulismo, de um udenismo-leninista em coalizão com o fisiologismo das oligarquias, esse ensopadinho ideológico está deflagrado num vale-tudo contra a mudança de um país patrimonialista em um país mais moderno. É contra isso, contra seu programa, e não apenas contra o presidente, que se insurge o golpismo atual, com a opinião pública manipulada pelos líderes e a mídia espetaculosa. O símbolo dessa reação é ACM, que chega a ter a importância sociológica de ser a síntese viva da resistência patrimonialista. ACM comanda há meses (com sucesso) a transformação do país numa "chacrinha". Há meses, estamos paralisados, assistindo às diabruras desse delinquente tardio. E ele expressa com clareza o que desejam os seus seguidores: permanência do coronelismo, provocação à democracia, cooptação da ignorância do povo contra qualquer racionalidade reformista. É incrível, mas ele disse, há pouco, literalmente: "Esperem para ver o que vou fazer com esse país...". E, mesmo assim, é visível nas entrelinhas que vários jornalistas têm uma fascinação secreta pelo seu autoritarismo machista. O que eu acho assustador é que ninguém se toca para a delicadeza do momento histórico que vivemos. Ninguém pensa no fio de navalha econômica em que andamos, entre crises nossas e dos outros, como Argentina, Alca, Turquia... Falam de politica como se cuidássemos da substituição de um gabinete por outro, como se estivéssemos na Suécia. O grave é que os fundamentos de nossa economia é que estão em jogo. A desinformação popular, alimentada pelos golpistas, acha que o problema do governo é a "corrupção", existente há 400 anos e que só a democracia fez aparecer. Dizem que nosso problema é "moral", tudo "culpa do FHC", esquecendo-se do Congresso, do Judiciário e das burocracias. Fazem o alarmismo de bobagens, só apontam detalhes "micro" para impedir qualquer mudança "macro". O vexame simplista da menina presidente da Ubes, mostrando a bunda (provavelmente posará para "Playboy"), é emblemática: "Mostrei a bunda para mandar o governo para o espaço". A oposição está conseguindo isto: caçar o FHC, concentrar tudo nele, para esconder que o alvo é seu projeto. Entrementes, o cartola paulista e ex-secretário de Justiça do Quércia (!), este Approbato da OAB, usa o protocolo para insultar um homem decente, para aparecer e também porque os advogados estão irritados com as MPs, pois elas prejudicam os gordos honorários das desapropriações contra o Tesouro. Enquanto isso, o "Jeca Tatu" fascistóide Itamar avisa que vai pedir moratória de novo, para inviabilizar a economia; enquanto isso, o PT, numa "bandeira" explícita, mostra seu desejo e programa no horrendo filmete "ratos roendo o Brasil"; enquanto isso, os acadêmicos ressentidos vão saindo da toca para babujar truísmos sobre "neoliberalismo e correlação de forças", e um professor como Francisco de Oliveira, de pijama em casa, acusa José Serra de ser ligado a "esquemas internacionais", ele, que acaba de vencer batalha na ONU sobre o poder americano dos remédios, reconhecido como vitória pelos jornais do mundo todo. E, extraordinário: sabota-se durante anos o governo, infernizando-o com provocações sem fim, para fazer soçobrar qualquer tentativa de racionalidade e, quando o governo começa a soçobrar, acusam-no de "soçobrar"... Eu achava que o período Collor nos teria ilustrado para a necessidade de reformar estruturas que estimulam o caos, a loucura de um Estado falido e ineficiente. Não. Compreendem-no apenas como uma vitoria da "moralidade". As forças da "frente única oligarquias-ideologias" estão lutando para reconstruir o mesmo Brasil que permitiu o surgimento de Collor, que permitiu a anomia flácida com inflação de 80% ao mês do governo Sarney e, antes, o golpe de 64. Querem a volta do Brasil iludido, sem projeto, porque atraso e zona dão lucros ideológicos e fisiológicos. E melhor para roubar o Estado e propagar utopias ridículas. Há no golpismo instalado mais do que o ódio a FHC. Há o desejo de provar que a democracia é impossível aqui. Repito o que disse no início: se não houver adequação do Brasil à realidade econômica mundial, se a racionalidade que este governo tentou for substituída por um nacionalismo jeca ou pela burrice ideológica das oposições sem programa, em pouco tempo teremos a quebra do país e a volta de um autoritarismo de direita, como foi em 64. E, como ninguém segura a força da economia mundial, veremos que, fragilizados, falidos, nossa possível adaptação crítica ao mundo globalizado será substituída por uma dependência imposta, uma satelitização do país ao capital dominante e aí, sim, aí veremos (oh, babacas do meu Brasil!) o que é o neoliberalismo selvagem e a desconstrução de uma nação.

89. ARNALDO JABOR. O AMOR ATRAPALHA O SEXO. Sábado, fui andar na praia em busca de inspiração para meu artigo de jornal. Encontro duas amigas no calçadão do Leblon. "Teu artigo sobre amor deu o maior auê..." - me diz uma delas. "Aquele das mulheres raspadinhas também... Aliás, que que você tem contra as mulheres que 'barbeiam' as partes?" - questiona a outra. "Nada... - respondo - acho lindo, mas não consigo deixar de ver ali nas 'partes' dessas moças um bigodinho sexy... não consigo evitar... Penso no bigodinho do Hitler, do Sarney - lembram um sarneyzinho vertical nas mmodelos nuas... Por isso, acho que vou escrever ainda sobre sexo..." Uma delas (solteira e lírica) me diz: "Sexo e amor são a mesma coisa..." A outra (casada e prática) retruca: "Não são a mesma coisa não..." "Sim, não, sim, não" - nasceu a doce polêmica ali à beira-maar. Continuei meu cooper e deixei as duas lindas discutindo e bebendo água-de-coco. E resolvi escrever sobre essa antiga dualidade: sexo e amor. Comecei perguntando a amigos e amigas sua opinião. Ninguém sabe direito. As duas categorias se trepam, tendendo ou para a hipocrisia ou para o cinismo; ninguém sabe onde a galinha e onde o ovo. Percebo que os mais "sutis" defendem o amor, como algo "superior". Para os mais práticos, sexo é a única coisa concreta. Assim sendo, meto aqui minhas próprias colheres nesta sopa. O amor tem jardim, cerca, projeto. O sexo invade tudo. Sexo é contra a lei, no fundo de tudo. O amor depende de nosso desejo, é uma construção que criamos. Sexo não depende de nosso desejo; nosso desejo é que é tomado por ele. Ninguém se masturba por amor. Ninguém sofre sem tesão. O sexo é um desejo de apaziguar o amor. O amor é uma espécie de gratidão à posteriori pelos prazeres do sexo. O amor vem depois. O sexo vem antes. No amor, perdemos a cabeça, deliberadamente. No sexo, a cabeça nos perde. O amor precisa do pensamento. No sexo, o pensamento atrapalha; só as fantasias ajudam. O amor sonha com uma grande redenção. O sexo só pensa em proibições; não há fantasias permitidas. O amor é um desejo de atingir a plenitude. Sexo é o desejo de se satisfazer com a finitude. O amor vive da impossibilidade sempre deslizante para a frente. O sexo é um desejo de acabar com a impossibilidade. O amor pode atrapalhar o sexo. Já o contrário não acontece. Existe amor com sexo, claro, mas nunca gozam juntos. Amor é propriedade. Sexo é posse. Amor é a lei; sexo é invasão de domicílio. Amor é o sonho por um romântico latifúndio; já o sexo é o MST. O amor é mais narcisista, mesmo quando fala em "doação". Sexo é mais democrático, mesmo vivendo no egoísmo. Amor e sexo são como a palavra farmakon em grego: remédio ou veneno. Amor pode ser veneno ou remédio. Sexo também - tudo dependendo das posições adotadas. Amor é um texto. Sexo é um esporte. Amor não exige a presença do "outro"; o sexo, no mínimo, precisa de uma "mãozinha". Certos amores nem precisam de parceiro; florescem até mais sozinhos, na solidão e na loucura. Sexo, não - é mais realista. Nesse sentido, amor é uma busca de ilusão. Sexo é uma bruta vontade de verdade. Amor muitas vezes é uma masturbação. Sexo, não. O amor vem de dentro, o sexo vem de fora, o amor vem de nós. O sexo vem dos outros. Não somos vítimas do amor; só do sexo. "O sexo é uma selva de epilépticos" (Nelson Rodrigues) ou "o amor, se não for eterno, não era amor" (NR). O amor inventou a alma, a eternidade, a linguagem, a moral. O sexo inventou a moral também do lado de fora de sua jaula, onde ele ruge. O amor tem algo de ridículo, de patético, principalmente nas grandes paixões. O sexo é mais quieto, como um caubói - quando acaba a valentia, ele vem e come. Eles dizem: "Faça amor, não faça a guerra." Sexo quer guerra. O ódio mata o amor, mas o ódio pode acender o sexo. Amor é egoísta; sexo é altruísta. O amor quer superar a morte. No sexo, a morte está ali, nas bocas... O amor fala muito. O sexo grita, geme, ruge, mas não se explica. O sexo sempre existiu - das cavernas do paraíso até as saunas relax for men. Por outro lado, o amor foi inventado pelos poetas provençais do século 12 e, depois, revitalizado pelo cinema americano da direita cristã. Amor é literatura. Sexo é cinema. Amor é prosa; sexo é poesia. Amor é mulher; sexo é homem - o casamento perfeito é do travesti consigo mesmo. O amor domado protege a produção, sexo selvagem é uma ameaça ao bom funcionamento do mercado. Por isso, a única maneira de controlá-lo é programá-lo, como faz a indústria das sacanagens. O mercado programa nossas fantasias. Não há "saunas relax" para o amor, onde o sujeito entre e se apaixone. No entanto, em todo bordel, finge-se um "amorzinho" para iniciar. O amor está virando um hors-d'oeuvre para o sexo. O problema do amor é que dura muito, já o sexo dura pouco. Amor busca uma certa "grandeza". O sexo sonha com as partes baixas. O perigo do sexo é que você pode se apaixonar. O perigo do amor é virar amizade. Com camisinha, há "sexo seguro", mas não há camisinha para o amor. O amor sonha com a pureza. Sexo precisa do pecado. Amor é a lei. Sexo é a transgressão. Amor é o sonho dos solteiros. Sexo o sonho dos casados. A (O) amante sacia nossa fome de verdade, mata nossa nostalgia da animalidade. Sexo precisa da novidade, da surpresa. O grande amor só se sente no ciúme (Proust). O grande sexo sente-se como uma tomada de poder. Amor é de direita. Sexo de esquerda (ou não, dependendo do momento político. Atualmente, sexo é de direita. Nos anos 60, era o contrário. Sexo era revolucionário e o amor era careta). E, por aí, vamos. Sexo e amor tentam mesmo é nos afastar da morte. Ou não; sei lá... e-mails de quem souber para a redação.

90. ARNALDO JABOR. OS CANIBAIS QUEREM SER RICOS E COMER BEM. Não agüentei e fui ver o filme Dragão Vermelho, com o meu querido canibal Anthony Hopkins. O filme é ruim, claro, bem pior que o ótimo Silêncio dos Inocentes. Mas o Hannibal Lecter é um ponto luminoso da moderna galeria de personagens; não só pela idéia de um canibal civilizado mas com o valor agregado pela personalidade de Hopkins, que conhece a milimétrica arte de parodiar a sofisticada frieza dos atores ingleses, da sinistra gentileza, do inquietante aristocratismo do mal. Fui ver o filme também porque sinto no ar uma moda de psicopatia, na onda de criminosos que está rolando no Brasil. E não falo dos crimes sujos, "explicados" pela miséria e ignorância; falo dos crimes "limpos", como os de Suzane e de Vilma ou dos rapazes que alegremente assassinaram o garçom ou dos outros que mataram o pataxó, ou dos cruéis Avelinos ou de tantos outros. O que nos fascina no Hannibal é o que nos exaspera em Suzane ou na Vilma do Pedrinho. Nos dois casos, o crime é praticado sem resquícios de sentimento de culpa, planejado com carinho e não conseguimos entender como agiram sem sofrer. Suzane não está chorando pela mãe e pai; está chorando por si mesma, chorando pela vida infernal que terá. Vilma, pelo que mostra a polícia, organizou uma família como se fosse ao supermercado, pegando bebês na prateleira, para conquistar um marido. Todos não hesitam em matar ou roubar para viver bem, conquistar filhos, maridos ou heranças. Os canibais querem viver bem. No Brasil, os psicopatas estão na moda, está na moda a gélida contemplação da morte, ignorando-se totalmente a existência do "outro". Por isso, Hannibal Lecter é uma rica metáfora da ética fria que se instala no mundo. Hopkins criou uma figura que nos fascina como poucas no imaginário neste século 21 que alvorece. Hannibal é inteligentíssimo, ninguém comete crimes com mais finesse que ele. Hannibal busca quase uma forma de arte, praticada com maestria na devoração e no assassinato. Diante de Hannibal, todos nos sentimos antigos, caretas. Ele tem algo de Sade, de sua perversão iluminista, a geometria da crueldade, o rigor estético com o mal. Há, como em Sade, o desejo de refutar a moralidade tradicional, de ir além do permitido, de provar a hipocrisia do bem. Os filmes violentos são em geral hipócritas na sua defesa do bem. Os brutamontes que lutam pela nossa moralidade, como Van Damme e outros, são hipócritas, pois seus filmes são oportunistas que, a pretexto de denunciar o mal, propagam-no com sangue jorrando, com o prazer americano pela violência, mas que, em geral, acaba em happy end moralizante. E o mal denunciado pelo bem acaba gerando milhões nas bilheterias do mundo. Hannibal ama o mal e, de certa forma, nos denuncia no escurinho do cinema, onde temos a rara oportunidade de torcer pela vitória do perverso. Há até mesmo um "reformismo" moral na crueldade de Hannibal. Hoje, não temos mais medo de fantasmas e múmias, nem o pavor fascinado pelos vampiros góticos, personagens do romantismo. O vampiro era uma homenagem ao amor sublime, a uma sexualidade agônica, quando os escravos da paixão ansiavam pelo êxtase da dentada no pescoço. Com Hannibal não há a nostalgia triste dos vampiros. Hannibal quer exterminar os medíocres e, espantosamente, sonha com um mundo belo. Ele despreza suas vítimas, em geral idiotas e sicofantas, mas Hannibal sempre corre o perigo de se apaixonar por alguém, que ele poupa por uma estranha "piedade" culta. A leve carícia que ele fez atrás das grades, na mão de Jodie Foster, no Silêncio dos Inocentes, é um brevíssimo e belo gesto de amor. Hannibal é terrivelmente contemporâneo; ele é como um prenúncio do homem que virá no século 21, como uma fresh mutation, a mutação de uma moralidade feita de impiedade e pragmatismo. Ele nos acena com um terrível futuro primitivo, que nos dá medo e desejo pela volta de uma animalidade perdida. É como se ele dissesse: "Nenhum saber, nenhuma ética, nenhuma religião vai apagar o animal feroz que há em nós. A humanidade é um caso perdido e eu sou a prova disso. E isso nos dá um alívio cínico." Estamos cada vez mais sozinhos, como Hannibal. Somos cada vez mais pequenos canibaizinhos light, na corrida desumana de devorar concorrentes e de consumir sem parar. O canibalismo social está por baixo de nossos desejos. Queremos amar sozinhos, vencer sozinhos, devorar o mundo como devoramos sushis em balcões yuppies, queremos nos apropriar da vida ferozmente, sem competidores. Quando falamos em "comer" mulheres ou homens, sonhamos com uma sexualidade canibal livre dos problemas do amor. Homens e mulheres só valem por seus corpos e não mais por seus sentimentos e ficam se oferecendo completamente nus como pedaços de comida em prateleiras. Cada vez somos mais como ele, no darwinismo social que se instala. Para sobreviver, precisamos "não ver" o sofrimento dos outros, a injustiça e a desigualdade. Queremos ser tocados pela graça da impiedade. Daí, o fascínio do assassino que Hopkins inventou. Nada mais atraente que a psicopatia elegante. Todos queremos ser como Hannibal, tocados pela graça da frieza, longe de uma arcaica compaixão. O que nos fascina no personagem de Hopkins é que ele parece estar mais além de uma moral antiga e que ele contempla, do outro lado do Bem, uma nova realidade. Hannibal parece saber mais do que nós, que ainda vivemos mergulhados em dúvidas morais e culpas. O canibal e doutor Hannibal Lecter nos olham do futuro. Os crimes frios são o prenúncio dos futuros extermínios de massa. Que estão a caminho.

91. ARNALDO JABOR. O APAGÃO PODERÁ NOS TRAZER ALGUMA LUZ. Nossa ilusão de Primeiro Mundo nos caiu por terra. Não tivemos guerra, não tivemos revolução, mas teremos o apagão. O apagão vai ser uma porrada na nossa auto-estima, mas terá suas vantagens. Com o apagão, ficaremos mais humildes, como os humildes. A grande onda narcisista da democracia liberal ficará mais cabreira, as gargalhadas das colunas sociais ficarão menos luminosas, nossas dentaduras menos brancas, nossos flashes menos gloriosos. Baixará o astral das estrelas globais, dos grandes comedores, as bundas ficarão mais tímidas, os peitos de silicone menos arrebitados, ficaremos menos arrogantes dentro da escuridão que se abaterá em nossas vidas de classe média. Há algo de castigo de Deus nesta porra toda, pois ficaremos mais parecidos com as periferias, para quem sempre houve o apagão de vidas e sonhos, haverá algo de becos escuros, de becos sem saída, de favelas tristes, haverá um baque em nosso egoísmo, nossas peruas e nossos cafajestes terão de maneirar um pouco. A euforia de Primeiro Mundo falsificado cairá por terra e dará lugar a uma belíssima e genuína infelicidade. O Brasil se lembrará do passado agropastoril que teve e que, escondidamente, ainda tem; teremos saudades do matão, do luar do sertão, da Rádio Nacional, do acendedor e lampiões de rua, dos candeeiros, das lâmpadas de carbureto dos carrinhos de pipoca, lembraremos das tristes noites dos anos 40, como das noites dos blackouts da Segunda Guerra, mesmo sem os submarinos, sem os navios alemães, apenas sinistros assaltantes nas esquinas apagadas. O apagão nos lembrará dos velhos carnavais: 'tomará que chova três dias sem parar' ou: 'Rio, cidade que nos seduz, de dia falta água, de noite falta luz!' Lembraremos dos velhos discos de 78 RPM, dos cantores com som precário, das TV's preto e branco, de um Brasil mais micha, mais pobre, cambaio, troncho, mas bem mais brasileiro em seu caminho da roça, que o Golpe de 64 interrompeu, que esta mania prostituída de Primeiro Mundo matou a tapa. Há algo de maldição nisso tudo, castigo pela destruição de Sete Quedas, o preço a pagar pelos demônios ecológicos de Itaipu, de Tucuruí, do tal "Brasil-Potência", das grandes hidrelétricas arcaicas já na época que se sabia da melhor utilidade das pequenas usinas e de outras fontes de energia. Lembraremos de Geisel, de Médici, dos milicos que nos marcam a vida até hoje, nos entregando uma democracia de caixa quebrada, nos lembraremos também dos canalhas que pilharam o Tesouro, com sua fome de 20 anos, dos corruptos, das instituições vagabundas que nos ajudaram a falir, nos obrigando a um ajuste fiscal desumano, nos obrigando a uma governança miserável, sem desenvolvimento, sem projeto, limitada a arrumar as contas da falência. O apagão nos mostra que somos subdesenvolvidos sim, que toda esta superestrutura de delírios modernizantes está em cimade pés de barro. O apagão é um upgrade nas periferias, nos "bondes do Tigrão", no mundo funk, nos lembrando da escuridão física e mental em que eles vivem, do lado de fora de nossas cercas e avenidas iluminadas. O apagão nos fará mais pensativos, mais metafísicos, mais conscientes de nossa pequenez no mundo. Não temos terremotos e vulcão, mas temos o apagão. Seremos mais poéticos, olharemos as noites estreladas e pensaremos: "a solidão dos espaços infinitos nos apavora", como disse Pascal ou ainda, se mais líricos, recitaremos Victor Hugo: "a hidra-universo torce seu corpo cravejado de estrelas..." O apagão nos fará pensar em Deus; não este "deus" das classes médias, da missa de domingo, sempre pedindo amor, saúde e dinheiro, nem do "deus" das universais dos 10% para os bispos da TV, mas o Deus-natureza que tem uma vida própria, um ritmo seu, o Deus-universo que despreza nosso progresso dependente. O apagão nos dará medo de um grande flagelo que poderá nos fazer migrar das grandes cidades, deixando para trás as avenidas paulistas secas e mortas. O apagão nos fará entender a vida dos flagelados do Nordeste, que sempre olharam o nosso lindo céu de anil como uma ameaça. O apagão nos fará contemplar o azul sem nuvens, pois aprendemos o que a natureza é quando não obedecida e respeitada. O apagão nos fará mais parcimoniosos, mais respeitosos, mais públicos, e acreditaremos menos nos arroubos de auto-suficiência. O apagão vai dividir nossas vidas de novo, em dia e noite. As noites e os dias serão nítidos, sem esta orgia de luzes que a modernidade celebra para nos fascinar como diamantes sobre o pano negro de sujeira, que nos fazem esquecer as cidades que, de perto, são feias e injustas. Vai diminuir a féerie do capitalismo enganador. Vamos dormir melhor com o apagão, talvez amemos mais a verdade dos dias e menos a mentira das noites. Acabará a ilusão de clubbers e plyaboys que terão medo dos "manos" em cruzamentos negros e talvez o amor fique mais recolhido, mais sussurrado, mais trêmulo e desamparado. Talvez o sexo se revalorize como prazer calmo e doce, talvez fique menos rebolante e varaz. Talvez aumente a população, com a diminuição das diversões eletrônicas noturnas. O apagão nos fará mais inseguros na rua mas, talvez, mais amigos dos lares e bares. Estaremos de volta a nossa Idade da Pedra, aos fundos de caverna onde nós, macacos, nos protegíamos, mais solidários, com pavor das grandes feras. Finalmente, o apagão nos fará masi perplexos, pois descobrimos que o Brasil é mais absurdo que pensávamos, pois nunca entenderemos como, com três agências cuidando da energia, o governo foi pego de surpresa por essas trevas tão longamente anunciadas. Só nos resta o consolo de saber que, no fim, o apagão vai nos trazer alguma luz sobre quem somos.

92. ARNALDO JABOR. O DIA EM QUE O RIO DE JANEIRO SE SUICIDOU. Agora, o mal já está feito. O Estado do Rio elegeu Rosinha para o governo, Sérgio Cabral e Mário Crivelllo para o Senado e na Assembléia Estadual pulularão os mesmos micróbios populistas e corruptos de sempre. Não adianta chorar pelo chopinho derramado, como fazem sempre os cariocas. Seremos governados por um casal "peronista" tardio, misturado a um Jesus político, enquanto em Brasília o neochaguismo nos representará no Senado. Assistiremos agora, reclamando do destino, à destruição do Rio. Por que esse tradicional "dedo podre" dos cariocas para o voto? Lembrem da lista de nossos governadores dos últimos 30 anos. Como explicar isso, se somos os "malandros", os bons de cintura, os "bambas do samba"? Por que, em São Paulo, o Maluf foi expelido, Quércia também, por que Íris Resende, Collor, Newtão, Gilberto Mestrinho, Augusto Farias e tantos outros foram jogados para correr e o Rio ficou com o atraso? Por que a elite pensante do Rio, os cientistas políticos que vivem com o olho grudado no Bobbio ou no Bourdieu não viram nada? Ninguém acionou o alarme? Acho que o Rio é uma "cidade partida" sim, também na consciência política. No mundo da periferia, o carioca vive mergulhado na ignorância e na pobreza. Coitados - como vão entender os demagogos que lhes dão esperanças, como vão saber dos fariseus? Como? Mas, a outra parte é a dos "inocentes do Leblon", dos garotos de Ipanema. Esses é que permitiram a "resistível ascensão de Rosinha", somados ao grande rebanho de uma classe média de gravata que vive clamando por um vago udenismo, trêmula de medo e de insegurança, com ideologias ralas que não vão além de "o governo é culpado" ou "tudo isso aí é uma vergonha..." Ninguém sabe nada de política que se resume aqui, no "sal céu sul", num vago Fla x Flu de botequim. Deve ser a velha tradição cartorial, de funcionários públicos da velha capital da República, onde a política se traçava nos balcões mercantilistas, nos interesses dos negreiros e cafeicultores, na simbiose patrimonialista dos donos do poder, criando esse desalento, esse desinteresse pela luta política, porque o clientelismo a tornava inglória. Ficou esse cacoete da República Velha, uma estirpe de burocratas oportunistas enrolando os cidadãos, ficou a visão de que política é atividade "deles", dos poderosos do "café com leite". Foi-se a capital da República e só ficou a pose de um antigo poder que se esvaiu, sem base concreta. A política como oposição de interesses em luta, como defesa social, não atrai a população. Os grandes gestos abstratos sim, as bandeiras utópicas, passeatas heróicas, tudo bem, isso fazemos, mas sempre a posteriori, depois das causas perdidas. No Rio, também, o capitalismo é ralo; não tem a seriedade produtiva e voraz de São Paulo, que gerou inclusive o PT, no seio das fábricas do ABC. Onde o nosso ABC? A resistência a Rosinha surgiu num botequim, o Bracarense (com bom chope e empadinhas, sem dúvida), num movimento tardio. Aí, não adiantava mais. Fazemos política de botequim, o que me lembra a frase de Oswald, que parafraseio por ser apropriada para nós: "No Rio, o contrário da burguesia é a boemia; em São Paulo, é o proletariado." Fomos a pátria da esquerda festiva, do intelectual de bar, dos assinantes de manifestos inúteis. Estamos sempre prontos para marchas pela paz, todos de branco, gritando "Viva Rio!", apelando para quem? Para Deus? Para Iemanjá? Quem? Para a cordialidade dos criminosos? Assim como temos uma visão idílica da cidade, temos uma visão pejorativa da política - "coisa do povo". Os homens espertos como Garotinho e, antes dele, como Chagas Freitas, vão se banhar nesse piscinão de votos desesperados das periferias. A desatenção do carioca com a política real é tanta que somos pegos de surpresa em golpes como fomos em 64, comemorando a "vitória" do socialismo meia hora antes da chegada dos tanques de direita de Minas. Aí, choramos. A facilidade com que a Rosinha foi eleita é igual à facilidade com que um boato fechou a cidade. De repente, nos descobrimos desamparados, medrosos, desunidos por um boato. O fato político surge como um acidente, um susto na paisagem. E, agora, estamos diante de um projeto de desconstrução da cidade, com a porta aberta para a entrada de um neopopulismo sórdido, que pode desestabilizar o resto do País no futuro. É inacreditável que os intelectuais, acadêmicos, artistas e formadores de opinião, preocupados apenas em manter limpas suas consciências ideológicas, tenham se esquecido de combater essa terceira via terrível do populismo carioca, essa grave anormalidade sociológica que nos acometeu. Esqueceram-se de ajudar a Benedita, essa mulher corajosa que fez as únicas ações eficazes contra o tráfico. A desconhecida Solange (que o PSDB apoiou de afogadilho para o Serra ter palanque) e o pálido Jorge Roberto se ocuparam em atacá-la, deixando o cabelo chapinha de Rosinha intocado. Agora, chegou a hora do lamento, dos porres pessimistas: "O Rio não tem mais jeito... Ahhh... Vamos beber!" Sempre vemos as tragédias "depois" , como só agora descobrimos as favelas, que eram "líricas" e esquecidas no passado, ao som do samba, sem armas. Agora, elas têm emprego: a cocaína. Tarde demais, doces malandros otários. A paisagem nos aliena, a praia nos aliena, a beleza cultural nos aliena. Nós nos achamos "acima" do País, donos de uma ginga superior. Só pensamos em polícia, nunca em política. E o tráfico é um caso de política. Beira-Mar sabe bem disso. Quem precisa de educação política não são os populares pobres que elegeram o neopopulismo; são os privilegiados da zona sul que nada fizeram para impedi-lo. Os alienados somos nós, gente boa...

93. ARNALDO JABOR. OSAMA DIZ: MANDEI O BUSH DESTRUIR O OCIDENTE. Meus queridos irmãos: aqui, reunidos nessa caverna, podemos conversar em paz, em nome de Alá, que nos deu a felicidade de travar essa guerra santa contra os cães infiéis do mundo todo. Estamos no caminho certo, queridos irmãos, pois Alá me deu a luz de uma grande idéia: lancei os aviões americanos contra a própria América e agora estou lançando o Bush para destruir o Ocidente. Alá seja louvado, pois o Bush está fazendo tudo que eu quero, de certo modo ele me obedece, pois, com a ajuda de Alá, ele segue direitinho o meu script, minha ordens. Obcecado por se vingar de mim, ele está, na verdade, hipnotizado por meus desejos. Bush é meu escravo. É meu homem-bomba. Ele vai atacar o Iraque e lançar o caos no mundo todo, abrindo as portas do inferno na Ásia e depois na Europa. Irmãos: com a ajuda de Alá, eu consegui jogar a nação mais poderosa do mundo, com 400 bilhões de dólares em armas, contra o nada. Eles vão atacar o vazio, assim como venceram "nada" no Afeganistão, pois nossos irmãos talebans estão em toda parte, se reorganizando e nós, felizes e seguros, estamos planejando novos ataques em nossas caverninhas com ar condicionado. De que vale tanto poder bélico contra nossos mártires? Se quisermos, nem precisamos nos aporrinhar em atacar de novo os USA. Basta nosso silêncio assustador. Eles não terão mais sossego. O silêncio será sinônimo de perigo. Por isso, não adianta atacar o Iraque. Digamos que ele mate Sadam. Novos Sadams e milhões de novos combatentes vão surgir no Oriente Médio, fortalecidos. Nunca uma nação humana será tão odiada como a América. Bush vai trazer o caos ao mundo. E não seremos nós os atingidos. Bush vai desorganizar todas as conquistas iluministas do Ocidente, do século 18 para cá: razão, tolerância, democracia. Bush vai apagar os últimos vestígios dos princípios democráticos que orientaram seus "pais fundadores". Bush está entregando o país para a indústria da guerra, que nunca faturou tanto como agora. Exatamente como eu quero, irmãos. A América é uma máquina desejante de guerra. Eu só fiz acirrar esse desejo. Há milhões de armas que "desejam" ser usadas. As bombas desejam explodir. Suas armas não foram feitas para serem usadas na guerra; eles farão uma guerra para usar as armas. Todas as finuras da transcendência, da beleza, do multilateralismo europeu, da "globalização democrática" que eles trombetearam pelo mundo, serão destruídas. Bush vai arrasar com a esperança da Europa que, depois de um século de brutalidades, de duas guerras mundiais, está no caminho de uma solução pacífica de convivência, de uma paz feita de comércio, diplomacia e tolerância. Os americanos sempre odiaram os europeus afrescalhados, que falam em coisas profundas, humanistas, metidos a "superiores". Fingiam que tinham ideais iguais à Europa, mas nada... América e Europa não têm nada em comum. A América republicana acha que esse papo de multiculturalismo é coisa de fracos, irmãos. Agora, a coisa está clara. Bush voltará aos tempos do faroeste, caubóis e xerifes mandando no mundo. Bush e sua turma é o que há de pior na América; eles só acreditam em mercado, domínio e porrada. Bush marca o início da era da estupidez, a vitória dos imbecis no poder. Forrest Gump, o idiota vencedor, já era um indício da "beleza da estupidez", como Bush declarou em Yale: "Eu sou a prova de que ninguém precisa estudar para ser presidente dos USA." Bush é um neurótico completo, como dizem lá no Ocidente. Julga-se impotente e desprezado pelo pai, e quer provar força, superando o velho que quebrou a cara com o Sadam. Ele é perfeito para meus planos. Nada mais perigoso que a estupidez com armas; o fascismo é a burrice no poder... Nada melhor para nós, irmãos, louvado seja Alá... Em 11 de setembro, eu dei à América o pretexto para se sentir vítima - tudo que o Bush precisava, assim como Hitler também era "vítima" da humilhação da Alemanha depois da Primeira Guerra. E, no fundo, Bush me ama pelo avesso, pois eu o salvei politicamente; o que seria dele sem o WTC? Eles caíram na minha isca e vão fazer tudo que eu quis, irmãos... Começa agora uma nova e longa "guerra fria", com o "terrorismo" no lugar do "comunismo". Com essa política, eles vão desmoralizar a ONU de uma vez por todas, vão acabar com a Otan, vão trair os acordos antinucleares como o ABM, vão ignorar o Tribunal Penal Internacional, seus aliados vão romper com eles, a guerra Israel-Palestina vai virar uma endemia para sempre, vão transformar a Europa num continente horrorizado e antiamericano, vão se meter em toda parte, da Ásia à Colômbia, para ódio de todos. A verdade é essa: a América jamais aceitará ser igual aos outros países; eles só disfarçavam, para não serem chamados de boçais. Agora, Bush poderá gritar, cercado daqueles idiotas "falcões": "Eu sou mais eu! Nós somos a nação indispensável, sim!" Eles acham que estão me combatendo, irmãos, mas nós somos invisíveis; eles estão combatendo e destruindo seus amigos e a si mesmos. Quando a máquina da boçalidade se desencadeia, ninguém segura mais a produção de erros. Eu despertei o Leviatã! Eu estou obrigando os USA a serem uma potência solitária, uma máquina guerreira isolada para sempre, pois eu vou obrigá-los a destruir a democracia a pretexto de defendê-la, com o apoio de 70% dos ignorantes do país. E a arrogância unilateral pedirá mais arrogância, mais força, mais confronto. A Europa vai se rearmar, a China e a Rússia vão relubrificar seus mísseis e uma grande nuvem atômica poderá destruir o mundo todo, irmãos!... Mas, não temam, irmãos, pois nós não vamos sofrer nem perder nada, pois, no martírio nuclear que virá, iremos todos para o paraíso em meio às nuvens de fogo, ao encontro de Alá, o único deus, sendo Maomé, e agora eu, os seus profetas!

94. ARNALDO JABOR. O AMOR IMPOSSÍVEL É O VERDADEIRO AMOR. Outro dia escrevi um artigo sobre o amor. Depois, escrevi outro sobre sexo. Os dois artigos mexeram com a cabeça de pessoas que encontro na rua e que me agarram, dizendo: "Mas... afinal, o que é o amor?" E esperam, de olho muito aberto, uma resposta "profunda". Sei apenas que há um amor mais comum, do dia-a-dia, que é nosso velho conhecido, um amor datado, um amor que muda com as décadas, o amor prático que rege o "eu te amo" ou "não te amo". Eu, branco, classe média, brasileiro, já vi esse amor mudar muito. Quando eu era jovem, nos anos 60/70, o amor era um desejo romântico, um sonho político, contra o sistema, amor da liberdade, a busca de um "desregramento dos sentidos". Depois, nos anos 80/90 foi ficando um amor de consumo, um amor de mercado, uma progressiva apropriação indébita do "outro". O ritmo do tempo acelerou o amor, o dinheiro contabilizou o amor, matando seu mistério impalpável. Hoje, temos controle, sabemos por que "amamos", temos medo de nos perder no amor e fracassar na produção. A cultura americana está criando um "desencantamento" insuportável na vida social. O amor é a recusa desse desencanto. O amor quer o encantamento que os bichos têm, naturalmente. Por isso, permitam-me hoje ser um falso "profundo" (tratar só de política me mata...) e falar de outro amor, mais metafísico, mais seminal, que transcende as décadas, as modas. Esse amor é como uma demanda da natureza ou, melhor, do nosso exílio da natureza. É um amor quase como um órgão físico que foi perdido. Como escreveu o Ferreira Gullar outro dia, num genial poema publicado sobre a cor azul, que explica indiretamente o que tento falar: o amor é algo "feito um lampejo que surgiu no mundo/ essa cor/ essa mancha/ que a mim chegou/ de detrás de dezenas de milhares de manhãs/ e noites estreladas/ como um puído aceno humano/ mancha azul que carrego comigo como carrego meus cabelos ou uma lesão oculta onde ninguém sabe". Pois, senhores, esse amor existe dentro de nós como uma fome quase que "celular". Não nasce nem morre das "condições históricas"; é um amor que está entranhado no DNA, no fundo da matéria. É uma pulsão inevitável, quase uma "lesão oculta" dos seres expulsos da natureza. Nós somos o único bicho "de fora", estrangeiro. Os bichos têm esse amor, mas nem sabem. (Estou sendo "filosófico", mas... tudo bem... não perguntaram?) Esse amor bate em nós como os frêmitos primordiais das células do corpo e como as fusões nucleares das galáxias; esse amor cria em nós a sensação do Ser, que só é perceptível nos breves instantes em que entramos em compasso com o universo. Nosso amor é uma reprodução ampliada da cópula entre o espermatozóide e óvulo se interpenetrando. Por obra do amor, saímos do ventre e queremos voltar, queremos uma "reintegração de posse" de nossa origem celular, indo até a dança primitiva das moléculas. Somos grandes células que querem se re-unir, separados pelo sexo, que as dividiu. ("Sexo" vem de "secare" em latim: separar, cortar.) O amor cria momentos em que temos a sensação de que a "máquina do mundo" ou a máquina da vida se explica, em que tudo parece parar num arrepio, como uma lembrança remota. Como disse Artaud, o louco, sobre a arte (ou o amor) : "A arte não é a imitação da vida. A vida é que é a imitação de algo transcendental com que a arte nos põe em contato." E a arte não é a linguagem do amor? E não falo aqui dos grandes momentos de paixão, dos grandes orgasmos, dos grande beijos - eles podem ser enganosos. Falo de brevíssimos instantes de felicidade sem motivo, de um mistério que subitamente parece revelado. Há, nesse amor, uma clara geometria entre o sentimento e a paisagem, como na poesia de Francis Ponge, quando o cabelo da amada se liga aos pinheiros da floresta ou quando o seu brilho ruivo se une com o sol entre os ramos das árvores ou entre as tranças da mulher amada e tudo parece decifrado. Mas, não se decifra nunca, como a poesia. Como disse alguém: a poesia é um desejo de retorno a uma língua primitiva. O amor também. Melhor dizendo: o amor é essa tentativa de atingir o impossível, se bem que o "impossível" é indesejado hoje em dia; só queremos o controlado, o lógico. O amor anda transgênico, geneticamente modificado, fast love. Escrevi outro dia que "o amor vive da incompletude e esse vazio justifica a poesia da entrega. Ser impossível é sua grande beleza. Claro que o amor é também feito de egoísmos, de narcisismos mas, ainda assim, ele busca uma grandeza - mesmo no crime de amor há um terrível sonho de plenitude. Amar exige coragem e hoje somos todos covardes". Mas, o fundo e inexplicável amor acontece quando você "cessa", por brevíssimos instantes. A possessividade cessa e, por segundos, ela fica compassiva. Deixamos o amado ser o que é e o outro é contemplado em sua total solidão. Vemos um gesto frágil, um cabelo molhado, um rosto dormindo, e isso desperta em nós uma espécie de "compaixão" pelo nosso desamparo. Esperamos do amor essa sensação de eternidade. Queremos nos enganar e achar que haverá juventude para sempre, queremos que haja sentido para a vida, que o mistério da "falha" humana se revele, queremos esquecer, melhor, queremos "não-saber" que vamos morrer, como só os animais não sabem. O amor é uma ilusão sem a qual não podemos viver. Como os relâmpagos, o amor nos liga entre a Terra e o céu. Mas, como souberam os grandes poetas como Cabral e Donne, a plenitude do amor não nos faz virar "anjos", não. O amor não é da ordem do céu, do espírito. O amor é uma demanda da terra, é o profundo desejo de vivermos sem linguagem, sem fala, como os animais em sua paz absoluta. Queremos atingir esse "absoluto", que está na calma felicidade dos animais.

95. ARNALDO JABOR. VIVA A CATÁSTROFE! OS BONS TEMPOS VOLTARAM. Sempre que há uma catástrofe nacional, irrompe uma euforia de cabeça para baixo. É como se a opinião pública dissesse: "Eu não avisei? Bem que eu falei, não adianta tentar que sempre dá tudo errado...". Há um grande amor brasileiro pelo fracasso. Quando ele acontece, é um alívio. O fracasso é bom porque nos tira a ansiedade da luta. Já perdemos, pra que lutar? A plataforma afundando suavemente nos dá uma sensação de realidade. Parece o Brasil indo a pique - o grande desejo oculto da sociedade alijada dos podres poderes políticos, que giram sozinhos como parafusos espanados. Não é uma ameaça de CPI, não é um perigo de crash na Bolsa. É morte, gás e fogo. E nossa vida fica mais real e podemos então, aliviados, botar a culpa em alguém. Chovem cartas de leitores nos jornais. Todas exultam de indignação moral, todas denotam incompreensão para com o programa do governo de reformar o sistema, programa muito "macro", mal explicado, "muito cabeça" para a população. Nada como um desastre ou escândalo para acalmar a platéia. E a oposição, aliada à oligarquia, usa bem isso. Danem-se as questões importantes, dane-se a crise externa, dane-se tudo. Bom é fofoca e denúncia. A finalidade da política é impedir o país de fazer Política. Nada acontece, dando a impressão de que muito está acontecendo. Há uma tradição colonial de que nossa vida é um conto-do-vigário em que caímos. Somos sempre vítimas de alguém. Nunca somos nós mesmos. Ninguém se sente vigarista. O fracasso nos enobrece. O culto português à impossibilidade é famoso. Numa sociedade patrimonialista como Portugal do século XVI, onde só o Estado-Rei valia, a sociedade era uma massa sem vida própria. Suas derrotas eram vistas com bons olhos, pois legitimavam a dependência ao Rei. Fomos educados para o fracasso. Até hoje somos assim; só nos resta xingar e desejar o mal do país. Quem tem coragem de ir à TV e dizer: "O Brasil está melhorando!", mesmo que esteja? Ninguém diz. É feio. Falar mal do pais é uma forma de se limpar. Sentimo-nos fora do poder, logo é normal sabotar. A plataforma da Petrobras afundando derreteu feito bala de açúcar na boca dos golpistas. O fracasso é uma vitória para muitos. Não fui eu que fracassei; foi o governo, o neoliberalismo. O maior inimigo da democracia é a aliança entre o ideologismo regressista e a oligarquia vingativa. Nossos heróis todos fracassaram. Enforcados, esquartejados, revoltas abortadas, revoluções perdidas. Peguem um herói norte-americano: Paul Revere, por exemplo. Cavalgou 24 horas e conseguiu salvar tropas americanas na Guerra da Independência. Foi o herói da eficiência. Aqui, só os fracassados verão Deus. "Seja marginal, seja herói". O fracasso é legal, a vitória é careta. A vitória dá culpa; o fracasso é um alívio. A vitória é burguesa. A crise, a catástrofe, o bode preto têm um sabor de "revolução". É como se a explosão "revelasse" algo, uma tempestade de merda purificadora. Além disso, para os carbonários, depois de tudo arrasado, a pureza renasceria do zero. Assim pensava Pol Pot. A crise brasileira atual começou com um procurador maluco, uma fita mal gravada e tudo foi coroado com a plataforma afundando. O que moveu Luiz Francisco e ACM foi a esperança do caos. Luiz Francisco se acha o missionário da catástrofe. Ele é o ideólogo da explosão de furúnculos. Ele acredita no pus revelador. ACM quer levar em seu declínio o país todo com ele, cair destruindo, numa espécie de triunfo ao avesso. Ele é o último bastião do patrimonialismo tradicional, resistindo ao capitalismo impessoal. Espalhou-se a teoria de que o problema do Brasil é "moral". Este "bonde" funk de neo-udenismo psicótico, este lacerdismo tardio, este trenzinho de "janismo" com "collorismo" visam impedir a modernização do país, sob a capa do "amor". São a favor da moralidade, mas contra a Lei de Responsabilidade Fiscal. Esta onda de moralismo delirante busca impedir a reforma das instituições que estimulam a imoralidade. ACM, tocando trombone sob um telhado de vidro, é o grande exemplo. Luiz Francisco, com boquinha de ânus e vozinha de padre, outro. Nossos intelectuais se deliciam numa teoria barroca da "zona" geral. O Brasil é visto como um grande "bode" sem solução, o paraíso dos militantes imaginários. Quem quiser positividade é traidor. A miséria tem de ser mantida in vitro, para justificar teorias e absolver inações. A Academia cultiva o "insolúvel" como uma flor. Quanto mais improvável um objetivo, mais "nobre" continuar tentando. O masoquista se obstina com fé no impossível. Há um negativismo crônico no pensamento brasileiro. Paulo Prado contra Gilberto Freyre. Para eles, a esperança é sórdida; a desconfiança é sábia: "Aí tem dente-de-coelho, alguma ele fez...". Jamais perdoarão ao FHC ter abandonado a utopia tradicional e aderido à real politik. Quase nenhum "progressista" tentou ajudá-lo nesta estratégia. Quem tentou foi queimado como áulico ou traidor, pela plêiade dos canalhas e ignorantes. Talvez tenha sido um dos maiores erros da chamada "esquerda", talvez a maior perda de oportunidade da história. Agora, os corruptos com quem FHC se aliou para poder governar querem afogá-lo na lama. A real politik virou shit politics. Assim como o atraso sempre foi uma escolha consciente no século XIX, o abismo para nós é um desejo secreto. Há a esperança de que no fundo do caos surja uma solução divina... "Qual a solução para o Brasil?", perguntam. Mas a própria idéia de "solução" é um culto ao fracasso. Não lhes ocorre que a vida seja um processo, vicioso ou virtuoso, e que só a morte é solução. Vejam como o Brasil se animou com a crise atual. Dólar alto, plataforma afundando, Jader x ACM, tudo parado. Oba! É o velho Brasil descendo a ladeira! Viva! Os bons tempos voltaram!

96. ARNALDO JABOR. O GRANDE SUCESSO DO HERÓI SEM CORAÇÃO. "Eu quero, eu desejo, eu preciso, eu não me conformo de ficar olhando a vida de fora, feito um espectador de TV, eu quero tênis, eu quero Rolex, eu quero carrão, eu quero lancha, eu quero cartões de crédito e aqueles smokings lindos que o James Bond usava debaixo do neoprene mesmo quando mergulhava, eu quero a elegância total, sorriso nos lábios, pisando em mármores de hotéis, tomando drinques à beira da piscina ou nos pianos-bares, com uma louraça a meu lado ouvindo eu tocar, eu, campeão mundial de piano, como todos sabem... Eu quero poder escolher entre a Mercedes da hora e o Jaguar do ano, eu quero ter o corpo perfeito, malho muito e de noite eu fico horas pensando em mudar meu corpo, como se eu fosse nascer de novo, como se eu fosse fazer o parto de mim mesmo. Eu me imagino inteiramente liso para iniciar o parto, como alguém raspado antes de uma cirurgia e, de dentro de meus membros, começa a surgir um outro corpo, como a borboleta saindo de dentro da crisálida, meus pés, úmidos e novos, saem de dentro de meus velhos pés, minhas pantorrilhas rompem a casca da pele e aparecem fortes para jogar um futebol de campeão, eu, que sempre era barrado nas peladas de rua, mas que hoje já tenho os braços fortes como os de Charles Bronson, me preparando para o grande momento que vai chegar. Eu sonho há anos com esse dia, pois sempre soube que viria um bonde legal, uma parada legal que eu não sabia qual era, mas que viria... Aproxima-se a hora da liberdade, a hora em que eu vou quebrar todos os recordes e pular para uma outra vida. Depois disso, ninguém me segura mais... Como segurar um homem como eu, com minha macheza gloriosa, meu pênis campeão que tem uma tatuagem de seta para lembrar à minha mulher qual é o caminho da adoração religiosa, quando eu fico em pé na cama e ela reza, olhando para mim como o seu Deus? Ela está entranhada em mim como uma tatuagem e nem que arranque a pele ela se livra do meu amor. Parece que somos um só. Ela me disse um dia: "Eu sou você!..." Pois, está chegando a hora H, quando eu terei tudo a que tenho direito, como motocas Electra Glide ou Kawasaki, terei um apartamento em cima de uma pedra em frente do mar, em frente das altas ondas que eu, campeão havaiano de surfe em maremotos, cavalgarei e meu apartamento vai ser todo de mármore, cheio de controles remotos, de onde eu vou comandar os garçons que servem caviar e champanhe nas noites de festa que eu vou dar, com pagodes e com a Ivete Sangalo ou a Daniela Mercury cantando para meus amigos da revista Caras, eu vou mandar em tudo porque serei o mais poderoso, o mais forte, o mais rico, falando inglês, francês, russo, alemão, latim, e todo mundo vai me respeitar e gostar de mim, porque eu vou ser legal com quem for legal comigo, mas se não for legal comigo será esculachado, porque eu não vou dar colher de chá para traidor e porque nunca mais vou ser humilhado por aquele patrão que me expulsou da loja dizendo que eu era ladrão de camiseta e de tênis, só porque eu fui ao show da Negritude Jr. com o tênis fosforescente que chegou do Paraguai e com a camiseta do Robocop. Nunca mais vou ser fraco de alma, inclusive porque eu estou fazendo musculação por dentro do corpo; por fora, eu já estou com uma potência de soco de um Volks a 80 km por hora, mas, por dentro, meus músculos da alma estão cada vez mais duros, meu coração mais seco, único caminho para o sucesso, como nos ensina a cara dos políticos na TV. Esta é a receita do sucesso: coração duro, nem um pisco, nem um tremor de mão, nem um olho aguado, nada. Eu quero mesmo é ser de pedra, aliás, eu quero ser uma "coisa", eu queria ser uma "12" de cano serrado ou uma espada de samurai. Já pensou se o Beira-Mar fosse bonzinho? Ele seria um joão-ninguém. Eu sou duro, até já treinei outro dia com o gato no microondas, os miados e os olhos de pavor na janelinha. Quero coração duro para satisfazer todos os meus desejos, como manda o meu amigo secreto que conversa comigo de noite, o "Velho", que aparece quando vou começando a dormir e me diz: "Vai fundo, bota para quebrar, não vai morrer pobre feito eu!" Como eu vou explicar para ele, se eu amarelar? Eu já estou pronto para a ação. No bolso, o meu discurso de posse, prontinho para o dia em que vou receber o Grande Prêmio na Academia dos Heróis. Já sei até de cor, vou repetindo baixinho enquanto subo a escada: "Eu queria agradecer inicialmente ao Bruce Willis, ao Chuck Norris, ao Escadinha e a todos os heróis do cinema e da barra-pesada o muito que me ensinaram. Só eu sei quanto lutei para chegar até aqui, para ganhar este prêmio. Quero agradecer também aos olhos azuis de minha amada, que tanto me incentivaram a ter coragem de ser feliz"... Acho superlegal o meu discurso de posse na Academia e já vejo os super-heróis me aplaudindo. Bem, eu já estou pronto. Cabelo raspado feito o Ronaldinho, músculos desenhados e duros feito o Bruce Lee. Meu corpo está tremendo por dentro, mas sei que não é medo não; é tesão, é a alegria de conquistar a vida nova. Parece que tem outro homem dentro de mim, eu, o chefe da equipe mundial de caratê, eu, maior sucesso em breve nas revistas dos chiques e famosos, eu, que quebro 20 telhas com um soco, eu que serei o novo ídolo dos jornais, eu sinto que o mundo vai se abrir para mim feito um shopping center e eu só irei pegando as mercadorias e colocando na Ferrari vermelha onde minha mulher me espera para fugirmos. A chave da vida nova já está aqui na minha mão: esta barra de ferro que mata em silêncio, enquanto subo a escada, na maior adrenalina, com meu irmão atrás de mim, feito um ninja de máscara negra, agora que vamos abrir o quarto e começar a festa. Eles dois estão dormindo. Se a barra de ferro não resolver logo, estrangulo."

97. ARNALDO JABOR. AS FORÇAS ARMADAS TÊM DE ESTAR PERTO DE NÓS. Eu sou um pobre aspirante a oficial-da-reserva, de segunda classe, do Exército brasileiro, da heróica arma da Cavalaria. Apesar das agruras do serviço militar, não nego que, muita vez, vibrei com minha arma, como no dia em que cavalguei, com a lança embandeirada, na orgulhosa escolta do general-comandante Justino Alves Bastos, não tendo, infelizmente, desfilado depois na parada de 7 de Setembro pela maldade de um tenente que me fez montar a égua negra Epopéia, muito temida no regimento, pois empinava e se jogava para trás ("boleava") , tendo assim quebrado meu braço - eu, um desastrado e trêmulo calouro. Mas, lembro com emoção dos tambores e clarins, do passo firme dos batalhões, da sensação de unidade, de ser um soldado num mar verde-oliva, o que apaga a solidão e consola a alma. Escrevo estas coisas remotas como réplica a uma carta do general Luiz Cesário da Silveira Filho, chefe do Centro de Comunicação Social do Exército, a propósito de meu artigo da semana passada, na qual ele me aponta como "denegridor" da boa imagem do Exército. Ao contrário, general, considero o Exército uma das poucas instituições decentes do País e meu artigo, ao imaginar uma eventual participação militar na luta contra o tráfico, visava um pouco (confesso-o) a provocar nossos "milicos" e a suscitar respostas e explicações. E fico orgulhoso de poder, hoje, até questionar o Exército sem sentir medo. Sei das dificuldades da instituição num país semiquebrado por séculos de oligarquias e dependência, talvez até por ser filho de um brigadeiro-do-ar que morreu duro num apartamento de dois quartos em Copacabana. Ademais, quem sou eu para criticar o Exército? No entanto, penso que talvez o Exército devesse ter mais contato com a opinião pública brasileira. Há uma curiosidade, que não é só minha, que se pergunta qual é o papel dos militares brasileiros no mundo da globalização e das mudanças no velho Estado-Nação, da democracia de massas e suas mazelas. Muita gente diz: "Tem de botar o Exército na rua contra o tráfico!" Outros: "Pra que serve o Exército?" Fique claro que não acho que o Exército tem de "sair e botar para quebrar". Não sou o homem mais burro deste país (meus inimigos dirão: "Olha a modéstia..."); por isso, me pergunto: não seria oportuna uma atuação das Forças Armadas, em alto nível estratégico, coordenada com a experiência concreta e "suja" das polícias, de modo a romper essa cadeia de pó e armas, que começa lá fora, invade fronteiras, sobe favelas e acaba no nariz da burguesia? Não podemos continuar considerando esses crimes apenas como um "desvio da norma" ou como um pecado diante do "Bem". O crime do tráfico e da miséria armada já tem outros nomes, já é uma "mutação social", já é uma forma de vida, um mercado de trabalho, um desafio aos poderes públicos. Esse neocrime não se combate mais com castigo e prisão; trata-se de uma Outra Sociedade, criada na lama e na fome, e só será vencido por uma conjunção de instrumentos que vão desde a repressão até o saneamento, que vão desde a guerra explícita até uma reeducação das comunidades periféricas. O tráfico no Rio e em São Paulo não é só um problema de polícia, pois não nasce cocaína na favela nem lá se fabricam metralhadoras, como disse o Zuenir; tudo começa como uma invasão do território nacional. Por que as Forças Armadas não podem agir, em nível de Estado maior, da ESG, etc.? Sabemos que, no Rio, grande parte do pó entra pela Baía de Guanabara. Por que a Marinha não pode policiar essas águas? Outro dia, li a entrevista muito lúcida de um brigadeiro que reclamava da ausência da "Lei do Abate" na Amazônia. Os jatos da Aeronáutica perseguem os aviões cheios de cocaína, dão ordem de descida, mas eles nem ligam, pois é proibido abatê-los. Os pilotos clandestinos chegam a fazer gestos obscenos para os militares e continuam seus vôos impunes, em direção aos "cafungueiros" do País. Como leigo, pergunto se as Forças Armadas não devem se repensar em função das mudanças econômicas e políticas do País, se "enxugando", ficando mais eficazes, com melhores armas e homens bem pagos. Se alguma crítica posso fazer a imagem do Exército, é em relação a uma mentalidade meio "napoleônica", de "forças maiores", acima do cotidiano nacional, defendendo abstrações como "civismo", "renúncias", "anseios patrióticos". Hoje, o inimigo mudou e não podemos continuar a combatê-lo com formações do século19. Agora, o inimigo vem de dentro do atraso nacional, de dentro da tecnologia veloz, vem do fanatismo, da loucura, da miséria armada. Acho que um dos erros de comunicação das Forças Armadas é um ocultamento diante da população. Por quê? Será que ficaram com complexo de culpa por terem cedido à tentação autoritária , há 30 anos? Isso já passou. O Exército não pode aparecer muito ou sumir muito, à espera de um "grande acontecimento" histórico. Não há mais "grandes acontecimentos". A guerra hoje é minimalista, tática, misturada à vida social, até invisível. Os americanos amam seu Exército. Quantos filmes já fizeram louvando seus soldados? Por que ignoramos os nossos? Será que é só culpa de nosso ibérico e colonial medo do "poder"? Ou não haveria também da parte do Exército uma fobia, uma timidez em se assumir como importante instituição nacional? Gostaria de ver o Serviço de Comunicação, prezado general, aparecendo "antes", nos informando e não reclamando de injustiças. O Exército é grande demais para isso e eu sou pequeno demais. Sou apenas um aspirante de segunda classe, mas minhas dúvidas são de brasileiro e patriota pois, como diz o nosso hino da Cavalaria, no evento de uma guerra contra a Pátria, quero que "o Sol, sem eflúvios, sem luz e sem calor, me encontre no solo a morrer, do que vivo sem te defender..."

98. ARNALDO JABOR. SUZANE, 19 ANOS, BELA E RICA, MATOU POR AMOR. Quando os irmãos entrarem em cana, provavelmente serão mortos, pois matador de pai e mãe eles não perdoam. Mesmo no mundo do crime há uma ética a preservar, mesmo o pior criminoso tem um interdito moral. Nesse caso, não. O crime de parricídio e matricídio premeditado durante o sono é mais que um crime; é uma viagem ao desconhecido, é o desejo de atingir um recorde supremo. Não há nada pior. Nenhuma ética se salva, nada pode atenuar o feito. O quê? Que delito Suzane e seus cúmplices poderiam considerar mais hediondo? Suzane está no topo, nada há além dela. Ela nos aterroriza com sua crueldade brutal. Os dois monstros boçais ainda dá para entender: queriam grana, motocas e tatuagens, filhos desta geração de shoppings e violência. Ela, não. Precisamos encontrar explicações para ela, senão ficamos ameaçadíssimos. O crime sem motivo nos desorganiza, pois nos coloca nas mãos da loucura. Se ela, jovem, bela e rica, matou, que será de nós? O crime sujo da favela apenas nos dá medo. O crime limpo e rico nos desampara, nos dá vertigem, pois perdemos o balizamento da ética e da razão. Suzane nos leva à beira da loucura, mas ela não é louca. Então, ela matou por quê?, perguntamo-nos. Isso é que fascina e apavora no psicopata: ela toca num mistério que tentamos esquecer. Vizinhos e amigos sempre dizem deles: "Eram doces, educados, tímidos..." Até a hora em que metralham espectadores num cinema ou matam pai e mãe dormindo. Por isso, os psiquiatras buscam "causas", como se a vida social fosse um contrato de bom senso, como se fôssemos animais racionais e a loucura um "desvio". É o contrário; a sociedade é que é um desvio. Não adianta ter ódio dela; não há punição que apague o seu crime, não há como pagar sua dívida. O inferno cotidiano que ela terá não explica aquele momento metafísico, sempre além de qualquer entendimento. Mas, mesmo os psicopatas precisam de uma razão maior para justificar o crime. "Matei por amor...", diz a menina de 19 anos, fina, linda, universitária. No entanto, esse amor que a menina invoca é outro "amor". Ela e todos nós precisamos "justificar" esse crime, para não ressuscitarmos a célebre manchete do jornal carioca O Dia: "Matou a mãe sem motivo" - ou seja, deve haver um motivo para se matar a mãe. Ela precisa de um motivo, pois ela não sente culpa porque matou. Ela matou para preencher um grande vazio em seu mundo interno, matou para atravessar um deserto afetivo, matou porque não sentia culpa, matou por vingança de não sentir culpa, matou até para tentar sentir alguma culpa, sentir até algum... amor. Por isso, sua declaração nos apavora: "Matei por amor!" Matou, sim, por amor, para conseguir um pavoroso amor por que ela ansiava. Que estranho amor é esse? Eu acho que ela buscava o "amor" da hora. É o amor que nos grita de dentro do comércio, de dentro do consumo, que nos chama de dentro de um narcisismo impossível que todos proclamam, é o amor imaginário feito do desejo de posse exclusiva sobre a liberdade, sobre o corpo do outro, um amor que consome tudo, querendo uma felicidade quantitativa, uma infinita conquista para abolir todos os vínculos, todas as barreiras do Édipo, todos os deveres sociais. Suzane quis fazer um gesto imperdoável para sempre, absoluto, livre para sempre da condição humana, quis o sangrento incesto invertido com os pais deitados na cama onde ela foi (talvez?) feita. Depois do crime cometido, ela poderia se livrar da origem, do passado, da horrenda obrigação de conviver e, então, se dedicar a um amor sem "outro", sem objeto, uma espécie de conquista de Poder, sim, um poder de estar acima dos sentimentos, da Justiça, um poder de viver sem sociedade em volta, um poder maluco que vemos anunciado nas entrelinhas das ideologias de hoje, nas gargalhadas sem remorso nas revistas, na abolição descarada da compaixão. Esse crime me lembra o mistério fúnebre da peça de Shakespeare Macbeth, o poder de liberdade crua que Suzane almejou me lembra o poder que os Macbeth conquistariam, depois de "assassinarem o sono", como grita o poeta. A frase da peça que mais me aterroriza é quando lady Macbeth, preparando-se para o crime, grita a Deus (ou ao Demônio): "Unsex me!" (Dessexualize-me!!) Ou seja: "Tire de mim a bondade feminina, transforme-me não num homem, mas tire o sexo de mim, para que eu seja um homem-mulher, um ser livre da diferença, livre da condição humana dividida, sexed, e me transforme num ser monobloco, com um desejo só." Como seria o amor de Daniel e Suzane, Romeu e Julieta ao contrário, se tudo tivesse "dado certo"? Com os pais mortos, grana no bolso, garupa de motocicleta, os dois teriam uma espécie de fusão, de orgasmo contínuo, acima da vida, acima do cotidiano, pois ninguém mais poderia existir - só eles. A única explicação que pode vagamente explicar o acontecido é sabermos que a sociedade está tão narcísica, tão excludente de qualquer solidariedade, tão brutal no seu desejo de satisfação total, que contamina até os privilegiados. A pulsão de morte anda solta. Vivemos atacados pela brutalidade do noticiário, pelos homens-bomba, pela estupidez da cultura que gera batalhões de rapazes criminais, sem camisa, obcecados por uma felicidade de consumo impossível. A violência das periferias influencia a classe média até com gestos, gírias e armas. Estamos pagando o preço por nosso descaso com a miséria durante décadas, nosso desinteresse pela desumanização da vida. Não somente as balas nos atingem, mas também a imensa boçalidade da cultura. Suzane é psicopata, mas nossa sociedade também o é. Não há explicação para esse crime. Não adianta procurar causas, traumas. Esse crime ficará sempre em aberto. Misterioso, como nosso destino.

99. ARNALDO JABOR. O AMOR DEIXA MUITO A DESEJAR... Fui ver o lindíssimo filme do Pedro Almodóvar, o Fale com Ela, e saí pensando num conto da Carson McCullers, em que um homem conta que, antes de amar de novo uma mulher, ele estava aprendendo a amar as pedras, as árvores, as nuvens... Nesse grande filme de Almodóvar, vemos amores raros, feitos de entrega, feitos de compaixão, como uma "doação ilimitada a uma completa ingratidão", como escreveu Drummond, aliás, o poeta do amor impossível, que é o único e verdadeiro amor. A vitória do Lula também foi uma fome de amor política contra a era da técnica racionalista. Seu governo pode virar até um crime passional ou um folhetim melodramático, mas, hoje, é um grande desejo de happy end para todo o povo. Por isso, pergunto: onde anda o amor? Até isso o mercado estragou? Sim. O amor já teve um toque sagrado, a magia de uma inutilidade deliciosa, já foi um desafio ao dia-a-dia que nos tirava da vida comum. Hoje, o amor, como tudo, está perdendo a transcendência. Não existe mais o amante definhando de solidão, nem Romeus nem Julietas, nem pactos de morte, não existe mais o amor nos levando para uma galáxia remota, não existe mais a simbiose que nos transportava a uma eternidade semi-religiosa. O amor tinha uma fome de bondade, de compaixão pelo outro, de proteção à pessoa amada. Isso está acabando. O amor já foi analisado por todas as ciências, a psicanálise mapeou as loucuras que estão sob sua poética, o ritmo do tempo atual acelerou o amor, o dinheiro contabilizou o amor, matando seu mistério impalpável. Hoje, temos controle, sabemos por que "amamos", temos medo de nos perder no amor e fracassar no mercado. O amor pode atrapalhar a produção. Por isso, o filme de Almodóvar é tão belo e oportuno. Temos de fazer filmes assim, cheios de amor, sem efeitos, sem denúncias. Se eu, um dia, filmar de novo, será para celebrar o silêncio dos amantes ou a beleza do inútil. O amor perdeu a gratuidade, as pessoas "amam" por desejo de ter um amor que não sentem mais. O amor não tem mais porto, não tem onde ancorar, não tem mais a família nuclear para se abrigar, não tem mais a utilidade do sacrifício pelo "outro". O amor ficou pelas ruas, em busca de objeto, esfarrapado, sem rumo. Não temos mais músicas românticas, nem o lento perder-se dentro de "olhos de ressaca", nem nas "pernas de Fulana", nem temos as bocas beijadas por amantes "tutti tremanti", nem o formicida com guaraná. Não se diz mais: "Deus sabe quanto amei!...", mas "Deus nem sabe quantos (as) amei..." A publicidade devastou o amor, falando na "gasolina que eu amo" ("Shell que j'aime"), no sabonete que faz amar, na cerveja que seduz. Há uma obscenidade flutuando no ar o tempo todo, uma propaganda difusa do sexo impossível de cumprir. Como comer todas as moças da lingerie e do xampu, como atingir um orgasmo pleno e definitivo? A sexualidade total, por si só, levaria a uma assexualização desértica. A sexualidade é finita, não há mais o que inventar. Já o amor, não... O amor vive da incompletude e esse vazio justifica a poesia da entrega. Ser impossível é sua grande beleza. Claro que o amor é também feito de egoísmos, de narcisismos mas, ainda assim, ele busca uma grandeza - mesmo no crime de amor há um terrível sonho de plenitude. Amar exige coragem e hoje somos todos covardes. Amor e sexo. Mas, hoje o mercado exige a satisfação total no amor ou o dinheiro de volta. Como isso é impossível, deriva para o sexo ou para a sedução. O amor passa a buscar não mais uma entrega, mas um domínio. O amor vira um objeto de consumo, fast-love, com obsolescência programada para durar pouco. O amor deixa muito a desejar. Em geral, o amor existe hoje como uma espécie de adoçante para justificar, legitimar uma tesão ou uma conquista. Os amores duram três edições de Caras. Os casais se permutam num troca-troca rápido e quantitativo. As próprias mulheres estão virando dom-juans. Vejam o périplo de jovens atrizes que vão comendo, um por um, os modelos que surgem nas revistas, elas, que deviam se manter damas inatingíveis para pálidos quixotes românticos. Estamos com fome de amor cortês, num mundo em que tudo perdeu aura. O terrível bombardeio que a cultura americana está fazendo nos sentimentos é invisível, mas é pior que as bombas contra o Iraque. A cultura americana está criando um desencantamento insuportável na vida social. Tudo é tolerável, num arrasamento de mistérios. Vejam a arte tratada como algo desnecessário, sem lugar, sem uso, vejam as mulheres amontoadas na internet, nuas, com números - basta clicar e chamar. Estamos com fome de infinito em tudo, na vida, na política, no sexo. Por isso, o filme de Almodóvar, cheio de compaixão sussurrada, apoiada na trêmula beleza dos balés de Pina Bausch e no Caetano cantando um pranto dolorido, parece um segredo religioso, uma saudade inexplicável de alguma coisa que existe aquém, antes da vida. Nos anos 60, liberdade sexual foi uma questão política. Hoje, podemos tudo, podemos casar até com jacarés ou macacas, sem escândalos, desde que não prejudique a produção. Mas, o que invisivelmente está virando uma nova necessidade política é o amor e seus subprodutos: compaixão, paz, justiça. Aposto que virá aí um novo "desbunde", um novo movimento hippie, sem utilidade, mas sem melancolia autodestrutiva, vêm aí marchas pelo amor, porque ninguém está agüentando mais somente "utilidade" e "desempenho", poder e sucesso. Estamos virando coisas. Precisamos aprender a amar de novo as pedras, as árvores, as nuvens, até chegarmos a nós mesmos... E acho que isso vai surgir na América, como foi nos anos 60 - a luta pelos direitos civis será agora a luta pela beleza da inutilidade.

100. ARNALDO JABOR. CONFISSÕES SINCERAS DE UM LADRÃO BRASILEIRO. "Gosto de ser ladrão, doutor. Esta palavra tem uma conotação feia, mas a origem dela é 'laterones', os sujeitos que ficavam na 'lateral', ao lado dos reis e príncipes. Minha origem é, portanto, ilustre. Não sou um ladrão de galinhas, mas confesso que roubava galinhas do vizinho e até hoje sinto o cheiro das penosas que eu agarrava, prendendo-lhes o bico para evitar cacarejos e ficou-me o gosto do terror do vizinho aparecer e acho que virei ladrão pelo prazer desse medo. Já fui dono da CAG Ltda., que era da viúva de meu ex-sócio que, em circunstâncias misteriosas, apareceu assassinado no Motel Crazy Love e que, antes de morrer, que Deus o tenha, já tinha transformado a CAG em subsidiárias com sede em Miami, a ASS & HOLE Inc., a COCK & DICK participações, geridas por uma 'holding' em Barbados. Hoje, não roubo por necessidade, doutor; é prazer mesmo. Nunca fui pobre, mas preciso da adrenalina que me acende o sangue na hora em que a mala preta voa em minha direção, cheia de dólares, quando vejo os olhos covardes do empresário me pagando a propina, sua mãos trêmulas me passando o tutu, ou quando o juiz me dá ganho de causa, ostentando honestidade, e finge não perceber minha piscadela cúmplice na hora da emissão da liminar, todos sabujos diante de meu poder burocrático. Adoro a sensação de me sentir superior aos otários que me 'compram', eles se humilhando em vez de mim. Roubar é sexy, doutor. Dá tesão. Semelhante um pouco às brincadeiras no porão onde eu e menininhos 'troca-trocávamos' com pânico de um pai aparecer; roubar também me liberta, eu explico, me tira do mundo dos obedientes e me traz quase um orgasmo quando embolso uma bolada, o senhor já conheceu a alegria de andar com 300 mil dólares distraidamente dentro de uma ingênua pastinha e deixá-la de propósito ali no balcão da lanchonete, tomando um cafezinho sob a ignorância de transeuntes e pedintes que mal suspeitam que a salvação de suas vidas estaria ali, ao lado do açucareiro? E o prazer de sentir o espanto de uma prostituta, se você lhe arroja mil dólares entre as coxas, e vê sua gratidão imediatamente acesa, fazendo-a caprichar em carícias mais sacanas? Conhece, doutor, a delícia de rolar em notas de 100 dólares na cama de um hotel vagabundo, de madrugada, sozinho, comendo castanhas e chocolatinhos do frigobar, em uma cidade remota, onde rolou mais um financiamento de grana pública? Conhece a delícia de ostentar honestidade em salões, para caretas inconscientes que te xingam pelas costas, mas que te invejam secretamente pelas experiências que imaginam que você teve? Sabe do deleite de ver suas mulheres te olhando como um James Bond ao contrário, excitadas, pensando nos colares de brilhantes que poderiam ganhar de mim, o Arsène Lupin, 'charmeur', sorridente, pois todo bom ladrão é feliz e delicado, principalmente com as damas? O senhor não tem idéia, nessa sua obstinada integridade, do orgulho que temos, mesmo quando roubamos verbas de remédios para criancinhas, de agüentar o sentimento de culpa que bate em nossa consciência como mariposas numa janela e conseguir dominar a vergonha e transformá-la na bela frieza que faz o grande homem? O honesto é triste, doutor, a virtude dá úlcera, o honesto anda de cabeça baixa com baixos proventos, com uma vida limitada, sem conhecer o coração disparado, o gosto ácido da aventura, o honesto não sabe da santidade da sordidez, de onde contemplamos o mundo careta com desprezo. Eu sou especializado em bens públicos, doutor, é o que me dá mais tesão, saber que estou roubando todo mundo e ninguém, um dinheiro tradicional que já foi de tantas oligarquias. No Brasil, há dois tipos de ladrões, na elite é claro, não falo de 'carandirus'. Há o ladrão extensivo e o intensivo. O primeiro é aquele que vai roubando ao longo da vida política e ao fim de 30 anos já tem Renoirs, lanchões, helicópteros, esposas infelizes e adquire uma respeitabilidade por seu roubo difuso, ganha uma espécie de título de barão ou conde e que, depois, pode se limpar nas artes ou na filantropia. Eu prefiro ser 'intensivo', doutor, me dá mais adrenalina, mais pá-pum, mais relâmpago, uma delícia, doutor, roubar como vingança contra passadas humilhações, dores de corno, porradas na cara não revidadas. E o prazer da lealdade entre criminosos, doutor, conhece? A telepatia das piscadas, dos códigos, a delícia do conto-do-vigário em dupla, quando um diz 'mata' e o outro 'esfola'? Já viu, doutor, um capanga seu, um 'armário' mau quebrando o dedo de um devedor dentro da sala, sob teu olhar, proibindo-o de gritar, enquanto o dedo estala sob a manopla do crioulão? E o diálogo oblíquo com algum assassino de aluguel, acertando os detalhes de um prefeito ou empresário a apagar? E o êxtase maior de ver uma execução, ver as súplicas de pavor, enquanto os matadores passam o fio de náilon em volta da garganta do boneco e puxam até ele cair, eu confesso que tive uma ereção vendo essa cena num terreno baldio, debaixo de uma placa de financiamento público, e depois tive a maravilhosa sensação de liberdade de chegar em casa no absoluto segredo do crime e beijar meus filhos vendo desenho animado na TV, indo depois tomar um grande banho na Jacuzzi, protegido de tudo. Olhe para mim, doutor. Eu estou no lugar da verdade. Este país foi feito assim, na vala entre o público e o privado. Há uma grandeza insuspeitada na apropriação indébita, florescem ricos cogumelos na lama das maracutaias. A bosta não produz flores magníficas? O que vocês chamam de 'roubalheira', eu chamo de 'progresso', um progresso português, nada da frieza anglo-saxônica. São Paulo foi construída com esse combustível, Brasília foi feita de lindas ladroagens. Tudo que é belo e bom nasceu da merda. Esta é a tradição do Brasil, doutor..."

101. ARNALDO JABOR. ADORO SEPULCROS CAIADOS E LÁGRIMAS DE CROCODILO. Eu adoro a estética da corrupção. Adoro a semiologia dos casos cabeludos sob suspeita, adoro a reação dos implicados, adoro o vocabulário das defesas, das dissimulações, as carinhas franzidas dos acusados na TV, ostentando dignidade, adoro ver ladrões de olhos em brasa, dedos espetados, uivos de falsas virtudes e, mais que tudo, lágrimas de crocodilo. Todos alegam que são sérios, donos de empresas "impecáveis". Vai-se olhar as empresas, e nunca nada rola normal, como numa padaria. As empresas sempre são "em sanfona", uma dentro da outra, "en abîme", sempre têm "holdings", subsidiárias, são firmas sem dono, sem dinheiro, sem obras, todas vagando num labirinto jurídico e contábil que leva a um precioso caos proposital, pois o emaranhado de ladrões dificulta apurações. Me emociona a amizade dentro das famílias corruptas, principalmente no Nordeste. Ohh, Deus! Lá, creio eu, há mais amor do que entre picaretas paulistas ou cariocas. Lá existe uma simbiose maior no parentesco, mais calor humano, mais "fio de bigode". São inúmeros os primos, tios, ex-sócios, ex-mulheres que assumem os contratos de gaveta, os recibos falsos, todos labutando unidos, como Ali-Babás sincronizados. Baixa-me imensa nostalgia de uma família que não tenho e fico imaginando os cálidos abraços, os sussurros de segredo nos cantos das casas avarandadas, o piscar de olhos matreiros, as cotoveladas cúmplices quando uma verba é liberada pela Sudam em 24 horas, os charutos comemorativos; tenho inveja dos vastos jantares nordestinos, repletos de moquecas e gargalhadas, piadas, dichotes, sacanagens tão jucundas, tão "coisas nossas", tão "alagoas", que me despertam ternura pela preciosidade antropológica de imagens como a piscina verde em Canapi, a barriga de Joãozinho Malta (lembram?), a careca do PC Farias e as sobrancelhas de Jader. Esses signos e símbolos muito nos ensinaram sobre o Brasil real. Adoro também ver as caras dos canalhas. Muitos são bochechudos, muitos têm cachaços grossos, contrastando com o "style" dos populares magros de sEca, de fome, proletários chics, elegantérrimos pela dieta da misÉria. Todos acumulam as mesmas riquezas: piscinas, fazendas, lanchões, Miamis, todos têm amantes, todos têm mulheres desprezadas e tristes, com filhos oligofrênicos, deformados pelas doenças atávicas dos pais e avós. Aprecio muito os bigodões e bigodinhos. Nas oligarquias, êles não usam a bigodeira severa de um Olívio Dutra, babando severidade, com um eco de stalinismo e machismo gaúcho, não. Os bigodes corruptos são matreiros, bigodes que ocultam origens humildes criadas à farinha d'água e batata-de-umbu, na clara ocultação de um racismo contra si mesmos, camuflando os ancestrais brancos cruzados com índios e negros, raquíticos por séculos de patrimonialismo. Também gosto muito do vocabulário dos velhacos e tartufos. É delicioso ver a ciranda das caras indignadas na TV, as juras de honestidade, é delicioso ouvir as interjeições e adjetivos raros : "ilibado", "estarrecido", "despautério", "infâmias", 'aleivosias"... São palavras que ficam dormindo em estado de dicionário e só despertam na hora de negar as roubalheiras. São termos solenes, ao contrário das gravações em telefone, onde só rolam palavrões: "Manda a grana logo para o F.d.p. do banco, que é um grande #@, senão eu vou #@ a mãe deste #&@." Outra coisa maravilhosa nos canalhas é a falta de memória. Ninguém se lembra de nada nunca: "Como? D. Sirleide, aquela mulher ali, loura, popozuda, de minissaia? Não me lembro se foi minha secretária ou não." E o aparente descaso com o dinheiro? Na vida real, eles cheiram a grana como perdigueiros e, no entanto, se justificam: "Ihhh... como será que apareceu um milhão de reais na minha gaveta? Nem reparei. Ahhh... essa minha memória!..." Adoro também ver as fotos das placas da Sudam. Sempre aparece um terreno baldio com a placa da Sudam e o nome pomposo da empresa fantasma, onde, às vezes, ao longe, um burro pensativo pasta... E o objetivo "social" dos financiamentos da Sudam, Sudene? Nunca é uma empresa para desenvolver algo; são ranários de 10 milhões, fábricas de componentes para piscinas, empresas de ursinhos de pelúcia, ou essa maravilhosa Usimar, que ia custar 1 bilhão de reais para fazer peças de carro, mais cara que três Generais Motors na caatinga. Amo também ver o balé jurídico da impunidade. Assim que se pega o gatuno, ali, na boca da cumbuca, ali, na hora da "mão grande", surgem logo os advogados, com ternos brilhantes, sisudos semblantes, liminares na cinta, cínica serenidade de cafajestes e, por trás deles, vemos as faculdades malfeitas, as chicaninhas decoradas, os diplomas comprados. E logo acorrem os juízes das comarcas amigas, que dão liminares e mandados de segurança de madrugada, de pijama, no sólido apadrinhamento oligárquico, na cordialidade forense e freguesa, feita de protelações, dasaforamentos, instâncias infinitas, até o momento em que surge um juiz decente e jovem, que condena alguém e é logo chamado de "exibicionista"... Adoro as imposturas, as perfídias, as tretas, as burlarias, os sepulcros caiados, os cantos de sereia, as carícias de gato, os beijos de Judas, os abraços de tamanduá. Adoro tudo, adoro a paisagem vagabunda de nossa vida brasileira, adoro esses exemplos de sordidez descarada, que tanto nos ensinam sobre o nosso Brasil. Sou-lhes grato pelas sujas lições de antropologia, verdadeiros "Gilbertos Freyres" da endêmica sem-vergonhice nacional. Só um sentimento me atormenta o coração: não sei por que, também me passa pela cabeça a imagem dos corruptos chineses condenados e ajoelhados no chão, com o soldado alojando-lhes uma bala de fuzil na nuca. Penso nessas cenas e sinto uma grande inveja da China? Por que será?

102. ARNALDO JABOR. AMOR DOS ANOS 60 DEIXAVA MUITO A DESEJAR. Eu sou do tempo em que as namoradas não davam. É. Estou enojado dos dias de hoje, nesta torpe função de comentarista, em que as notícias batem-me na cara como pedras. Estou cansado. Volto ao passado, sugado por um túnel de flash-backs. Pois é; as namoradas não davam. A pílula foi a maior revolução cultural dos anos 60, pois as meninas, com pavor de engravidar, deixavam quase tudo menos o principal e os rapazes iam para casa com dor nos rins e perpetravam masturbações feéricas, ejaculando nos banheiros como foguetes à Lua. Os meninos de hoje vivem em haréns. Estes "pequenos canalhas" que eu tanto invejo torcem o nariz para deusas de 18 anos, entediados, enquanto, no meu tempo, quantas meninas eu tentei empurrar para dentro de apartamentos emprestados, ficando elas empacadas na porta, quantas unhas quebradas em soutiens inacessíveis, quantas palavras gastas em cantadas intermináveis, apelando para Deus, para Marx, para tudo, desde que as saias caíssem, as blusas se abrissem, as calcinhas voassem. Não havia motéis, então. Namorávamos em qualquer buraco: terrenos baldios, cantos da praia de noite; eu confesso que já "amassei" uma namorada dentro de uma grossa manilha encalhada na Praia de Ipanema. Os carros eram poucos e deixavam um rastro de silêncio depois que passavam. Havia menos gente. Aconteciam menos coisas. As pessoas eram mais individualizadas - fulano, sicrano, rua tal, número tal, bar tal, comida tal, um dia depois do outro... Havia tempo para o tempo passar. Mas, deixemos de filosofias e fiquemos na sacanagem. Minha primeira namorada não era mais virgem. Era uma raridade. Era uma morena febril, agressiva que dirigia uma Rural Willis do pai. Eu, que vivera até então na horrenda divisão entre puteiros e romances líricos, entre lágrimas e baldes de despejo, achei que ia começar meu primeiro amor adulto. Mas, acontece que minha namorada resolvera reconstituir sua virgindade, recusando-se a perpetuar comigo seu "erro" do passado. Arrependera-se de ter cedido uma única e sangrenta vez ao "canalha" que me antecedera e, depois de lágrimas em confessionários, resolvera manter sua pureza intacta. Para mim, foi um calvário de desejo insatisfeito. Na Rural Willis do pai dela, quase tudo era permitido, mas tudo sôfrego, apavorado, desespero e gozos no ar, ejaculações no painel - nada terminava. O apartamento era a grande esperança; se a menina entrasse, depois era mole. O problema era entrar. "Não, não adianta, Arnaldo, aí eu não entro!..." Eu, jovem comuna, tinha a chave de um "aparelho" secreto do Partidão, ali na Rua Djalma Ulrich, com um sofá-cama rasgado com o algodão aparecendo, para onde eu, da "base" cultural da UNE, tentava levar, sem sucesso, menininhas de esquerda, com triplo medo: sentimento de culpa, medo de broxar e de ser apanhado pelos comunistas "caxias". "Não. Aí eu não entro!", gemia minha namorada. Eu tentava argumentos que iam de Sartre e Simone até a revolução. "Mas, meu bem... deixa de ser 'alienada'... A sexualidade é um ato de liberdade contra a direita..." E ela: "Não entro! Isso seria também uma indisciplina pequeno-burguesa." "Mas, meu anjo - eu suplicava -, não há essência, só existência... Inclusive - disparei - você tem que assumir que não é mais virgem!" E ela, com boca de nojo: "Eu sabia que você ainda ia jogar isso na minha cara!!!" E fugia pelas escadas. O medo era a barriga, medo que a pílula matou anos depois, mas era medo também de um labirinto de liberdades assustadoras, de apego a vestidos de debutantes, organdi branco, a véus de noiva esvoaçando nas almas românticas. Ninguém dava. As poucas que o faziam eram apontadas pelos rapazes, com fascínio e suspeita, um respeito desconfiado. Quantos teriam coragem de casar com elas? Lembro de uma menina da universidade que entrava num transe meio epiléptico, de olho virado em alvo, que "dava" num sacrifício ritual de gritos e choros do qual acordava sem lembrar de nada... Era um sucesso entre comunas caretas, uma espécie de "louca da aldeia". Por isso, homens falando em "liberdade" viviam em "rendez-vous" e em aventuras com mulheres casadas, infelizes matronas (uma que levei ao "aparelho" chorava pelo marido militar e gemia de vingança: "Ele odeia comunistas... ahh... se ele soubesse..."). Ou então eram pobres empregadas carentes, "lúmpens" de rua (como se dizia); um companheiro nosso papou até uma cega do Instituto Benjamim Constant. E havia também o recurso a mulheres turistas e estrangeiras. Um comuna amigo meu "traçou" uma funcionária do consulado americano, a quem ele obrigava a chamá-lo de "Fidel Castro" (esse já foi até ministro...). Tudo era complicado, proibido, ao som do rock e bossa nova. Éramos assim em 1962. Aos poucos, melhorou... Em 63, conheci minha primeira grande paixão, minha vertigem e cegueira, pois, antes da pílula e sem recuos, ela tinha adentrado gloriosamente o "aparelho" secreto do Partidão na Rua Djalma Ulrich e, em meio a livros da Academia de Ciências da União Soviética, sob um pôster de Lenin e uma reprodução dos Girassóis de Van Gogh, "dera" para mim com amor e coragem. Foi um raio de triunfo em minha juventude. Lembro até hoje que, lá embaixo, na loja de discos, tocava o sucesso da época, "Chove Chuva Chove sem parar...", com Jorge Ben (ou seria Bicho do Mato?) Não sei. Mas, até hoje guardo na alma aquela tarde mágica e revolucionária de 63, com música do Jorge ao fundo, com a mulher com quem vivi até 69, ano em que ela resolveu me abandonar por outro, quando o grande sucesso musical era também de Jorge Ben: "Sou flamengo e tenho uma nega chamada Thereza...", o que fazia esse jovem comuna chorar pelas ruas, ao ouvir seu nome nos rádios e nas esquinas...

103. ARNALDO JABOR. VIOLÊNCIA VIROU PROBLEMA DE ESTADO-MAIOR. Sempre que escrevo sobre a violência me dá uma sensação de inutilidade. Quando vejo os movimentos de solidariedade, bandeiras brancas, pombas da paz, atores nas ruas, burgueses falando em cidadania, me dá uma sensação de perda de tempo. Nós tratamos os criminosos como se fossem "desviantes" de nossa moral, como gente que se "perdeu" da virtude e caiu no "pecado", no "mundo do crime". Não é nada disso. Eles são os novos empregados de uma multinacional. O único emprego que lhes foi oferecido no último século: a megaempresa da cocaína. Ela trouxe o poder sobre as comunidades que, somado à ignorância e à miséria, criou a crueldade sem limites, a bruta guerra animalesca. Os bandidos violentos são quase uma mutação da "espécie social", fungos de um grande erro sujo do qual nós somos cúmplices. Hoje, nós é que ficamos caretas diante deste mundo periférico que não se explica, gerando outra ética, funérea, sangrenta. A miséria armada é uma outra nação, no centro do Insolúvel. Essa gente era anônima; estão ganhando notoriedade na mídia. São vazios objetos de uma corrente de pó; nós, pequeno-burgueses, é que víamos neles até uma vaga consciência "política" de marginais. Achamos até que eles querem calar a imprensa. Nada. Mataram por matar, chamaram o Tim de X-9 e "já era" - disseram eles. Nós é que estamos lhes fornecendo uma "ideologia". Mas, não quero ficar deitando sociologia barata sobre a violência. Quem sou eu? Mas, vejo com um mínimo de bom senso que os vilões também somos nós. Eles são a prova de nosso despreparo. Os incapazes somos nós, ainda crentes de leis inúteis, de coerções superadas, de polícias falidas. Nós não fizemos nada quando as favelas eram pequenas. A miséria era dócil - podia ser ignorada. Agora, se não agirmos, isso vai virar uma endemia eterna. A lei não consegue nem instalar anticelulares nas cadeias e fica encenando comboios para a mídia, com cem policiais pra levar o Beira Mar para outra cadeia. Ninguém consegue resolver nada porque os instrumentos de defesa pública estão engarrafados numa rede de burocracias, fisiologismos, leis antigas, velhos conceitos que são facilmente superados pela eficiência "pós-moderna" dos bandidos, diretamente ligados ao ato, ao fato, à instantaneidade do mal, e sem freios éticos. Eles têm a mesma vantagem dos terroristas. Muito lero-lero racionalista ocidental, ciência, democracia e, aí, chega um arabezinho maluco com uma bomba e arrasa o "shopping center". Eles são uma empresa moderna. Nós somos o Estado ineficiente. Eles agilizam métodos de gestão. Eles são rápidos e criativos. Nós somos lentos e burocráticos. Eles lutam em terreno próprio. Nós, em terra estranha. Eles não temem a morte. Nós morremos de medo. Eles são bem armados. Nós, de "três-oitão". Eles ganham muita grana. (Um "aviãozinho" de 15 anos ganha mais por semana que um PM por mês). Eles estão no ataque. Nós, na defesa... Nós nos horrorizamos com eles. Eles riem de nós. Nós os transformamos em superstars do crime. Eles nos transformam em palhaços. Eles são protegidos pela população dos morros, por medo ou vizinhança. Nossas polícias são humilhadas e ofendidas por nós. Ninguém suborna bandido. Eles compram policiais mal pagos. Um cara que ganha 700 paus por mês não tem ânimo para combater ninguém. Eles não esquecem da gente nunca, pois somos seus fregueses. Nós esquecemos deles logo que passa uma crise de violência. A droga e as armas vêm de fora. Eles são globais. Nós somos regionais. Alguma vitória só poderá vir se desistirmos de defender a "normalidade" de nosso sistema, pois não há mais normalidade nenhuma; precisamos de uma urgente autocrítica de nossa ineficiência. O combate ao crime passa pelo combate ao nosso descaso e incompetência. A luta contra o tráfico, é óbvio, começa lá longe, nas fronteiras. Por lá entram as armas e o pó. Não adianta subir e descer de morros. Temos de fechar fronteiras. A luta contra o crime não é mais uma luta policial; não é mais a Lei contra o Pecado. Não. O crime cresceu tanto que se tornou um problema de Estado-Maior. Sim. Trata-se de uma luta política e, mais que isso, uma luta policial militar. Acho que tem de haver sim uma séria articulação das Forças Armadas com as polícias. Tem de haver generais estudando estratégias e logísticas de cercos e ataques. Meses de estudo, planos secretos, dinheiro, muito dinheiro e milhares de homens com armas modernas. E tudo isso coordenado com campanhas de esclarecimento e de proteção às comunidades que eles "protegem". "Ahh... - alguns vão gritar - o Exército não foi treinado para isso!" Pois, que seja treinado. Trata-se de uma guerra. Ou não? Não combateram a guerrilha urbana, com implacável ferocidade e competência? Aposto que outros dirão: "O Exército não é para crimes comuns; é para guerras maiores..." Para quê? A invasão da Argentina? A guerra que se anuncia é subversiva no pior sentido. Não aspira a uma ordem nova. Só quer uma vingança obtusa e a manutenção da miséria como refúgio. No fundo, muitos não admitem a ação das Forças Armadas, porque desejam ocultar a derrota de um sistema legal e policial. A guerra é reconhecimento do fracasso da política. Pois que seja. Nosso fracasso tem de ser assumido. Do contrário, continuaremos atrás das grades de nossos condomínios, dizendo: "Que horror!" para sempre. Crime hediondo é que isto não seja uma prioridade nacional. A tragédia das periferias brasileiras me lembra um terremoto ignorado, para o qual ninguém enviou patrulhas de salvamento. Já houve a catástrofe e todos nós tentamos esquecê-la, trêmulos de medo, blindados, com os "socialites" cheirando o pó malhado de otários, perpetuando esse poder paralelo, que tende a crescer.

104. ARNALDO JABOR. NAS PERIFERIAS, A 'PÓS-MISÉRIA' CRIA OUTRO PAÍS. Você já foi à periferia? Já pisou na lama - não nas poças-d'água dos Jardins - mas nas avenidas de lama, casas de lama, já visitou um buraco quente de noite, quando as luzes mortiças não iluminam teus passos trêmulos, em ruas onde não há um resquício de beleza ou esperança? Não falo tanto das favelas cariocas, barra-pesada, sem dúvida; mas, no Rio, ainda temos a música, uma cultura popular, uma ginga, uma tradição de malandragem, há a paisagem que te coopta, há o crack, o terror, tudo, mas há o mar ao longe, há um certo orgulho de se ver temido nos sinais de trânsito, há um certo charme na desgraça. Falo mais da periferia de São Paulo, onde nada mitiga o horror da mesma paisagem se estendendo por vilas e bairros, a mesma cor, a mesma casa, a mesma merda, os mesmos tijolos sem caliça, o mesmo infinito labirinto sem cultura ou amor. Há quatro filmes importantes saindo agora, sobre a mesma tragédia social das periferias: O Invasor, de Beto Brant, Estação Carandiru, de Hector Babenco, Cidade de Deus, de Fernando Meireles e Katia Lund, e O Homem do Ano, de José Henrique Fonseca. Os quatro filmes mostram esse novo mundo que cresce como um câncer à nossa volta e do qual só queremos distância e segurança. Mas os cineastas estão esfregando em nossa cara estas 'cisjordânias do lixo', estas faixas de Gaza mortas, estes 'talibans' que surgem de suas frestas. No filme O Invasor já dá para sentir seu impacto raiando como um sol negro sobre nós. O Invasor é excepcional pela maneira de ver esse mundo 'sujo' que subitamente invade a tranqüila sordidez de uns burgueses criminosos. Neste filme não se retratam mais os pobres como uma espécie de 'decadência' dos ricos, como se os excluídos fossem seres 'aquém' de nosso conforto. Não há mais a idéia de 'proletários' ou de 'infelizes' ou de 'explorados'. Eles nos mostram o Insolúvel, perplexos com o mistério da miséria. Eles não sabem o que fazer com isso, eles não se comprazem mais na denúncia de uma injustiça. Eles estão diante de uma espécie de Pós-Miséria. Isso. A 'pós-miséria' está gerando uma nova cultura, se é que esta palavra se aplica à vida esmagada tentando existir. Na minha geração, a miséria era um contradição do capitalismo, a ser minorada pela justiça social. Românticos, nós sofríamos com a miséria... dos outros, claro. Nós viríamos com a 'revolução' (ahh bons tempos...). Mas, a miséria era 'lá', nos morros, na seca, longe e gerava o crime como um desvio do comportamento 'normal'. O crime casual legitimava nosso mundinho 'bom'. Hoje, o crime nos envolve, nos incrimina. Não há mais inocentes. Hoje, nós é que ficamos caretas diante deste mundo periférico que não se explica, gerando outra ética, funérea, sangrenta, muito diferente da nossa 'bondade' de privilegiados. A miséria era nosso problema existencial. Hoje, a miséria é uma outra nação, no centro do Insolúvel, intocada pela salvação e pela esperança política. Voe de helicóptero durante meia hora sobre um mundo de lama e atraso e me diga como resolver esse problema, como acabar com isso? Como? Como, PT? Como, tucanos? 'Isso' ficou tanto tempo ignorado, que já virou 'aquilo'. Isso não está mais no campo de nossos poderes. E não falo da violência. Falo da 'normalidade' , de uma cultura bruta e nova. Antigamente, pobres e assassinos pareciam não ter vida interior. A TV, a comunicação democratizante do consumo, fez surgir uma massa miserável, mas desejante. Pulsa nos bailes funk uma brutal corrente de desejo, a violência como fome de expressão. Não é mais inferioridade; é diferença. Na época do Cinema Novo, a causa era a 'estrutura social'; depois, na contracultura dos anos 70, havia uma atração fatal pelos marginais-heróis e, hoje, temos o mistério da 'anomia', do nada. Deus morre ali, Marx morre; eles é que estão elaborando a própria 'teoria'. No filme de Beto Brant, há uma cena antológica, quando o 'rapper' negro Sabotage - que existe de verdade - faz o papel dele mesmo e canta um 'rap' num escritório de burgueses perplexos. Ali, o documento invade a ficção. É um ET contra os 'brancos' e, se há desamparo ali, é dos branquelos. Antes havia uma 'esperança' teórica; hoje há o absoluto impasse. Há 40 anos talvez houvesse uma solução higiênica, assistencialista. Hoje não adianta mais o papo de luta de classes, de conscientização, cidadania... Eles se conscientizaram sozinhos, em outra direção. Tarde demais, políticos egoístas, trata-se de um muro de chumbo, com raízes fundas. Quem resolve? Com que verbas, com que direito, com que poderes? E quem disse que eles ainda querem que nós os 'salvemos'? Já virou 'science fiction' de miséria, já é um Blade Runner de lama. Eles ainda têm muito a tirar de nosso mundo: granas, assaltos, vinganças. Nós somos a riqueza deles, sua mina. E nós, o que temos a tirar deles? O trabalho mal pago de empregadas e biscateiros? Bem... não vale mais a pena. Nosso prejuízo é maior; o trade off nos é desfavorável. Restam-nos coisinhas existenciais; eles nos ensinam a convivência com a tragédia do mundo, com opacidade da vida, um existencialismo emergencial, sangrento. Assusta-me o ódio difuso que eles nos dedicam; vocês já repararam que não há um só muro, uma reles parede em São Paulo e no Rio sem um grafite imundo e ilegível? Assusta-me a perda de energia de milhares de jovens na madrugada, dedicados a se vingar da cidade, emporcalhando-a. As pichações são a literatura da periferia que nos denuncia. Para entender o Brasil de hoje, para qualquer ação de governo, o fundamental é entender as periferias. É nosso problema mais profundo e urgente. Que vamos fazer, burgueses escravistas de 500 anos? Estes novos filmes são importantíssimos. Não para nos fornecer certezas nem consolos de boa consciência. Mas para nos mostrar que nós somos os 'excluídos' deles. Eles não são nosso problema; nós é que somos o problema deles.

105. ARNALDO JABOR. ÔNIBUS 174 É UM FILME GENIAL SOBRE NOSSO DESTINO. O Lula tem de ver este filme: Ônibus 174, um documentário de José Padilha, montado com os fragmentos assustadores da TV, no dia em que o Ônibus 174 foi seqüestrado no Rio por um rapaz muito doido, sobrevivente da chacina da Candelária. É o filme mais importante dos últimos tempos! Mais que um filme: é uma aula de Brasil para todos os que querem mudança. O pobre-diabo não ia matar ninguém mas, triturado nos dentes da miséria carioca, entre prisões e cola cheirada, entre crack e porrada e sangue e bosta, viajou até o clímax do seqüestro, fechando um roteiro de filme trágico, com princípio e fim. Ele gritava o tempo todo na janela do ônibus, (lembram-se?): "Isto não é filme não! É pra valer!!!" Era. Um filme sobre ele mesmo em que ele atuou, visto por 60 milhões de brasileiros. Todos, jovens, velhos, donas de casa, chefes de família, todo mundo tem de ver esse filme. Já. Lá está escrito o nosso destino. Todos têm de vê-lo para entender por que somos inocentes e culpados. Trata-se do retrato do Brasil de hoje, com todas as conexões do horror que se montou nas periferias do Rio e São Paulo: a falta de preparo da polícia, a miséria dos equipamentos, a estupidez política que impede a eficiência pública, a massa imunda de egoísmo, desatenção, escravismo e capitalismo selvagem que criaram a insolúvel encruzilhada em que nos encontramos. Como deixamos isso acontecer? Qualquer governo estadual ou federal tem de criar um programa para acabar com isso. E não tem mais papo de "prioridades orçamentárias"... A ópera sangrenta de miséria e crime tem de ser prioridade nacional. Os filmes como o extraordinário Notícias de uma Guerra Particular, Cidade de Deus ou Carandiru (que vem aí) mostram que a realidade no Brasil é muito mais incrível que qualquer ficção. Não vou fazer literatura aqui não. Dane-se este artigo, este meu texto inútil, mas esse bode das periferias é mais urgente que a dívida externa, que o superávit primário, é mais urgente que petróleo, produto interno. Tem de haver um urgente pacto social, seminários de especialistas para se encontrar uma solução, com muita verba. É vergonha demais que não haja um Congresso sério liderado por gente como Yvonne Bezerra e cientistas políticos para tirar as crianças da morte em vida na rua, impedir que uma mãe grávida de gêmeos seja degolada na frente do menino, como foi a mãe de Sandro, o seqüestrador do Ônibus 174. Tentem qualquer coisa, qualquer plano serve, mesmo que errado. Alguma coisa tem de ser tentada. É sujo demais o que acontece debaixo de nossos olhos fechados de medo. O governo federal tem de imediatamente alocar verbas para isso. Arrocho fiscal? Dane-se. Tem de arranjar grana, não pode continuar o horror de nossas prisões, masmorras pré-medievais, como mostra uma das mais espantosas cenas do nosso cinema, quando os presos gritam que morrer seria melhor que ficar naqueles calabouços. Nossa infância pobre não pode continuar sendo tratada como um caso de polícia ou como um "desvio da norma", como fala a linguagem jurídica pomposa, como se eles fossem cidadãos que "escolheram" o "pecado", o "crime". Não. Eles não são cidadãos, pois só são tratados assim na hora do julgamento; são pobres animais feridos e loucos, são aberrações que nós criamos, são nossos filhos com o demônio, nossos dejetos que criamos por 400 anos. É cruel demais que não haja nem que seja uma solução assistencialista, qualquer coisa para proteger essas crianças de rua. Esse filme mostra um terremoto ignorado para o qual não mandamos patrulhas de salvamento. Eu escrevi no dia do seqüestro: "A verdade é que estamos impotentes diante dos fatos, não só no crime como na política, pois as coisas passaram a mandar nos homens e os governos ficaram ficcionais. O seqüestro-pastelão foi um exemplo claro dessa impotência. Os fatos estão muito além das interpretações. Só dispomos de adjetivos e a realidade se move com duros substantivos." Só temos protestos éticos, expressões de horror e nojo diante de um labirinto de coisas concretas que, como uma favela de substantivos, se estende insoluvelmente pelo País. Esta tal "violência" não tem solução. Só seria resolvida por uma conjugação de mudanças sociais, políticas, que nenhum governo tem condições de efetuar. Esse pobre-diabo quis nos chocar com sua miséria insuportável, sua bravata pobre, com a ilógica de seu comportamento. Ele quis nos ensinar alguma coisa, mostrar que era um estorvo sim, um trambolho, um "bode preto" em nosso sossego. Tão ridículo era aquele menino seqüestrando um ônibus sem motivo que todos ansiávamos por vê-lo morto, como uma barata, um rato que estragava a linda tarde carioca, para que acabassem logo com aquela chateação, aquela zoada, e restaurassem o nosso sentimento de "normalidade". Assistimos a um show de peripécias sangrentas: marginal muito louco contra policiais babacas sem equipamento, sem comando, sem treinamento. Tudo formal, tudo adjetivo, tudo de mentira - polícia de mentira, criminoso de mentira e mulher morta de verdade. Só isto aconteceu: um nada com final sangrento. Esta é nossa angústia; mais que medo, estamos com vergonha do absurdo de nossa mentirosa e fracassada organização social. Em tudo fica provado que o principal defeito brasileiro é a ineficiência, é deixar as coisas pela metade, errar o alvo constantemente. Nunca nos importamos com as favelas. Agora, com o medo, pouco a pouco ao menos, está crescendo a consciência de nossa miséria insuportável. Ônibus 174, além de ser um dos melhores filmes de nosso cinema, é um crescimento para nossa consciência política. Vejam esse filme, vejam esse filme, chorem com ele! Falem para todos que não dá mais pé vermos o show da miséria que começa com menininhos fazendo malabarismos nos sinais de trânsito e termina tratando-os como ratos mortos à nossa frente.

106. ARNALDO JABOR. OS TERRORISTAS QUEREM MATAR O AMOR E A ALEGRIA. A discoteca explodiu em sangue em Bali e eu pensei, com ódio, por um segundo: "Por que não jogamos logo uma bomba atômica em Meca e torramos aqueles milhões de árabes sujos?" É assim que começa a avalanche do irracionalismo. O 11 de setembro foi um ataque ao mercado e ao trabalho; Bali foi um ataque ao prazer, foi um ataque a tudo que amamos: a alegria, o sexo, a música, a liberdade, a beleza. Para eles, nós somos uns cães infiéis a destruir. E não tem negócio, não tem papo-vaselina nem diplomacia, estamos condenados. Isso muda nossa vida, cultura, política, porque agora o mundo não se vê diante de um problema; o mundo se vê diante do Insolúvel. Um problema pressupõe solução; mas, não há mais solução. O problema somos nós, os demônios que impedem o Califado eterno de Alá. E não só o terrorismo que não tem solução. A migração de excluídos na Europa não tem solução, não há solução para o Iraque, para o duelo Sharon-Arafat, não há solução para Índia-Paquistão nem para a África nem para o tráfico, não há solução nem no Rio nem na Colômbia, não há solução para a miséria, para a imbecilização pela cultura de mercado para as massas. A própria idéia de "solução" é Ocidental, do século 18. Para o Islã, não há nem problema - tudo estava escrito. Os americanos, que vivem em função de "resolver" as coisas, estão desesperados, pois terão de viver sem solução - é o inferno dos obsessivos... E daí? Bem, amigos leitores, vamos encarar: o mundo sempre foi uma bosta. Só que, agora, parece que todos os tumores estão vindo a furo, todos os conflitos estão explodindo. E tudo, de repente, como um ataque epilético. De uma forma repugnante, a verdade atual apareceu, pois nem lembrávamos da existência do Islã. O terror insolúvel talvez nos torne mais humildes diante da vida. Teremos de ficar mais "orientais", mais "fatalistas", mais conformados com o erro do mundo. Acaba a idéia de que, um dia, chegaremos "lá". Lá, aonde? A uma sociedade boa, justa, pacífica? "Nonada", jamais. Acabou a idéia de uma grande "pátria" ocidental-americana, organizando a sociedade como um parque temático, um supermercado ou uma disneylândia. A globalização só conseguiu "globalizar" o terrorismo, emprestando tecnologia à miséria. Mandamos os McDonald's; eles nos mandam homens-bomba. O terror trouxe de volta uma neoguerra fria: o medo, a face da morte que andava escondida, sublimada nos filmes, na gargalhada infinita do "entertainment". O terror acabou com nossa idéia de "finalidade", de "projeto". Nosso projeto foi reduzido a controlar os fanáticos da Al-Qaeda, os bodes pretos da miséria e da superstição. Nosso projeto é localizar bueiros com bombas e cartas venenosas. Esvaziou-se nosso desejo de tudo controlar, a busca do destino sem acontecimentos, sem sustos, sem morte súbita. Acabou o happy end, a lógica, o princípio, o meio e o fim. A cultura de massas tenta controlar a morte por sua transformação em espetáculo. A ficção dos filmes catástrofe sublimava nosso medo. Agora, a morte não mais estará num leito burguês com extrema-unção e família chorando, a morte será um cachorro pelas ruas, atacando de repente. Como o filme realista que Osama fez. Vai acabar aos poucos o sentimento ocidental de superioridade, acaba a fleugma, a displicência "debonnaire", acaba a "coolness", pois o homem-bomba desbancou o homem-cool; surgiu o horrendo "outro", sujo e mortífero, suicidando-se às gargalhadas. O terror está nos fazendo viajar no tempo. Em 30 minutos, fomos jogados de volta à Idade Média, terminando com o ritmo veloz do progresso e instalando a paciência oriental, a lentidão da vingança fria. Acabou o drama, esse "banho-maria" da infelicidade. Agora, ou teremos tragédia ou chanchada. A arte ficou inútil, quase ridícula diante das "instalações" terroristas, os defensores dos direitos humanos ficaram de mãos abanando, acaba a melancolia diante da realidade bruta, o surrealismo virou piada diante das ondas de antrax, o mito do indivíduo livre e indivisível dará lugar ao indivíduo esfacelado por bomba, coberto de pizzas sangrentas, os mortos caídos sob a música "tecno" em Bali, no mais belo lugar do mundo, assassinados por um DJ suicida. Acabaram os frutos produtivos da reforma protestante do século 16. Osama nos joga de volta ao ano 700, quando surge o guerreiro Maomé para iniciar uma guerra desigual que rola há 2 de mil anos, sem quer percebêssemos - uma guerra desigual: o Deus ocidental passivo diante do violento Maomé, armado até os dentes. Os fanáticos do Islã não querem construir nada. Já estão prontos. Já chegaram lá. Já vivem na eternidade. Querem apenas destruir o Demônio - que somos nós. A guerra é assimétrica não só pelos absurdos exércitos caríssimos contra um só homem invisível, mas também porque só a América tem uma ideologia. Eles têm a teologia. Tanto o socialismo como o capitalismo surgiram do racionalismo ocidental. O Islã chega e acaba com a filosofia; fica só vida contra morte. O Islã transcendeu o político há muito tempo. Suas multidões jazem na miséria felizes, conformados, perfazendo um ritual obsessivo cotidiano que os libertou da dúvida e do medo. Sua obediência ao Corão lhes ensina tudo, desde como cortar as unhas até como matar "cães infiéis". Os miseráveis amam a própria miséria. Sua fé sem limites é a grande alegria e sossego das classes dominantes teocráticas e petrolíferas. Albert Camus disse: "O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo" e não sabia que estava sendo profético. Descreveu também o mito de Sísifo, o homem condenado pelos deuses a rolar eternamente uma pedra morro acima. É o nosso novo destino. O único jeito é sermos felizes assim mesmo. Como ele escreveu: "É preciso imaginar Sísifo feliz..." Nossa felicidade terá a morte sempre do lado. "Il faut imaginer Sysiphe heureux..."

107. ARNALDO JABOR. OS HOMENS DESEJAM AS MULHERES QUE NÃO EXISTEM. Está na moda - muitas mulheres ficam em acrobáticas posições ginecológicas para raspar os pêlos pubianos nos salões de beleza. Ficam penduradas em paus-de-arara e, depois, saem felizes com apenas um canteirinho de cabelos, como um jardinzinho estreito, a vereda indicativa de um desejo inofensivo e não mais as agressivas florestas que podem nos assustar. Parecem uns bigodinhos verticais que (oh, céus!...) me fazem pensar em... Hitler. Silicone, pêlos dourados, bumbuns malhados, tudo para agradar aos consumidores do mercado sexual. Olho as revistas povoadas de mulheres lindas... e sinto uma leve depressão, me sinto mais só, diante de tanta oferta impossível. Vejo que no Brasil o feminismo se vulgarizou numa liberdade de "objetos", produziu mulheres livres como coisas, livres como produtos perfeitos para o prazer. A concorrência é grande para um mercado com poucos consumidores, pois há muito mais mulher que homens na praça (e-mails indignados virão...) Talvez este artigo seja moralista, talvez as uvas da inveja estejam verdes, mas eu olho as revistas de mulher nua e só vejo paisagens; não vejo pessoas com defeitos, medos. Só vejo meninas oferecendo a doçura total, todas competindo no mercado, em contorções eróticas desesperadas porque não têm mais o que mostrar. Nunca as mulheres foram tão nuas no Brasil; já expuseram o corpo todo, mucosas, vagina, ânus. O que falta? Órgãos internos? Que querem essas mulheres? Querem acabar com nossos lares? Querem nos humilhar com sua beleza inconquistável? Muitas têm boquinhas tímidas, algumas sugerem um susto de virgens, outras fazem cara de zangadas, ferozes gatas, mas todas nos olham dentro dos olhos como se dissessem: "Venham... eu estou sempre pronta, sempre alegre, sempre excitada, eu independo de carícias, de romance!..." Sugerem uma mistura de menina com vampira, de doçura com loucura e todas ostentam uma falsa tesão devoradora. Elas querem dinheiro, claro, marido, lugar social, respeito, mas posam como imaginam que os homens as querem. Ostentam um desejo que não têm e posam como se fossem apenas corpos sem vida interior, de modo a não incomodar com chateações os homens que as consomem. A pessoa delas não tem mais um corpo; o corpo é que tem uma pessoa, frágil, tênue, morando dentro dele. Mas, que nos prometem essas mulheres virtuais? Um orgasmo infinito? Elas figuram ser odaliscas de um paraíso de mercado, último andar de uma torre que os homens atingiriam depois de suas Ferraris, seus Armanis, ouros e sucesso; elas são o coroamento de um narcisismo yuppie, são as 11 mil virgens de um paraíso para executivos. E o problema continua: como abordar mulheres que parecem paisagens? Outro dia vi a modelo Daniela Cicarelli na TV. Vocês já viram essa moça? É a coisa mais linda do mundo, tem uma esfuziante simpatia, risonha, democrática, perfeita, a imensa boca rósea, os "olhos de esmeralda nadando em leite" (quem escreveu isso?), cabelos de ouro seco, seios bíblicos, como uma imensa flor de prazeres. Olho-a de minha solidão e me pergunto: "Onde está a Daniela no meio desses tesouros perfeitos? Onde está ela?" Ela deve ficar perplexa diante da própria beleza, aprisionada em seu destino de sedutora, talvez até com um vago ciúme de seu próprio corpo. Daniela é tão linda que tenho vontade de dizer: "Seja feia..." Queremos percorrer as mulheres virtuais, visitá-las, mas, como conversar com elas? Com quem? Onde estão elas? Tanta oferta sexual me angustia, me dá a certeza de que nosso sexo é programado por outros, por indústrias masturbatórias, nos provocando desejo para me vender satisfação. É pela dificuldade de realizar esse sonho masculino que essas moças existem, realmente. Elas existem, para além do limbo gráfico das revistas. O contato com elas revela meninas inseguras, ou doces, espertas ou bobas mas, se elas pudessem expressar seus reais desejos, não estariam nas revistas sexy, pois não há mercado para mulheres amando maridos, cozinhando felizes, aspirando por namoros ternos. Nas revistas, são tão perfeitas que parecem dispensar parceiros, estão tão nuas que parecem namoradas de si mesmas. Mas, na verdade, elas querem amar e ser amadas, embora tenham de ralar nos haréns virtuais inventados pelos machos. Elas têm de fingir que não são reais, pois ninguém quer ser real hoje em dia - foi uma decepção quando a Tiazinha se revelou ótima dona de casa na Casa dos Artistas, limpando tudo numa faxina compulsiva. Infelizmente, é impossível tê-las, porque, na tecnologia da gostosura, elas se artificializam cada vez mais, como carros de luxo se aperfeiçoando a cada ano. A cada mutação erótica, elas ficam mais inatingíveis no mundo real. Por isso, com a crise econômica, o grande sucesso são as meninas belas e saradas, enchendo os sites eróticos da internet ou nas saunas relax for men, essa réplica moderna dos haréns árabes. Essas lindas mulheres são pagas para não existir, pagas para serem um sonho impalpável, pagas para serem uma ilusão. Vi um anúncio de boneca inflável que sintetizava o desejo impossível do homem de mercado: ter mulheres que não existam... O anúncio tinha o slogan em baixo: "She needs no food nor stupid conversation." Essa é a utopia masculina: satisfação plena sem sofrimento ou realidade. A democracia de massas, mesclada ao subdesenvolvimento cultural, parece "libertar" as mulheres. Ilusão à toa. A "libertação da mulher" numa sociedade ignorante como a nossa deu nisso: superobjetos se pensando livres, mas aprisionadas numa exterioridade corporal que apenas esconde pobres meninas famintas de amor e dinheiro. A liberdade de mercado produziu um estranho e falso "mercado da liberdade". É isso aí. E ao fechar este texto, me assalta a dúvida: estou sendo hipócrita e com inveja do erotismo do século 21? Será que fui apenas barrado do baile?

108. ARNALDO JABOR. ESTÁ ROLANDO O CORO DESAFINADO DOS CANDIDATOS. Lula curvou a cabeça sobre o prato e orou: "Que Jesus nos dê sempre o pão..." - sob o olhar paternal do bispo Rodrigues, do PL e da Igreja Universal. Enquanto rezava, Lula pensava: "É dura a vida de um revolucionário. Terei de me aliar a estes exploradores da fé para ser eleito. Oh... que contradição... deve ser a tal 'contradição secundária' de que falava Mao e que o Genoíno cita tanto. Tudo bem. Eu me uno ao PL e, depois, no poder, eles que se danem..." Enquanto ele orava, o bispo Rodrigues do PL pensava: "Esse comuna acha que nos enrola. Ele está fazendo essa cara de bonzinho, mas nos acha um 'mal necessário'. Mas, no poder, ele vai ter de nos dar, no mínimo, o Ministério das Comunicações, algo assim, para a gente ferrar o Roberto Marinho e ampliar a Igreja Universal. Lula nem pense que somos uns babacas religiosos. Somos empresários ateus que resolvemos industrializar Deus. Nada mais lucrativo do que a miséria e a ignorância, inventamos o imenso mercado da miséria e dos 10 por cento. Se ele bobear, a gente chama ele de 'Satanás' de novo. E Lula falava com seus botões: "Quando eu surgi na política, eu não queria saber desses intelectuais babacas, dessas professoras da USP que queriam dar para mim, porque eu era um símbolo sexual operário. Eu era a renovação ideológica, a crítica da crítica velha. Hoje, esses ideólogos que me paparicam me achavam 'primitivo', 'um simplista que precisava ser educado pelos marxistas'. Mas agora, chega. Não vou perder pela quarta vez. Preciso desses bispos da Igreja Universal e dane-se que o PL apoie no Acre a turminha do esquartejador Hildebrando e em Alagoas, a gang do Collor..." E o d. Marcelo da CNBB soube e reagiu: "Virgem Maria!... O Lula nos enrascou. Como vou fazer propaganda do PT com ele agarrado nos bispos Macedo e Rodrigues? O Lula está criando uma situação cheia de complexidades, como se fosse um tucano... Para nós, da igreja política, os simplismos do PT caíam-nos como uma luva: 'a justiça é injusta'; 'o pobre é pobre...' A sagrada ignorância política da Igreja não pode se ater a meros detalhes como 'realpolitik', 'condições objetivas', etc... Somos o bem contra o mal, Deus contra o Diabo na terra dos desinformados. Lula está com Jesus do Macedo ou o nosso?" E o filósofo do PT meditou: "Ohhh... o Lula quer estragar meu sonho... passei os últimos 30 anos de minha vida estudando Marx, Lenin e Gramsci; há décadas eu cultivo a beleza das impossibilidades, vivo com o doce 'frisson' da 'boa consciência'. Eu que sempre amei a utopia impossível como um Espírito Santo das esquerdas. Eu, aqui no meu cardigã de cashmere, sonhando com um mundo irreal, uma república imaginária, onde o Zé Dirceu distribuiria bens a todos 'segundo suas necessidades e capacidades', e vem o Lula sujar minha lucidez dialética? Que vou dizer na pizzaria utópica?" E os sectários do PT choraram: "Meu Deus... eu sou do PT e sempre me agarrei na 'pureza' para justificar meus fracassos. E eu sempre pude erguer a fronte suada de dignidade e bradar nos bares e churrascarias: 'Eu sou puro! Eu sou ético!' Sou a favor do Povo, mesmo que eu nunca tenha feito nada para o 'povo', esta entidade mística que adoramos... Agora, estou sem rumo... Eu que sempre quis perder eleições pois só o fracasso enobrece, o doce fracassso, a surra, a sova, a santificação da derrota, o manto sagrado do naufrágio. Eu, que sempre vivi de meu radicalismo, agora sou obrigado a me defrontar com essas manobras do Lula..." E o Garotinho esperneou - "E eu? Eu... que teci uma ideologia populista de direita disfarçada de centro-esquerda, eu que finjo há anos que acredito em Deus e que sou 'evangélico' para captar os votos desses idiotas, eu que consegui enganar os cariocas, que se pensam malandros mas que são otários deslavados, eu que refundei um neo-chaguismo, eu que nunca parei para administrar nada e que só penso na Presidência como um 'Oscar' para minha mediocridade, eu que transformei minha Rosinha na Evita Peron dos descamisados de Campos, e vem agora esse sapo barbudo querer comer na minha horta, rebolando para meus evangélicos? Vingança!" E o cientista político amargurado pensou: "Santo Weber!... As gafes que o Lula tem aprontado são o retrato da atual mixórdia ideológica do PT. As gafes são exemplares: elogiou o boçal do Hugo Chávez que tem algo de Guevara misturado a leão-de-chácara de bordel. No imaginário de Lula, ele é um 'macho bolivariano'. Depois, Lula baba diante de Fidel e elogia os agricultores franceses que nos destroem, só porque eles têm uma aura nacionalista. O rocambole ideológico do Lula vai de um vago terceiro mundismo da guerra fria variando para um arremedo grosso de 'realpolitik' tucana, com as barretadas ao PL, ao Quércia, a tudo. A visão aliancista do PT é apenas um 'noivado com traição'. Eles nunca entenderão que a aliança é necessária não só para ganhar, mas para dar conta da complexidade dos desejos do País. Nunca entenderão que o Brasil é uma frágil máquina formada em séculos oligárquicos e que não pode ser desativada apenas com um elã de ruptura, um machismo 'revolucionário' porque, aí, a máquina se quebra e nada mais funcionará. Se isso acontecer, seremos a Argentina de amanhã." Roseana - "Sinto-me fraca... por quê? Sou legal, estudei História, mas sinto atrás de mim uma corte de oligarcas, uma multidão de interesses nordestinos se acotovelando, com a fome de mil sudenes, mil sudams; sinto-me uma Joana d'Arc na frente de um exército que quer se vingar de São Paulo." Serra - "Meu Deus... Passei 14 anos no exílio estudando; todo mundo diz que eu sou o melhor candidato, preparado para o governo e me boicotam. Acabo tendo de ir ao programa do Ratinho..." Ciro - "Sou bonito, fui bom governador e agora estou ao lado de Roberto Jefferson e no colo do Brizola... Devia ter ficado no PSDB..." Itamar - "Arrrghhhhh....babb buub....buá..."

109. ARNALDO JABOR. BRASIL SEMPRE TEVE A CULTURA DO DESRESPEITO. Agora, todo mundo entende de violência. É o que vejo nos jornais, revistas e nos papos de bêbados em bares. Todo mundo que tem o privilégio de ter projetos de vida, de construir futuro e família, acha que é diplomado em violência. É o chamado 'bom senso de gravata'. Por outro lado, quem vive além da segura fronteira entre a morte e a vida (única fronteira) fica mais quieto, descrente. Daqui a pouco, como uma explosão se perdendo no horizonte, o clamor público deve amainar. O Brasil é assim - maníaco e depressivo; depois da grita, vem o lamento, depois o esquecimento. Vamos ver se agora muda. Ninguém consegue resolver nada porque os instrumentos de defesa pública estão engarrafados numa rede de burocracias, fisiologismos, leis antigas, velhos conceitos que são facilmente superados pela eficiência 'pós-moderna' dos traficantes e seqüestradores, diretamente ligados ao ato, ao fato, à instantaneidade do mal, favorecida pela ausência de freios éticos ou piedosos. A mesma instantaneidade narcísica do consumismo moderno atingiu os criminosos. 'Fast food, fast buy, fast fuck, fast love, (e, agora) fast crime'. Eles têm a mesma vantagem dos terroristas. Muito lero-lero racionalista ocidental, cultura, ciência, democracia e, aí, chega um arabezinho maluco com uma bomba e arrasa o 'shopping center'. Quanto mais complicada a democracia e suas redes de proteção, mais protegido estará o criminoso. Quanto mais estrangeiro a nossos pudores, mais rápido o bandido - bastam a 'mão grande', a raiva acumulada, a ausência de esperança, de virtudes. E continuamos a achar que há uma 'solução' que não é aplicada por falta de vontade, apenas. Continuamos a sonhar com um futuro de harmonia - um dia, conquistaremos uma harmonia funcional liberal: pobres em seus barraquinhos, riquinhos em seus barquinhos, virtudes de um lado e vícios do outro, 'playboys' nos Jardins e 'manos' na periferia, talvez ajardinada para ficar mais legalzinha, mais palatável, com casinhas pintadas. Basta dar uma voadinha de helicóptero pela periferia de São Paulo ou pelo Complexo do Alemão, no Rio, e ver que não há 'solução'. O labirinto de impossibilidades se soma ao labirinto de incapacidades, à falta de dinheiro, ao inferno dos interesses e tudo se paralisa, se aniquila diante da singeleza minimalista do crime, que sempre encontra uma brecha para entrar. A verdade é que o Brasil sempre teve a 'cultura do desrespeito' à Lei. Nossa sociedade foi montada na transgressão à ordem, no horror à coisa pública, horror aos direitos da maioria; somos uma sociedade de contraventores, de maus pagadores, de sonegadores de impostos, de pequenos psicopatas 'light' do dia-a-dia, uma sociedade de malandros cariocas ou bigodudos paulistas espertos. Nossa violência é difusa, herdeira do escravismo, está nos quartos de empregada, no trato com os pobres, no egoísmo endêmico dos burgueses. Nossa violência simbólica também é visível em toda parte; basta ligar a TV com controle remoto: clic, pastor evangélico sórdido engana desesperados, clic, jovem anda de quatro com biquíni fio dental, clic, feiticeiras rebolam as bundas, clic, ratinhos humilham aleijados, clic, mau gosto geral, grossura geral, clic, tudo cercado pelas maravilhosas mercadorias nos comerciais. Este é o caldo de cultura onde nasce a prática do desejo criminoso. Horror à lei A verdade é que nunca tivemos amor à nossa polícia. Nunca amamos nossos policiais como os ingleses que se orgulham dos 'bobbies' e da Scotland Yard, como os americanos que louvam os heróis policiais em seus filmes. A polícia sempre foi tratada aos pontapés em nossa cultura. Houve mesmo um tempo em que os marginais e criminosos eram vistos pela 'cultura crítica' como primos da 'revolução', como heróis coadjuvantes de Guevara ou então como galãs de um 'desbunde politizado', na base do 'seja marginal, seja herói'. Eram primitivos contestadores do 'sistema'. Vingadores da miséria. O 'mal' lutava pelo 'bem'. Enquanto isso, os policiais eram os 'agentes do mal', agentes das elites, da propriedade privada. Assim, eram vistos pelos intelectuais: como fascistas e vendidos. E, pelos burgueses eram considerados incompetentes e inúteis cães de guarda, que não cumpriam seus deveres do extermínio de sangue. Até hoje vemos esta divisão: os exigentes brutais e os delicados. Os 'malufinhos' e 'afanásios' que berram: "ROTA na rua!" E os que falam em 'causas sociais'. Claro que ganhando merrecas entre nuvens de pó e sangue, partiram para a simbiose com bandidos... Agora, surge uma nova sociedade feita de fome e 'funk', de rancor e desejo de consumo. E são estranhos frutos do desenvolvimento e da democracia. Há uma terceira coisa crescendo aí fora, como um monstro Alien que se esconde nas brechas da tecnologia e da prosperidade. Não podem mais ser chamados de 'marginais', pois se constituem com contratos sociais, siglas e bandeiras. Surge um sujo país sangrento ao nosso lado, que pode levar à zonas dominadas, como na Colômbia. O paradoxo do progresso excludente gera essa violência, antes invisível. Há pouca inteligência objetiva na enxurrada de opiniões na imprensa. Uma exceção é o texto do coronel reformado da PM de São Paulo, hoje pesquisador do Instituto Fernand Braudel, José Vicente da Silva Filho: "Não podemos enfrentar o crime do século 21 com uma polícia do século 19. (...) Os governos consideram o policial como um funcionário qualquer, esquecendo que nenhuma função pública reúne tantos fatores estressantes como o trabalho policial. Sem investir na capacitação, em condições de trabalho, em salários decentes, direitos especiais como aposentadoria diferenciada, não se pode ter combatentes aptos contra o crime" (Veja). Gente como ele, criada na linha de fogo, enxerga o óbvio: "É preciso se orgulhar da polícia, fortalecer a polícia." Esse cara devia ser chamado para consultas.

110. ARNALDO JABOR. FHC E BUSH FALAM E PENSAM DE OLHOS NOS OLHOS. Vou tirar os óculos para você ver melhor meus olhos - disse FHC para Bush. (Será que eu devia dizer isso? No Brasil, minhas piadas viram gafes... mas essa é boa pra relaxar e marcar posição...) - Ha... ha... ha... - gargalhou Bush... (Será que esse brasileiro veio aqui pra me gozar? Ontem eu disse que ia olhar nos olhos dele para intimidá-lo, mas ele é hábil...) Entre mim e o presidente... (Como se pronuncia o nome dele, my God?) entre mim e... aqui... o nosso amigo do Brasil... há um diálogo proveitoso...Teremos relações frutíferas!... (Esse brasileiro me encabulou... não consigo parar de olhar nos olhos dele... será que ele vai pensar que eu sou bicha?...) - Conheci seu pai, presidente Bush, e estou muito feliz de ver como o senhor é... (Olhos tristes, boquinha carente...) - (Pronto, já começou a falar do papai... Quando serei eu mesmo?) É uma honra dar as boas-vindas ao chefe de um país tão importante e que também é um bom homem - balbuciou Bush. - Obrigado... Mr. Bush. (Como sabe ele se eu sou um "bom homem"? Bem "texano", isso. "Bom homem" é o cacete!) O senhor também é um homem bom e eu acho que os EUA e o Brasil têm de estar próximos, e não apenas em termos de comércio (É a única porra que importa, cacete...) mas também pela segurança no hemisfério. - Isso mesmo, mr. Hendrik Cardoso: democracia na América do Sul. ( Eu devia era falar da Alca, mas o Colin Powell e a Condolezza mandaram eu ficar calado - por que botei esses crioulos na Casa Branca?) Mais importante que negócios é a defesa dos direitos humanos! (Ohh... bullshit!) - É... mas, para o senhor, primeiro vem o interesse americano, claro... Para mim, primeiro vem o interesse brasileiro... ( Ha ha... xeque-mate!) - Claro... mr. Cardoso, temos de unir nossos interesses... (Esse latino é bem folgado... Parece estar me fazendo um favor...) - As discordâncias são normais, mas saberemos resolvê-las... (Dá-lhe, Fernandinho... Ha ha... é a primeira vez que não estamos lhe lambendo o saco!... O Bush é que está pedindo nossa cooperação para a Alca sair!) - Claro, mr. Cardoso, com um mercado aberto e frutífero, o futuro do Brasil será glorioso! (Tenho que dobrar esse cara para a Alca...) - Claro, mr. Bush... Nossas relações serão sempre fruitful, frutíferas!... (Será que ele sacou a "indireta"? "Frutíferas" são nossas laranjas que vocês vetam, seus sacanas, com suas sobretaxas hipócritas... Eu não sou babaca não, estudei "O Capital" com o Gianotti em 58. Pensa o quê?) - Há um belo futuro em nossas relações, mr. Cardoso... (Ai, que saco! Bons tempos do big stick, do "belo sorriso na boca e um porrete na mão". Esses latinos têm mais é que abrir esse mercado e parar com esse papo de indústria, de informática... Exportem matéria-prima, porra... Ele não presta atenção no que eu falo... Esse sorriso tem uma ponta de mofa... Ele deve preferir o Clinton...) - Quando eu estive aqui, mr. Bush, nesta mesma cadeira, com mr. Clinton... - (Viu, eu não disse? Ninguém me ama...) Sim, eu me lembro... Vocês foram para Camp David... ( disseram-me que ele também fumou maconha, mas não tragou... São dois narcocriptocomunas!) - ... pois eu falei ao Bill (ai, que intimidade...) que as Américas teriam um futuro sólido e um projeto... - "Frutífero"!... (My God,... só me ocorre esta palavra...) O Brasil, mr. Cardoso, é um país muito bom e seguro para se investir dinheiro... (Ihhh, cacete!... Por que a Condolezza me fuzilou com os olhos? Ihh... acho que amanhã as ações brasileiras vão estourar na Bolsa mundial! O Cardoso está deliciado com este marketing gratuito que fiz!...) - É isso aí, Bush! O Brasil é ótimo pra investimentos... Nós pagamos mais de 15 por cento ao ano em renda fixa... quem dá isso? Ninguém. E com uma boa carteira de ações... (Ihhh! Cala-te, boca! O Celso Lafer já me olhou... Eu não posso fazer propaganda, não sou corretor, porra...) Nossa economia está consolidada... Com os EUA e o mundo teremos relações comerciais maduras e... - ..."Frutíferas", Mr. Cardoso. (Shit! De novo!... Vou mudar de assunto) Precisamos combater o narcotráfico, pois a Colômbia está perto do Brasil... - É... mas são mais de mil quilômetros de distância... mr. Bush... Se os narcotraficantes ousarem atravessar nossa fronteiras, terão o tratamento que merecem (Cruzes! Como estou corajoso! Mas, que Colômbia o cacete... eles querem é criar um bafafá armado, um incômodo estratégico na região... Querem gerar turbulência capaz de atrasar nossa integração política e o Mercosul...). - Isso, mr. Cardoso! As drogas são terríveis!... Temos de combater o Narcosul... isto é, o narcotráfico... (Ihhh, cacete, fiz um "ato falho". É Mercosul, sucker... Ainda bem que a Argentina come na nossa mão e vai trair... o Chile está no papo. Com a Colômbia, eu encurralo de tabela aquele escroto do Chavez e acabo com a mania de independência desta putada, que quer negociar com a UE.) - Nosso secretario para América Latina... o Otto Rich... está atento para o problema.... - Ahh... o Otto Rich... legal... (Eis a idéia que esse cara faz da gente, nomeando aquele verme de direita. E aí?... Esse cara não vai falar da Alca? É a única coisa que eles querem...) - Nosso encontro é muito importante... Somos dos amigos... mi mujer es mejicana... (Por que não posso falar da Alca, das patentes, da indústria farmacêutica que pagou minha eleição? O Colin Powell não quer... Diz que minha função hoje é só sorrir... OK, depois eu mando a tropa de choque dos negociadores de elite.) - Si... yo sé... usted habla espanol muy bien, mr. Bush... (Espero que os itamaratecas depois não abram as pernas para os negociadores deles...) - La lengua brasileña, el español... es muy linda... - Claro, mr. Bush... (Que besta!... Não digo nada... minha função é apenas sorrir). Tenho certeza, mr. Bush, que nossas relações serão muito amigas, duradouras e... - Frutíferas, mr. Cardoso... (oh... shit!) - Frutíferas, mr. Bush... (ha... ha...).

111. ARNALDO JABOR. VALE A PENA VER DE NOVO A ZONA GERAL DO PAÍS? Meninos, eu vi... Eu vi as empregadas gritando, a cozinheira chorando, o rádio dando a notícia: "Getúlio deu um tiro no peito!"; eu, pequeno, imaginava o peito sangrando - como é que um homem sai da Presidência para o nada? Meninos, eu ouvi, anos depois, no estribo de um bonde: "O Jânio renunciou!" Como? Tomou um porre e foi embora depois de proibir o biquíni, briga de galo e de dar uma medalha para o Che, eu vi a história andando em marcha à ré e eu entendi ali, com o Jânio saindo, que os bons tempos da utopia de JK tinham acabado, que alguma coisa suja e negra estava a caminho como um trem fantasma andando pra trás; depois, meninos, eu vi o fogo queimar a UNE, onde chegaria o "socialismo tropical", em abril de 64, quando fugi pela janela dos fundos, enquanto o general Mourão Filho tomava a cidade, dizendo: "Não sei nada. Sou apenas uma vaca fardada!" Eu vi, meninos, como num pesadelo, a população festejando a vitória do fascismo, com velas na janela e rosários na mão ; vi a capa do O Cruzeiro com o novo presidente da República de boné verde, baixinho, feio, quem era? Era o Castelo Branco e senti que surgia ali um outro Brasil desconhecido e, aí, eu vi as pedras, os anúncios, os ônibus, os postes, o meio-fio, os pneus dos carros, como um filme de horror; eu, que vivera até então de palavras utópicas, estava sendo humilhado pela invasão do terrível mundo das coisas reais. Depois, vi a tristeza dos dias militares, Brasil ame-o ou deixe-o, a Transamazônica arrombando a floresta, vi o rosto patético de Costa e Silva, a gargalhada da primeira perua Yolanda, mandando o marido fechar o Congresso, vi e ouvi Jorge Curi na TV, numa noite imunda e ventosa de dezembro lendo o AI-5, o fim de todas as liberdades, a morte espreitando nas esquinas, a gente enlouquecendo e fugindo pela rua em câmera lenta, criminosos na própria terra; depois, vi o rosto terrível do Medici, frio como um vampiro, com sua mulher do lado, muito magra, infeliz, vi tudo misturado com a Copa do mundo de 70, Pelé, Tostão, Rivelino e porrada, tortura, sangue dos amigos guerrilheiros heróicos e loucos, eu sentindo por eles respeito e desprezo, pela coragem e pela burrice de querer vencer o Exército com estilingues; não vi, mas muitos viram meu amigo Stuart Angel morrendo com a boca no cano de descarga de um jipe, dentro de um quartel, na frente dos pelotões, enquanto, em São Paulo, Herzog era pendurado numa corda e os publicitários enchiam o rabo de dinheiro com as migalhas do "milagre" brasileiro, enquanto as cachoeiras de Sete Quedas desapareciam de repente; depois eu vi os órgãos genitais do general Figueiredo, sobressaindo em sua sunguinha preta, ele fazendo ginástica, nu, para a nação contemplar, era nauseante ver o presidente pulando a cavalo, truculento, devolvendo o País falido aos paisanos, para nós pagarmos a conta da dívida externa, vi as grandes marchas pelas "diretas" e vi, estarrecido, um micróbio chegando para mudar nossa história, um micróbio andando pela rua, de galochas e chapéu, entrando na barriga do Tancredo na hora da posse e matando o homem, diante de nosso desespero, e eu vi então a democracia restaurada pelo bigodão de Sarney, o homem da ditadura, de jaquetão, posando de oligarca esclarecido; vi o fracasso do Plano Cruzado, depois eu vi a volta de todos os vícios nacionais, o clientelismo, a corrupção, a impossibilidade de governar o País, a inflação chegando a 80 por cento num único mês, meninos, eu vi as maquininhas do supermercado fazendo tlec tlec tlec como matracas fúnebres de nossa tragédia, eu vi tanta coisa, meninos, eu vi a inflação comer salários dos mais pobres a 2% ao dia, eu vi o massacre de miseráveis pela fome, ou melhor, eu não vi os milhões de mortos pela correção monetária, não vi porque eles morriam silenciosamente, longe da burguesia e da mídia, mas vi os bancos ganhando bilhões no over e no spread, dólares no colchão, a sensação de perda diária de valor da vida, eu vi a decepção com a democracia, pois tudo tinha piorado, eu vi de repente o Collor vindo de longe, fazendo um cooper em direção a nosso destino, bonito, jovem, fascinando os otários da nação, que entraram numa onda política "aveadada", dizendo: "Ele é macho, bonito e vai nos salvar...", eu vi o Collor tascar a grana do País todo e depois a nação passar dois anos "de quatro", olhando pelo buraco da fechadura da Casa da Dinda, para saber o que nos esperava, eu vi Rosane Collor chorando porque o presidente tirara a aliança, eu vi a barriga de Joãozino Malta, irmão da primeira dama, dando tiros nas pessoas, eu vi a piscina azul no meio da caatinga, eu vi depois a sinistra careca de PC juntando o bilhão do butim, eu vi Zélia dançando o bolero com Cabral em cima de nossa cara, eu vi a guerra dos irmãos Collor, Fernando contra Pedro e, depois, como numa saga grega, eu vi o câncer corroendo-lhe a cabeça, eu vi o impeachment, eu vi tanta coisa, meninos, e depois eu vi, por acaso, por mero acaso, por uma paixão de Itamar, eu vi o FHC chegar ao poder, com a única tentativa de racionalidade política de nossa história num antro de fisiológicos e ignorantes e, aí, eu vi a maior campanha de oposição de nossa época, implacável, sabotadora, eu vi a inveja repulsiva da Academia contra ele, eu vi a traição de seus aliados, todos unidos contra as reformas, uns agarrados na corrupção e outros na sobrevida de suas doenças ideológicas infantis. E agora eu vejo o estranho desejo de regresso ao mundo do atraso, do erro e das velhas utopias. Vejo a direita se organizando para cooptar a oposição, comendo-a , vejo um exército de oligarcas se preparando para a vingança, vejo ACM, Barbalhos e Sarneys prontos para tomar o Congresso de assalto, para impedir qualquer mudança e voltar aos bons tempos da zona geral. Meninos, vocês viram também, mas acho que esqueceram.

112. ARNALDO JABOR. CIDADE DE DEUS DESMASCARA NOSSA CRUELDADE. Não. Cidade de Deus não é um filme, apenas. É um fato importante, é um acontecimento crucial, um furo na consciência nacional. Fui ver o filme e saí modificado. Tenho a impressão de que esse filme não se diluirá como um espetáculo digerível. Nós não vemos esse filme; esse filme nos vê. Com essa epopéia da guerra dos miseráveis que nasceram no livro de Paulo Lins, sentimo-nos desamparados na platéia. Nossa vida de espectadores, com roupas e comidas, com namorada do lado, com pizza depois, ficou ridícula. Cidade de Deus faz balançar nossa sensação de "normalidade". Não dá mais para acreditarmos apenas que o crime tem de ser combatido para que a "ordem" seja mantida. Destrói-se nosso "ponto de vista" e viramos uma platéia de culpados. Esse filme agrega uma descoberta à opinião pública do País que nunca mais poderá ser ignorada. Enquanto a miséria era dócil, ninguém se preocupava com ela. Nossas empregadas surgiam de manhã, sumiam de noite, nossos faxineiros, copeiros e engraxates eram seres abstratos. Os pobres pareciam não ter vida interior. Podíamos romantizá-los, rir deles, paternalizá-los, tudo. Mas, a TV, a comunicação democratizante do consumo fez surgir uma massa miserável, mas desejante. Pulsa nos bailes funk uma brutal corrente de expressão, a violência como fome e linguagem. A indústria cultural estimulou o desejo e a cocaína e o tráfico de armas trouxeram os meios para sua possível realização. Depois que a cocaína despejou milhões de dólares sobre o mundo da miséria, o contentamento letárgico da exclusão virou fome de consumo, a aceitação da escravidão disfarçada de "emprego" virou uma invasão do país "branco". Não é mais inferioridade; é diferença. Agora, é pau a pau. Existimos nós e eles. Um outro mundo está aparecendo, não como decadência ou ameaça, mas como sinistra cultura, pavorosos valores, tudo sob o manto sombrio da morte. Estamos enfrentando agora a morte no olho. A tragédia das periferias brasileiras sempre foi um terremoto ignorado, para o qual ninguém enviou patrulhas de salvamento. Já houve um terremoto e todos nós tentamos esquecê-lo, subindo grades em nossas casas, com os socialites cheirando o pó malhado de otários e perpetuando essa miséria. Sempre tivemos uma consciência epidérmica dos problemas do crime. E só sabíamos dizer "que horror!", mas esse filme nos faz entrar dentro dos lamaçais, dentro das chacinas, dentro de tudo que sempre detestamos ver. Cidade de Deus não é o retrato condoído das favelas; não tem um só traço de sentimentalismo. Ele é também o nosso retrato, a 24 quadros por segundo, com nossos rostos aparecendo por trás dos meninos de 10 anos se matando com metralhadoras e fuzis. Ali estão visíveis todas as pistas de nosso caos, que levam à sordidez de nossas classes dominantes, às mentiras políticas, às falsas bondades, aos retóricos ideais nacionais. O filme prova nosso despreparo para resolver as tragédias sociais, mesmo que houvesse vontade política. O filme não conta o que aconteceu; o filme mostra o que está acontecendo agora, sem parar, enquanto o assistimos ou lemos estas linhas. O filme nos revela que houve uma "mutação social", ética, física. Ao sair do cinema, tive vontade de gritar nas ruas: "E aí? Ninguém vai fazer nada? Há milhares de crianças se matando e vamos continuar falando em criminalidade como um caso de polícia?" E logo depois penso: "Fazer o quê? Com que verbas, com que bilhões de dólares, com que vontade política, com que aparelhos do Estado, se o Estado está sendo tragado para dentro da miséria armada? Os fatos estão mais adiantados que a lei. Não adianta esta eterna guerra triste de policiais mal pagos e corrompidos (justamente) contra miseráveis lutando por existir. Aquelas crianças armadas estão acima do bem e do mal, sim. Precisamos de novos conceitos para entender este problema de Estado e da sociedade. Filme e fato são um retrato da sinuca de bico em que está o País todo. Em Cidade de Deus, o documento invade a ficção. Antes, havia uma "esperança" teórica; hoje há o absoluto impasse. Há 40 anos talvez houvesse uma solução higiênica, assistencialista. Hoje, não adianta mais o papo de luta de classes, de conscientização, cidadania. Eles já se "conscientizaram" sozinhos, em outra direção. Tarde demais, políticos egoístas; trata-se agora de um muro de chumbo, com raízes fundas. Quem vai resolver? Com que verbas, com que direito, com que poderes? E quem disse que eles ainda querem que nós os "salvemos"? O filme de Fernando Meirelles, co-dirigido por Katia Lund, é extraordinariamente bem produzido, bem dirigido, bem fotografado. Uma obra-prima; mas, não se trata de dizer na saída: "Gostei ou não gostei." Não se qualifica a descoberta de uma doença. Cidade de Deus fura as leis do espetáculo normal, trai a indústria cultural e joga em nossa cara não uma "mensagem", mas uma sentença. Estamos condenados a viver com essa tragédia, ela vai continuar crescendo como um tumor e não estamos preparados para curá-lo, porque fazemos parte dele, com a polícia vendida, a lei vendida, os negociantes envolvidos, aqui e nas fronteiras. Esse filme vai ser visto pelo País todo, num terror fascinado. Creio que vai provocar mudanças na conduta política, pois faz parte de um processo de conscientização que ninguém pode mais deter, dentro e fora do cinturão da miséria. Qualquer projeto nacional teria de passar prioritariamente pela salvação das periferias. Infelizmente, os "projetos nacionais" chegam sempre depois. Cidade de Deus já foi vendido para o mundo todo. Será um sucesso planetário e vai revelar para sempre nosso segredo: somos um dos países mais cruéis do mundo. Cidade de Deus mostra que o inferno é aqui, atrás de Ipanema ou dos Jardins. Esse filme nos desmascara para sempre.

113. ARNALDO JABOR. UM ESPERMATOZÓIDE QUE MUDOU A HISTÓRIA. A História tem, de vez em quando, uns ataques epilépticos - me disse outro dia o Cacá Diegues. Aquilo me tocou como uma faísca. Estamos em pleno ataque epiléptico, desde que Bill Clinton saiu do poder. Me dirão os cientistas políticos: isso é babaquice; não há conjunção astral na História. Mas, há. Eu estava nos Estados Unidos durante o governo de Clinton e eu vi, vi as coisas se armarem para culminar nesse caos que vemos agora. Tudo começou com um "blow job" de Monica Lewinsky no Bill Clinton. Um fato isolado, idiota, irrelevante, se for casado com o momento certo (ou errado), pode deflagrar uma mutação na política e na vida de todos. Como Pandora, a mulher mítica que abriu a caixa maldita de onde saíram os males do mundo, o amor "tiete" de Monica canalizou todos os ódios da direita fascista americana contra o primeiro presidente "cool" da História. Clinton sempre foi uma bofetada nos velhos puritanos da velha América seca e dura, aqueles rostos terríveis saídos do célebre quadro do Grant Wood, American Gothic. Clinton era tudo o que eles odiavam. Era bonito, sorria demais, tocava sax, gostava de mulheres, pecava, era um "baby boomer", foi contra o Vietnã e, com uma vitalidade tolerante e agradável, tinha uma visão ampla da responsabilidade da liderança da América com o mundo. Clinton era sexy. Eu vi uma entrevista coletiva em que mulheres perguntavam se ele usava cuequinha zazá ou "samba-canção". Ele disse que era zazá, para gáudio das jornalistas. Havia em torno dele uma euforia de astro, de ator de cinema... Clinton tinha seu lado filisteu, claro, mas era bacana e exercia um poder de calmante sobre a humanidade. Me dirão os cientistas de novo: ele apenas cavalgava uma fase positiva da economia. Tudo bem, mas Clinton também "animava" essa tendência, não era um puro objeto da prosperidade - dava um rosto a ela. Clinton foi o Gorbachev de uma pretensa "perestroika" americana e, do mesmo modo que o bom russo foi expelido e substituído pelo bêbado do Yeltsin, tivemos o filhote do Bushão, aquele que vomitou no banquete japonês, aquele que armou o Talibã no Afeganistão; ganhamos o menino-problema Bushinho que idealizava o pai e que tentava curar-se da castração enchendo a cara torturadamente. Os canalhas estavam só esperando um "vacilo" do Clinton para destruí-lo e, mais que isso, toda a idéia de liberdade e alegria que ele encarnava. Aí, chegou a Pandora Lewinsky, gordinha, republicana, histérica moradora no edifício Watergate (!) em Washington, com os lábios que iam deflagrar uma revoluçãoo mundial. Já havia outras denúncias de sacanagem de Bill, como a horrenda Paula Jones, em Arkansas, mas Monica foi a musa da desgraça. Muitos dirão que isso é astrologia política, mas há detalhes assustadores nos fatos que começaram a rolar como uma locomotiva golpista a partir da descoberta de que o presidente tinha uma amante dentro da Casa Branca. Tudo virou um relógio perfeito com todas as peças em sincronismo, para derrubá-lo. O lider era o procurador da república Kenneth Starr (lembram-se?), a figura mais óbvia do reacionário e puritano, boneca enrustida rancorosa. Todos diziam que o que incomodava a América de direita era a mentira que ele pregou, negando tudo. Não foi. Foi o sexo, foi a imagem do presidente de calças arriadas no Salão Oval, de madrugada. A conspiração foi perfeita: as fitas gravadas pela terrível mocréia Linda Tripp, com as conversas telefônicas de Monica e, suprema armadilha previdente de Linda, o vestido manchado de esperma que ela mandou Monica guardar, pois "ela poderia precisar dele, um dia..." O vestido ficou dentro de um plástico até o dia em que o Ken Starr conseguiu o exame de DNA e Clinton foi pego em mentira flagrante. Eu nunca vira um calvário tão humilhante. Ser apanhado pela esposa na cama já é um bode, imaginem pela nação toda... Esse espermatozóide mudou a História. Clinton resistiu ao impeachment, mas o estrago estava feito. O Watergate sexual dos democratas desmoralizou a América. As eleições foram perdidas porque o Al Gore, babaca e careta, teve medo de defender o Clinton em sua campanha. Sexo - o grande bode americano que ou é idealizado ou aparece em torturados sadomasoquismos. O crime de Clinton deu gás à direita cristã. Diante de democratas fragilizados pelo escândalo, Bush e seus asseclas tiveram o arrojo cínicio de partir para a fraude na apuração dos votos. E a imprensa democrática, que sabia dos escândalos de Bush na Harkem, ficou caladinha, acoelhada, muito mais leniente do que fora com o caso Whitewater que infernizou Clinton por cinco anos. A vingança de Nixon começou ali, 25 anos depois do Watergate, ali cresceu com precisão sinistra a vingança dos falcões contra o filho dos direitos civis e da revolução sexual. E, no mundo, tudo começou a andar para trás... Qualquer esperança de paz no Oriente Médio acabou, com o apoio explícito de Bush ao assassino Sharon, a recessão econômica que estava no horizonte chegou, as corporações aceleraram a roubalheira em seus balanços, a América Latina e África foram deixadas de lado, gafes vieram em sucessão, até que o Bin Laden veio salvá-lo com o ataque às torres, virando-o no caubói do "bem" contra o Oriente, que agora o odeia e a todos nós, os "kafir", cães infiéis. Acabou a época da esperança e começaram os impasses insolúveis. Eu, idiota, achei que a porrada das torres ia trazer para os americanos uma humildade dolorida; mas, ao contrário, Bush se sentiu livre para soltar todos os cachorros da direita tradicional. A América descobriu a guerra sem o contraponto soviético e agora está pronta para atacar o Iraque, obsessão de filho onde o pai falhou. A América resolveu assumir a unipolaridade, uma guerra quente contra todos, contrariando a frase do presidente Madison de que a "América tinha de ser tolerante e se ver pelos olhos dos outros países". Agora, ao contrário, todos teremos de viver pelo único olho do cíclope americano, burro e violento.

114.ARNALDO JABOR. A DEMOCRACIA ABRIU NOSSOS OLHOS SOBRE O BRASIL. O bode está virando moda. Nosso destino é manipulado por agências estrangeiras que nos dão nota como no colégio, olhamos o dólar e a bolsa como um jogo de búzios, para ver quando iremos para o buraco. Falamos do Brasil como de um doente terminal. E como a gente confunde governo com Estado, com nação, tudo que aconteceu de bom nos últimos anos virou pó-de-mico, nada, zero. O pessimismo na cultura brasileira virou uma espécie de "sabedoria" triste, uma vacina contra a decepção. E, no entanto - eu devo estar maluco -, eu vejo que muita coisa boa rolou depois da democracia instalada. Muita coisa melhorou sim no Brasil, ó filhos do bode, ó cegos ideológicos, com a democracia, que permitiu que inúmeras verdades viessem à tona. Desculpem meu otimismo - que eu sei que é visto com desconfiança ("ahhh... alguma coisa ele está querendo...") -, mas aqui vai uma lista de coisas boas que nos aconteceram. A quebra do Estado brasileiro, no meio dos anos 80, foi ruim e boa. Deu-nos uma "orfandade" diante do gigante quebrado, mas despertou mais vontade de autonomia na sociedade. Deixou claro que o Estado tem de existir para a sociedade e não o contrário, como ainda é hoje. A sociedade civil, na falta de nome melhor, ganhou consciência de sua importância. A sociedade já pensa em "nós" e não em "eles" apenas, os remotos donos do poder. Apesar dos populismos, já deixamos de ser "vítimas" e passamos a ser "cúmplices". Já está na consciência da população a diferença entre estatal e público. O "apagão", a crise de energia foi causada por um descuido estatal, que foi consertado por uma ação pública. Já raiou a noção de responsabilidade civil e fiscal. Já entrou em nossa consciência de coloniais "exilados em sua própria terra" a idéia de que não se gasta mais do que se tem, em finanças. O mesmo vale para a vida social e política: não se pode projetar um país para além de suas possibilidades concretas. A idéia do "possível", em vez da velha bravata das utopias. E muitos já entenderam que isso não é covardia ou omissão; é sabedoria e prudência. A globalização da economia é um bonde carregado de problemas novos? Sim. Pode nos jogar num vazio de excluídos, sem nichos lá fora? Pode. Mas, teve a vantagem de nos colocar mais perto da verdade nacional, rompendo as paredes da "taba imaginária", uma ilha ibérica de esperança vã e futuro maravilhoso. A globalização nos trouxe o contato com métodos de gestão e administração mais anglo-saxônicos, trouxe dinamismo para empresas, trouxe nova ética empresarial, contábil. Hoje, já podemos pensar em um novo nacionalismo sem cairmos nos antigos esquematismos. Ao contrário do simplismo de ver tudo por uma ótica "macro", ideológica, generalizante, as mudanças na economia mundial nos fizeram ver a importância dos detalhes "micros", das pequenas causas que podem derrubar um universo inteiro. Trouxe a idéia de "eficiência" contra o delírio ideológico, que dispensa estudo e viabilidade. Muito mais importante que apontar causas para a pobreza é descobrir formas de combatê-la. A tal "mão invisível do mercado" pode nos dar bananas, claro. Sabemos como é hipócrita a visão americana de nos recomendar aberturas, enquanto eles se protegem. Contudo, o conceito de "mercado" dinamiza a auto-regulação da vida social e econômica do País, sim. "Mercado" como termômetro dos perigos da injustica, mas também como sensor dos desejos sociais, "mercado" como amenizador de certezas burras, "mercado" como relativizador de um poder público totalitário. No imaginário político do País, "herói" ou "amigo do povo" sempre foi o sujeito que arrebenta com as dificuldades pela adoção de um simplismo que corte caminhos e ampute variáveis e epifenômenos. Já sabemos hoje que "parte" e "todo" se imbricam. Isso desmonta a velha idéia de acharmos uma "solução". Em lugar disso, temos o "processo". Isso diminui nosso amor ao voluntarismo salvacionista. A democracia dos últimos anos nos ensinou sobre a idéia de "aliança" para governar. Aliança, não como oportunismo nem com aliados sendo "otários cooptados", mas sim como necessidade para o bom governo. Já sabemos que o Brasil é esse país que está aí, com suas deficiências e com políticos atrasados. Não há um outra nação over the rainbow. Mudar o País tem de ser por dentro e não uma intervenção mágica, ditatorial ou golpista. Vimos encantados que a democracia, em sua prática, vai expelindo os micróbios que a atacam. A democracia tem anticorpos, glóbulos vermelhos que vão limpando seu organismo contra os inimigos autocráticos. Uma das grandes vitórias dos últimos tempos foi o enfraquecimento das resistências oligárquicas de gente como ACM, Sarney, Jader, que perderam energia diante da força modernizadora da liberdade. Populistas como Maluf já foram expelidos também. Faltam alguns, mas já é um começo. Ficou visível como nunca o absurdo do atual "poder judiciário", arcaico, corrupto e lento. Por outro lado, houve um maior império da lei. O advento de corajosos e modernos procuradores da República, de juízes jovens e honestos, com um Ministério Público ativo, conseguiu encurralar gente que, há pouco tempo, era invulnerável. Ninguém vai em cana, ainda, mas, ao menos, já sofrem um vexame público, um descrédito político, com suas vergonhas estampadas na mídia. Podemos esperar que, um dia, haverá uma reforma no Judiciário e teremos uma lei para todos. Ainda não entendemos direito, mas já percebemos que os problemas do Brasil são muito mais complicados do que uma mera questão de injustiça social, a ser resolvida apenas pela dinâmica de uma "luta de classes". A injustiça é endêmica e de tal modo paralisante que inviabiliza até um embate de classes. A má distribuição de renda não é causa; é conseqüência de uma secular estrutura autocrática, de um Estado patrimonialista que tem de ser reformado. A democracia melhorou muito nossos olhos. Estamos vendo mais. Espero que não nos ceguem de novo... Feliz futuro!

115. ARNALDO JABOR. SOMOS MILHARES DE HOMENS-BOMBA NAS PERIFERIAS. - Você é traficante? - Sou. Mas sou também um sinal de novos tempos. Como sou sujo e pobre, vocês nunca me olharam durante décadas. Eu era inofensivo, uns roubos, uns assaltos mas, tudo bem... Vocês até me romantizavam... o Mineirinho, o Cara de Cavalo... Na época, era mole resolver o problema da miséria... O diagnóstico era óbvio: migração rural, seca, desnível de renda... A solução é que nunca vinha... Os Mendes de Morais, os Lacerdas, os Negrões de Lima, os Chagas, os Brizolas... que fizeram? Nada. O governo federal alguma vez alocou uma verba para nós? Nós éramos invisíveis... Quando havia um desabamento, algo assim, éramos, no máximo, manchete de jornal e motivo de angústia para uns intelectuaisinhos como você. Agora, arranjamos emprego na multinacional do pó... E vocês estão morrendo de medo... Danem-se... Nós somos o início tardio de vossa consciência social... Há, há... - Mas... a solução seria... - Solução? A idéia de "solução" já é um erro. Não há mais solução, cara... Já olhou o tamanho das 450 favelas do Rio? Já andou de helicóptero por cima da periferia de São Paulo? O máximo que vocês podem fazer são esses movimentosinhos pela cidadania... Cadê os bilhões de dólares para uma "solução" profunda? Só que, agora, vocês não têm mais a grana... Está tudo reservado para manter a estabilidade fiscal, que pode ir para o brejo a qualquer momento... Vocês estão com um bode por fora e outro bode por dentro. O capital financeiro fora e nós dentro. E os bodes vão se encontrar no infinito sujo de vosso destino... Gostou da frase? Sou culto; ouve outra: "Capitalismo selvagem gera revolta primitiva." Aliás, tomara que quebre tudo... Vai ser mais fácil pra nós pilharmos vossas ruínas... há, há... - Você não tem medo de morrer? - Estamos no centro do Insolúvel, "mermão"... Vocês no "bem" e eu no "mal" e, no meio, a fronteira da morte, a única fronteira. Vocês têm medo de morrer, eu não. Nós somos homens-bomba. Na favela tem 100 mil homens-bomba... É... Já somos uma outra "espécie", já somos outros bichos, diferentes de vocês. A morte para vocês é um drama cristão numa cama, no ataque do coração... A morte para nós é o "presunto" diário, desovado numa vala... Vocês, intelectuais, não falavam em "luta de classes", em "seja marginal seja herói?" Há, há... aí está... Vocês nunca esperavam esses guerreiros do pó, né? Esse "parangolé" todo, né? Vocês deviam era expor a gente na Bienal, como "instalação"... - O que mudou nas periferias? - A gente hoje tem uma coisa chamada Poder... Por que transferiram o Beira-Mar para a Bangu 1? Pois é... lá ele manda... Você acha que quem tem 40 milhões de dólares não manda? Com 40 milhões a prisão é um hotel, um escritório... Qual a polícia que vai queimar essa mina de ouro? Pelo amor de Deus... nego chama ele até de "doutor", tá ligado? - Se você fosse polícia, agia como? - Quer um "toque"? A burocracia policial segura tudo, por desorganização e de propósito. Nós somos uma empresa moderna. A gente não tem de arranjar ordem judicial, a gente não é dividido em municipal, estadual e federal; é tudo rápido, enxuto... Se funcionário bobeia, é despedido no "microondas"... Há, há... estamos ligados na tecnologia, na internet, nos armamentos sofisticados... E tem mais: se vocês tentarem acabar com a burocracia, com os atrasos administrativos, até se quiserem informatizar uma reles delegacia, vão dançar... sabe por quê? Porque a polícia "quer" o atraso... o atraso dá lucro... A polícia é feita de feudos, corporativa, delegados donos de pedaços da cidade... ninguém quer se modernizar, tá ligado?... É bom aquele clima de 1930, de carros quebrados, sem arquivos eletrônicos... Se impessoalizar, modernizar estraga a muamba... Além disso, estamos virando superstars da mídia. A imprensa dá idéias, sugestões, enche nossa bola do crime... Vocês estão nos dando uma ideologia, sem perceber... Já tem nego aí querendo armar esquema com a Al-Qaeda, podes crer... Outro toque: por que não pegam os "barões" do pó? Tem deputado, senador, tem generais, tem até ex-presidente do Paraguai nessa parada de armas e cocaína... Essa é que é a mina de ouro, nas fronteiras... Mas, não tem polícia pra enfrentar esse poder internacional, não... A gente é mixaria... A verdadeira Guerra do Paraguai vocês estão perdendo agora, tá ligado? - Estão pensando no Exército... - Ah... cara... Você acha que os generais vão querer acabar com aquele dia-a-dia dos quartéis, pra subir em morros de lama? Que isso, meu? Eles ficam jogando aquele basquete de tarde, marcham, tocam os clarins, cantam hinos... Mas, ir à luta com o PCC e o CV? Com risco de darem vexame? Pra quê? Eles dizem que são treinados para causas maiores, guerra profundas... Só se for com a Argentina... E também a gente já tem até foguete antitanques... Se bobear, vão rolar uns Stingers aí... Já imaginou a gente daqui a uns dez anos? Pra acabar com a gente, só jogando bomba atômica nas favelas... Aliás, a gente acaba arranjando também umazinha, daquelas sujas mesmas... Já pensou? Ipanema radioativa? Bomba atômica é uma boa... Vocês arrasam tudo e depois as favelas se valorizam, viram bons terrenos para vender pros ricos... belas vistas... bons ares... podem até fazer Centros Culturais no Complexo do Alemão e na Maré... legal? Se não, a gente vai virar países estrangeiros... Vou fazer frase: "A miséria armada é uma outra nação, no centro do Insolúvel!" Gostou? Olha, meu chapa, só generais saídos da favela, da lama, com a mesma fome de vida e morte, com o mesmo ódio que nós temos, poderiam nos vencer... Nós saímos do lixo, não temos nada a perder... Pra vencer, vocês tinham de começar reconhecendo sua derrota policial e administrativa. A guerra é o reconhecimento do fracasso da política... É isso aí.... A bandidagem perdeu o respeito pela polícia... Agora, não tem mais jeito... Pra ganhar esta guerra, vocês têm de começar o Brasil de novo... Falei? - Falou...

116. ARNALDO JABOR. MEU PAI FOI UM MISTÉRIO EM MINHA VIDA. Já escrevi sobre meu avô. Semana passada, escrevi sobre minha mãe. E as pessoas me dizem: "E seu pai? E seu pai?" Meu pai foi um mistério em minha vida; não nos comunicávamos bem, inibidos um com o outro. Meu pai era o perigo de castigos, o Supremo Tribunal que julgava meus erros. Por isso, ao escrever este artigo, sinto seu olhar por cima de meu ombro. Sempre quis ser aprovado por ele, receber um elogio, um beijo espontâneo que nunca vinha. Ele parecia saber de algum crime que eu cometera, mas não dizia qual era. Eu sofria: "O que foi que eu fiz?" Meu pai não ria, como se o riso fosse um luxo, mas eu me empolgava quando ele chegava num avião de combate, coberto de dragonas douradas no uniforme da Aeronáutica, ele, meu herói que conquistara o Pico do Papagaio como jovem alpinista e que fazia acrobacias de cabeça pra baixo nos aviõezinhos do Correio Aéreo. Quando peguei coqueluche, ele me levou num avião bimotor a quatro mil metros de altura, pois diziam que isso curava a tosse renitente. O avião subiu com meu pai pilotando, um sargento e minha mãe num casaco de pele com o cabelo preso num "coque" alto chamado "bomba atômica", cruel homenagem da moda à destruição de Hiroshima. De repente, a porta do avião se abriu a quatro mil metros e eu quase fui chupado para fora, não fosse a rápida ação do sargento. Até hoje, não sei se isso realmente aconteceu, mas meu pai sempre me trazia fantasias de extinção. Ele era um árabe alto, nariz de águia, bigodinho ralo, cabelo luzente de Glostora, óculos Rayban, sapatos de borracha da Polar. Hoje, entendo que ele queria fazer de mim um homem pela severidade implacável, silêncios indecifrados, olhares acusadores (de quê, Deus?), hoje sei que ele queria de mim um homem, dando-me um exemplo de espartana resistência, de chorar sem lágrimas. Claro que virei artista, por "formação reativa", claro que enquanto ele me deu um livro nunca aberto sobre mineração de carvão eu ia ler Rimbaud e escrever poesias. Se eu bobeasse, podia estar hoje cantando boleros, com codinome Neide Suely. Minha vida foi se pautando para ser tudo aquilo que ele não era - uma maneira de obedecê-lo em revolta, de competir com ele sem arriscar a castração, o pau cortado. Ele era moralista? Eu defendia sacanagens e palavrões. Ele era da UDN? Entrei para o PCB aos 18 anos. Então, comecei a despertá-lo da letargia desatenta a mim, provocando-o, esculhambando americanos e militares, culpando a Aeronáutica pelo suicídio do Getúlio. Aí, eu conseguia berros na mesa de jantar, com minha mãe pálida sussurando: "Olha os vizinhos!..." Isso era uma forma de tê-lo vivo diante de mim. Queriam-me diplomata? Ah... hoje eu poderia ser um pobre itamarateca alcoólatra... Fui ser nada, maluco, comuna da UNE; depois, por acaso, acabei cineasta... O tempo foi passando. Papai aposentou-se cedo demais e aquele projeto de "picos de papagaio", de aviões em parafusos, de um heroísmo guerreiro virou um silêncio aterrador no apartamentozinho de Copacabana, onde o tempo parecia parar. Entre as poltronas dos anos 40, entre os vasos de flores de minha mãe, a presença de meu pai era quase abstrata, lendo revistas, vendo TV de tarde, de pijama, em meio a minhas visitas, quando eu tentava alguma coisa que mudasse aquela paralítica tragédia, aquele relógio do avô que batia o pêndulo em vão. Todos os dias eram iguais; só minha mãe mudava, cada vez mais perto da senilidade, visitando a médium "linha branca" que lhe dava conselhos com voz grossa de caboclo. Eu queria que alguma coisa acontecesse, queria vê-los dentro da vida da cidade, mas só saíam para comer num sinistro restaurante a quilo, de fórmica rosa e amarela. Um dia, nasceu-me a primeira filha. Foi um momento de vida e luz mas, logo depois, meu pai caiu doente, com uma enigmática infecção pulmonar, que não passava. Médicos se sucediam: tuberculose, enfisema? O quê? Foi uma revolução cultural no apartamentinho de Copacabana: aquele rei silencioso, de repente, estava caído no divã, cuspilhando, febre permanente, precisando de ajuda. Então, a força estava fraca? O pai virara filho? Minha mãe pirou mais ainda, sem saber lidar com tanto poder que ganhara, tanta liberdade súbita. Eu também estranhava aquele titã caído. Um dia, o médico decretou: "Está muito anêmico... Precisa de transfusão de sangue." Fui levá-lo à Casa de Saúde S. José, onde minha primeira filha tinha nascido, pouco antes. Deixo meu pai na cama de um quarto, com a bolsa de sangue pingando-lhe nas veias e, para evitar o silêncio triste diante da lenta transfusão, saí pelos corredores, para dar uma volta sem rumo. De repente, ouço dois tiros. Sim, dois tiros de revólver. E foi aí que minha vida começou a mudar. Pela porta do quarto ao lado, olho e vejo dois homens caídos no chão branco de fórmica, boiando em duas imensas poças de sangue. Um já estava morto e o outro agonizava de boca aberta, emitindo um soluço com um assobio assustador, como um peixe morrendo fora d'água. Enfermeiros acorreram e eu soube que tinha sido um crime passional. Um médico matara o outro e suicidara-se em seguida. Nada mais fora de lugar que um assassinato no hospital. Tudo se juntava, meus fantasmas acorriam todos, num clímax de vida e morte. Vi, espantado, que um deles era o ginecologista que tratava de minha mãe e que estava ali, boiando no próprio sangue, no hospital onde acabara de nascer minha filha. A transfusão acabou, as ambulâncias levaram os corpos e ficamos eu e meu pai assustados, sozinhos ali no quarto. O mundo tinha mudado. Então, não sei por que, comecei a sentir um imenso carinho por meu pai, ali, fraquinho, cabelo branco. Ajudei-o a se arrumar, fechei-lhe o paletó e voltamos para casa, como cúmplices mudos de um crime, de um jorro de morte que destruiu nossa melancolia, e nos uniu de uma forma misteriosa. Nunca entendi bem o que aconteceu, mas só sei que não houve mais silêncios tristes entre nós dois.

117. ARNALDO JABOR. A CASA DE MINHA MÃE NUNCA FICOU PRONTA. Ando com vontade de ligar para minha mãe. Mas, minha mãe já morreu. Meu filhinho me perguntou hoje: "Cadê sua mãe, aquela que mandou seu mico embora porque ele mordeu seu dedo?" "Ela já foi para o céu..." - respondi-lhe com o velho lugar-comum. "E seu papai, aquele que andava no aviãozinho que ia até a Lua?" "Também foi para o céu...", repito pensando que um dia ele vai descobrir que vamos para baixo e não para cima. Mas, tenho mesmo vontade de ligar, pois, talvez, no telefone, possa haver um milagre e sua voz soar em meu ouvido: "Alô? 28-4858?" "Mamãe?" Na época desse número remoto do Méier, sua voz era jovem e feliz. Depois, foi enfraquecendo por outros números, até o tempo em que, já velhinha, atendia triste e doente o 47-8378: "E aí, meu filho, tudo bem?..." Como seria bom o telefone me salvar e alguém me chamar de "meu filho..." Seria bom entrar pelos fios do passado e fugir das dores que sinto com o País, o mundo e comigo mesmo. Confesso que, em momentos de desespero, eu já liguei escondido para números antigos. Ouvia a voz anônima e falava: "Desculpe, é engano...", com a sensação de, por instantes, ter visitado minha velha casa. Minha mãe era linda. Parecia a Greta Garbo. Um dia, meu avô bateu nuns vagabundos que mexeram com ela, ainda mocinha, na base do "Tem garbo mas não tem greta" e outras sacanagens de época... Meu avô, malandro e macho, pegou a bengala e cobriu-os de porrada. A vida de minha mãe foi a tentativa de uma alegria. Sorria muito, trêmula, insegura e, nela, eu vi a história de tantas mulheres de seu tempo tentando uma felicidade sufocada pelas leis do casamento, pela loucura repressiva dos maridos. Meu pai, que era um homem bom e amava-a, nunca conseguiu sair do espírito autoritário da época e, inconscientemente, se enrolou numa infelicidade que oprimia os dois. Na classe média carioca dos anos 50, cercados de preconceitos, medos e ciúmes nas casas sombrias, os casais estavam programados para tristezas indecifradas. Eram cenários estreitos para o amor: a casa do subúrbio, o apartamento micha de Copacabana, onde vi minha mãe enlouquecer pouco a pouco, tentando manter um sonho de família, tentando manter a cortina de veludo, a poltrona coberta de plástico para não gastar, os quadros de rosas e marinhas e a eterna desculpa para os raros visitantes: "Não reparem que a casa não está pronta ainda..." (isso, com 50 anos de casada). A casa nunca ficou pronta, como ela, Greta Garbo do subúrbio, sonhou: a casa feliz, com bolos decorativos nas festas, seu orgulho, a única coisa que ela sabia fazer; eram bolos em fôrma de avião, para homenagear meu pai piloto, em fôrma de livro, para me fazer estudar, ou em fôrma de piano para minha irmã tocar, naqueles aniversários em que os sofás de cetim marron e branco eram descobertos com discreta vaidade. Na juventude, minha mãe era infeliz e não sabia, pois todas as suas forças eram convocadas para esquecer isso. Cantava foxes, para desgosto de meu pai e ria com medo - se bem que ninguém era feliz naquela época. Não havia essa infelicidade esquizofrênica de hoje, mas era uma infelicidade tristinha, com lâmpada fraca, uma infelicidade de novela de rádio, de lágrimas furtivas, de incompreensões, de conceitos pobres para a liberdade. Eu via as famílias; sempre havia uma ponta de silêncio, olhos sem luz, depois dos casamentos esperançosos com buquês arrojados para o futuro que ia morrendo aos poucos. Não era a tristeza da pobreza; dava para viver, com o Ford 48 sendo consertado permanentemente por meu pai sujo de graxa nos domingos com o rádio narrando o futebol, dava para viver com uma empregadinha mal paga, dava, mas era uma tristeza obrigatória, quase uma "virtude" que as famílias cultivavam, sem horizontes. Toda minha vida consistiu em fugir daquela depressão e em tentar salvá-los. Eu queria dizer: "Saiam dessa, há outras vidas, outras coisas!" - logo eu, que achava que ia descobrir mundos luminosos feitos de revoluções e de prazeres, eu que achava que viveria numa vertigem de alegrias modernas, do sexo que se libertava, da bossa nova, da arte, ilusões que foram logo apagadas pelo golpe de 64 que, com apoio do meu pai, restaurou a luz mortiça das famílias, das esposas conformadas em seus cativeiros. Minha geração se achava o "sal da terra", tocada pela luz da modernidade. Mal sabíamos do outro desamparo que viria; não a melancolia do rádio aceso no escuro, não a televisão Tupi ainda trêmula, não as esquinas cheias de mistério, não o apito do guarda-noturno, mas a nossa impotência diante do excesso de acontecimentos, do inferno das expectativas, das informações sem conhecimento. Hoje, vivemos essa liberdade desagregadora, com a esperança de paz da classe média destruída, vivemos o medo das ruas, das balas perdidas, que não havia, quando mamãe ia visitar a médium de "linha branca" que lhe prometia progresso e alegria nas cartas. Antes, minha mãe e meu pai tinham a ilusão de uma "normalidade". Hoje, todos nos sentimos sem pai nem mãe, perdidos no espaço virtual, dos e-mails, dos contatos breves, da vida rasa sem calma. O que vai nos acontecer neste mundo de Bush e Osama, neste país de crimes e de riscos-Brasil, onde nada se soluciona, onde tudo é impasse e encrenca? Será que nunca mais teremos sossego? Sinto imensa saudade da linearidade, do princípio, do meio e do fim das vidas, e tenho medo de ter morrido e de não perceber. Por isso, me dá essa vontade profunda de pegar o telefone e discar, não num celular volúvel, mas num aparelho preto, velho, de ebonite, discar e ouvir a voz de minha mãe, entrar pelo fio e aparecer na salinha de móveis "chippendale" e Luís XV falso e vê-la sempre querendo ser feliz, mas com vergonha das visitas: "Não reparem que a casa não está pronta..." Na verdade, tenho vontade de discar, mas é para saber quem sou eu. E quando disserem: 'Quem fala?" pensarei: "É o que me pergunto..." Mas, sei que vou desligar, dizendo: "Desculpe, é engano..."

118. ARNALDO JABOR. ENFIM SÓS, CLINTON E FHC ABREM O CORAÇÃO. - Poxa, Fernando Henrique, enfim sós... Agora, podemos conversar em paz, aqui nesta salinha do Alvorada... - Seems like old times , hein, Clinton? Desde de Camp David.. Parece que foi há muito tempo... Como o mundo se caretizou depressa! Mas você tá com a vida que pediu a Deus: 200 paus por palestra... E eu, aqui... com baixos índices de popularidade.... - É... Fernando... Mas acho que vamos terminar iguais: nenhum de nós elegendo um sucessor... - Somos muito parecidos, Bill... - É... Somos símbolos da "terceira via"... Você, eu, o Tony Blair... somos a tal de "globalização com justiça"... - É... Somos bonitinhos, com sorrisos democráticos... - É... mas a "terceira via" ninguém achou até hoje... Fernando... - A única "terceira via" é a boca da Monica Lewinsky... - Quá, quá, quá!! Essa é boa! Vou contar pro Vernon Jordan... - Quá, quá, quá!... Somos iguais... ambos fumamos maconha... - Mas sem tragar!... Somos iguais... Eu amei em você o presidente latino culto, fino... Mas eu te seduzi mais do que você a mim, Fernando... - Poxa, Clinton, você quer o quê? Você era presidente dos USA, é impossível não ser tiete de uma superpotência...Você podia tomar um porre e destruir o mundo... - Tem razão... Eu tentei humanizar a globalização da economia, tentei fazer da América uma potência hegemônica, mas benevolente... buscando uma política interdependente... - Oh... cut the bullshit, Bill! (Corta essa, Bill). Estamos a sós... - Tem razão... quá... quá... Interdependência, my ass !... Capitalismo quer domínio e era a pílula dourada... - "Interdependência"... Ninguém sabe que porra é essa, Clinton! Americano não entende, latino não confia... Capitalismo não é mole... como você convence a IBM ou a Ford a ter "meio lucro", "meia voracidade"? - É... Fernando... Minha obra é que eu era sexy numa América reprimida, eu era cool num país careta... Eu sou a Madonna da política, quá, quá, quá... Minha única obra foi esta: eu questionei o puritanismo com minha fama de sem-vergonha... Eu fui o salvador charmoso depois da era Bush Pai... Eu toco sax, gosto de jazz, de negros... eu dei aos USA a consciência de que havia mundo lá fora... Eu só errei com aquela histérica da Monica... É inacreditável! O presidente tendo de fazer sexo em pé, no Oval Office, de madrugada... - Você podia ter uma garçonnière... - Como? A Hillary comprou os seguranças... Era ali ou nada... Poucas pessoas no mundo foram humilhadas como eu... Ser flagrado em adultério já é uma bosta; imagine todo o planeta te pegar... Eu fui o Cristo do blow job ! - Quá, quá, quá!...Te pegaram com a "botija na boca"! Quá, quá! - A minha salvação foi bombardear o Iraque... Se não, eu morria castrado... Cada foguete era uma afirmação fálica... - Saddam salvou tua sexualidade...Agora, cá entre nós, Bill... ela é "boa" mesmo? - Ela é o maior "serviço de sopro" da capital... Entre os políticos, ela era o "consenso de Washington"... Quá, quá, quá!... Mas não foi mole... O sistema puritano e republicano caiu de pau em cima de mim. Aquela bicha do Kenneth Starr... meu Deus, tudo isso é tão remoto... Mas minha grande obra é que eu fiz o país falar em "esperma", em pênis... E isso foi uma revolução moral... Eu também inaugurei a mentira pública... Menti, sim - por que não? Mentir nos USA é revolucionário... O único bode é que talvez minha didática sem-vergonhice tenha legitimado a roubalheira na eleição do Bush, tipo "ladrão que rouba ladrão"... Mas eu relativizei a infalibilidade do presidente dos USA, para o mundo todo. Pensando bem, eu era um utópico, com a utopia dos anos 60 revisitada... - É isso aí, Bill! E, no Brasil, meu discurso foi desconstrutivo, anti-utópico... - Eu dei esperança aos Estados Unidos... - E eu... tirei esperança do Brasil... Foi o que eu fiz de melhor. Vocês, americanos, precisam da utopia. Mercado só não dá. Vocês têm fome de "transcendência", de "futuro". Já os brasileiros precisam é de "presente", de desilusão para parar de acreditar em "salvadores". Minha melhor obra é a decepção dos brasileiros... Eu sou o anti-Messias... O problema é que são tão burros que agora estão famintos de populismo: Itamar, Garotinho... - Quem? - Little Boy, mais uma caricatura nacional... Mas eu espero ter deixado algum contraveneno, um hábito democrático qualquer... Eu ensinei ao povo que não há solução - só processo. Eu fui frio, mas educativo sobre o desinteresse dos governantes. Eu devolvi as queixas à sociedade civil, que tem de depender menos do governo... Minha ironia e meu descaso foram minha melhor aula. Outro grande feito meu foi me aliar à escoria política do país... Nunca entenderam minha grandeza em assumir o Brasil real, nossa imunda verdade política... Meu patriotismo foi agüentar o Jader, o ACM... - E eu, que agüentei o Trent Lott, o Newt Gingrich... - É... mas eu sou um nefelibata (ver Aurélio)... Tenho horror de me comunicar com caipiras... Meu amor ao progresso é muito mais pela beleza da razão que por compaixão pela miséria... Sou vaselina, sim, que eu chamo de realpolitik. A verdade política de hoje está na vaselina... - Quá, quá, quá, Fernando, you¹re the top, you¹re Mickey Mouse!... - Tenho volúpia de decepcionar os românticos. Eu desconstruí certezas. Cá entre nós, Bill, a política acabou; nós somos atores... - Quá, quá, quá! Mas não espalha... Eu, ao menos, mostrei ao mundo que o poder americano é ridículo, que uma vagininha histérica muda o mundo... Quá, quá, quá... E você, Fernando, a tua Monica Lewinsky foi a Argentina e o "apagão"... - Quá, quá, quá! Bill, estou sentindo um alívio!... Descobri minha importância histórica! Eu sou a desconstrução das expectativas voluntaristas... Eu sou o Derrida dos trópicos!... - Quem? - Derrida... um francês veado... - Ah... - E você, hein, Bill, faturando 200 mil por palestra!... E aí? - me diz - tem comido muita gente? - Chove mulher... - E este baseado? Gostou, Bill? Esse é do bom, paraguaio... - Quá, quá, quá!... - Podes crer, Bill, "do bom", do Mercosul... - Awesome, Fernando!... - Quá, quá, quá!!!

119. ARNALDO JABOR. O CHATO É ANTES DE TUDO UM FORTE. Está tudo tão chato no Brasil, que vou escrever sobre os chatos. Você é chato? Nunca saberá. O chato não se sabe como tal, ou melhor, sabe sim, mas sempre tem a esperança de sair da categoria e ser aceito como não-chato. Por isso, chateia todo mundo. O chato é, antes de tudo, um carente. Ele vive do sangue dos outros, do ar dos outros, o chato precisa de você para viver. Sozinho, o chato não existe. Existem vários tipos de chatos. O mais famoso é o chato de galochas, que eu pesquisei e descobri que a origem do termo. Fala do cara que sai de casa com chuva torrencial, põe as galochas e vai na tua casa para te chatear. Há chatos masoquistas e sádicos. O primeiro é aquele que gosta de chatear para ser maltratado: “Porra, não enche, cara!” Adora ouvir essa frase, para remoer um rancor delicioso que valoriza sua solidão: “Não me entendem, logo sou especial!” O chato sádico, não. Ele quer ver teu desespero e escolhe os piores momentos para te azucrinar: “Poxa... sua mãe morreu ontem, mas ouve meu problema com minha mulher...” Eu não vou fazer aqui um tratado geral dos chatos, como já fez o Guilherme Figueiredo, aliás um livro chato. Como lutar contra eles? Por exemplo, o Tom Jobim, uma das maiores vítimas de chatos, ensinou-me um truque: “Use óculos escuros. O chato fica desorientado quando não vê teus olhos. O chato adora ver o próprio rosto refletido em teus olhos desesperados. Com você de óculos escuros, ele desiste e vai embora”. O chato gosta de ver teu sofrimento, por isso não adiantam as respostas malcriadas, resmungos. Ele gruda mais. Nem adianta fingir simpatia, na esperança de que ele parta. Não há solução. Se bem que a reza ajuda. O chato está falando e você ali lembrando a “Ave Maria”. Te acalma como um mantra e Deus pode vir em tua ajuda. Outra técnica que funciona muito é chatear o chato. Seja o chato do chato. Ele pergunta: “Por que você não volta a fazer cinema?” E você retruca: “Que você está achando do PMDB?” Faça-o falar, como o Freud agia com as histéricas. O chato falador é mais suportável do que o chato perguntador. Depois que eu comecei a falar na TV, virei um papel-de-mosca para chatos. Não quero bancar o famosinho mas, veja bem (como dizem os chatos), o sujeito te vê na TV, no quarto onde ele está transando com a mulher e você na tela, falando sobre o Chavez... O cara fica íntimo teu e te agarra na rua, no shopping e gruda, como um colega conjugal. Uma vez, tinha um chato no celular (grande tipo novo, o chato do celular) e eu tomando um cafezinho no aeroporto, oito da manhã, indo para Porto Velho, com conexões. “Ihh... meu amor... sabe quem está aqui ao meu lado?... O Jabor... éé... quer ver?” Se vira para mim e: “Fala aqui com minha namorada... o nome dela é Eliette”. Esse é primo do chato-corno: “Minha mulher te ama; dá um autógrafo pra ela... Escreve: Te amo, Marilu...” (O chato-mala nunca tem caneta ou papel): “Escreve aqui mesmo neste guardanapo molhado...” Temos também o chato do elevador. Estou num elevador vazio, indo para o 20. Entra um cara e me olha. Eu, precavido, já estou de cabeça baixa. Há uns momentos tensos de dúvida: “Ele ousará falar?” — eu penso. “Falo com ele?” — ele pensa. Passam uns andares. “Ele não vai agüentar” — eu penso. Não dá outra. “Você não é aquele cara da TV?” “Sou... ha ha...” — digo, pálido, fingindo-me deliciado. “Só que eu esqueci teu nome... Como é teu nome mesmo?” “É Arnaldo”, digo eu, querendo enforcá-lo na gravata de bolinhas. “Não... é outro nome... ah... é... Jabor... isso... porra, claro... E é você mesmo que escreve aquelas coisas...?” E eu penso, sorrindo simpático: “Não; é a tua mãe que me manda lá da zona”. Tem o chato-mala, sempre no ataque. Outro dia, também no aeroporto, eu subindo uma escada, com duas malas e o cara berrou: “Eiii, me dá um autógrafo!” Todo mundo olhando e eu com duas malas. “Não me leve a mal, mas estou pegando o avião...” E ele: “Poxa... tu tá ficando é muito mascarado, cara!” Um dia, houve o clímax, a apoteose do chato do autógrafo. Fazia eu um modesto xixi num banheiro de cinema, aquele xixi triste e pensativo, quando o cara chegou: “Me dá um autógrafo?” Fiquei uma arara: “Estou fazendo xixi... porra... tu quer o quê?” E ele: “Qual é a tua? Tá pensando que eu sou viado? Enfia esse autógrafo...” Tem muitos tipos. Tem o chato crítico. Ele te agarra na rua e começa com elogios rasgados: “Você é o máximo; aquele teu artigo foi demais, mas... (trata-se do chato do ‘mas’...)...mas, você disse uma besteira horrível, outro dia — o PIB da China não é aquele que você falou...” Um chato muito encontradiço é o chato da Ponte Aérea... Ele fica à espreita na sala, atrás de uma coluna. Você entra... ele te vê de longe... Você pensa: “Será que ele me viu?”. Você finca os olhos no jornal, trêmulo de medo e esperança. Dali a pouco, passos a teu lado, uma maleta pousando no chão e ele gruda: “Posso lhe dizer uma coisa...?” E pela lei de Murphy, em geral ele estará na poltrona ao lado no avião. Tem o chato da foto: “Posso tirar uma foto com você?” Pronto. Lá estou eu na rua, abraçado a um idiota de bigode, com todo mundo olhando. Flash! E o cara some num segundo, com um rápido “obrigado”. Esses só querem nos roubar a imagem... O chato da foto sempre me deixa carente... Há muitos tipos. O chato-altissonante, por exemplo. Grita no bar, de longe: “Ei, Jabor, que que tu tá achando da guerra Israel-Árabe?” Um altissonante uma vez me berrou na saída de um teatro: “Adoro você... (eu sorri, rubro de modéstia)... mas tu precisa parar de falar besteira sobre o Lula, hein...! Olha, por isso o Ferreirinha aqui te odeia!” (Ao lado dele, está o “ajudante de chato”, rindo com deboche). Tem todo tipo. E agora tem os “e-chatos” na internet que, aliás, botaram na rede artigos boçais e maniqueístas, que eu nunca escrevi, assinados com meu nome. Já puseram um em que “eu” esculhambava a Adriane Galisteu. E agora tem outro rolando, chamado “Faz parte”, onde o falso “eu” humilha aquele rapaz que ganhou o “Big Brother”. Além de e-chatos, esses são canalhas e burros.

120. ARNALDO JABOR. AS CARAS DOS POLÍTICOS EXPLICAM NOSSO DESTINO. Podemos ler a história do Brasil na cara dos políticos. Meu Deus, como são feios nossos políticos, como são inatuais, de mau gosto, seus rostos e caretas mostram como será difícil modernizar esta terra. Darwin tem um livro chamado "A expressão das emoções no homem e nos animais". Ali estão catalogadas as expressões fisionômicas dos chimpanzés, dos cachorros e dos homens. São baseadas no "princípio de antítese", nome que Darwin criou, explicando, por exemplo, que um cachorro expressa amor ao dono por uma mutação corporal, facial e rabeal absolutamente negadora de qualquer agressividade, amolecendo as costas, abanando o rabo, babando-o na mão, etc. Mas Darwin não previu a cara dos políticos brasileiros. O "princípio de antítese" dos nossos políticos, ao contrário, visa a esconder o que sentem, pela negação de seus reais motivos. Assim, o canalha ostenta bondade, o ladrão apregoa honradez, o assassino, delicadeza. Era assim, mas até isso está mudando. Assistindo ao show de horrores da política recente, concluo que não só se perdeu a idéia de vergonha na cara, como ela foi substituída por um certo orgulho, um certo enlevo em ostentar a própria sordidez como um galardão. Antigamente, o canalha se escondia pelos cantos, roído de vergonha; hoje, ele apregoa, com uma tabuleta na testa: "Roubei, sim. E daí?!" A alma do negócio era o segredo. Hoje, espanta-nos a visibilidade dos estelionatos, conjugada à sublime ejaculação das mentiras. Penso, claro, na fascinante fisionomia de Barbalho, que é um verdadeiro mapa da politicada do Pará, esse Barbalho sublime que nos seduz com suas sobrancelhas a la diable, com sua boquinha devoradora de tartarugas, cheques e TDA's, com sua resistência impávida diante das provas cabais de suas malfeitorias. Barbalho impressiona pela limpidez de seu cinismo, pela cara lavada, intocada pela dúvida e pelo sentimento de culpa. Olhando bem, veremos que suas bochechas são até banhadas por um tênue, mas impudente sorriso. É fascinante a confiança que esta gente tem na leniência da Justiça. Como eles navegam bem nos foros e nos arquivos, fazendo sumir processo como no caso do Banpará! É maravilhoso vê-los em "retidão", "pátria", enquanto as rãs coaxam no campo de concentração da mulher de Barbalho. Sim, eu já fui fascinado pelo queixinho de Maluf, erguido a la Mussolini, capaz de falar em "honra" com a evidência de desvios nas obras superfaturadas, já fui hipnotizado pela tranqüilidade carismática de Quércia, cantando Carinhoso num programa de TV, enquanto ele quebrava o Banespa, aplaudido pela sua gang de sociólogos "progressistas", já sofri, no passado, com as carrancas da ditadura, quando surgiu o anão verde-oliva Castelo Branco, menor que o próprio quepe, depois com a car de bulldog de Costa e Silva, iluminado pelo sorriso deslumbrado de Yolanda, a Lady MacBeth brega que mandou baixar o AI-5, depois com a cara de Drácula de Garrastazu Médici, silencioso vampiro, sofri também com a visão das coxas e da barriga de Figueiredo, fazendo ginástica de sunguinha para a nação ver, num strip-tease populista. Depois, lembro-me com pavor do surgimento do único bonito (por fora), o Collor, eleito num clima "gay" que se apossou dos eleitores ("Ele é macho!" - diziam - "ele é lindo, comeu fulana, luta caratê..."), mas agora estou maravilhado diante do Gilberto Mestrinho. Chego a pensar que o Senado está nos sacaneando, acho que Renan Calheiros quis fazer um gesto revolucionário, nos horrorizando para conscientizar a nação da própria desgraça. Porque o Mestrinho no Conselho de Ética do Senado, arrastando um rabo sujo de processos e evidência de assaltos a cofres, com o sambódromo de Manaus superfaturado e desabando, me traz um sentimento de pesadelo cômico. Na cara de Mestrinho mora o impasse nacional. Mestrinho declarou em entrevista que nunca distribuiu uma moto-serra, que nunca desmatou, nunca matou jacaré, chegando ao inefável de dizer que não pinta o cabelo, ali na fotografia, com sua franjinha asa de graúna. Sua carinha maquilada, seu bigodinho lustroso, seus olhinhos vorazes lembram-me Akim Tamiroff em "A marca da maldade". Já vivíamos com a conformada aceitação da nossa desgraça, mas Mestrinho é a apoteose de nosso horror. Outros políticos, com seu visual didático, já nos ensinaram muito sobre nosso destino. ACM, por exemplo, tem um rosto até bonito, com seu bigodinho branco e um passado de sensualidade. Seu corpo é que conta a história: lento, pesado, marchando como um orichá entre baianas e puxa-sacos, com um vago rebolado de poder que é (ou era) o símbolo puro do coronelismo secular. Itamar Franco tem o carisma da vítima, um eco mineiro de Jânio Quadros, o caspento, o vesgo, o despenteado no poder. O povão excluído, humilhado, pode vir a se impressionar com seu rostinho de injustiçado, sua bobeira, sua caipirice populista. Itamar encarna a nostalgia de um povo pela própria ignorância, Itamar pode vir a ser a vingança contra os "intelectuais pernósticos" como FH, na mesma raia onde corre o rosto gordinho e infantil de Garotinho, que mal aparece no palácio para despachar e viaja aplaudido por milhões de pirados evangélicos. Santo Deus... é uma fartura de tipos: os olhos verdes de Requião, o charme epileptóide de Pedro Simon, a gordura truculenta de Eurico Miranda, a fria elegância yuppie de Luís Estevão, a alma gordurosa de Newtão, o teatro de Lalau, amparado por policiais, indo para casa comer pizza, todos, sem falar no inesquecível rosto pétreo de José Osmar Borges, o sócio de Barbalho, que, preso, algemado, no camburão, exalava tranqüilidade total, ignorando as câmeras, olhando para o lado, como se dissesse: "Vocês, a imprensa, vocês não existem..." E foi solto, como o grande Naya. Talvez não existamos mesmo... Sinto que, ao apagar das luzes do governo FH - que, apesar dos pesares, trouxe-nos um charme francês, com sorrisos sociológicos e uma aristocrática tolerância com nossa breguice - estamos voltando para trás. Assanha-se o velho museu de cera da escrotidão nacional. Mestrinho e Jader são os vanguardeiros desta grande marcha à ré.

121. ARNALDO JABOR. ESPELHO MEU, QUEM É O IMPERADOR DO MUNDO? Não sei por que mas, sempre que desejo meditar, venho aqui para esse banheiro da Casa Branca, com espelhos em paralelo, que me multiplicam ao infinito. Preciso me ver refletido, milhões de 'bushes', como um exército de 'eus'. Aqui me sinto calmo. Gosto de ficar nu, olhando-me de todos os ângulos. Ergo a mão, milhões de mãos...Viro de bunda, milhões... Gosto de gritar: "Kiss my asses!" ("Danem-se!") Ha ha... Estou vivendo os melhores momentos de minha vida... Sinto-me potente. Vou derrotar meus inimigos. Eles não são somente o Bin Laden, nem o Sadam. Meus inimigos são também aqueles que me humilhavam quando eu era o 'Little Bush', o burrinho, que só tirava zero na faculdade... Eu queria ser livre, leve e solto, feito meus colegas dos anos 60, doidões, que fumavam maconha contra o Vietnã. Eles gostavam de Rolling Stones e eu do Ray Conniff, qual o problema? Eu queria desbundar feito eles, mas meu pai não deixava e, aí, eu só enchia a cara de 'Jack Daniels' e atropelava latas de lixo no Texas, onde fui detido por alcoolismo. Eu bebia para diminuir a angústia, pois papai sempre preferiu o Jed... Meus inimigos são também aqueles intelectuais de bosta que riam de meus planos para a política da América, só porque eu pertencia à 'Skull and Bones Fraternity', uma espécie 'light' da gloriosa 'Ku Klux Klan'. Eram uns intelectuais babacas, puxa-sacos dos europeus, fascinadinhos pela França e Itália. Eu nunca fui a esses lugares na juventude... Para quê? Para enfraquecer minha fé na América? Diziam que eu era burro... Por isso, uso sempre essa expressão de seriedade, como se eu estivesse pensando em coisas profundas sobre o mundo. Cara 1: preocupação com o 'mundo livre'. Cara 2: 'cowboy vingativo'. Chamam-me de 'Forrest Gump', mas só eu sei da grandeza insuspeitada do homem médio. Há um bom senso profundo no republicano radical como eu. Um amor às coisas óbvias, à família gordinha, mamãe e filhinhos de olhares inocentes, mas atentos ao 'Mal', com seus hambúrgueres, o bacon, a 'root beer', o 'barbecue', o futebol americano, o charme da 'old religion', a 'country music', o horror ao estrangeiro, o amor à linha reta, ao princípio, o meio e o fim de tudo, a valentia em resolver problemas, sem atentar para complexidades afrescalhadas, resolver, arrasar, desde os índios até o Noriega. Assim, fizemos a maior nação do mundo - e não foi com dúvidas européias não; foi com a crueldade em nome da bondade, com a pureza do 'self interest', da conquista de mercados; assim, criamos esse grande país, com fé em Deus, na fidelidade à pátria de Cristo e na fidelidade conjugal, e não nos 'blowjobs' daquele canalha do Clinton. Tenho orgulho de ser um 'Forrest Gump', pois ele tem a sabedoria da estupidez, a pureza dos imbecis, a santidade da burrice. Os 'gumps' é que fizeram a maior nação do mundo, sem se dobrar a multilateralismos de bosta dos europeus; isso é coisa de quem não tem exércitos. Querem nos controlar com papos de ecologia, de ONU, de Tribunal Penal Internacional para nos julgar... Ninguém vai nos julgar mais. Esses intelectuais de quinta querem que eu deixe as maiores reservas de petróleo do mundo com o Sadam? Tenho de atender o Dick Cheney, velho petroleiro amigo dos que nos financiaram... Tenho de atender também nossos gênios militares, que nos fazem invencíveis... Há coisa mais bela que um avião 'Stealth', bombas inteligentes, a aerodinâmica dos jatos no céu, balas tracejantes, nuvens de fogo? Eu não lutei no Vietnã, papai arranjou-me um pistolão na Guarda Costeira, mas eu acho bela a guerra... Ahh... a beleza do heroísmo, até mesmo a beleza do martírio dos jovens que voltarão mortos, com funerais sob salvas de canhão. Eu sou o verdadeiro americano, sem frescuras importadas. A Europa nos despreza, e eu vou ficar puxando o saco daqueles babacas? Museuzinhos, catedraizinhas, filosofias, artezinhas, um papo de transcendência, de tradição milenar? É tudo 'bullshit'; eu acredito é no mercado, preço, lucro, utilidade. Humanismozinho é coisa da veados; humanismo é mercado... Tem cabimento a maior nação do mundo se igualando àqueles idiota da ONU: Nigéria, Costa Rica, Brazil? Ora, 'give me a break'. Não existe essa tal de 'política internacional'; só interesses internos e privados, como disse aquela crioula, a Condoleeza Rice. A crioulinha é fera... ha ha... tenho até de segurar ela... senão taca fogo em tudo... E ainda tenho de aturar aquele Colin Powell, metido a pombinha... Tudo bem, tive de botar esses afro-negões no poder para mostrar que não sou racista, apesar de ter torrado vários na cadeira elétrica do Texas... ah ah... um crioulo falcão e um pombinha; um lambe e o outro esfola. Mas, eu vou criar um mundo maravilhoso, tenho certeza. Já vejo os árabes tremendo de medo de mim, o petróleo jorrando nos postos de gasolina barata, abastecendo o ritmo do sonho americano, a Europa toda mudada, os Estados sem exércitos fortes, os Estados sem iniciativa, simbólicos, como monumentos vazios de outros tempos. Já vejo uma grande economia sem governos, todas dominadas por nós, a América Latina dominada, tudo dominado com a grande Alca regendo aqueles macacos. Só restará um grande mercado, limpo, sem países reais. Quero voltar a América para trás, antes dos hippies, dos negros, dos direitos civis... Então, nossa pátria sera a nação indispensável, com nossos céus cobertos por um grande guarda-chuva de satélites da 'guerra das estrelas', mísseis batendo no teto, com estrelas chinesas e russas, com nosso povo comendo hambúrgueres e olhando para cima, rindo dos foguetes domados. E, se a barra pesar muito, pau nos chineses que virão e nos russos e árabes também! Será o Juízo Final, mas só para eles. Nós ficaremos sozinhos na América, como eu aqui nesse banheiro de espelhos... Já imagino Meca derretendo, com aquela praça cheia de árabes sujos... Ha... ha... eu posso apertar um botão e acabar com essa porra! Viva eu! Sempre que penso nisso, tenho uma ereção... Meu Deus... o melhor afrodisíaco é a nuvem atômica! God! São milhões de pintinhos de 'bushinhos' se erguendo gloriosamente nos espelhos infinitos!... Aleluia! Finalmente, eu sou feliz!...

122. ARNALDO JABOR. O BRASIL ESTÁ FICANDO COM SAUDADES DA BURRICE. FHC cometeu a burrice de não ser burro. Acreditou demais na razão, achou que a inteligência lhe abriria um caminho fácil, tanto aqui como no coração do Primeiro Mundo. Lá fora, ele achou que a complexidade do processo seria entendida e que os donos do Poder Ocidental seriam razoáveis com sua terceira via tropical. Na prática, FHC aprendeu que a globalização é de mão-única, que os estrangeiros lhe dão títulos honoris causa, mas mantêm suas implacáveis regras comerciais. Aqui dentro, ele não esperava a bruta resistência da estupidez e da corrupção a seu projeto iluminista. Conseguiram virar sua “complexidade” em ininteligível “complicação”. E a era FHC pode passar à História como o governo que “desmoralizou a inteligência”. Dentro de um mundo que glorifica o fragmentário, o parcial, só as grandes corporações têm o direito à lógica linear dos seus interesses; no mundo da “democracia”, só elas podem ser autoritárias. Aqui e lá fora, a sociedade está faminta de simplismo. Surge na política a restauração alegre da burrice, com a sombra da “direita” por trás. Forrest Gump, o herói-babaca, foi o precursor; Bush é seu efeito. Ele se orgulha de sua burrice. Outro dia, em Yale, disse: “Eu sou a prova de que os maus estudantes podem ser presidente dos EUA”. É a vitoria da testa curta, o triunfo das toupeiras. Aqui, vemos também esse cansaço, depois das trapalhadas (e da urucubaca) deste governo, aqui vemos uma grande fome de simplismo “de resultados” (leia-se autoritarismo) de “dois e dois são quatro”, de “o vovô viu a uva”. Inteligência é chato; traz angústia, com seus labirintos. Inteligência nos desampara; burrice consola, explica. Os tucanos foram bichos hesitantes, cheios de “se” e de “talvez”. Os candidatos no horizonte vão trazer a mensagem tranqüilizadora do pão-pão-queijo-queijo, desde o populismo de direita ao populismo de esquerda, do obreirismo iluminado ao voluntarismo de classe média, todos buscando bandeiras fáceis de engolir. Temos infinita saudade da burrice. SÓ OS POBRES VERÃO DEUS. Existe na base do populismo brasileiro uma crença, de raiz lusitana, contra-reformista, de que o simplismo é a moradia da verdade. Em nossa cultura, achamos que há algo de sagrado na ignorância dos pobres, uma sabedoria que pode desmascarar a mentira “inteligente” do mundo. “Só os pobres de espírito verão Deus”, reza nossa tradição. A cultura lusitana estimulou a derrota social. Cada fracasso da sociedade fortalecia o Rei, tranqüilizava a Igreja e mantinha em pé a coluna hierárquica que ia dos servos até Deus-Pai, logo acima da Coroa. O bom asno é bem-vindo, enquanto o pernóstico inteligente é olhado de esguelha. A burrice é “sim” ou “não”. Na burrice, não há dúvidas. A burrice organiza o mundo: princípio, meio e fim. A burrice não tem fraturas. A burrice alivia — o erro é sempre do outro. A burrice dá mais ibope, é mais fácil de entender. A burrice até dá mais dinheiro; é mais “comercial”. Neste Brasil “apagado”, pré-eleitoral, pinta uma fome de regressismo, de voltar para a “taba”, para o casebre com farinha, paçoca e violinha. Da simplicidade viria a solidariedade, a paz, num doce rebanho ideológico que deteria a marcha das coisas do mundo, do mercado voraz, das pestes, da violência do poder. É a utopia de cabeça para baixo, o culto populista da marcha a ré. Outro dia, vi na TV um daqueles “bispos” de Jesus de terno-e-gravata clamando para uma multidão de fiéis: “Não tenham pensamentos livres; o Diabo é que os inventa!”. Fiquei chocado, mas entendi que a liberdade é uma tortura para esses homens desamparados pela falta de cultura. Claro que o povo não é burro; tem sensibilidade para perceber o erro de um governo que, em nome da “razão”, ignorou a comunicação com ele. Sente um enorme vazio com a democracia, difícil de entender com suas ambivalências. O perigo é que os espertos vão manipular a ignorância da população para transformá-la em burrice. A burrice é a ignorância ativa, a militância dos desamparados sem informações. A burrice é a ignorância com fome de sentido. A DEMOCRACIA É CHATA. Populismos de vários matizes rondam as eleições de 2002. Itamar quer ser a cara do povo “traído”, do povo “vítima”. Como já escrevi, Itamar passa, em caricatura, o mesmo clima de Hitler, que dava a sensação de que sofrera alguma injustiça, ele e a Alemanha, ambos clamando por vingança. Itamar também. Com seu beicinho choroso e seu topete ao vento, ele nos faz sentir culpados, insinuando que estamos em dívida com ele. Ele é o símbolo do bom otário, do mineiro que comprou o bonde, do Jeca que caiu no conto-do-vigário e foi humilhado pelos intelectuais. Ele se diz “traído” por Collor, por FHC, por Lilian Ramos, em sua ingenuidade de bonzinho. Itamar é “de época”; ele é o “defensor” de nossas velhas convicções erradas, de nossa incompetência quase doce. Itamar é a classe média com saudades do passado medíocre. Ciro Gomes é inteligente, é bonito, com mulher bonita. Ciro deve abordar a massa pelo seu lado “macho”, tudo que FHC não deu (pelo que, acusam-no de Collor 2). Ciro faz um discurso moderno, mas ainda está dividido entre si mesmo e seu guru, o Mangabeira, um “professor Pardal” com sotaque, que faz ardentes conclamações a uma “mobilização” da classe média, onde se sente o sabor de um voluntarismo vagamente totalitário. Ciro ainda está dividido entre uma agenda moderna e uma prática messiânica. Lula tenta se modernizar, mas tem o rabo preso com a choldra burra do PT, que não consegue se livrar da idéia de “revolução” clássica, como um tumor inoperável. Ainda acham que vão “tomar” o poder, não ser “eleitos”. A classe média ainda teme os petistas. Só lhes resta virar PSDB hard ou adotar um populismo à esquerda de Itamar. O extraordinário Garotinho, nosso Tony Blair evangélico, quer ser um juscelininho dos idiotas, um sub-brizolinha pentecostal, um “Quércia honesto”, todos os populismos avalizados por Jesus. Seu apelido passa uma aura de menino maluquinho realizador, mas sua bochecha nos lembra mesmo é a moleza dos bombons “Garoto”. Não tem a menor chance, mas é uma caricatura didática do perigo que nos ronda. A verdade é que a democracia está decepcionando as massas. A liberdade é chata, dá angústia. A burrice tem a “vantagem” de simplificar o mundo. O diabo que burrice no poder chama-se fascismo.

123. ARNALDO JABOR. A história de minha vida política sempre oscilou entre dois sentimentos: esperança e desilusão. Cresci ouvindo duas teses divergentes, uma “dupla mensagem”: ou o Brasil era o país do futuro ou era uma zorra sem nome, um urubu caindo no abismo. Nesta encruzilhada, eu cresci. Além disso, dentro desta dúvida, havia outra: UDN ou PTB? Reacionários da elite ou “povão”? Brigadeiro ou Getúlio, finesse ou “sujeira”? Comecei a me interessar por política quando votei em Jânio. Confesso. Eu tinha 18 anos e não consegui me interessar por Lott, aquele general com cara de burro, pescoço duro. Jânio me fascinava com sua figura dramática, era uma caricatura vesga, cheia de caspa e dava a impressão de que ele, sim, era “de esquerda”, doidão, off . Meses depois, estou no estribo de um bonde quando ouço: “Jânio tomou um porre e renunciou!”. Foi minha primeira desilusão. Tinha sido eleito esmagadoramente, e largou o governo como se sai de um botequim. Ali, no estribo do Praia Vermelha, eu entendi que havia uma grossa loucura brasileira rolando por baixo da política, mais forte que slogans e programas “racionais”. Já na UNE, eu participei febrilmente da luta pela posse do vice Jango, que a direita queria impedir. O exército do Sul, com Brizola à frente, garantiu a posse de Jango e botei na cabeça que, com uns militares legalistas e com heróis de esquerda, finalmente o Brasil iria ascender a seu grande futuro. Nos dois anos seguintes, vivi a esperança de um paraíso vermelho que iria tomar o país todo, numa réplica da rumba socialista de Cuba, a revolução alegre e tropical que iria acabar com a miséria e instalar a cultura popular, a grande arte, a beleza, sem entraves, sem inimigos visíveis, com o presidente e sua linda mulher fundando a “Roma tropical” como berrava Darcy Ribeiro em sua utopia. Um velho mundo iria cair sem resistência. No dia 31 de marco de 64, estou na UNE comemorando a vitória de tudo. Havia um show com Grande Otelo, Elza Soares, comemorando a vitória do socialismo. Um amigo me abraçou, gritando: “Vencemos o imperialismo americano; agora, só falta a burguesia nacional!” Horas depois, a UNE pegava fogo e eu pulava pelos fundos sob os tiros das brigadas juvenis de direita. Diante de mim, materializou-se a figura absurda de Castelo Branco, como um ET verde-oliva. Acho que virei adulto naquela manhã, com a UNE em fogo, com os tanques tomando as ruas. Eu tinha acordado de um sonho para um pesadelo. No entanto, os tristes dias militares de Castelo ainda tinham um gosto democrático mínimo, que até serviu para virilizar nossa luta política. Agora, o inimigo tinha rosto e uniforme e contra ele se organizou uma resistência cultural rica e fértil, que se refinou pelo trauma e que perdeu o esquematismo ingênuo pré-64. As idéias e as artes se engrandeceram na maldição. Com muita esperança, as passeatas foram enchendo as ruas, num heroísmo democrático que acreditava que os militares cederiam à pressão das multidões. Era ilusão. Ventava muito em Ipanema, dezembro de 68, enquanto o Gama e Silva lia o texto do Ato 5 na TV, virando o país num sinistro campo de concentração. Com uma canetada, o Costa e Silva, com sua cara de burro, instado pela louca lady Macbrega Yolanda, fechou o país por mais 15 anos. Esperança-desilusão. Vieram os batalhões suicidas das guerrilhas urbanas. Nos anos do “milagre brasileiro”, os jovens românticos ou foram massacrados à bala ou caíram no desespero da contracultura mística, enquanto os mais caretas enchiam o rabo de dinheiro nos “milagres” de São Paulo. O bode durou 15 anos e a democracia virou uma obsessão. “Quando vier a liberdade, tudo estará bem!”, dizíamos. Só pensávamos na democracia e ninguém reparou que ela foi voltando menos pelos comícios das “diretas”, e mais pelas duas crises do petróleo que criaram a recessão mundial, acabando com a grana que sustentava os militares no poder. Os milicos e a banca internacional nos devolveram a “liberdade” na hora de pagar a conta da dívida externa. Os militares queriam se livrar da batata quente da falência do Estado e entregaram-no aos paisanos eufóricos com a vitória de Tancredo. Nova esperança! Pois, justo aí, veio um micróbio voando, entrou no intestino do Tancredo e mudou nossa história. E aí começa a grande desilusão. Com a volta da democracia, no período Sarney, tudo piora. Apavorado, vi que a democracia só existia de boca, não estava entranhada nas instituições, que passaram a ser pilhadas pelos famintos corruptos e políticos que tomaram o poder, todos nobres “vítimas da ditadura”. Daí para frente, só desilusão e dor: inflação a 80% ao mês (lembram?), o messianismo de Collor, montado no cavalo louco da República, vergonha e horror. Depois, nova esperança com o impeachment; depois, mais esperança com o Plano Real, vitória da razão reformista com FHC, logo depois do Brasil no “tetra”, céu azul, esperança sem inflação. Nunca acreditei tanto na vida. Mas, hoje, estou aqui, com medo e com tristes pressentimentos. Temos o mistério Ciro, um maverick em busca de partidos, voz no deserto, com tintas voluntaristas inquietantes. Temos a oligofrenia oportunista de seres sinistros como Itamar agarrado em Quércia e Newtão, e temos este “flagelo de Deus” que é o Garotinho, apoiado pela superstição e pela miséria popular. Há a esperança de que o PT , se chegar ao poder, não caia no delírio leninista desconstrutivo e regressista. (Oh, Deus, mostre-lhes o mundo real!...) O trágico é que, para além das ideologias, existe no Brasil a maldição do “Mesmo”, uma grande empada de detritos que clama pelo atraso, que deseja a geléia geral, que odeia projetos racionais sejam do PT ou do PSDB, que quer um destino sem rumo, por ser mais lucrativo para corrupção e privilégios. É uma fome de amor ao atraso, à paralisia, que seis anos de FHC não conseguiram apagar. A grande chance histórica da razão pode ter sido perdida. Toda tentativa de racionalidade naufraga sistematicamente em nossa vocação para toupeiras e ratos. Vem aí “país do futuro” ou uma zorra? Mistério. Nem esquerda, nem UDN nem PTB. Ganha sempre o Partido do Mesmo.

124. ARNALDO JABOR.  Se você acordou mal hoje, é melhor não ler este artigo. Está um bode preto. Sei que a tristeza não é “comercial”, como me disse um deprimido que ria o tempo todo para não ficar impopular. Mas, fazer o “quê”? — o artigo é sobre a loucura de hoje. (Não falo da loucura dos miseráveis; falo dos que vivem o “luxo” de ter projetos existenciais). Já vivi vários tipos de loucura. Conheci o delírio esperançoso pré-64, quando achávamos que o Brasil ia virar magicamente uma grande Ipanema, o que culminou com a porrada de 64 e 68, quando a repressão da ditadura disparou a psicose como ideologia na pequena-burguesia jovem que pensava o país. Ninguém sabe o que foi a porrada de 68. Você podia morrer, se risse alto de militares num cinema, você podia ser torturado se um síndico general cismasse com sua cara. O desespero da juventude nesses anos é irreproduzível. Só quem viveu. A mistura de angústia, drogas, misticismo, contracultura sem flores hippies, perigo de morte gerou ao menos uns sete anos de horror. Outro dia vi um filme underground da época que se passava todo dentro de um chiqueiro, com o ator comendo excrementos. Esse era o espírito do tempo... o zeitgeist de merda. Aí, a ditadura acabou, voltou a democracia, venceu o mercado, somos todos livres e, no entanto, qual é a loucura de hoje? A loucura de hoje é imperceptível. Este clima geral dispersivo, pagodeiro, gargalhante, desreprimido parece liberdade, mas não é. Depois da ditadura, chegamos a uma liberdade para desejar o quê? Bagatelas, micharias. Uma liberdade vagabunda, para nada, para rebolar o rabo nas revistas, para a ilusão de um narcisismo sem peias, uma liberdade “fetichizada”, transformada em produto de mercado e até mesmo disfarçada de revoltas “de festim”, êxtases volúveis, visíveis em clubbers e punks de butique, em raves sem rumo. Temos liberdade para escolher besteiras, somos livres dentro de um chiqueirinho de irrelevâncias, buscando ideais como a bunda perfeita, recordes sexuais, próteses de silicone, sucesso sem trabalho, substituição do mérito pela fama. Não precisa fazer nada; basta aparecer. Se antes havia excesso de ideologias, hoje somos todos um bando de ignorantes e frívolos, patetas, como crianças brincando dentro de um shopping. O amor está deixando muito a desejar. As paixões passaram a durar o tempo entre duas reportagens de “Caras”. Está desidealizado, isolado, um pretexto para a orgia de troca-trocas narcisistas. O casamento virou um arcaísmo careta. O sexo, uma competição de eficiência. Onde está a sutileza calma dos erotismos delicados? Onde, o refinamento poético do êxtase? Nada. No sexo e no sucesso, o desejo é virar máquina e atingir o desempenho perfeito, na busca do orgasmo definitivo e de um paraíso automático e sem sofrimento. Até criticar o erro do mundo ficou ridículo. A arte ficou ridícula, inócua, pregando num deserto de instalações melancólicas que ninguém vê. O cinema virou um “titanic”, um video game, com guetos de “independentes” queixosos. Os artistas não têm mais nem o consolo do pessimismo clarividente, do absurdismo iluminista de um Beckett ou Camus. Não há esperança nem na desesperança crítica.O absurdo ficou óbvio demais para ser condenado. A democracia em país analfabeto trouxe a fabulosa ascensão livre da cretinice nacional; viramos um grande pagodão e não adianta racionalizar e dizer que é legal. Não é. É uma bosta. A literatura está dividida em best-sellers e tediosos bisnetos de Joyce, patéticos e ignorados. Tudo fica gratuito, diante da irrelevância de qualquer ação humana sobre a sociedade. A razão cínica do “pode tudo” é um disfarce para o consumo indiscriminado de produtos. As coisas já mandam em tudo. A invasão das salsichas gigantes tomou conta de nosso destino, como um mau filme B de terror. Não temos mais futuro. O futuro virou uma promessa de aperfeiçoamento de produtos, com uma velocidade que fez do presente um arcaísmo em processo, uma espécie de passado “ao vivo” em decomposição. O velho passado é um museu de inúteis curiosidades históricas. Tudo tem de ser “novo”, sem tempo de envelhecer. Tudo morre jovem. A isso, soma-se a sensação de que a nação não controla mais seu destino, de que somos barquinhos à deriva no mar das corporações, de que a vida é um subproduto do balanço das companhias. E, ainda por cima, aqui no Brasil, temos a brutal resistência do atraso, do Mesmo. Há seis meses, o Senado discute o ACM e o Barbalhão, para que as grandes questões nacionais continuem intocadas, com a permanência da miséria. Estamos nos acostumando a isso. Pior que a violência é o acostumamento com a violência. O mal ficou banalizado e o bem, um luxo ridículo, quase uma vaidade, um hobby. Não é nem cinismo; é tédio. Há um sentimento difuso de que não somos participantes de nada, o que gera o sucesso dos evangélicos e o perigo de populismos fascistóides. Itamar e Garotinho estão por aí, rondando. E todos acham tudo normal. Todos rindo, dançando, felizes. A racionalização da boçalidade, da “peruíce”, do cafajestismo, é sólida. Não nos sabemos loucos. Somos “livres”. Em meu delírio, chego a desejar que alguma catástrofe aconteça, para nos despertar desta suja esperança, desta sórdida alegria. Por exemplo: se os países emergentes fizessem uma reunião e decidissem não pagar mais as dívidas externas, aí sim o mundo mudaria realmente e o capitalismo teria de repensar sua arrogância. Mas não adianta; “venceu o sistema da Babilônia e o garçom de costeleta...” — como escreveu Oswald. E se algum leitor zeloso chegou até aqui, eu pergunto: e aí, “meu semelhante e irmão”, preferes cianureto no champanhe ou formicida no guaraná?

125. ARNALDO JABOR. Meu avô foi um belo retrato do malandro carioca. Meu artigo de hoje é sobre ninguém. Meu avô não foi ninguém. No entanto, que grande homem ele foi para mim. Meu pai era severo e triste, mal o via, chegava de aviões de guerra e nem me olhava. Meu avô, não. Me pegava pela mão e me levava para o Jockey, para ver os cavalinhos. Foi uma figura masculina carinhosa em minha vida. Se não fosse ele, talvez eu estivesse hoje cantando boleros no Crazy Love, com o codinome Neide Suely. Mas por que escrevo sobre meu avô? Porque, há pouco, bateu o telefone e meu primo dr. Claudio Acylino de Lima me disse de cara: “Você está me devendo um artigo sobre vovô”. Escrevo sobre vovô porque esta política suja, girando em torno de Barbalhões, está me corroendo as entranhas. Literalmente. Estou internado com uma doença histórica, a diverticulite, que levou Tancredo para o beleléu e mudou o curso da história. Aliás, acabo de saber que serei operado hoje. Não farei história, mas se eu não voltar, leitores amigos, tomem cuidado com o populismo que ameaça o Brasil. Meu avô, Arnaldo Hess, foi um belo retrato do Brasil dos anos 40/50. Era um malandro carioca — em volta dele, gravitavam o botequim, a gravata com alfinete de pérola, o sapato bicolor, o cabelo com Gumex, o chapéu-palheta, o relógio de corrente, seu Patek Phillipe tão invejado, em volta dele ressoava a língua carioca mais pura e linda, com velhas gírias (“Essa matula do Flamengo é turuna!”...). Meu avô era orgulhoso de viver nesta cidade baldia e amada, o Rio que soava nos discos de 78 RPM, nas ondas do rádio, o Rio precário e poético, dos esfomeados malandros da Lapa, das mulheres sem malho e de seus sofrimentos românticos, entre varizes e celulite. Antes de morrer, ele me olhou, já meio lelé, e disse a frase mais linda: “É chato morrer, seu Arnaldinho, porque eu nunca mais vou à Avenida Rio Branco”. Ali, onde ele me levava para tomar refresco na Casa Simpatia, era o centro de seu mundo. Os políticos canalhas populistas que estão hoje aí querem a volta do passado apenas pelo lado “sujo” do atraso. Mas havia também uma poética do atraso — na Lapa, no Mangue, havia um Rio que, com poucas migalhas, fabricava uma urbanidade pobre, bela e democrática. Ele também me dava aulas de sexo. Contou-me uma vez que a melhor mulher que ele teve na vida tinha sido um “joão”. Que era “joão”? Esse termo, ainda escravista, designava as pretinhas tão pretinhas que tinham o pixaim da cabeça ralo, quase carecas. Eram as “joão”. Pois ele me disse: “Foi no terreno baldio, ali na General Belfort... foi o melhor nick fostene que eu tive...” (inventara esse nome de falso inglês de cinema americano para designar a cópula, sendo a palavra acompanhada pelo gesto vaivém de bomba de ”Flit“: Nick Fostene ...) Contava isso a um menino de 10 anos, a quem ele dava cigarros e ensinava (a mim e ao Claudio Acylino) a pegar bonde no estribo, andando. Me apresentou sua amante, uma mulher ruiva chamada Celeste, que me beijava trêmula e carente como uma avó postiça e que, sendo de “boa família” (ele me falava disso com uma ponta de orgulho), “nunca se metera em sua vida familiar oficial”. Isso ele dizia com os olhos machistas molhados de gratidão. Ou seja, ele me ensinava tudo errado e com isso me salvou. Quase analfabeto, vivera grudado com a turma dos intelectuais da Colombo, babando com os trocadilhos de Emilio de Menezes, Olavo Bilac, Agripino Grieco nos anos 20, o que lhe deu um fascinado amor às letras que não lia, mas que lhe fez trazer-me sempre um livro novo, da Rio Branco, junto com a goiabada cascão e o catupiry. Uma vez, já mais tarde, eu namorava uma moça lindíssima e virgem (claro) mas burrinha. Reclamei com ele. Resposta: “Ah, é burrinha? Você quer inteligência? Então vai namorar o Santiago Dantas!” Quando fomos aos sinistros “rendevus”, de onde nos floresceram as primeiras gonorréias, nossos pais severos bronquearam: “Vocês são uns porcos!” Já nosso vovô riu, sacaneando: “Poxa... boas mulheres hein...?” Vovô nos ensinava a conversar com as pessoas, olho no olho. Na minha família de classe média, celebravam-se as meias palavras, o fingimento de uma elegância falsa, de uma finesse irreal. Só meu avô falava com os vagabundos da rua, com os botequineiros, com os mata-mosquitos. Enquanto minha família toda votava histericamente na UDN, em pleno delírio golpista, meu avô pegou o chapéu, e foi votar. Eu fui atrás dele... “Votar em quem?” “No Getúlio, seu Arnaldinho... ele gosta do povo e eu sou povo”. “E eu sou ‘povo’ também, vovô?” — perguntei. Ele riu: “Você não; você tem velocípede...” Ele me levava ao Maracanã, ele me levava em seu ombro para ver a estrela de néon da cervejaria Black Princess (até hoje me brilha esta supernova na alma), ele, uma vez, deixou-me ver um morto na calçada, navalhado no peito (“Parecia a fita do Vasco da Gama”, ele disse) — não me escondeu a tragédia. Me ensinou tudo errado e me salvou... Meu avô adorava a vida e usava sempre o adjetivo “esplêndido”, tão lindo e estrelado. A laranja chupada na feira estava “esplêndida”, a jabuticaba, a manga-carlotinha, tudo era “esplêndido” para ele, pobrezinho, que nunca viu nada; sua única viagem foi de trem a Curitiba, de onde trouxe mudas de pinheiros. “Esplêndidos...” No fim da vida, já gagá, eu o levava ao Jockey para ele conversar com o Ernani de Freitas, o amigo tratador de cavalos, que lhe dava um carinho condescendente com sua gagazice , falando de cavalos que já haviam morrido. “Hoje corre a Tiroleza ou a Garboza?”, perguntava. “A Tiroleza está machucada, Arnaldo...” Velho gagá, deu para dizer coisas profundíssimas. Uma vez, já nos anos 70, celebrei para ele as maravilhas lisérgicas do LSD que eu tomara. Ele me ouviu falar em “delírio de cores”, “lucy in the skies” e comentou: “Cuidado, Arnaldinho, pois nada é só bom...” Outra vez, vendo passar um super -ripongão sujo, “bicho-grilo brabo”, comentou: “Olha lá. Um sujeito fingindo de mendigo para esconder que realmente é...!” Há dois anos, na exumação de um parente, o coveiro colocou várias caixas de ossos em cima do túmulo. Numa delas, estava escrito a giz: “Arnaldo Hess”. Não resisti e levantei de leve a tampa de zinco. Estavam lá os ossos de vovô. Vi um fêmur, tíbias, que eu toquei com a mão. Vocês não imaginam a infinita alegria de, por segundos, encostar em meu avô querido. Eu estava com ele de novo em 1952, sob o céu azul do Rio. Meu avô não era ninguém. Mas nunca houve ninguém como ele.

126. ARNALDO JABOR. Não me esqueço do ataque de riso que tive, muitos anos atrás, quando vi a autocrítica de um alto dirigente do PC da China, durante a Revolução Cultural. Quem foi? Lin Piao? Não me lembro. A “autocrítica” é um dos velhos hábitos dos comunas, uma espécie de confissão católico-vermelha, só que aos berros diante das massas. O dirigente começou sua autocrítica assim: “Eu sou um cão imperialista, eu sou o verme dos arrozais da China, eu sou a vergonha do comandante Mao...” Eu adorava ver essas manifestações da auto-anulação individual dos comunas pois, como me diziam os marxistas, o “individuo é uma ilusão”. Hoje, a “autocrítica”, para o PT no poder, se transformou na prática cotidiana, usual, do “desmentido”. Todo mundo dando gafe e depois desmentindo. O “desmentido” é o arrependimento do “se colar, colou”. Exemplo: Dirceu diz que vai “arrombar as portas e aprovar PPPs” ou diz que o Ministério Público é a “gestapo” de Hitler, ou que vai “dar um tiro no peito de Tasso”. Aí, desmente no dia seguinte. O Lula diz que jornalistas são covardes e depois desmente. Mas a verdade é a gafe do primeiro dia. É o que lhes vai pela cabeça, tão reprimidamente que pinta o ato falho. Aí, o sujeito “desmente”, numa fingida autopenitência, e todos aceitam. Eu, não, eu quero é que voltem as autocríticas do tempo de Mao. Quero ver o Gushiken bater no peito e berrar: “Eu sou a praga do cerrado, eu sou um cão bolchevista fingindo de democrata...” Muitas vezes o elemento petista não se sente obrigado a desmentir nem a fazer autocrítica, pelo uso matreiro de outro vício capital: a “mentira revolucionária”. A Secom do Planalto acaba de fazer isso com o trecho do discurso do Lula apoiando Marta que foi cortado por “pegar mal” ou o trecho atribuído a Gilberto Gil, por uma “companheira” já demitida, sem nome, que teria distorcido as palavras do ministro cantante. Quem é essa irresponsável burocrata do povo? Já terá sido estrangulada ou só está em “desgraça” num “gulag” qualquer das cidades-satélites? Ou não houve moça nenhuma? Stalin apagava das fotos os membros do partido que ele expurgava; portanto, nunca existiram. Tudo é absolvido pela “mentira revolucionária”, porque ela vem por uma “boa causa”. Outro vício capital dos comunas velhos é a sagrada prática da “luta interna”. Ah... como eles se refocilam nesse embate. A “luta interna” com base ideológica é exercida deliciosamente, pois todas as maldades, traições, intrigas, tapetes puxados, cascas de banana, tudo é “válido”, pois são agruras justificadas pelo “bem” do Partido. Ninguém estaria brigando por inveja, rancor, paranóia ou por problemas sexuais. Esses seriam vícios “pequeno-burgueses”. Eles brigam por motivos maiores, “revolucionários”: aventureirismo, sectarismo, revisionismo... Os perdedores se aquietam, quase felizes, pois foram esmagados pelo bem de todos, contra o “inimigo principal”, ou seja, quem não é do PT. Quando o Palocci saiu na capa da “Veja”, elogiado “pela burguesia”, eu pensei: “Tá frito...” Semana seguinte, começou a ciumeira disfarçada de desenvolvimentismo. Outro vício típico do anedotário petista é o “que saudades da KGB ou como era doce meu DIP”. Como os petistas não sabem sair da encruzilhada infernal entre responsabilidade fiscal e monetária e “desenvolvimento” (como aliás ninguém sabe ainda...), eles se dedicam à parte “espiritual” da velha ideologia: controle, fiscalização, tutela, espionagem e censura. Agora, estamos assistindo ao vício do baixo clero do PT: “a porrada revolucionária”, com os “militantes” atacando os comícios do José Serra para a prefeitura. Todo jogo tem porrada, sabemos. Mas ali é diferente. Há o zelo dos peões, dos pés-de-poeira da Marta, há uma missão bélica para impedir que os burgueses do PSDB ganhem a prefeitura. Os brutamontes da militância se acham imbuídos de uma missão sagrada: “Eu taquei um pé nos cornos daquele tucano filho de uma égua, esfreguei a cara dele no chão até ele gritar ‘Viva a Marta!’”. “E eu arrebentei a cara daquele ali! É isso que chamam de golpe de esquerda, Manelão?” Quase todos esses cacoetes derivam de um sentimento: “Somos superiores”. Quando eu era estudante, um dirigente do PC dizia sempre: “Não estamos com a doutrina certa? Então... é só aplicá-la”. Discutíamos infinitamente para chegar a uma conclusão da qual partíamos. Ideologia é isso. Essa “certeza superior” é encontradiça em homens-bomba, em bispos vermelhos, em padres de passeata como o Frei Betto, e encontramos também em Bush e seus fascistas... em muita gente. O autoritarismo e a truculência não são privilégio de radicais de direita. Entre os vícios do PT eu adoro um deles especialmente: o “militante imaginário”. Essa expressão é do pf. Gianotti. Perfeita: o sujeito nunca fez nada, nada pelo povo, nada pelo país, mas se considera um militante pelo bem da tal esquerda imaginária que ele cultiva dentro da cabeça, como um canteiro de “marias vagabundas”. O sujeito é de esquerda como se é Flamengo ou Corinthians. São contra “tudo isso que está aí”. São freqüentadores de bares do Rio e de universidades paulistas. Todo partido tem a turminha do “trabalho sujo”, interface entre o partido e o mundo torpe dos conchavos. No PT também: são os “canalhas revolucionários”, mas suas ações são toleradas por serem um mal “necessário” para a revolução. Os “canalhas revolucionários” agiram em Santo André, no próprio Planalto, como foi o caso do inefável Waldomiro. Recentemente, temos os milhares de sigilos quebrados pela CPI, feito atribuído ao Jose Mentor, para compor um belo arquivo para o futuro, talvez para os dias do justiciamento . “Canalhas revolucionários” são protegidos pelo Sistema. Não posso afirmar nada contra a honestidade de pessoas como o amigo de Lula, Roberto Teixeira, nem sobre o Sr. Cipriani, da Transbrasil. Mas as cortinas de fumaça impedem qualquer aprofundamento. E tudo em nome do socialismo que virá, pois como recomendou Stédile a seus sem-terra: “Tenham filhos; eles vão conhecer o socialismo...”.

127. ARNALDO JABOR.  Croc croc croc — coaxam as rãs.Rãs do meu querido Brasil!... Não reparem em minhas lágrimas... Fugi da mídia e vim para o mato. Com vocês eu posso ser sincero, pois, afinal, vocês são as rãs mais caras do mundo, vocês já custaram mais de R$ 9 milhões aos cofres públicos... Oh, doces rãzinhas!... Vocês não me entendem, mas me olham, empilhadas nos tanques, com as patinhas prontas para me aplaudir... Ha ha... Vocês estão mais famosas que as rãs do Aristófanes... Vocês são as rãs do Barbalho, as minhas últimas correligionárias... Rãs: — Croc croc croc... Eu nunca quis ser uma rã, como vocês. Esta é a história de minha vida. Um homem ambicioso como eu, nascido na Amazônia, está perdido, pode ter vida de rã. Tudo que eu sempre quis foi fugir da condição desses bichos escondidos na lama. A floresta come tudo, come nossos raros ideais... É a síndrome de Belém e Manaus... Há uma estranha metempsicose na floresta. Se a gente bobeia, a alma dos bichos entra na gente. Eu nunca quis ser rã. Queria ser um bicho mais prestigiado como as sucuris ou as piranhas... As piranhas foram meu ideal-de-eu! Aqui as pessoas ficam com cara de bicho. Meu sócio José Osmar Borges parece um jacaré cínico, impassível, prestes a dar o bote. Minha mulher (que ela não me ouça...) tem cara de rã. Aliás, foi por isso que eu tive a idéia de financiar-lhe um ranário. Ha!... ha!... Meus suplentes e sucessores têm alma e cara de bicho. O Mestrinho parece uma tartaruga maquilada; meu vice, o Edson Lobão, é um bicho mais do seco do Maranhão, parece um calango faminto... É a metamorfose amazônica... Rãs: — Croc croc... Mas eu venci, senhoras rãs... Eu consegui fugir da vossa gosma! Em pouco tempo eu saí de um “fusca” velho e de um casebre da periferia e hoje... bem... hoje eu sou... era... uma potência! Comecei com discurso de esquerda, de vereador populista... Era moda na época... Foi um sucesso. Daí para frente, o poder me veio comer na mão. Prefeito, governador, ministro da reforma agrária... ahhh... foi um show de bola...TDAs vendidas... desapropriação de fazendas imaginárias... Que lindo!... Eu era um fazendeiro do ar... Ahhh... a volúpia de dispor da coisa pública, que não é de ninguém, esse dinheiro abstrato, sem dono... ahhh... E quanto mais perigoso o trambique, mais tesão... Eu tinha tanta paixão pelas tranquibérnias, pelas tramóias, que até deixei pistas, o “rabo de fora” de propósito, por tara mesmo... Ahh... cheques voando, “fantasmas”, “laranjas”, contas secretas... ahhh... que gozo quase sexual... E tem mais! Estes hipócritas que me perseguem não falam, mas sabem que sem trapaças, sem velhacarias, sem os doces superfaturamentos não há obras, não há nada... O Brasil se move pela mola dos interesses sujos... Esta é a verdade, no Sul, no Leste. Só os bisbórrias e os pilantras alavancam o progresso!! E eu não pensava só em mim... pensava no bem do Pará! Eu lutei por esta floresta de tesouros... Tanta gente veio de fora para roubar aqui, na Zona Franca, nas superintendências... E eu ficava revoltado: “Isso aqui é terra nossa! Viram, seus paulistinhas peculatários e ladrõezinhos do Sul, isso aqui tem dono!” Eu fui a defesa da Amazônia, eu, Mestrinho, Amazonino, tantos heróis, tão grandes como Plácido de Castro... Eu sou um exemplo, um ícone da tradição fisiológica florestal!... Eu devia ser preservado como uma ararinha azul e não caçado como uma ratazana grávida!... aiii, aiii... uhhhhh!... Croc croc croc. Ai... ai... uhhh!... Este Brindeiro que me denunciou parece um sagüi assustado, piscando de medo e me acusando aos urubus de capa preta do STF... Todos são bichos, ou bichas... ha ha... No Sul-Maravilha, todos falam da Amazônia com orgulho: “Nosso pulmão verde!” Não sabem do baixo-astral que é a vida na selva: piranha comendo jacaré, jacaré comendo bezerro, sapo comendo minhoca, jibóia comendo sapo... A política toda aqui é assim... mais que em Brasília... Em nossa tradição escravista e patrimonialista, a coisa pública é um prato de comida... Se um não comer, o outro come... E estes hipócritas me fizeram um símbolo da “imoralidade nacional”... E o resto do Congresso? Tirando meia dúzia de bobos, o Congresso é um “inferno verde”... Estes canalhas querem me extinguir... Eu sou um mico-leão-dourado e querem me substituir por novas formas de corrupção “global”, anglo-saxônica... Aí, em vez de rãs, teremos grandes insetos falando inglês... Eu sou a preservação da grande linhagem do espertalhão folclórico... Eu sou Macunaíma contra o Mr. Smith... Luis da Câmara Cascudo me defenderia... Eu sou material de cultura popular... Eu sou um pirarucu... uma piranha vencedora!! Croc... Ohh... minhas rãzinhas... coitadinhas... Graças a Deus, vocês não entendem meu discurso, porque vocês são umas desgraçadas... Vocês me lembram um campo de concentração, onde são mortas por choque e decapitação, o massacre mais caro da história, 9 milhões... ha ha!... É horrível, mas confesso que me dá um certo tesão... Vocês mortas parecem pequenas mulheres de perna aberta... Aquela fila de mulherzinhas nuas... E esse holocausto acaba em restaurantes finos... Oh, ironia... Esses grã-finos que vão comer vocês, à provençal, nada sabem da vossa tragédia amazônica, nem da minha... Ai, aiiii, uhhhh... Eu sempre vivi na lama dos rios, na beira dos alagados e, hoje, eu tenho orgulho de mim: eu tenho piscinas, fazendas, helicóptero, barrigão, eu tenho Mercedes, jatinhos... eu... eu croc eu... eu... eu croc eu... minha honra... croc... croc... urghhhht... que é isso? Sinto uma gelada gosma me cobrindo... Meus braços estão mais finos... meu Deus... meu corpo está oleoso, minhas sobrancelhas caíram... Estou ficando verde.. meu... arghhh... croc croc... Senhoras rãs... vocês... me salvem... eu não quero... sou gente... eu sou o senador... croc... croc... o senad... croc... Rãs: — Idiota! Rã não fala!... Croc.

128. ARNALDO JABOR. Vinte e cinco anos atrás, o cinema brasileiro estava decolando: filmes com dez milhões de espectadores — “D. Flor”, “Xica da Silva”, “Lucio Flávio” — dando tanto lucro quanto os “tubarões” e “exorcistas”. O público abarrotava as salas com filmes brasileiros. Por isso, alarmado, mr. Jack Valenti, o capo do cinema americano, voou correndo para o Brasil, para impedir nosso progresso. Veio falar com Geisel, fazer ameaças. Hoje, quando estamos melhorando, com a criação do Gedic (Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica), um novo programa de regulamentação para o cinema, Jack Valenti volta a ameaçar. Ele e seu funcionário local, Steve Solot, estão despachando arrogantes “cartas-bomba” para o governo, com ameaças de retaliação comercial e preparando lobbies para intimidar e comprar deputados, de modo a destruir nosso projeto de ter um mercado interno. Há 25 anos, escrevi um poema-protesto contra Valenti. Hoje, com 79 anos, ele não mudou nada; nem ele nem os americanos, que falam em “mercado aberto” para enganar otários. Meu poema, enxugado, continua atual. “O sangrento coquetel de Hollywood”. “Hoje, quando já se fecha a pálpebra do “american dream”/ e começa a grande noite de perigo no Sunset Boulevard, hoje,/ quando a “democracia global” já é motivo de ironia nos bares/ elegantes de Nova York — se bem que todos suportam a miséria do mundo como um mal necessário à delícia de viver/ e ninguém joga fora, com sentimento de culpa, seus rubros bloody maries / — neste instante,/ Jack Valenti, com seu sorriso republicano,/ gravata de estrelas/ e sólido rosto com/ traços de Dick Tracy/ George Wallace, Liberace e Billy Graham,/ e tantos outros robôs da gargalhada infinita,/ neste momento,/ com a sólida valise dos objetivos indestrutíveis/ com o topete que nossa Dívida Externa deu aos executivos internacionais,/ Jack Valenti descerá do seu avião de guerra/ no país das promissórias vencidas. Em Brasília,/ Mr. Valenti dará entrevistas sobre “livre mercado”,/ e nos fará veladas ameaças, com/ seus dentes brancos, seu shake hands , sua água-de-colônia envenenada,/ que intimidarão nossos chefes-de-gabinete/ hipnotizados pelas luzes da Broadway,/ e então,/ sob os sapatos não-brasileiros de Valenti,/ os tapetes rubros de nossa cordialidade deslizarão sob seus pés/ e ninguém verá no ar os crimes do cinema americano,/ ninguém verá os corpos de nossas pobres mentes mortas/ ninguém reconhecerá as lesões,/ não há legista que descubra as marcas de livores em nossa alma,/ ferida roxa, ferida rosa, ferida de arco-íris,/ poeira de estrelas em nossos olhos,/ homens tatuados que nós somos/ pelas mil aventuras de Hollywood,/ queimaduras de Eastmancolor/ amarelo-kodak de nossa fome. Então, Mr. Valenti tirará da mala de desígnios indestrutíveis/ os valores mais sagrados do Império ocidental: a simetria, a continuidade,/ o princípio, o meio, o fim, o happy end ,/ e sua visão mercantil de liberdade./ Nós fugiremos,/ mas, de sua pasta de desígnios indestrutíveis/ sairá o King Kong de nosso Inconsciente/ e ele crescerá/ a cada ruflar de dedos/ ele crescerá/ ele, o monstro de papier maché de nosso desejo colonizado,/ esse gênio da lâmpada com pernas de Ben Hur,/ cara de Estátua da Liberdade/ seios de Marilyn Monroe/ lábios de Las Vegas/ olhos de Las Vegas/ vaginas luminosas de Las Vegas,/ bocas de beijos infinitos/ na tela do sonho paranóico de Hollywood. E, como um leite venenoso do grande seio da Califórnia,/ nossas antenas de TV mamarão para sempre/ a mais infernal mentira já montada pelo homem,/ e eles virão/ com seus dentes de celulóide,/ eles virão com coxas de Rachel Welch,/ eles virão com seus olhos de “Carrie, a estranha” espalhando morte nas salas/ eles virão ao coquetel sangrento de Jack Valenti/ eles virão com seus figurantes sonâmbulos,/ mas não trarão as aves-do-paraíso de Busby Berkeley,/ nem as asas de Fred Astaire/ nem a doce cicatriz de Gene Kelly.../ eles virão e virá o chumbo grosso das metralhadoras de Tom/ e o fino punhal de Jerry/ e virá o grande tubarão branco/ com as sedas de Jean Harlow sangrando entre os dentes/ eles virão ao funeral de nossa cultura/ e virão os seus cineastas covardes, obedientes,/ caminhando com as muletas roubadas/ dos velhos Hawks, Ford, Hitchcock e Vidor,/ enquanto Nicholas Ray cai de porre numa viela de Carmel/ e Orson Welles faz comercial de uísque em Amsterdã,/ eles virão nos vender seus últimos peixes/ eles virão no fim do sonho americano/ na última bobina do sonho americano/ eles virão vender os últimos retalhos de seus mitos remendados/ os manequins rotos, olhos caídos,/ a paina esfiapada de seus bonecos falsoso ferro-velho dos estúdios,/ eles virão para o Baile da Ilha Fiscal da nacionalidade/ e farão seus “titanics” explodir nas piscinas dos milionários,/ e Linda Blair virá rodando a cabeça aos quatro ventos/ e virão todos maquilados/ brancos de gesso, sorridentes/ casacas fosforescentes, porrete na mão,/ para nos vender os últimos resquícios da esperança/ de Carmen Miranda,/ mas não trarão Carmen Miranda caída morta/ nem Judy Garland drogada pelos executivos/ nem Marilyn flutuando na piscina envenenada do seu último teste/ nem as cenas cortadas de “Greed” de Stroheim,/ nem o cadáver de James Dean,/ nem nada,/ quem vem é a última geração biônica,/ Jack biônico/ coração de celulóide,/ brilhantina de napalm/ unhas de Nixon. E, quando a orquestra dos cubancheros brasileños / tocar em suas maracas “That’s entertainement”,/ todas as colunas sociais vão dançar/ capas de “Vogue” vão dançar,/ modelos magros jorrando marshmallow pelas bocas/ esqueletos com rosas entre as vértebras/ todos vão dançar com deputados comprados/ grã-finas deslumbradas,/ enquanto do lado de fora, o avião de Valenti, flutuando nos céus do Brasil,/ leva para o Norte os bilhões de dólares de ingressos vendidos aqui/ sob o olhar dos brasileiros cegos para o própio rosto.” (Imperialismo americano não muda; os cineastas sabem disso...)

129. ARNALDO JABOR. A história de minha vida política sempre oscilou entre dois sentimentos: esperança e desilusão. Cresci ouvindo duas teses divergentes, uma “dupla mensagem”: ou o Brasil era o país do futuro ou era uma zorra sem nome, um urubu caindo no abismo. Nesta encruzilhada, eu cresci. Além disso, dentro desta dúvida, havia outra: UDN ou PTB? Reacionários da elite ou “povão”? Brigadeiro ou Getúlio, finesse ou “sujeira”? Comecei a me interessar por política quando votei em Jânio. Confesso. Eu tinha 18 anos e não consegui me interessar por Lott, aquele general com cara de burro, pescoço duro. Jânio me fascinava com sua figura dramática, era uma caricatura vesga, cheia de caspa e dava a impressão de que ele, sim, era “de esquerda”, doidão, off . Meses depois, estou no estribo de um bonde quando ouço: “Jânio tomou um porre e renunciou!”. Foi minha primeira desilusão. Tinha sido eleito esmagadoramente, e largou o governo como se sai de um botequim. Ali, no estribo do Praia Vermelha, eu entendi que havia uma grossa loucura brasileira rolando por baixo da política, mais forte que slogans e programas “racionais”. Já na UNE, eu participei febrilmente da luta pela posse do vice Jango, que a direita queria impedir. O exército do Sul, com Brizola à frente, garantiu a posse de Jango e botei na cabeça que, com uns militares legalistas e com heróis de esquerda, finalmente o Brasil iria ascender a seu grande futuro. Nos dois anos seguintes, vivi a esperança de um paraíso vermelho que iria tomar o país todo, numa réplica da rumba socialista de Cuba, a revolução alegre e tropical que iria acabar com a miséria e instalar a cultura popular, a grande arte, a beleza, sem entraves, sem inimigos visíveis, com o presidente e sua linda mulher fundando a “Roma tropical” como berrava Darcy Ribeiro em sua utopia. Um velho mundo iria cair sem resistência. No dia 31 de marco de 64, estou na UNE comemorando a vitória de tudo. Havia um show com Grande Otelo, Elza Soares, comemorando a vitória do socialismo. Um amigo me abraçou, gritando: “Vencemos o imperialismo americano; agora, só falta a burguesia nacional!” Horas depois, a UNE pegava fogo e eu pulava pelos fundos sob os tiros das brigadas juvenis de direita. Diante de mim, materializou-se a figura absurda de Castelo Branco, como um ET verde-oliva. Acho que virei adulto naquela manhã, com a UNE em fogo, com os tanques tomando as ruas. Eu tinha acordado de um sonho para um pesadelo. No entanto, os tristes dias militares de Castelo ainda tinham um gosto democrático mínimo, que até serviu para virilizar nossa luta política. Agora, o inimigo tinha rosto e uniforme e contra ele se organizou uma resistência cultural rica e fértil, que se refinou pelo trauma e que perdeu o esquematismo ingênuo pré-64. As idéias e as artes se engrandeceram na maldição. Com muita esperança, as passeatas foram enchendo as ruas, num heroísmo democrático que acreditava que os militares cederiam à pressão das multidões. Era ilusão. Ventava muito em Ipanema, dezembro de 68, enquanto o Gama e Silva lia o texto do Ato 5 na TV, virando o país num sinistro campo de concentração. Com uma canetada, o Costa e Silva, com sua cara de burro, instado pela louca lady Macbrega Yolanda, fechou o país por mais 15 anos. Esperança-desilusão. Vieram os batalhões suicidas das guerrilhas urbanas. Nos anos do “milagre brasileiro”, os jovens românticos ou foram massacrados à bala ou caíram no desespero da contracultura mística, enquanto os mais caretas enchiam o rabo de dinheiro nos “milagres” de São Paulo. O bode durou 15 anos e a democracia virou uma obsessão. “Quando vier a liberdade, tudo estará bem!”, dizíamos. Só pensávamos na democracia e ninguém reparou que ela foi voltando menos pelos comícios das “diretas”, e mais pelas duas crises do petróleo que criaram a recessão mundial, acabando com a grana que sustentava os militares no poder. Os milicos e a banca internacional nos devolveram a “liberdade” na hora de pagar a conta da dívida externa. Os militares queriam se livrar da batata quente da falência do Estado e entregaram-no aos paisanos eufóricos com a vitória de Tancredo. Nova esperança! Pois, justo aí, veio um micróbio voando, entrou no intestino do Tancredo e mudou nossa história. E aí começa a grande desilusão. Com a volta da democracia, no período Sarney, tudo piora. Apavorado, vi que a democracia só existia de boca, não estava entranhada nas instituições, que passaram a ser pilhadas pelos famintos corruptos e políticos que tomaram o poder, todos nobres “vítimas da ditadura”. Daí para frente, só desilusão e dor: inflação a 80% ao mês (lembram?), o messianismo de Collor, montado no cavalo louco da República, vergonha e horror. Depois, nova esperança com o impeachment; depois, mais esperança com o Plano Real, vitória da razão reformista com FHC, logo depois do Brasil no “tetra”, céu azul, esperança sem inflação. Nunca acreditei tanto na vida. Mas, hoje, estou aqui, com medo e com tristes pressentimentos. Temos o mistério Ciro, um maverick em busca de partidos, voz no deserto, com tintas voluntaristas inquietantes. Temos a oligofrenia oportunista de seres sinistros como Itamar agarrado em Quércia e Newtão, e temos este “flagelo de Deus” que é o Garotinho, apoiado pela superstição e pela miséria popular. Há a esperança de que o PT , se chegar ao poder, não caia no delírio leninista desconstrutivo e regressista. (Oh, Deus, mostre-lhes o mundo real!...) O trágico é que, para além das ideologias, existe no Brasil a maldição do “Mesmo”, uma grande empada de detritos que clama pelo atraso, que deseja a geléia geral, que odeia projetos racionais sejam do PT ou do PSDB, que quer um destino sem rumo, por ser mais lucrativo para corrupção e privilégios. É uma fome de amor ao atraso, à paralisia, que seis anos de FHC não conseguiram apagar. A grande chance histórica da razão pode ter sido perdida. Toda tentativa de racionalidade naufraga sistematicamente em nossa vocação para toupeiras e ratos. Vem aí “país do futuro” ou uma zorra? Mistério. Nem esquerda, nem UDN nem PTB. Ganha sempre o Partido do Mesmo.

130. ARTHUR AZEVEDO. DE CIMA PARA BAIXO. Naquele dia o ministro chegou de mau humor ao seu gabinete, e imediatamente mandou chamar o diretor-geral da Secretaria. Este, como se movido fosse por uma pilha elétrica, estava, poucos instantes depois, em presença de Sua Excelência, que o recebeu com duas pedras na mão. — Estou furioso! — exclamou o conselheiro; — por sua causa passei por uma vergonha diante de Sua Majestade o Imperador. — Por minha causa? — perguntou o diretor—geral, abrindo muito os olhos e batendo nos peitos. — 0 senhor mandou-me na pasta um decreto de nomeação sem o nome do funcionário nomeado! — Que me está dizendo, Excelentíssimo?... E o diretor-geral, que era tão passivo e humilde com os superiores, quão arrogante e autoritário com os subalternos, apanhou rapidamente no ar o decreto que o ministro lhe atirou, em risco de lhe bater na cara, e, depois de escanchar a luneta no nariz, confessou em voz sumida: — É verdade! Passou-me! Não sei como isto foi... — É imperdoável esta falta de cuidado! Deveriam merecer-lhe um pouco mais de atenção os atos que têm de ser submetidos à assinatura de Sua Majestade, principalmente agora que, como sabe, está doente o seu oficial-de-gabinete! E, dando um murro sobre a mesa, o ministro prosseguiu: — Por sua causa esteve iminente uma crise ministerial: ouvi palavras tão desagradáveis proferidas pelos augustos lábios de Sua Majestade, que dei a minha demissão!... — 0h!... — Sua Majestade não o aceitou... — Naturalmente; fez Sua Majestade muito bem. — Não a aceitou porque me considera muito, e sabe que a um ministro ocupado como eu é fácil escapar um decreto mal copiado. — Peço mil perdões a Vossa Excelência — protestou o diretor-geral, terrivelmente impressionado pela palavra demissão. — 0 acúmulo de serviço fez com que me escapasse tão grave lacuna; mas afirmo a Vossa Excelência que de agora em diante hei de ter o maior cuidado em que se não reproduzam fatos desta natureza. 0 ministro deu-lhe as costas e encolheu os ombros, dizendo: — Bom! Mande reformar essa porcaria! 0 diretor-geral saiu, fazendo muitas mesuras, e chegando no seu gabinete, mandou chamar o chefe da 3a seção, que o encontrou fulo de cólera. — Estou furioso! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. Ministro! — Por minha causa? — 0 senhor mandou-me na pasta um decreto sem o nome do funcionário nomeado! E atirou-lhe o papel, que caiu no chão. 0 chefe da 3a seção apanhou-o, atônito, e, depois de se certificar do erro, balbuciou: — Queira Vossa Senhoria desculpar-me, Sr. Diretor... são coisas que acontecem... havia tanto serviço... e todo tão urgente!... — 0 Sr. Ministro ficou, e com razão, exasperado! Tratou-me com toda a consideração, com toda a afabilidade, mas notei que estava fora de si! — Não era caso para tanto. — Não era caso para tanto? Pois olhe, Sua Excelência disse-me que eu devia suspender o chefe de seção que me mandou isto na pasta! — Eu... Vossa Senhoria... — Não o suspendo; limito-me a fazer-lhe uma simples advertência, de acordo com o regulamento. — Eu... Vossa Senhoria.— Não me responda! Não faça a menor observação! Retire-se, e mande reformar essa porcaria! 0 chefe da 3a seção retirou-se confundido, e foi ter à mesa do amanuense que tão mal copiara o decreto: — Estou furioso, Sr. Godinho! Por sua causa passei por uma vergonha diante do sr. diretor-geral! — Por minha causa? — 0 senhor é um empregado inepto, desidioso, desmazelado, incorrigível! Este decreto não tem o nome do funcionário nomeado! E atirou o papel, que bateu no peito do amanuense. — Eu devia propor a sua suspensão por 15 dias ou um mês: limito-me a repreendê-lo, na forma do regulamento! 0 que eu teria ouvido, se o sr. diretor-geral me não tratasse com tanto respeito e consideração! — 0 expediente foi tanto, que não tive tempo de reler o que escrevi... — Ainda o confessa! — Fiei-me em que o sr. chefe passasse os olhos... — Cale-se!... Quem sabe se o senhor pretende ensinar-me quais sejam as minhas atribuições?!... — Não, senhor, e peço-lhe que me perdoe esta falta... — Cale-se, já lhe disse, e trate de reformar essa porcaria!... 0 amanuense obedeceu. Acabado o serviço, tocou a campainha. Apareceu um contínuo. — Por sua causa passei por uma vergonha diante do chefe da seção! — Por minha causa? — Sim, por sua causa! Se você ontem não tivesse levado tanto tempo a trazer-me o caderno de papel imperial que lhe pedi, não teria eu passado a limpo este decreto com tanta pressa que comi o nome do nomeado! — Foi porque... — Não se desculpe: você é um contínuo muito relaxado! Se o chefe não me considerasse tanto, eu estava suspenso, e a culpa seria sua! Retire-se! — Mas... — Retire-se, já lhe disse! E deve dar-se por muito feliz: eu poderia queixar-me de você!... 0 contínuo saiu dali, e foi vingar-se num servente preto, que cochilava num corredor da Secretaria. — Estou furioso! Por sua causa passei pela vergonha de ser repreendido por um bigorrilhas! — Por minha causa? — Sim. Quando te mandei ontem buscar na portaria aquele caderno de papel imperial, por que te demoraste tanto? — Porque... — Cala a boca! Isto aqui é andar muito direitinho, entendes? — Porque, no dia em que eu me queixar de ti ao porteiro estás no olho da rua. Serventes não faltam!... 0 preto não redargüiu. 0 pobre diabo não tinha ninguém abaixo de si, em quem pudesse desforrar-se da agressão do contínuo; entretanto, quando depois do jantar, sem vontade, no frege-moscas, entrou no pardieiro em que morava, deu um tremendo pontapé no seu cão. 0 mísero animal, que vinha, alegre, dar-lhe as boas-vindas, grunhiu, grunhiu, grunhiu, e voltou a lamber-lhe humildemente os pés. 0 cão pagou pelo servente, pelo contínuo, pelo amanuense, pelo chefe da seção, pelo diretor-geral e pelo ministro!...

131. ARTHUR AZEVEDO. AS BARBAS DO ROMUALDO. O Romualdo tinha nascido, talvez, para os mais altos destinos; mas como os pais se esqueceram de mandar educá-lo, e ele mal sabia ler e escrever, o mais que arranjou foi ser soldado do exército, e, depois de obtida a sua baixa, contínuo de secretaria. Releva dizer que o Romualdo só deixou crescer as barbas depois de contínuo; se as usasse quando era soldado e guerreava no Paraguai, chegaria a capitão pelo menos. Mas que contínuo! Alto, gordo, ereto, com aquelas opulentas suíças brancas a emoldurar-lhe a cara, sem bigodes, mais parecia um magistrado, cuja figura estava ao pintar para presidir a um júri sensacional, e essa ilusão só se desfazia quando ele falava, porque o Romualdo, benza-o Deus! por mais que compusesse a sua fisionomia austera e veneranda, tinha o estilo e a prosápia do "povo da lira". Calado era um juiz; falando, um capadócio. Os praticantes amanuenses e mais funcionários do chefe de secção para baixo envergonhavam-se de o chamar a toque de campainha, que naquele tempo as campainhas burocráticas ainda não eram elétricas. As de hoje são menos humilhantes, não sei se devido à eletricidade, se à ausência do badalo. O badalo foi sempre impertinente e autoritário. Era, em verdade, pelo menos desagradável para um funcionário rapazola ver diante da sua mesa de trabalho aquele homem solene, a dizer-lhe, por exemplo: — Leve este ofício à portaria. O Romualdo não ignorava o respeito que infundia ao pessoal da repartição, e abusava da respeitabilidade das suas barbas. Muitas vezes estava sentado no saguão da secretaria, de óculos, entretido a ler o seu jornal, quando o retintim de uma campainha tímida lhe entrava pelos ouvidos, chamando-o à realidade da sua situação de subalterno. Era o mesmo que se não tivesse ouvido. Quando o som argentino retinia pela terceira vez, ele murmurava sem interromper a leitura e não tão baixo que o não ouvissem: — Pois sim!...toca p'r'aí!...súcia de vadios!...não têm mais que fazer senão dar ao badalo!...— Tlin! tlin! tlin!... — Toca, toca, meu menino!...estou bem aqui!... Afinal, abria-se um reposteiro, para deixar passar a cabeça do funcionário incipiente...e impaciente: — Então, seu Romualdo? Há uma hora que estou a tocar! O contínuo erguia a cabeça, tirava os óculos, guardava-os na algibeira, dobrava com lentidão o jornal, erguia-se majestosamente, e perguntava do alto das suas barbas: — Que temos? Nem uma palavra de desculpa, nem a sombra de uma explicação! O amanuense não se atrevia a protestar: intimidava-o aquele aspecto de pessoa grada ou cidadão conspícuo. Em casa, depois que deixara crescer as suíças, o Romualdo poderia dizer-se oráculo. A mulher e os filhos admiravam-no; os parentes diziam todos à uma que era clamoroso estar ali um simples contínuo, quando tinha capacidade para dirigir uma repartição de primeira ordem. Nos penates ele falava pelas tripas do Judas, discorrendo sobre todos os assuntos sociais ou políticos, e dando sobre cada um a sua opinião individual. Nessas ocasiões só dizia parvoices, mas a família ouvia-o embevecida e assombrada diante de tanto saber. Era um efeito das barbas. Nas ruas, o Romualdo era cumprimentado por muita gente que o não conhecia, porque a sua figura solicitava a consideração e o respeito dos estranhos. Alguns, depois de passar por ele, olhavam para traz e perguntavam a si mesmos: Quem será aquele figurão? Quando o deputado foi nomeado ministro e pela primeira vez entrou na secretaria, impressionaram-no aquelas barbas, e indagou a quem pertenciam. Quando lhe responderam que o Romualdo era um simples contínuo, imediatamente ordenou que ele fosse servir no gabinete. Achou-o decorativo. Ao lado do ministro, o Romualdo, sem que para isso concorresse outra coisa mais que não fosse a exibição das suas barbas, captou a confiança e até certo ponto, a familiaridade de s. ex., e isso o tornou ainda mais solene e majestático. Quando ficava trabalhando em casa, sem aparecer na repartição, o ministro queria o contínuo perto de si, pronto para receber, introduzir ou mandar embora os visitantes, ou levar à secretaria, rapidamente, qualquer ordem de s. ex. Naquele tempo ainda não havia telefone. No anunciar visitas e dar recados, o nosso homem, que era positivamente um mau contínuo, revelou qualidades excepcionais, e de uma vez até pôs as suas gloriosas suíças ao serviço da boa harmonia administrativa. O caso conto como o caso foi. O ministro andava, não sei porque, às turras com o diretor da Estrada de Ferro, e já o teria demitido, ou por outra apresentado em conselho o respectivo decreto, se não soubesse que o homem era protegido pelo imperador, e ele, ministro, não fosse tão agarrado à pasta. Um dia o alto funcionário precisou falar ao ministro sobre matéria urgente de serviço, e, não o achando na secretaria, foi ter à sua casa. Encontrou na ante-sala as barbas do Romualdo, que cochilava sentado numa cadeira. — O ministro está? — Está, sim, senhor. — Vá dizer a esse idiota que o diretor da Estrada de Ferro precisa falar-lhe com urgência. O Romualdo, que já se havia erguido, inclinou-se, penetrou no gabinete do ministro, e disse-lhe: — Está aí o sr. diretor da Estrada de Ferro que pede a v. ex. o obséquio de lhe conceder alguns minutos de atenção para assunto urgente. O ministro, sem levantar os olhos do seu trabalho, respondeu: — Diga a essa besta que não estou para o aturar, e que não me amole! O Romualdo inclinou-se, saiu, e veio dizer ao funcionário: — O sr. conselheiro manda pedir a v. ex. o obséquio de procurá-lo noutra ocasião, porque neste momento está muito ocupado, e sente não poder prestar a v. ex. toda a atenção que v. ex. merece. O diretor da Estrada de Ferro saiu arrebatadamente, gritando: — Pois diga—lhe que vá para o diabo que o carregue! O Romualdo voltou ao gabinete, e assim falou : — O sr. diretor da Estrada de Ferro manda agradecer a bondade com que v. ex. o tratou, e diz que mais tarde procurará v. ex. na secretaria. Com aquelas suíças, quem poderia supor que o Romualdo mentisse?

132. AUGUSTO NUNES. Enfrentemos os nostálgicos da escuridão. Lula parece não saber quem é o chefe supremo das Forças Armadas. Viegas é um ministro sem coragem para esmagar o ovo da serpente. Embora seja necessário esclarecer a origem das fotos e os motivos da divulgação inesperada, tem importância secundária a identificação do ser humano que aparece naquelas imagens ultrajantes. Seja o jornalista Wladimir Herzog, seja o padre Léopold D'Astous, ali está um homem - um homem brutalizado por torturadores a serviço da ditadura militar. No Brasil de 2004, já distante da noite autoritária, iluminado pela restauração da democracia republicana, afiguram-se bem mais graves certos desdobramentos do episódio, sobretudo duas notas subscritas por autoridades militares. A primeira morde, a segunda sopra. Ambas esbofeteiam a Constituição. A primeira foi atribuída ao general Antônio Gabriel Esper, chefe do Centro de Comunicação do Exército. Na forma e no conteúdo, lembra a arrogância enfurecida dos velhos senhores dos porões ao longo dos anos de chumbo. A segunda, subscrita pelo general Francisco Albuquerque, comandante do Exército, desautoriza a anterior no tom indulgente de quem recomenda cautela ao filho brigão. Mas o ministro da Defesa, José Viegas, gostou. "O caso está encerrado", decidiu. Não está. Só estará depois de punidos os subversivos fardados. A Constituição informa que o presidente é o chefe supremo das Forças Armadas. É Lula o nº 1 também nos quartéis. Na ordem hierárquica vigente, ao presidente se seguem o ministro da Defesa e o comandante do Exército, também agredidos pelos subversivos. Viegas é considerado por dezenas de oficiais uma flor de pusilanimidade. Merece. O Brasil é que não merece esse ministro incapaz de impor-se a supostos subordinados, começando pelo general Albuquerque. Induzido por recordações de tempos que não voltarão, Lula comportou-se com o tipo de prudência que se confunde com o medo. Um erro grave. Ele precisa, e com urgência, demitir Viegas, trocar o chefe do Exército e enquadrar todos os envolvidos no motim. Os remanescentes do serpentário têm de aprender que a era das quarteladas acabou. Informado de que os soldados brasileiros em serviço no Haiti, incorporados à força de paz formada pela ONU, também estão cuidando do controle de favelas conflagradas em algumas cidades daquele país exposto a ondas sucessivas de violência, o Cabôco Perguntadô ficou bastante confuso. Quando alguém ressuscita a idéia de engajar tropas militares no esforço conjunto para pacificar os morros do Rio de Janeiro, generais, políticos e juristas argumentam que não é esse o papel das Forças Armadas. O Cabôco Perguntadô quer saber: se pode no Haiti, então por que não pode aqui?  A taça está com Pudim. Entusiasmado com o tamanho da fila de eleitores em busca do sonho prometido pela governadora Rosinha - distribuir casas ao preço de R$ 1 se o novo prefeito de Campos for Geraldo Pudim -, o candidato apoiado pelo casal Garotinho já ganhou ao menos a taça da semana. A frase premiada: "Na ordem dos escolhidos, é claro que terá preferência quem votar em mim". Os jurados do Yolhesman Crisbelles particularmente impressionados com a esperteza da inversão: em Campos, o prato principal só será servido ao populacho depois de engolida a sobremesa. Garganta à prova de quedas. Reprodução de TV. Nem mesmo quedas espetaculares afetam a loquacidade de Fidel Castro. Antes mesmo de erguer-se da calçada em Santa Clara, ainda empapado de suor, o ditador cubano empunhou o microfone para dirigir-se à nação estremecida.  Reprodução de TV. “Eu lhes peço perdão por ter caído”, discursou. “Tenho uma fratura no joelho e talvez uma no braço, mas estou inteiro”. Maravilha. Falta agoraz encontrar o agente da CIA que infiltrou aquele degrau traiçoeiro no caminho do Comandante. Falta um Duda a Duda.  Marqueteiro-mor do governo federal, Duda Mendonça talvez contrate alguém para melhorar a própria imagem. O arranhão mais recente acabou por afastá-lo da chefia da campanha de Marta Suplicy. Na quinta-feira, preso pela Polícia Federal numa rinha do Rio da qual é sócio, o criador de galos de briga apaixonado pelos combates ferozes entre as aves deixou a cadeia, horas depois, no papel de indiciado. "O Brasil inteiro sabe que meu hobby é esse", alegou. Certo. "Não estou fazendo nada de errado". Engano. O que Duda chama de hobby é um crime ambiental que pode dar cadeia. Pelo menos é o que diz a lei. Foi Maluf quem fez. A última do Maluf superou todas as proezas do velho recordista: ele acaba de materializar o "caminhão de acusações", hipérbole que até agora só existia na retórica agressiva dos palanques eleitorais. As pilhas de papel na carroceria do veículo amontoam documentos com denúncias e acusações envolvendo Maluf, que teve bens bloqueados. Nem Marta Suplicy nem José Serra trataram do que a foto mostra. De olho nos votos de malufistas irredutíveis, os candidatos a prefeito de São Paulo optaram por cruzar o segundo turno em silêncio esperto. Daqui por diante, estão ambos proibidos de fazer críticas ao campeão. O QUE VAI POR AÍ. Frase pinçada do discurso feito por Lula no Rio, ao abrir uma reunião da Associação Brasileira de Agentes de Viagem (Abav): "Problemas existem e têm que ser tratados com seriedade, mas o que não serve para a promoção do turismo não deve ser tratado com displicência". Ninguém entendeu, mas todos aplaudiram. Se o presidente continuar decidido a produzir discursos de improviso, o governo terá de nomear um tipo de assessor ainda por ser inventado: o "explicador simultâneo". Pare, Romário. Continue, Schumacher. Alarmadas com sucessivas ameaças anônimas, viúvas dos quatro fiscais do Ministério do Trabalho assassinados em Unaí no começo do ano pedem socorro ao governo federal. Os mandantes do crime devem ter achado pouco. Oficiais das Forças Armadas vivem reivindicando a substituição do ministro da Defesa, José Viegas, por algum integrante do Partido Comunista do Brasil, o PCdoB. Os motivos não são claros, mas entre eles decerto não está o interesse na divulgação dos documentos sobre a guerrilha do Araguaia. O movimento foi organizado pelo PCdoB, que tampouco pretende reabrir a questão. Os motivos também não são claros. John Kerry, como notou Arnaldo Jabor, tem cara de dúvida. Já George Bush não é homem de hesitar: vai logo tomando a decisão errada. Esqueça essa história de reeleição e volte para o plenário, João Paulo Cunha. Para quem chegou de Osasco nem faz tanto tempo, dois anos na presidência da Câmara dos Deputados já estão de bom tamanho.

133. AUGUSTO NUNES. A arrogância é irmã da impunidade. Norberto Mânica, o "rei do feijão", lidera o grupo dos acusados de planejar o massacre dos fiscais em Unaí. Animados com o triunfo do candidato a prefeito Antério Mânica, suspeito de integrar o grupo de mandantes do massacre de quatro funcionários do Ministério do Trabalho ocorrido no começo do ano, alguns nativos de Unaí passaram a exibir a arrogância dos impunes frente a cobranças reiteradas por homens de bem. O pretexto é a preservação da imagem de um celeiro de trabalhadores exemplares, fustigada por jornalistas irresponsáveis. Conversa fiada. Querem mesmo é impedir que as investigações avancem até o completo esclarecimento de um crime especialmente torpe. Consumou-se em 28 de janeiro de 2004, com a execução de quatro funcionários do Ministério do Trabalho. Numa estrada do município, foram assassinados a tiros os fiscais Nelson José da Silva, João Baptista Lages e Erastótenes de Almeida Gonçalves, além do motorista Ailton Pereira de Oliveira. Morreram por acreditar que a lei vale para todos. Em 27 de julho, a Polícia Federal divulgou a captura de seis indivíduos envolvidos no episódio. Todos haviam participado diretamente da ação de extermínio, apertando gatilhos ou manobrando veículos mobilizados para o cerco mortal. "O crime foi quase desvendado", ressalvou um delegado. Era essencial a ressalva: sobravam evidências de que o massacre fora encomendado por fazendeiros irritados com a teimosia dos fiscais em multá-los por agressões à lei. Entre os possíveis mandantes reluzia Norberto Mânica, o "rei do feijão", chefe de uma família muito influente e líder do bando de poderosos inconformados. Desde o fim da década de 90, o fiscal Nelson José da Silva vinha punindo Mânica com multas que somavam, em janeiro de 2004, quase R$ 2 milhões. Quase todas decorriam de violações da legislação trabalhista, ignorada com histórico desembaraço pelos donos das terras. Eles decidiram acabar com a audácia dos fiscais. A entrada em cena da família Mânica, se ajudou a iluminar a história, também provocou a subida ao palco de personagens decididos a embaralhar o enredo e confundir a platéia. A mobilização amiga aumentou quando as investigações chegaram a Antério Mânica. Lançado pelo PSDB do governador Aécio Neves, o candidato a prefeito tinha o apoio ostensivo do vice-presidente José Alencar, de deputados bem votados na região e até do PT de Unaí. Estava bem no retrato. Preso em setembro, o favorito se tornou imbatível. Vitorioso com mais de 72% dos votos, virou herói municipal. Um mártir, crucificado por jornalistas inescrupulosos vinculados à esquerda radical. Na segunda-feira passada, um certo José Nieto enviou à coluna a nota, incluída no site que explora, inspirada no texto publicado na véspera pelo JB. Segue-se, transcrito sem correções, um trecho bastante revelador: "O senhor Augusto Nunes tem o raro poder de clarevidência, sendo capaz de substituir as polícias investigativas, o Judiciário da República e os eleitores. Pelo menos tem sua vaga certa no comitern literário tupiniquim. Onde será que anda se informando? Ou será que é capaz de publicar textos digitados por espíritos?" Sosseguem os vassalos a serviço de assassinos: não são necessárias fontes misteriosas. Basta o acesso às investigações da Polícia Federal. Mas mensagens psicografadas seriam bem-vindas. Se os mortos falassem, Unaí demoraria a dormir.Ao receber no Vaticano a nova embaixadora do Brasil, Vera Machado, o papa abençoou o Fome Zero, que não conhece. Em nome dos evangélicos, a ex-governadora Benedita da Silva abençoou a candidatura a prefeito de Nova Iguaçu do petista Lindberg Farias, ateu de carteirinha. Até por ser brasileiro, Deus merecia ser poupado do vale-tudo por um voto. O QUE VAI POR AÍ.O vice-presidente José Alencar foi até Moscou só para ouvir das autoridades russas que será mantido o embargo à importação de carne bovina do Brasil. Os antigos fregueses invocam razões de ordem sanitária, como testemunharam os quase 30 integrantes da comitiva. Em compensação, porções do caviar do Báltico continuarão ausentes das cestas básicas distribuídas pelos programas sociais do governo Lula. O senador Heráclito Fortes (PFL-PI) foi com cinco amigos passar o feriadão de 12 de outubro em Barreirinhas, na região dos Lençóis Maranhenses. Às margens do Rio Preguiça, recepcionou-o Fernando Barbosa de Oliveira Júnior, juiz da comarca e disposto a conferir o boato: o grupo levava na bagagem dinheiro para a campanha do adversário do candidato à prefeitura pelo PT, Miltinho. Agressivo e beligerante, o juiz estava acompanhado não de policiais, mas do próprio Miltinho e oito companheiros armados. Constataram que nas malas não havia dinheiro nenhum. O senador exigiu do juiz um atestado formalizando a ocorrência e detalhando seu desfecho. Documento prometido, o doutor achou mais sensato sumir. Heráclito pediu providências ao Senado presidido por José Sarney, cujo clã dá as cartas na região. Melhor esperar sentado. Fale menos, Gilberto Gil. E cante mais. O jornal americano The Washington Post informou que o MR-8, grupo brasileiro que posou de esquerdista até cair na vida, pegou parte dos US$ 11 bilhões usados por Saddam Hussein para conseguir cúmplices dispostos a ajudá-lo a driblar o bloqueio comercial. Até agora, ninguém se moveu para investigar o tamanho da negociata. Não deixem de ler Getúlio, romance do excelente Juremir Machado da Silva lançado há pouco pela Editora Record. É um grande livro. Articule menos, José Dirceu. Com um beijo e uma lágrima, a coluna registra a partida do ótimo Fernando Sabino. Grande escritor, grande figura. Lula da Silva ainda cuida de selecionar os eleitos para o vôo de estréia do avião presidencial. Na viagem para o Japão, todos poderão desfrutar das comodidades do aparelho, pronto para decolar. Permanece num hangar nos EUA para evitar que, na brigalhada do segundo turno, os ressentidos de sempre afirmem bastar uma escala no Palácio do Planalto para que toda humildade se desmancha nos ares. Rosinha leva taça. A frase campeã, pinçada do Informe JB de sexta-feira, garantiu a taça da semana à governadora Rosinha Garotinho. No discurso que celebrou a inauguração de obras de asfaltamento custeadas pelo Estado, Rosinha incluiu críticas ao candidato do PT à Prefeitura de Niterói e uma ousada comparação: "Sou como Jesus Cristo, que veio à Terra para ajudar os doentes". Os jurados do Yolhesman Crisbelles acham que Rosinha merece o prêmio tanto pelo que disse como pelo que evitou dizer. Não fez nenhuma alusão, por exemplo, a mercadores dos templos. Desafinação na parceria.Ao indicar o deputado Gilberto Kassab para completar como vice a chapa de José Serra, o PFL estava querendo ajudar ou atrapalhar o candidato a prefeito? A pergunta é muito pertinente. Entre tantos nomes, o partido escolheu justamente um ex-secretário de Planejamento do inesquecível Celso Pitta. O PT acusa Kassab, que ficou um ano no cargo, de ter planejado todos os erros de Pitta. Resta a Serra repetir a frase usada por Rui Falcão, vice de Marta Suplicy, para explicar a aliança com Maluf: "Acusado ou indiciado não é culpado". Espontâneo e espantoso. À saída do prédio da Polícia Federal, no feriado do dia 12, o incomparável Paulo Maluf irritou-se com a inesperada presença de jornalistas. Mas partiu para o drible: "Vim aqui para depor espontaneamente". Apesar da boa vontade, avisou ao delegado, de saída, que não responderia a pergunta nenhuma. Também achou melhor fingir que nem ficou sabendo do comentário pesadamente irônico do senador do PFL (e ex-policial federal) Romeu Tuma: "Nunca vi ninguém aparecer espontaneamente em qualquer delegacia só para ser indiciado". No ano passado, quando o presidente Lula autorizou o plantio de sementes de soja transgênica, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, passou um tempão amuada. Consumiu algumas horas chorando no gabinete. Agora, indignada com a reincidência do chefe, que assinou medida provisória favorecendo a turma do transgênico, Marina abriu o berreiro outra vez. Mas preferiu, de novo, chorar no Planalto. O Cabôco Perguntadô, que vive ouvindo histórias sobre a coragem da ministra acreana, anda intrigado. Quer saber por que Marina não renuncia ao cargo e troca a choradeira pela crítica aberta.

134. AUGUSTO NUNES. Ancorada há quase 30 anos no município de Unaí, Minas Gerais, a família Mânica vem cintilando com brilho crescente no universo que jornais do interior qualificam de "melhor sociedade local". São oito irmãos, todos grandes fazendeiros. Lidera-os o mano Norberto, mais conhecido como "o rei do feijão".De maneiras rudes e linguagem tosca, Norberto comanda o clã com a energia de antigos monarcas. Os Mânica hoje têm muita terra, muito dinheiro, muita força. Não podiam prescindir da influência eleitoral indispensável a famílias decididas a mandar no Brasil. Norberto resolveu que o braço político seria o irmão Antério, agora com 49 anos. E o escalou para assumir o cargo de prefeito. O plano enfrentaria imprevistos, tropeços e sobressaltos. A mais pontiaguda das pedras no caminho irrompeu com a chegada à região, ainda em 2003, de fiscais do Ministério do Trabalho dispostos a revogar a histórica indulgência reservada aos fazendeiros do lugar. Punidos com multas e sanções, como ocorre nas nações civilizadas com criminosos crônicos, os Mânica e seus comparsas decidiram replicar ao desafio. Numa reunião presidida por Norberto, expediu-se a sentença de morte. Em janeiro, quatro fiscais foram assassinados. Investigações da Polícia Federal desvendaram pormenores da trama homicida. Na noite da execução, os assassinos utilizaram um carro pertencente a Antério, que participara da reunião dos mandantes. Àquela altura, o político da família já figurava entre os concorrentes à prefeitura. Fora lançado pelo partido do governador Aécio Neves, o PSDB. Era um candidato em campanha. E candidato continuou, mesmo depois da prisão em setembro, que se seguiu à captura do rei Norberto. Além do apoio do partido do governador, conseguiu a adesão ostensiva do vice-presidente da República, José Alencar. Mineiro fiel aos aliados, Alencar presenteou o suspeito com os votos dos amigos do PFL e, mais grave ainda, uma declaração formal de apreço. Tamanha demonstração de força, protagonizada pelo homem recolhido à cadeia de Contagem, parece ter causado forte impressão entre os eleitores da cidade fundada em 1943, a 165 quilômetros de Brasília e 350 quilômetros de Belo Horizonte. Hoje, com quase 70 mil habitantes, Unaí abriga 46.163 portadores de títulos de eleitor. Se tanto o partido de Aécio quanto José Alencar em pessoa queriam Antério no cargo, por que contrariar os figurões? A bordo da vontade popular - 72% dos votos -, Antério acaba de deixar a cadeia. Com cara de vítima e pose de príncipe, convalesce das festas pela vitória enquanto prepara a cerimônia de posse. Espera que, até lá, em Brasília o irmão Norberto saia da gaiola. Merece comandar uma Secretaria de Segurança. Professor e Profeta. O vencedor da semana é o Professor Luizinho, líder da bancada do PT na Câmara dos Deputados. Os jurados do Yolhesman Crisbelles decidiram homenageá-lo depois de confirmado o conteúdo profético da frase que produziu: "Lula faz política por música". No dia seguinte, reunido no Planalto com prefeitos petistas vitoriosos no primeiro turno, o presidente da República ensinou aos companheiros de que modo atrair para Marta Suplicy mais nordestinos eleitores em São Paulo: "Em vez de comícios com o Zezé di Camargo e o Luciano, vamos fazer forrós". Fica provado que Luizinho é mais que Professor. É um Profeta. O endurecimento do governo em relação à Vasp, que continua voando baixo e com as contas em atraso na estratosfera, deixou o Cabôco animado: quem deve tem mesmo é de pagar. Ele agora anda perguntando se também a Transbrasil, até agora tratada com suspeita indulgência pelo poder federal, vai enfim entrar na dança. Que tal investigar sem medo a turma que tungou a empresa e desviou milhões de dólares para o exterior? No meio do bando existem figuras que entram sem bater nos melhores gabinetes do Planalto, certo. Mas o Capitão Dirceu tem repetido, caprichando no sotaque, que o atual governo "não róba nem deixa robar". Esse genuíno Genoino. "Eu quero o voto do Maluf!", proclamou o presidente do PT, José Genoino, no tom enfático que exige pontos de exclamação. Não pensava assim em outubro de 2000, quando escreveu o seguinte: "Maluf usa expedientes espúrios em sua guerra abjeta: ataques pessoais, insinuações, calúnias, inverdades e notícias falsas", afirmou Genoino. Que acusou de corrupto o homem cujo voto hoje implora. Uma trinca absolvida. Reprodução Rede Globo. As imagens do arrastão contra turistas no Leblon, ainda percorrendo o planeta pelas rotas da internet, só reafirmam que o Rio se transformou numa cidade sem lei. Por culpa da União, do Estado e da prefeitura. E sobretudo por culpa dos cariocas, que assistem passivamente à implosão do sistema de segurança. Lula segue bem no retrato. Garotinho sonha com a Presidência. E Cesar Maia se reelegeu. Palmas para o trio. O teste da imortalidade. Na montagem, a atriz e modelo Luana Piovani submete a exame de alto risco alguns membros da Academia Brasileira de Letras. Integrantes da Academia Brasileira de Letras continuam a discutir a questão: foi ou não imoral a performance de Luana Piovani sem calcinha na festa de entrega do Prêmio Austregésilo de Athayde? A inquietação é impertinente. No século passado, a Casa de Machado foi palco de ocorrências, estas sim, decididamente obscenas. A mais atrevida talvez tenha sido a concessão de uma vaga, em 1941, ao ditador Getúlio Vargas, que ainda não havia escrito um único livro. Sobram casos parecidos. Em 1970, por exemplo, deu-se a sagração do general Aurélio de Lyra Tavares, ex-ministro do Exército e chefe da junta militar que, com a morte do presidente Costa e Silva, cuidara da escolha do sucessor Emílio Médici. Premiado com a embaixada em Paris, os áulicos acharam pouco. Que tal uma cadeira na Academia para o autor de obras como História da arma de engenharia? Seria um sucesso e tanto se as estrebarias, além de baias, tivessem estantes. O general também produzia versos, assinados com um pseudônimo extraordinariamente inventivo: "Adelita". Não é nome de mulher?, debocharam os sardônicos de sempre, alheios à evidência de que Adelita é o resultado de uma fusão perfeita: A de Aurélio, de de de, li de Lyra, ta de Tavares. Adelita. Só essa maravilha já lhe valeria a imortalidade, que saboreou até ser convocado para a viagem derradeira. Viagem da qual escapou quem se expôs ao teste da noite de Luana. Descompassos cardíacos, excitações perigosamente extemporâneas e outros riscos espreitaram imortais de cabelos nevados. A festa, curiosamente, também homenageava o mesmo Austregésilo que sempre abominou a presença de mulheres naquele templo. A ousadia de Luana superou em tempo e temperatura o cruzar de pernas de Sharon Stone no filme Instinto selvagem. Se toda a platéia tivesse visto o espetáculo, dezenas de vagas hoje estariam disponíveis na velha Academia. COISAS DO BRASIL. • Frei Betto tem circulado pela Áustria, onde a miséria acabou faz tempo, entretido em palestras sobre "o sucesso do Programa Fome Zero". Evita comentar a derrota da candidata do PT à Prefeitura de Guaribas, uma das duas cidades piauienses escolhidas para o lançamento do projeto. • Ex-deputado federal pelo PDT do Rio, agora vereador eleito pelo PP em São Paulo, o cantor-político (ou político-artista) Agnaldo Timóteo revelou o primeiro ponto do seu plano de ação: fazer shows em todos os municípios do Estado. • O publicitário Duda Mendonça gaba-se de ter melhorado a votação de Marta Suplicy ao conseguir colar a imagem da prefeita à de Lula. Vicentinho, que concorreu em São Bernardo pelo PT, ficou colado em Lula até na hora de votar: foram juntos à sessão eleitoral. Mas não chegou a 30% dos votos. Pelo visto, o "efeito Lula" só funciona quando é a agência de Duda Mendonça que cuida da campanha. • Oficialmente embaixador do Brasil na Itália, Itamar Franco informou que continuará em Juiz de Fora neste mês, engajado na campanha do deputado Custódio Mattos, candidato a prefeito pelo PSDB. Longe de Roma desde julho, Itamar é considerado por adversários o operário-padrão de 2004.

135. AUGUSTO NUNES. Compreensivelmente dividida no campo das preferências eleitorais, a nação brasileira esbanjou unidade na sagração de autênticos representantes do povo identificados à margem das urnas. O primeiro alvo dessa aclamação nacional foi o maratonista Vanderlei Cordeiro, ganhador da medalha de bronze na Olimpíada de Atenas. O Brasil vai afinal aprendendo a celebrar também segundos e terceiros lugares. É provável, assim, que o franzino corredor nativo fosse merecidamente ovacionado ao escalar o pódio. Mas circunstâncias especialíssimas iluminaram o episódio: a volta de Vanderlei à prova depois daquele ataque do irlandês aloprado, a alegria contagiante do corredor injustiçado. Nunca houvera nada parecido. A imensa maioria dos brasileiros jamais ouvira falar daquela figura extraordinária. E nada sabia sobre um singularíssimo nadador chamado Clodoaldo Silva, potiguar de 25 anos, que sofreu durante o parto uma paralisia cerebral que virtualmente lhe subtraiu os movimentos das pernas. A natação entrou em sua vida como método terapêutico. Assim começou a gestação de um genuíno herói do esporte. Na Grécia, clímax da trajetória comovente, ele ingressaria no panteão dos fenômenos da história dos Jogos Paraolímpicos. ''Clodoágua'', como o chamam os companheiros de equipe, voltou de Atenas com seis medalhas de ouro e uma de prata. Sonha com recepções festivas no país que ajudou a engrandecer, mas já prepara a retomada da rotina difícil. Para deslocar-se do bairro periférico onde mora até o local de treinamento em Natal, o gênio das piscinas toma oito ônibus todos os dias. Sobrevive com a bolsa de R$ 4 mil concedida pelo Comitê Paraolímpico Brasileiro. O Comitê alega que a verba recebida do Ministério do Esporte é pouca. O ministro Agnelo Queiroz (que não voltou a Atenas para ver os paraolímpicos) diz que o governo não tem dinheiro para ajudar mais o esporte. Que o país ao menos saiba deixar claro que Clodoaldo, ele sim, é um real representante do povo brasileiro. Um herói. Pastel e roqueiro desafinam. Pastel e roqueiro desafinam Sempre espontâneo, o roqueiro Supla exibe a expressão que muitos políticos são obrigados a disfarçar na hora de engolir certos pastéis de feira. Enquanto o senador Eduardo Suplicy e a prefeita Marta, candidata à reeleição, fingem conversar sobre iguarias, o filho deixa claro que comeu e não gostou. Informado de que a cantora Gloria Trevi foi absolvida por tribunais mexicanos, o Cabôco Perguntadô ficou só vigiando como reagiriam três instituições brasileiras: a Justiça, responsável pela prisão da artista no meio de uma excursão, a Polícia Federal, que a manteve encarcerada durante dois anos, e a imprensa, que deu curso a gravíssimas acusações e divulgou infâmias sem qualquer sustentação. Diante do silêncio coletivo, o Cabôco pergunta: Gloria será indenizada pelo governo? Como punir os carcereiros-estupradores? E a imprensa, vai criar vergonha? Dois em um. Como dirigente sindical bancário, Luiz Gushiken vivia buscando a greve até a vitória, com o pagamento dos dias parados. Acaba de ser arquivado o discurso do jovem à esquerda. Avança a ladroagem. Pesquisa encomendada pelo Banco Mundial informa que o Brasil vai avançando vigorosamente no campeonato da corrupção planetária: dirigentes de mais da metade das empresas do país revelaram já ter pago algum tipo de propina a funcionários federais. (As restantes devem estar recebendo todos os dias visitas ou telefonemas de fiscais decididos a tomarlhes algum.) Mas o Capitão Dirceu avisa: este governo não “róba” nem deixa roubar. Hoje é dia de festa. Velhos pilantras seguirão no palco, em companhia de meliantes emergentes. Entre vitoriosos na disputa de prefeituras e vagas na Câmara, não faltarão rematados finórios. Homens de bem cederão à suspeita de que o povo não sabe votar. Nada disso pode anular o essencial: só se aprende a votar votando, e assim se refina o processo de escolha. Sejam quais forem os resultados, qualquer eleição livre reafirma a consistência da democracia brasileira. O domingo vale muitos brindes. Uma lenda na sala de jantar Ele chegou à noitinha. O comício na praça principal estava começando, mas o astro só entraria em cena no final apoteótico. O governador Jânio Quadros, em campanha para fazer de Carvalho Pinto seu sucessor, foi para a pausa na casa do meu pai, prefeito e pajé municipal da tribo da vassoura. Os carros da comitiva arquejavam havia horas nos caminhos de terra, mas Jânio chegou esbanjando energia. Naquele verão de 1958, ele tinha pouco mais de 40 anos. Tinha, sobretudo, a Presidência pela proa. Invadiu a sala escoltado pela procissão de devotos nativos. Distribuída a platéia em círculos, o mito sentou- se à cabeceira. Para comer e, sobretudo, beber. Enquanto jantava, traçou meia garrafa do velho Palhinha com o prazer sensual de quem derruba o melhor conhaque francês. Instalados nas cadeiras da fila do gargarejo, os parentes mais velhos viram tudo de perto. Não havia vagas para moleques de oito anos. No meio do povo, fiz o possível para seguir a performance do artista que via ao vivo pela primeira vez. Achei-o um tanto maluco, mas optei pelo silêncio. Terminado o jantar, Jânio fez à minha mãe um pedido. Descontados o sotaque e linguagem empolada, era idêntico ao dos pedintes que aportavam o dia inteiro na varanda do prefeito:– A caríssima primeiradama oderia preparar-me m sanduíche de mortadela? reivindicou a dona Biloca. bituada a convivercom políticos, achava que a odos faltavam parafusos. Ouvira falar do truque do sanduíche, invenção do grande populista. Mesmo assim, não conseguiu disfarçar a surpresa: Jânio acabara de jantar (e muito bem). Como podia pedir um sanduíche? E além do mais de mortadela? E logo depois da sobremesa, sem vestígios de constrangimento? Mas tratou de providenciar a encomenda, entregue ao visitante embrulhada num guardanapo de papel. Ele enfiou a prenda no bolso direito do paletó amarfanhado. Despediu-se entre mesuras e mesóclises. Caminhou para o palanque na praça, a meia quadra de distância, e subiu por trás. Um burburinho crescente avisou que o Homem acabara de chegar. Assumiu o lugar de honra, na linha de frente, quando discursava o deputado Emílio Carlos. O excelente orador, que costumava preceder o chefe, interrompeu a fala para que a aclamação explodisse. A torcida foi à loucura, diria um locutor esportivo. Jânio começou a acenar canhestramente, já com os cabelos em desalinho emoldurando o sorriso que lembrava um esgar. Fez sinal para que Emílio Carlos prosseguisse. Capturou o sanduíche de mortadela e, com expressão faminta, devorou-o com poucas dentadas. Estava pronto para encerrar o comício. Falou bonito. Insultou meiomundo, elogiou-se com adjetivos hiperbólicos. E anunciou a Era da Vassoura. Meu pai voltou para casa eufórico.– O homem já é presidente, – comentou.– Mas é doido – ponderou dona Biloca. Os dois estavam certos.

136. AUGUSTO NUNES. Bonito, o amor. É o que certamente escreveria o colunista Zózimo Barrozo do Amaral sob uma foto do casal formado por Marise e Antônio Celso Cipriani. Paixão arrebatadora é isso aí. Em 1978, ele era apenas um dos investigadores do Departamento de Ordem Política e Social, o medonho Dops, quando o diretor Romeu Tuma o designou para uma missão na Transbrasil. Ali conheceu o dono da empresa, Omar Fontana. E conheceu Marise, a filha do dono. Coisa de cinema: perdido de amor, Cipriani abandonou a mulher, casou-se com a herdeira e foi à festa, nas asas da Transbrasil. Logo virou presidente da empresa. Enquanto sobrevoava nuvens de dólares, mantinha sob estreita vigilância espaços no solo muito promissores. Também graças ao emprego de investigador, também levado pelas mãos providenciais de Romeu Tuma, Cipriani conhecera em 1978 o sindicalista Luiz Inácio da Silva. “Comi muita rã com o Lula”, gaba-se o agora milionário amigo do presidente. “Bonito, o afeto fraternal”, poderia registrar a legenda da foto reproduzida acima. Mostra Cipriani no comício que celebrou em São Paulo a ascensão ao poder central do candidato do PT. Sorri o sorriso largo dos justificadamente felizes. O jovem policial que vigiava palanques de sindicalistas suspeitos subira ao palco da festa puxado por outro amigo de valor imensurável: Roberto Teixeira, advogado, hospedeiro e íntimo de Lula. Um discreto figuraço da Nova Era. A força de Teixeira acaba de ser reafirmada, desta vez na CPI do Banestado – o vastíssimo painel de abjeções de um pântano que os caciques do Congresso agora acham conveniente drenar. Na edição de domingo passado, em duas páginas, O Estado de S. Paulo publicou o resumo da ópera. As árias em que ecoa a voz de Cipriani clamam por tímpanos aguçados. Quando seu nome irrompeu na lista dos suspeitos, Teixeira incumbiu o relator José Mentor de evitar a quebra do sigilo bancário do ex-investigador. Intervenção oportuníssima. O jornal comprova que, enquanto implodia a Transbrasil, Cipriani ampliava a fortuna em terra. Marise administra nos EUA, por exemplo, negócios imobiliários espantosamente lucrativos. Talvez tenha havido um caso de amor. Hoje é caso de polícia. Lula precisa reler Luiz Inácio.Antes que o chefe de governo, aborrecido com a onda grevista, produza outro improviso desastrado, convém reler a edição de junho de 1978 do jornal dos metalúrgicos de São Bernardo. Presidente do sindicato e diretor da publicação, Luiz Inácio da Silva (o Lula seria incorporado ao nome só mais tarde) usava, disfarçado de João Ferrador, argumentos muitos parecidos com os invocados pelos bancários hoje em greve. Cabôco Perguntadô.Ao saber que o publicitário Duda Mendonça paga R$ 20 mil por mês ao primeiro-marido Luiz Favre, para trabalhar na campanha pela reeleição da prefeita Marta Suplicy, o Cabôco Perguntadô ficou intrigado e esperançoso. Comovido com a generosidade de Duda, quer saber quanto ganham os profissionais da agência que efetivamente entendem de eleição. E pergunta se há vaga para um sobrinho, no momento desempregado, que toparia começar como servente de salário mínimo. O currículo é ainda curto, mas o tio avisa que o garotão leva jeito: até já namorou a prima de um suplente de vereador em Vassouras. Enigmas da economia. Não custa lembrar de vez em quando: o troféu Yolhesman Crisbelles, inscrição celebrizada na faixa de abertura dos desfiles da Banda de Ipanema, foi criado para homenagear autores de declarações pronunciadas com pompa e circunstância, mas impenetráveis. A taça da semana vai para o ministro Antonio Palocci, que usou, para explicar outra barretada ao FMI, a seguinte sopa de letras: “O país está preparado para ter um sistema anticíclico de superávit primário. Mas ainda não estamos implantando esse sistema.” Celebração da corda na casa do enforcado. Cada vez mais empolgado com o clima de palanque registrado no centro do poder, o chefe da Casa Civil, ministro José Dirceu, vem aumentando a freqüência e os decibéis de seus pronunciamentos. Fantasiado de Capitão Dirceu, retoma com veemência o velho discurso do oposicionista sem mácula, exemplo do Homem Novo gerado no útero do PT. Nesses momentos ressurge a figura que enxergava pecados só em partidos inimigos e toda semana reivindicava a instalação de alguma CPI. “Este governo não rouba nem deixa roubar”, recitou na semana passada. (O Capitão diz “róba”, como o ministro.) “E vai acabar com a corrupção”. A cruzada trata com mais brandura amigos de fé e antigos assessores, como Waldomiro Diniz. Comprovadamente metido em bandalheiras, o braço direito do ministro combinou com cabeças federais que pediria exoneração do cargo. Oficialmente, não foi demitido: afastou-se do emprego por vontade própria. Tem tempo de sobra para caminhar pelas vastidões de Brasília, fazer compras sem pressa em supermercados e planejar o que fará com a fortuna furtada. Decerto não é coisa pouca. Na semana passada, emergiram mais evidências de que Waldomiro, já no Planalto, manteve encontros suspeitos com a turma das loterias. Pingos nos is, Capitão. Falta verba e falta pano. Aborrecido com tanta confusão na grande área, o ministro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias, prometeu reorganizar de vez programas federais como o Bolsa-Família e o Fome Zero, além de outras ficções supostamente subordinadas à pasta. A coluna sugere a Patrus, que tem até um chefe de cerimonial, a começar a reorganização pelo próprio guarda-roupa. Como avisa a foto, o ministro anda usando gravatas que lembram detetives de filme americano dos anos 50. O pano acaba bem antes do umbigo. MILAGRE. Numa entrevista em Campos, Anthony Garotinho prometeu que o governo estadual construirá 20 mil casas caso o prefeito eleito seja Geraldo Pudim. E jurou que cada unidade custará – atenção – R$ 1. Deve ter acertado uma parceria direto com Deus. RESSALVA. Embora tenha sido presidente do Banco Central e ministro da Fazenda, Ernane Galvêas tem emprego regular, vai ao trabalho todos os dias e vive do salário. No Brasil, isso equivale a medalha de ouro.

137.AUTRAN DOURADO. OS MÍNIMOS CARAPINAS DO NADA. No Ponto, na farmácia de seu Belo, no armazém de secos e molhados de seu Bernardino, mesmo no final das tardes de conversação distinta do Banco Duas Pontes, no gabinete do nobre de alma e de gestos Vítor Macedônio (o belo varão, bem-nascido e gentil-homem), que reunia em torno de si (ali se servia do melhor conhaque francês) os potentados do café como o coronel Tote ou ilustres desocupados como seu Bê P. Lima, maledicente e boa-vida, mas de berço, enfim nas várias ágoras da cidade onde se comerciava a novidade, a imaginação, o ócio e o tédio... Nas janelas das casas terreiras de grandes e pesadas janelas de marco rústico, baixo e retangular, junto das calçadas, onde se ficava sabendo de tudo pelos passantes que iam e vinham (como era bom se debruçar e bater dois dedinhos de prosa ou fugir para dentro, se quem apontava na esquina era um maçante), de tudo se sabia sem carecer de estafeta e selo, as notícias e novidades: quem andava pastoreando quem, aquela que tinha caído na vida e agora era carne nova, estava de rapariga na Casa da Ponte, na testa de quem apontara o broto de futura e soberba galhada... Mesmo nas nobres sacadas de ferro, nas janelas de ricos sobrados, podia-se ver a qualquer hora do dia, no enovelar lento do tempo, os carapinas do nada, ocupados na gratuita e absurda, prazerosa ocupação. Eram os carapinas do mínimo e do nada, os devoradores das horas, insaciáveis Saturnos, dizia o sapientíssimo, alambicado, precioso dr. Viriato. Quem não tem o que fazer, faz colher de pau e enfeita o cabo, vinha por sua vez o proverbial, memorioso, eterno, pantemporal noveleiro Donga Novais, uma das poucas pessoas a não se entregar inteiramente ao vício e paixão da cidade. É porque para ele a entidade metafísica do tempo não existe (como para os platônicos que, ao contrário dos hebreus, não tinham o senso da historicidade, lidavam com o puro universal), passado, presente e futuro são uma coisa só, retrucava o dr. Viriato súbito espantosamente aderindo à fiação e tecelagem dos nossos mitos. Ele que era um cientista exaltado, um agnóstico convicto, de dialético linguajar maneirista que demandava precioso raciocínio, imaginação, dicionário. Não que o dr. Viriato tivesse as mãos ocupadas no admirável passa-tempo (santo remédio para a ansiedade e a angústia), que demandava habilidade, precisão e paciência, a que se dedicavam aristocraticamente potentados e pingantes que só tinham de seu serem bem-nascidos. Tão alto-crítico ele era, jamais se permitiria aquela vamos dizer arte, paixão antiga de Duas Pontes. De uma certa maneira ele colaborava era na criação de nossos mitos, mesmo negando-os, racionalista que ele se dizia e era. Quando, quem inventou tão sublime vamos dizer desocupação e alívio do espírito, perguntava o dr. Viriato a seu Donga Novais, sapiência viva do nosso tempo e história, os fabulosos, inconclusos e aéreos anais. Você, Donga, é o Sócrates da nossa pólis. Não sei, dizia desapontando à gente o nosso macróbio cidadão Donga Novais: amor e ócio são maus negócios. Eu acho que deve ser invenção de índio, que enfeitava caprichosamente as suas flechas que, partidas do arco, não voltavam mais. Mas eles não estão enfeitando nada, dizia por sua vez o dr. Viriato. Os puristas, os cultores do absoluto, os escribas da idéia, dos protótipos e arquétipos ideais, os minúsculos carapinas do nada. Seu Donga ficou um tempo parado, assuntando, ideando. Não é que o senhor tem razão, dr. Viriato? Sim, dizia o médico, porque a finalidade mágica dos bisões e demais caças pintadas nas cavernas pelo homem de Cro-Magnon... Seu Donga desatou a rir, não tinha mesmo jeito aquele dr. Viriato, comia brisas com pirão de areia. Porque havia três categorias de livres oficinas que se dedicavam à nobre arte de desbastar e trabalhar a madeira com o simples canivete e um ou outro instrumento auxiliar feito as latinhas que faziam as vezes do compasso. Três, porque não se podia considerar como cultores da Idéia, do sublime e do nada, os carpinteiros e marceneiros, que se utilizavam da madeira e de instrumentos mais eficientes como o formão, o cepilho, as brocas, e tudo sabiam de sua arte, ofício e meio de vida. São os nossos sofistas, dizia o dr. Viriato, que pensavam ser possível ensinar a arete e recebiam pelo seu trabalho e tinham as mãos calosas. A primeira categoria quase se podia, se não fosse o nenhum pagamento, considerar uma corporação de operários, que faziam de sua técnica e imaginação um ofício. Se vendiam o produto, não eram bem vistos pelos autênticos carapinas do nada, os sublimes; podiam começar a receber encomendas como qualquer trabalhador, o que se considerava degradante. Não há dúvida que o elogio é uma forma sublimada de remuneração e só se remunera operário, o que nem de longe se podia dizer deles (se ofendiam) que nunca pegaram no pesado. Eles e seus ancestrais, patriarcas absolutos, sempre estiveram do lado do cabo do chicote. Eram os fabricantes de carrinhos de bois, caminhões, mobilinhas, monjolos de sofisticada feitura e perfeita serventia, usados para compor presépio. Em geral exerciam a sua ocupação ociosa em casa, se serviam de instrumentos caseiros para auxiliar o trabalho do canivete, e chegavam a utilizar outros materiais que não a madeira, como espelhinhos, pregos, folhas-de-flandres. A segunda categoria, os marceneiros da nobre arte. Era exatamente aquela, sem metáfora ou imagem, de que falou o sábio e intemporal rifoneiro Donga Novais - os que literalmente enfeitavam cabo de colher de pau. Às vezes se dava o caso de que a colher ficava tão bem-feitinha e artística, com delicado e sutil rendilhado, labiríntica barafunda, de quase absoluta nenhuma serventia, que a peça passava de mão em mão por toda a parentela, vizinhos e mesmo estranhos. Os elogios que recebiam valiam por uma paga ao artista, que acabava por consentir (queriam) que a mulher ou a filha colocasse a colher na parede, para nunca ser usada. O perigo dessa categoria era o autor, por vaidade ou outro motivo subalterno, gravar o seu nome na concha ou no cabo da colher. Como o primeiro artista da antiguidade que gravou numa obra sua a frase "Felix fecit", inaugurando assim o culto da personalidade, tão contrário aos artistas do gótico, que nunca tinham a certeza de verem concluídas as catedrais que iniciavam, e eram anônimos, senão humílimos oficiais. O coronel Sigismundo era exemplo típico dos oficiais da segunda categoria. Era não só meio destelhado e quarta-feira, mas verdadeira alimária. Dele constavam dos anais fantásticas proezas nos seus carros sempre novos e lustrosos, se dando ao luxo e à extravagância de às vezes vestir a sua brilhosa e engalanada farda da Guarda Nacional, que não mais existia, e passear de carro pela cidade. Tudo se desculpava no coronel Sigismundo, por respeito ou medo. Ele se deu ao máximo, como nos tempos de casa-grande e senzala, de oferecer não uma colher de pau, mas palmatória de manopla por ele rendilhada, verdadeiro instrumento de suplício, ao major Américo, diretor e dono do Colégio Divino Espírito Santo, de terrível e acrescentada memória, capaz de desasnar a própria alimária. O velho major da Guarda Nacional recuou, os tempos agora eram outros. O gesto de ofertar e a utilidade do produto desqualificavam muito o coronel Sigismundo. Podia-se argumentar em seu favor que uma colher de pau finamente trabalhada para remexer panela, o bom dela, após o trabalho do artista, era não servir para coisa nenhuma, puro deleite. E agora se apresenta a pura, a sublime, a extraordinária terceira categoria. Só aos seus membros, peripatética academia, se podia aplicar estes qualificativos: divinos e luminosos, aristocráticos artífices do absurdo. Eram como poetas puros, narradores perfeitos, cepilhando e polindo as vazias estruturas do nada. A terceira categoria era o último estágio para se atingir a sabedoria e a salvação. Às vezes se dava o caso de que o artista (e isso não se ensina, ao contrario do que afirmava os sofistas, dizia o Dr. Viriato, emérito teórico do vazio e do absoluto) vinha diretamente da primeira categoria, e alcançava a plenitude do nada , era um dos amados dos deuses, para os quais o grande, senão único pecado é a ignorância. Não se atingia essa categoria (era raríssimo o caso de um jovem a ela pertencer; falta à juventude ócio e paciência) senão a velhice, quando se alcançava a plenitude da arte. Vovó Tomé era um desses casos raros do artista que passa veloz e diretamente da primeira à terceira categoria. Atribuem a sua proeza e sua mestria no ofício ao sofrimento, que é uma das vias para se atingir o absoluto e a glória. Ele os alcançou, e isso consta dos anais do vento, na última velhice, quando atingiu, de apara em apara, cada vez mas longe e mais longas e mais finas, enroladinhas que nem cabelo de preto, o etéreo e o que lhe restou na mão foi um minúsculo pedacinho de pau. Na mesa, a sue lado, no círculo de luz do cone do abajur, um monte de finíssimas aparas , nenhuma delas partida. Uma obra divina, foi o que disse o famigerado artista Bê P. Lima, quando viu o tiquinho de nada que restou. Falou quem pode, disse seu Donga Novais da sua aérea fantástica e insone janela, almenara da cidade. Um mestre e guru nirvântico, acolitou o Dr. Viriato. Para atingir esse estágio, o noviço carece de muita paciência, aplicação, humildade, modéstia. É preciso enfrentar a maledicência dos ocupados, vence a delicadeza e timidez, correr o risco de se ferir. O mais elevado ideal dos membros dessa categoria era se dedicar a tão sublime ocupação sentado numa roda, prestando atenção no desenrolar da conversa vadia e mesmo dela participando com um ou outro aforismo ou ponderação, sem despregar os olhos da mecânica ocupação. Conta-se a fantástica proeza de um dos sacerdotes do culto, o inefável seu Bê P. Lima, que começou desbastando um grande pedaço de madeira e foi indo, de caracol, sem pressa, preciso, cuidando do seu gratuito ofício, o ouvido porém atento a conversa, que esquentava, e seu Bê não queria perder nada, cujo tema principal era comportamento de certa dama de nossa cidade. E de repente se suspendeu a conversação, todos voltados para ele. Seu Bê se aproximava do fim, faltava-lhe uma última e mínima apara para atingir o nada. O próprio seu Belo veio lá de dentro do laboratório e ficou à espera. Então aconteceu. Não se podia dizer se o que ficou na mão de seu Bê fosse ou não minúsculo caracol que ele soprou. Como num circo ou num concerto, após sustenida atenção, a respiração suspensa, a roda prorrompeu num coro de palmas. Seu Vítor Macedônio, que passava pela farmácia, diante do silêncio da roda, parou. Não se dedicava ao nobre ofício, mas vendo a atenção de todos, também ele aderiu à rodada de palmas. Seu Bê , me faça o favor de comparecer no banco lá pelo fim da tarde, para comemoramos o evento. Mais do que o normal, ele seria generoso com seu conhaque francês. Acredito com os outros que o móvel inicial que levou vovô Tomé à nobre ocupação de pica-pau tenha sido o sofrimento. O suicídio de tio Zózimo, a loucura mansa de tia Margarida, um desastre econômico de papai que o obrigou a vender a Fazenda do Carapina para que não lhe tomassem a casa. Mas muito antes da terrível morte do tio Zózimo ele já se ocupava em fazer a canivete um ou outro objeto de alguma serventia. A gratuidade mesmo de magníficos caracóis ele só viria a atingir depois da morte por enforcamento de tio Zózimo. Mas antes mesmo do primeiro desses tristes acontecimentos vovô Tomé já se dedicava a manter as mãos ocupadas. Acredito em parte que foi a tentativa de manter as mãoos ocupadas para vencer a opressão e a angústia que o levou a se dedicar a pequena tarefas caseiras. Porque não lhe bastava fazer um longo, caprichando e lento cigarro de palha, tarefa em que era perito. Os outros podem estar certos, e eu mesmo recuaria no tempo (não conhecia senão de crônica vovô Zé Mário, pai de vovô Tomé), se pudesse contar a historia que num dia de maior solidão e sufocamento, sob a maior promessa de sigilo, me contou vovó Tomé. Mas é um caso longo não é para agora. Não , não foi só isso. Havia um lado menino muito bom em vovô Tomé. Eu me lembro do entusiasmo em que ele ficava quando da chegada de um circo à nossa cidade, mesmo que fosse circo de tourada. E eu muito criança ia com ele, ficava no seu camarote. Só depois é que o abandonei para estar com meus amigos mais velhos lá no alto das arquibancadas. Me lembro( e isso mamãe e vovó Naninha confirmam) dos primeiros passos de vovô Tomé na arte de picar pau. Eu estava sentado no chão de tábuas lavadas e secas da sala, cortando umas figuras de umas revistas velhas. Eram de uma coleção de tia Margarida. Quando vovô Tomé viu e me chamou. João, deixa isso de banda, guarde as revistas onde você tirou, venha comigo, tive uma idéia. Vamos ao armazém de seu Bernardino buscar material. Ele me deu a mão e eu estava muito feliz. Não era meu aniversário quando, como fazia com os netos e afilhados, ele nos levava ao armazém de seu Bernardino para comprar um sapato de ver Deus. No armazém, depois de uma conversa breve e formal com seu Bernardino, vovô perguntou se ele podia nos arranjar um caixote vazio. Seu Bernardino se espantou com o pedido, vovô ainda não era da confraria. Quer que eu mande levar, perguntou seu Bernardino. Se me fizessem a bondade... Eu tive um ímpeto, disse pode deixar que eu levo. Seu Bernardino olhou pra min, olhou para vovô Tomé, e disse com ficamos, seu Tomé? Mande levar, disse vovô. E o preço da peça e do carreto, por favor. Seu Bernardino disse brincando nem o preço de uma das suas fazendas bastaria. Então lhe mandarei no fim da safra, uma saca do melhor café tipo sete. Ora, seu Tomé, e eu ia acreditar?! Não é pelo caixote, é por nossa velha amizade, disse vovô Tomé. Aprendi então um dos preceitos do seu código de aristocracia rural. Eu e ele não podíamos fazer qualquer trabalho manual, a nossa posição nos vedava. O primeiro foi (como esquecer!) quando soube que o delegado seu Dionísio tinha mandado dar uma surra num preso para ele confessar. Em homem não se bate, é melhor matar, por respeito à sua condição de homem, é mais digno. Outro preceito do seu código de honra aprendi muito menino, quando uma vez, a mando de mamãe, lhe fui tomar bênção. Ele me recusou a mão, disse homem não beija mão de homem. Era um comportamento raro em Duas Pontes, cidade de velhos patriarcas. Nem bem chegamos em casa e veio o empregado com o caixote. Era um caixote de madeira branca que, pelos dizeres e pelo cheiro, se viu que tinha servido para embalar bacalhau, madeira das estranjas. Vovô tirou o paletó, desabotoou o colete, afrouxou o colarinho e começou a fazer um caminhãozinho para mim. Para quem parecia estar usando as mãos pela primeira vez, não estava mal. No final da tarde, a obra estava pronta. Tinha ficado um tanto rústica, mas eu não disse nada a vovô Tomé, para não atrapalhar a sua satisfação. No outro dia dei com vovô Tomé aparando pachorrentamente um pedaço de pau. Quê que o senhor está fazendo, perguntei. Uma colher de pau para Naninha, ela me pediu, disse ele meio envergonhado, talvez pela sua utilidade doméstica. O senhor parece que não está gostando, não é, perguntei. Para lhe ser franco, não, disse vovô. O que gostaria de fazer, um monjolinho, indaguei. Não, gostaria de fazer nada, disse ele. Nada, à toa? Disse eu meio desapontado. Não, fazendo absolutamente nada, quer dizer, ir aparando vagarosamente a madeira até não restar mais nada. Assim feito seu Bê, perguntei. Vovô riu, achava muita graça nas bestagens de seu Bê P. Lima, nas histórias obscenas que ele contava, quando não tinha menino por perto, na presença de menino e de mulher ele fechava a cara, metia a viola no saco, se dava ao respeito. Bê é um artista do nada, por isso é um homem feliz, disse. E vovô Tomé foi ficando um perito na arte dos caracóis. Demorava muito o aprendizado, ele porém não tinha pressa. Pra quê? dizia, não falta matéria-prima neste mundo. E brincando, haja povo na terra para desbastar a floresta amazônica. Às vezes fico imaginando o povo todo do mundo picando pauzinho. Seria a paz e a união dos homens. Eu tinha um certo medo de que vovô enjoasse do gratuito ofício e virasse um teórico do não fazer nada, absolutamente nada. Seu Bê, por exemplo, não tinha dessas cogitações, apenas ia aparando as suas fitas e caracóis. Vovô não tinha a pachorra e a tranqüilidade de seu Bê. Era exigente, ia ao armazém de seu Bernardino escolher as melhores madeiras, havia uma certa qualidade de pinho que era em si uma beleza. A madeira não podia ter olhos nem veios muito acentuados, nem mistura de tons. Quanto mais lisas e uniformes, melhor. Quem tem pressa não faz nada, dizia ela já agora conceituoso. Ele tinha a sua poética, a diferença entre ele e seu Bê é que seu Bê não tinha poética nenhuma, era um puro artista do nada. Com o passar do tempo, vovô Tomé viu que se aprende até certo ponto, depois é desaprender de tal maneira que cada dia se tenha diante de si o puro nada. E os anos passaram e eu me afastei de vovô Tomé. Fui para Belo Horizonte, onde fiz o meu curso superior sustentado por ele. É com remorso que me lembro de que lhe escrevi apenas umas minguadas cartas. Em nenhuma delas perguntei como ele ia na sua velha arte. Fiquei sabendo por uma carta de vovó Naninha que ele tinha morrido. Voltei imediatamente a Duas Pontes. Vovó Naninha disse que ele morrera de pé, feito queria, sem curtir leito de doente, à grande mesa da sala de jantar, tirando um enorme caracol. Tinha encontrado o seu nada. Vovó Naninha me deu o seu canivete preferido. Não sei o que fazer com ele, é de outra maneira que procuro o meu nada.

138. BARÃO DE ITARARÉ. Logo que Santo Ivo morreu, encaminhou-se ao Céu e bateu à porta, que São Pedro não se atreveu a abrir, subestimando as razões do bom santo.— Faço o que quiseres — repetia o porteiro do Céu —, mas não acho que deva permitir a entrada a um advogado, não só porque nem um tem assento entre os santos, mas também porque; muito ao contrário, juraria que se encontram no inferno todos os de tua profissão. Santo Ivo não se desconcertou; antes, como bom advogado, teve tão convincentes razões para rebater as de São Pedro que este lhe permitiu finalmente entrar no Céu, mas com a condição de permanecer junto à porta. O hóspede entrou calmamente, sentou-se no lugar indicado por São Pedro, que foi participar a Nosso Senhor o sucedido...— Fizeste mal! Muito mal, Pedro! — respondeu Deus, quando acabou de escutá-lo. — Havia resolvido que nenhum advogado entraria no Céu, e tinha cá minhas razões para isso. Mas já que está, deixa ficar; sem embargo, não deixes que ele se misture com os outros santos, pois do contrário acabarão no Céu a paz e a boa harmonia. Não o deixes passar além da porta. Aborrecido e cabisbaixo, voltou São Pedro aonde estava Santo Ivo e comunicou-lhe as ordens dadas pelo Senhor. O Santo advogado encolheu os ombros e, à guisa de passatempo, começou a entabular conversa com São Pedro.— Que posto ocupas aqui no Céu?— Não sabes? Sou o porteiro.— Por quanto tempo?...— Para todo o sempre.— Deixa disso. Só se tiveres algum contrato firmado...— Não há contrato nem coisa que o valha, e para dizer a verdade não há necessidade disso.— Como assim? Então não estás vendo, grande ingênuo, que qualquer dia Deus pode ter a idéia de te destituir, sem mais nem menos, do cargo que com zelo vens desempenhando há tanto tempo, sem que possas fazer valer teus direitos? São Pedro coçou a orelha, e, mais amofinado que antes, foi novamente falar com Deus.— Vamos lá, que é que pensas?— Preciso de um contrato em que se declare que sou o porteiro do Céu para todo o sempre. Até hoje temos deixado as coisas andar à vontade; mas se vos der na idéia, qualquer dia me destituís do cargo que com tanto zelo...— Não te dizia eu? Tudo isso são trapaças daquele advogadozinho que tens na porta e que soube encher-te a cabeça. E ajuntou depois, tomando uma resolução:— Anda, Pedro, corre e manda-o entrar imediatamente, pois prefiro tê-lo perto de mim a vê-lo junto à porta. Eis como entrou no Céu o primeiro advogado.

139. BARÃO DE ITARARÉ.  Joaquim Rebolão estava desempregado e lutava com grandes dificuldades para se manter. A sua situação ainda mais se agravava pelo fato de ter que dar assistência a um filho, rapaz inexperiente que também estava no desvio. Joaquim Rebolão, porém, defendia-se como um autêntico leão da Núbia, neste deserto de homens e idéias. O seu cérebro, torturado pela miséria, era fértil e brilhante, engendrando planos verdadeiramente geniais, graça; aos quais sempre se saía galhardamente das aperturas diárias com que o destino cruel o torturava. Naquele dia, o seu grude já estava garantido. Recebera convite para um banquete de cerimônia, em homenagem a um alto figurão que estava necessitando de claque. Mas o nosso herói não estava satisfeito, porque não conseguira um convite para o filho. À hora marcada, porém, Rebolão, acompanhado do rapaz, dirige-se para o salão, onde se celebraria a cerimônia. Antes de penetrar no recinto, diz a seu filho faminto:— Fica firme aqui na porta um momento, porque preciso dar um jeito a fim de que tu também tomes parte no festim. Já estavam todos os convidados sentados nos respectivos lugares, na grande mesa em forma de ferradura, quando, ao começar o bródio, Rebolão se levanta .e exclama:— Senhores, em vista da ausência do Sr. Vigário nesta festa, tomo a liberdade de benzer a mesa. Em nome do Padre e do Espírito Santo!— E o filho? — perguntou-lhe um dos convivas.— Está na porta — responde prontamente. E, voltando-se para o rapaz, ordena, autoritário e enérgico:— Entra de uma vez, menino! Não vês que estes senhores te estão chamando?

140. BERNARD SHAW. PEQUENO BREVIÁRIO SHAWIANO. Não há amor mais sincero que o da comida. Cabe à mulher casar-se o mais cedo possível e ao homem ficar solteiro o  mais tempo que pode. A minha especialidade é ter razão quando os outros não a têm. Quando um tolo pratica um ato de que se envergonha, declara sempre que fez o seu dever. Quem nunca esperou não pode desesperar nunca. Uma vida inteira de felicidade? Ninguém agüentaria: seria o inferno na terra. O pior crime para com os nossos semelhantes não é odiá-los, mas demonstrar-lhes indiferença: é a essência da desumanidade. Há duas tragédias na vida: uma, a de não alcançarmos o que o nosso coração deseja; a outra, de alcançá-lo. Os ingleses nunca hão de ser escravos: eles são livres de fazer tudo o que o Governo e a opinião pública lhes permitem fazer. (Jogo de xadrez). É um expediente tolo para fazer com que pessoas preguiçosas acreditem que estão fazendo algo muito inteligente, quando estão apenas perdendo tempo. O lar é a prisão da moça e o hospício da mulher. O martírio... é a única maneira de ganhar fama sem ter competência. Quem deseja uma vida feliz com uma mulher bonita assemelha-se a quem quisesse saborear o gosto do vinho tendo a boca sempre cheia dele. Não faças aos outros o que queres que te façam; os gostos deles podem ser diferentes dos teus. Neste mundo sempre há perigo para aqueles que o temem. Há apenas uma única religião, embora dela exista uma centena de versões. Nunca espero nada de um soldado que pensa. Sou abstêmio apenas de cerveja, não de champanha. Não gosto de sentir-me em casa quando estou no estrangeiro. De uma pequena tolice e uma enorme curiosidade resultam muitos casamentos. Um homem sem endereço é vagabundo; com dois endereços é libertino. Quando um idiota faz alguma coisa de que se envergonha, diz que está cumprindo um dever. O dever de qualquer mulher é casar o mais cedo possível; o de todo homem, continuar solteiro pelo tempo que puder. Os melhores reformistas do mundo são os que começaram por reformar-se. Quem sabe faz; quem não sabe, ensina. De quanto mais coisas um homem se envergonha, mais respeitável se torna. A juventude é tão maravilhosa que chega a ser criminoso desperdiçá-la em crianças. Há duas tragédias na vida. Uma é não fazer o que o coração deseja. A outra é fazer. "Frases de cabeceira": Dirigir uma empresa não é vê-la como ela é... mas como ela será (John Teets). Algo só é impossível até que alguém duvida disso e acaba provando o contrário (Einstein). O cérebro é como um pára-quedas. Só funciona quando está aberto (Sir James Dewar). Ter idéias fechadas e só aprender com o tempo, a pauladas, é o preço corriqueiro que se paga em toda a parte pela tranqüilidade de não pensar (Roberto Mangabeira Unger). Deus é contra quem faz a guerra, mas fica do lado de quem atira bem (Voltaire). O poder é como violino. Toma-se com a esquerda e toca-se com a direita (Esperidião Amim). Quem vai na frente bebe água limpa (Ulysses Guimarães). Se grito resolvesse, porco não morria (pára-choque de caminhão). Quando você aponta uma estrela para um imbecil, ele olha para a ponta de seu dedo (Mao Tsé-Tung). Posso resistir a tudo, menos à tentação (Oscar Wild). Deus está nos detalhes (Mies Van Der Rohe). Notei que estava ficando velho quando o locutor da FM disse "flash back" e tocou uma música que eu não conhecia. (Cao Hering). Nunca me preocupo com o futuro. Muito em breve ele virá. (Albert Einstein). As mulheres gostam de bunda de homem porque fica perto da carteira. (Eugênio Mohallen). Ter medo não ajuda a viver. (Ivo Pitanguy). Nada é impossível para quem não tem que resolver o problema ele mesmo. (L. A. Dias da Silva). O mundo é perigoso não por causa daqueles que fazem o mal, mas por causa daqueles que vêem e deixam o mal ser feito. (Albert Einstein). Não conheço seu ex-marido, mas já começo a me solidarizar com ele. (L. A. Dias da Silva). Na vida, quem não sabe escrever sessenta é sempre obrigado a preencher dois cheques de trinta. (Paulo M. Cerqueira). Se você é inteligente, cede. Até se tornar num idiota. (Frida Berg). Quem tem muito dinheiro pode ser burro o quanto quiser. (Ovídio). O hálito faz o longe. (Cao Hering). Um homem com mais de 55 anos acha que não faz mais besteiras. Isso é o que ele pensa. (Maurice Chevalier). Um quadro é como um homem. Se você consegue viver sem ele, não há sentido em mantê-lo. (Lila Wallace). É uma coisa solitária estar certa. (Mary Tylor Moore). A receita de um médico é como um bilhete de loteria - de repente dá certo. (Schopenhauer). Todas as grandes idéias são perigosas. (Oscar Wilde). Sempre que uma mulher faz o melhor que pode, deve fazer duas vezes melhor que o homem para ser considerada apenas 50% à sua altura. Ainda bem que não é difícil. (Charlotte Whitton). Os homens são ensinados a se desculpar por suas fraquezas. As mulheres, por sua força. (Lois Wyse). O processo de morte começa no momento em que você nasce, mas se acelera consideravelmente durante os grandes jantares. (Carol Matthau). O homem é melhor que sua experiência. (Adorno). O melhor marido que uma mulher pode ter é um arqueólogo. Quanto mais velha ela fica, maior o interesse dele. (Agatha Cristie). Eu não sou tão pacifista a ponto de não entrar numa guerra pela paz. (Madeleine Stark). Sou incapaz de fazer mal a uma formiga. Bem que tentei, mas não entrava. (Eugênio Mohallen). Ao homem tudo, porque nada peca; à mulher, nada, porque tudo peca. (Ditado cigano). Minha filha de 23 anos é mais velha do que eu. (Betty Lago). É bom lembrar que todos os psicanalistas são ex-malucos. (Serge André, psicanalista francês). Já vi maiores. Mas também já vi menores. O dele era apenas bonitinho. (Divine Brown). Nem todos os peitos olham para cima a vida toda. (Carla Camurati). Eu li todos os volumes de O Capital, de Marx. Mas não entendi quem é que casa com quem no final. (Marcelo Aragão). Calcinha e sutiã me dão falta de ar. (Sônia Braga). Cansei dessa história de ficar feia para provar o meu talento. (Cláudia Ohana). Deus criou o mundo em seis dias e, no domingo, descansou; quando criou a mulher, na segunda, ninguém mais descansou. (José Simão, o Macaco Simão). Não fazer barulho já é fazer muito. (Juvenal de Souza Neto). Metade da humanidade passa fome e metade faz regime. Resumindo, a humanidade inteira passa fome. (Paulo M. Cerqueira). Só dois tipos de pessoas querem se casar atualmente: bichas e padres. (Plínio Marcos). O Rio foi assolado, nos últimos tempos, por uma sucessão de infortúnios: Chagas, Brizola, Moreira, Brizola... Nem a Suíça ficaria de pé. (Paulo Cesar Amorim). Eu seria um louco se dissesse que me sinto seguro no Rio de Janeiro. (General Euclimar da Silva, ex-secretário da Segurança). Alguns divórcios são amigáveis, mas todo casamento é litigioso. (Eugênio Mohallen). Palavras cruzadas são o chicle do cérebro. (Pitigrilli). Quando o homem casa, ou trai sua natureza ou trai sua mulher. (Guime Davidson). A era das belas frases acabou. (Theodor Fontane). O sol nasceu para toldos. (Sylvio Abreu). Na meia idade, as emoções se tornam sintomas. (Irvin S. Cobb). Em traseira de burro, dianteira de padre e cabeça de juiz não se pode confiar. (Ney Maranhão). A diferença entre a verdade e a ficção é que a ficção faz mais sentido. (Mark Twain). O preço da justiça está no canhoto do meu talão de cheque. (Sérgio Naya). Livros de frases são ótimos para pessoas sem instrução. (Winston Churchill). O melhor do susto é esperar por ele. (Mário Quintana). É melhor morrer de vodca do que de tédio. (Vladimir Maiakovski). Narcisista é uma pessoa mais bonita que você. (Gore Vidal). A história mostra que a gente agrada a Deus fazendo o que o diabo gosta. (Raul Seixas). Pitanguy, um pioneiro na reciclagem do lixo. (Anacleto Neves). A língua é a última coisa que morre numa mulher. (Hipócrates). Não chame de honesto um homem que nunca teve a oportunidade de roubar. (Ditado iídiche). Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de livraria. (Jorge Luis Borges). Roses are red, violets are blue, I'm schizophrenic, and so am I. (Frank Crow). O avião ainda é o meio mais seguro, rápido, sofisticado e caro para se chegar atrasado em qualquer lugar (Ozires Silva). Ironia é a higiene da mente. (Elizabeth Bibesco). Um homem apaixonado confunde espinha com covinha. (Provérbio japonês). Eu fumo porque, na minha idade, se não tenho algo em que segurar, eu caio. (George Burns). Para evitar o estresse, evite excitação; passe mais tempo com sua esposa. (Robert Orben). Mostre-me um bom perdedor que eu te mostro um idiota. (Leo Durocher). Não saio com mulheres famosas porque nunca pago acima da tabela. (Tim Maia). O mundo está tão confuso que o Papa faz discurso e o Fidel dá sermão. (Claudio Lembo). Noventa por cento do que escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira. (Manoel de Barros). No Brasil, a dívida externa é que governa. Quer dizer, é o rabo que abana o cachorro. (Pedro Malan). Nem que seja para ganhar a eleição, não como buchada. (Ciro Gomes). A má informação é mais desesperadora que a falta de informação. (Charles C. Colton). O Tiradentes devia ser o padroeiro do Brasil; tá todo mundo com a corda no pescoço! (José Simão). Para mim, mulheres são como elefantes — ótimas de olhar, não de ter. (W. C. Fields). Somos todos escritores. Só que uns escrevem, outros não. (José Saramago). Deus é a resposta. Mas qual era a pergunta? (Grafite nova-iorquino). O psiquiatra é a primeira pessoa com quem você deve falar depois que começa a falar sozinho. (Fred Allen). Nada é bastante para quem considera pouco o suficiente. (Confúcio). As fontes de todos os problemas são três: barra de ouro, barra de terra e barra de saia. (Tancredo Neves). Jesus não agradou a todos. Não é eu que vou agradar. (Carla Perez). O que os presidentes não fazem com suas esposas acabam fazendo com o seu país. (Mel Brooks). Pra gaúcho esse tal de Viagra é overdose. (Leonel Brizola). Estou apaixonado pela mesma mulher há quarenta e um anos. Se minha esposa descobrir, vai me matar. (Henry Youngman). Com alguns deputados, só conversando na sauna, e pelado. (Sérgio Motta). Se você se parece com a sua fotografia de passaporte, sem dúvida precisa viajar. (Sir Angus Wilson). Uma ex-mulher é para sempre. (João Fernando Camargo). A única coisa necessária é o supérfluo. (Oscar Wilde). Amor e tosse não dá para esconder. (Provérbio romano). Quem decide pode errar. Quem não decide já errou. (Herbert Von Karajan). Não compro bilhetes. Já ganhei na loteria quando nasci. (Roberto Irineu Marinho). Eu sei que quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade. (Guimarães  Rosa). O sexo é a fonte da vida, mas que deixa a gente morto, deixa. (Sérgio Maldonado). A lesma é lenta. Ainda bem. Já pensou se esse bicho nojento corresse? (Sérgio Maldonado). A meleca é a melhor amiga do motorista solitário. (João Empolgação). O único homem que não pode viver sem mulheres é o ginecologista. (Arthur Schopenhauer). Eu vejo catástrofes. Pior: eu vejo advogados. (Woody Allen). Conheci várias mulheres melhores que um PC, mas nenhuma melhor que um Mac. (Guime Davidson). Não pergunte o que seu país pode fazer por você. Ele pode responder. (Justine Espírito Santo). Não dá para acreditar num país que comprou o Acre. (Eugênio Mohallen). Só porque você vai para jantar com alguém, não quer dizer que tem que ser a sobremesa. (Dora Bria). Diplomata é um indivíduo cuja cor predileta é o arco-íris. (Millôr Fernandes). Não me lembro do que ele morreu. Só me lembro que não era nada sério. (Carlos Leonam). Quem gosta de pau duro é viado; mulher gosta é de cheque. (Neil Ferreira). Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. (Guimarães Rosa). A única coisa do planejamento é que as coisas nunca ocorrem como foram planejadas. (Lúcio Costa). A mentira é uma verdade que se esquece de acontecer. (Mário Quintana). Maior que o impulso sexual é o impulso de mexer no texto alheio. (Claudius Ceccon). A bicicleta ergométrica é uma viagem sem ida. (Casseta & Planeta). É impossível ser ridículo dentro de um Mercedes. (Nelson Rodrigues). A lei é como uma cerca — quando é forte a gente passa por baixo; quando é fraca a gente passa por cima. (Coronel Chico Heráclito). Brincar é condição fundamental para ser sério. (Arquimedes). A gente só diz sim ou não no casamento e, ainda assim, às vezes erra. (Itamar Franco). A bomba atômica é o Viagra dos energúmenos. (Alfredo Sirkis). Hippie é alguém que parece o Tarzan, caminha como a Jane e cheira como a Chita. (Ronald Reagan). Não interessa se o remédio é ou não farinha, o que cura é a bula. (Luis Fernando Veríssimo). Gostaria de criar home pages, mas não sei o que elas comem. (Anônimo da Internet). Se não fosse o Van Gogh, o que seria do amarelo? (Mário Quintana). Criar filho é como jogar videogame: a fase seguinte é sempre mais difícil. (Silvio A. D. da Silva). Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo. (José Saramago). Pessoalmente nada sei sobre sexo. Sempre fui uma mulher casada. (Zsa Zsa Gabor). Há pessoas tão chatas que nos fazem perder um dia em cinco minutos. (Jules Renard). Quem não se ocupa, se preocupa. (Otto Lara Resende). Salve as baleias, destrua um spa. (Gisela Rao).

141.BERNARDO ÉLIS. NHOLA DOS ANJOS E A CHEIA DO CORUMBÁ. — Fio, fais um zóio de boi lá fora pra nóis. — O menino saiu do rancho com um baixeiro na cabeça, e no terreiro, debaixo da chuva miúda e continuada, enfincou o calcanhar na lama, rodou sobre ele o pé, riscando com o dedão uma circunferência no chão mole — outra e mais outra. Três círculos entrelaçados, cujos centros formavam um triângulo eqüilátero. Isto era simpatia para fazer estiar. E o menino voltou: — Pronto, vó. — O rio já encheu mais? — perguntou ela. — Chi, tá um mar d'água! Qué vê, espia, — e apontou com o dedo para fora do rancho. A velha foi até a porta e lançou a vista. Para todo lado havia água. Somente para o sul, para a várzea, é que estava mais enxuto, pois o braço do rio aí era pequeno. A velha voltou para dentro, arrastando-se pelo chão, feito um cachorro, cadela, aliás: era entrevada. Havia vinte anos apanhara um "ar de estupor" e desde então nunca mais se valera das pernas, que murcharam e se estorceram. Começou a escurecer nevroticamente. Uma noite que vinha vagarosamente, irremediavelmente, como o progresso de uma doença fatal. O Quelemente, filho da velha, entrou. Estava ensopadinho da silva. Dependurou numa forquilha a caroça, — que é a maneira mais analfabeta de se esconder da chuva, — tirou a camisa molhada do corpo e se agachou na beira da fornalha. — Mãe, o vau tá que tá sumino a gente. Este ano mesmo, se Deus ajudá, nóis se muda. Onde ele se agachou, estava agora uma lagoa, da água escorrida da calça de algodão grosso. A velha trouxe-lhe um prato de folha e ele começou a tirar, com a colher de pau, o feijão quente da panela de barro. Era um feijão brancacento, cascudo, cozido sem gordura. Derrubou farinha de mandioca em cima, mexeu e pôs-se a fazer grandes capitães com a mão, com que entrouxava a bocarra. Agora a gente só ouvia o ronco do rio lá embaixo — ronco confuso, rouco, ora mais forte, ora mais fraco, como se fosse um zunzum subterrâneo. A calça de algodão cru do roceiro fumegava ante o calor da fornalha, como se pegasse fogo. Já tinha pra mais de oitenta anos que os dos Anjos moravam ali na foz do Capivari no Corumbá. O rancho se erguia num morrote a cavaleiro de terrenos baixos e paludosos. A casa ficava num triângulo. de que dois lados eram formados por rios, e o terceiro, por uma vargem de buritis. Nos tempos de cheias os habitantes ficavam ilhados, mas a passagem da várzea era rasa e podia-se vadear perfeitamente. No tempo da guerra do Lopes, ou antes ainda, o avô de Quelemente veio de Minas e montou ali sua fazenda de gado, pois a formação geográfica construíra um excelente apartador. O gado, porém, quando o velho morreu, já estava quase extinto pelas ervas daninhas. Daí para cá foi a decadência. No lugar da casa de telhas, que ruiu, ergueram um rancho de palhas. A erva se incumbiu de arrasar o resto do gado e as febres as pessoas. "— Este ano, se Deus ajudá, nóis se muda." Há quarenta anos a velha Nhola vinha ouvindo aquela conversa fiada. A princípio fora seu marido: "— Nóis precisa de mudá, pruquê senão a água leva nóis". Ele morreu de maleita e os outros continuaram no lugar. Depois era o filho que falava assim, mas nunca se mudara. Casara-se ali: tivera um filho; a mulher dele, nora de Nhola, morreu de maleita. E ainda continuaram no mesmo lugar a velha Nhola, o filho Quelemente e o neto, um biruzinho sempre perrengado. A chuva caía meticulosamente, sem pressa de cessar. A palha do rancho porejava água, fedia a podre, derrubando dentro da casa uma infinidade de bichos que a sua podridão gerava. Ratos, sapos, baratas, grilos, aranhas, o diabo refugiava-se ali dentro, fugindo à inundação, que aos poucos ia galgando a perambeira do morrote. Quelemente saiu ao terreiro e olhou a noite. Não havia céu, não havia horizonte — era aquela coisa confusa, translúcida e pegajosa. Clareava as trevas o branco leitoso das águas que cercavam o rancho. Ali pras bandas da vargem é que ainda se divisava o vulto negro e mal recortado do mato. Nem uma estrela. Nem um pirilampo. Nem um relâmpago. A noite era feito um grande cadáver, de olhos abertos e embaciados. Os gritos friorentos das marrecas povoavam de terror o ronco medonho da cheia. No canto escuro do quarto, o pito da velha Nhola acendia-se e apagava-se sinistramente, alumiando seu rosto macilento e fuxicado. — Ocê bota a gente hoje em riba do jirau, viu? — pediu ela ao filho. — Com essa chuveira de dilúvio, tudo quanto é mundice entra pro rancho e eu num quero drumi no chão não. Ela receava a baita cascavel que inda agorinha atravessara a cozinha numa intimidade pachorrenta. Quelemente sentiu um frio ruim no lombo. Ele dormia com a roupa ensopada, mas aquele frio que estava sentindo era diferente. Foi puxar o baixeiro e nisto esbarrou com água. Pulou do jirau no chão e a água subiu-lhe ao umbigo. Sentiu um aperto no coração e uma tonteira enjoada. O rancho estava viscosamente iluminado pelo reflexo do líquido. Uma luz cansada e incômoda, que não permitia divisar os contornos das coisas. Dirigiu-se ao jirau da velha. Ela estava agachada sobre ele, com um brilho aziago no olhar. Lá fora o barulhão confuso, subterrâneo, sublinhado pelo uivo de um cachorro. — Adonde será que tá o chulinho? Foi quando uma parede do rancho começou a desmoronar. Os torrões de barro do pau-a-pique se desprendiam dos amarrilhos de embiras e caíam nágua com um barulhinho brincalhão — tchibungue — tibungue. De repente, foi-se todo o pano de parede. As águas agitadas vieram banhar as pernas inúteis de mãe Nhola: — Nossa Senhora d'Abadia do Muquém! — Meu Divino Padre Eterno! O menino chorava aos berros, tratando de subir pelos ombros da estuporada e alcançar o teto. Dentro da casa, boiavam pedaços de madeira, cuias, coités, trapos e a superfície do líquido tinha umas contorções diabólicas de espasmos epiléticos, entre as espumas alvas. — Cá, nego, cá, nego — Nhola chamou o chulinho que vinha nadando pelo quarto, soprando a água. O animal subiu ao jirau e sacudiu o pelo molhado, trêmulo, e começou a lamber a cara do menino. O teto agora começava a desabar, estralando, arriando as palhas no rio, com um vagar irritante, com uma calma perversa de suplício. Pelo vão da parede desconjuntada podia-se ver o lençol branco — que se diluía na cortina diáfana, leitosa do espaço repleto de chuva — e que arrastava as palhas, as taquaras da parede. os detritos da habitação. Tudo isso descia em longa fila, aos mansos boléus das ondas, ora valsando em torvelinhos, ora parando nos remansos enganadores. A porta do rancho também ia descendo. Era feita de paus de buritis amarrados por embiras. Quelemente nadou, apanhou-a, colocou em cima a mãe e o filho, tirou do teto uma ripa mais comprida para servir de varejão, e lá se foram derivando, nessa jangada improvisada. — E o chulinho? — perguntou o menino, mas a única resposta foi mesmo o uivo do cachorro. Quelemente tentava atirar a jangada para a vargem, a fim de alcançar as árvores. A embarcação mantinha-se a coisa de dois dedos acima da superfície das águas, mas sustinha satisfatoriamente a carga. O que era preciso era alcançar a vargem, agarrar-se aos galhos das árvores. sair por esse único ponto mais próximo e mais seguro. Daí em diante o rio pegava a estreitar-se entre barrancos atacados, até cair na cachoeira. Era preciso evitar essa passagem, fugir dela. Ainda se se tivesse certeza de que a enchente houvesse passado acima do barranco e extravasado pela campina adjacente a ele, podia-se salvar por ali. Do contrário, depois de cair no canal, o jeito era mesmo espatifar-se na cachoeira. — É o mato? — perguntou engasgadamente Nhola, cujos olhos de pua furavam o breu da noite. Sim. O mato se aproximava. discerniam-se sobre o líquido grandes manchas, sonambulicamente pesadas, emergindo do insondável— deviam ser as copas das árvores. De súbito, porém, a sirga não alcançou mais o fundo. A correnteza pegou a jangada de chofre, fê-la tornear rapidamente e arrebatou-a no lombo espumarento. As três pessoas agarraram-se freneticamente aos buritis. mas um tronco de árvore que derivava chocou-se com a embarcação, que agora corria na garupa da correnteza. Quelemente viu a velha cair nágua, com o choque, mas não pôde nem mover-se: procurava, por milhares de cálculos, escapar à cachoeira. cujo rugido se aproximava de uma maneira desesperadora. Investigava a treva, tentado enxergar os barrancos altos daquele ponto do curso. Esforçava-se para identificar o local e atinar com um meio capaz de os salvar daquele estrugir encapetado da cachoeira. A velha debatia-se, presa ainda à jangada por uma mão, despendendo esforços impossíveis por subir novamente para os buritis. Nisso Quelemente notou que a jangada já não suportava três pessoas. O choque com o tronco de árvore havia arrebentado os atilhos e metade dos buritis havia-se desligado e rodado. A velha não podia subir. sob pena de irem todos para o fundo. Ali já não cabia ninguém. Era o rio que reclamava uma vítima. As águas roncavam e cambalhotavam espumejantes na noite escura que cegava os olhos, varrida de um vento frio e sibilante. A nado, não havia força capaz de romper a correnteza nesse ponto. Mas a velha tentava energicamente trepar novamente para os buritis. arrastando as pernas mortas que as águas metiam por baixo da jangada. Quelemente notou que aquele esforço da velha estava fazendo a embarcação perder a estabilidade. Ela já estava quase abaixo das águas. A velha não podia subir. Não podia. Era a morte que chegava. abraçando Quelemente com o manto líquido das águas sem fim. Tapando a sua respiração, tapando seus ouvidos, seus olhos, enchendo sua boca de água, sufocando-o, sufocando-o, apertando sua garganta. Matando seu filho que era perrengue e estava grudado nele. Quelemente segurou-se bem aos buritis e atirou um coice valente na cara aflissurada da velha Nhola. Ela afundou-se para tornar a aparecer, presa ainda à borda da jangada, os olhos fuzilando numa expressão de incompreensão e terror espantado. Novo coice melhor aplicado e um tufo d' água espirrou no escuro. Aquele último coice, entretanto, desequilibrou a jangada, que fugiu das mãos de Quelemente, desamparando-o no meio do rio. Ao cair, porém, sem querer, ele sentiu sob seus pés o chão seguro. Ali era um lugar raso. Devia ser a campina adjacente ao barranco. Era raso. O diabo da correnteza, porém, o arrastava, de tão forte. A mãe, se tivesse pernas vivas, certamente teria tomado pé, estaria salva. Suas pernas, entretanto, eram uns molambos sem governo, um estorvo. Ah! se ele soubesse que aquilo era raso, não teria dado dois coices na cara da velha, não teria matado uma entrevada que queria subir para a jangada num lugar raso, onde ninguém se afogaria se a jangada afundasse... Mas quem sabe ela estava ali, com as unhas metidas no chão, as pernas escorrendo ao longo do rio? Quem sabe ela não tinha rodado? Não tinha caído na cachoeira. Cujo ronco escurecia mais ainda atreva? — Mãe. Ô. mãe! — Mãe, a senhora tá aí? E as águas escachoantes, rugindo, espumejando. refletindo cinicamente a treva do céu parado, do céu defunto, do céu entrevado, estuporado. — Mãe, ô, mãe! Eu num sabia que era raso. — Espera aí, mãe! O barulho do rio ora crescia, ora morria e Quelemente foi-se metendo por ele a dentro. A água barrenta e furiosa tinha vozes de pesadelo, resmungo de fantasmas, timbres de mãe ninando filhos doentes, uivos ásperos de cães danados. Abriam-se estranhas gargantas resfolegantes nos torvelinhos malucos e as espumas de noivado ficavam boiando por cima, como flores sobre túmulos. — Mãe! — lá se foi Quelemente, gritando dentro da noite, até que a água lhe encheu a boca aberta, lhe tapou o nariz, lhe encheu os olhos arregalados, lhe entupiu os ouvidos abertos à voz da mãe que não respondia, e foi deixá-lo, empazinado, nalgum perau distante, abaixo da cachoeira.

142. CAIO FERNANDO ABREU. LINDA, UMA HISTÓRIA HORRÍVEL. PARA SÉRGIO KEUCHGUERIAN. "Você nunca ouviu falar em maldição nunca viu um milagre nunca chorou sozinha num banheiro sujo nem nunca quis ver a face de Deus." (Cazuza: "Só as mães são felizes"). Só depois de apertar muitas vezes a campainha foi que escutou o rumor de passos descendo a escada. E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro — agora, que cor? — e ouviu o latido desafinado de um cão, uma tosse noturna, ruídos secos, então sentiu a luz acesa do interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre sua cara de barba por fazer, três dias. Meteu as mãos nos bolsos, procurou um cigarro ou um chaveiro para rodar entre os dedos, antes que se abrisse a janelinha no alto da porta. Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os olhos para vê-lo melhor. Mediram-se um pouco assim — de fora, de dentro da casa —, até ela afastar o rosto, sem nenhuma surpresa. Estava mais velha, viu ao entrar. E mais amarga, percebeu depois. — Tu não avisou que vinha — ela resmungou no seu velho jeito azedo, que antigamente ele não compreendia. Mas agora, tantos anos depois, aprendera a traduzir como que-saudade, seja-benvindo, que-bom-ver-você ou qualquer coisa assim. Mais carinhosa, embora inábil. Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito, contatos, afagos. Afundou tonto, rápido, naquele cheiro conhecido — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, creme de beleza e carne velha, sozinha há anos. Segurando-o pelas duas orelhas, como de costume, ela o beijou na testa. Depois foi puxando-o pela mão, para dentro. — A senhora não tem telefone — explicou. — Resolvi fazer uma surpresa. Acendendo luzes, certa ânsia, ela o puxava cada vez mais para dentro. Mal podia rever a escada, a estante, a cristaleira, os porta-retratos empoeirados. A cadela se enrolou nas pernas dele, ganindo baixinho. — Sai, Linda — ela gritou, ameaçando um pontapé. A cadela pulou de lado, ela riu. — Só ameaço, ela respeita. Coitada, quase cega. Uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir, comer e cagar, esperando a morte. — Que idade ela tem? — ele perguntou. Que esse era o melhor jeito de chegar ao fundo: pelos caminhos transversos, pelas perguntas banais. Por trás do jeito azedo, das flores roxas do robe. — Sei lá, uns quinze. — A voz tão rouca. — Diz—que idade de cachorro a gente multiplica por sete. Ele forçou um pouco a cabeça, esse era o jeito: — Uns noventa e cinco, então. Ela colocou a mala dele em cima de uma cadeira da sala. Depois apertou novamente os olhos. E espiou em volta, como se acabasse de acordar: — O quê? — A Linda. Se fosse gente, estaria com noventa e cinco anos. Ela riu: — Mais velha que eu, imagina. Velha que dá medo. — Fechou o robe sobre o peito, apertou a gola com as mãos. Cheias de manchas escuras, ele viu, como sardas (ce-ra-to-se, repetiu mentalmente), pintura alguma nas unhas rentes dos dedos amarelos de cigarros. — Quer um café? — Se não der trabalho — ele sabia que esse continuava sendo o jeito exato, enquanto ela adentrava soberana pela cozinha, seu reino. Mãos nos bolsos, olhou em volta, encostado na porta. As costas dela, tão curvas. Parecia mais lenta, embora guardasse o mesmo jeito antigo de abrir e fechar sem parar as portas dos armários, dispor xícaras, colheres, guardanapos, fazendo muito ruído e forçando-o a sentar — enquanto ele via. Manchadas de gordura, as paredes da cozinha. A pequena janela basculante, vidro quebrado. No furo do vidro, ela colocara uma folha de jornal. País mergulha no caos, na doença e na miséria — ele leu. E sentou na cadeira de plástico rasgado. — Tá fresquinho — ela serviu o café. — Agora só consigo dormir depois de tomar café. —A senhora não devia. Café tira o sono. Ela sacudiu os ombros: — Dane-se. Comigo sempre foi tudo ao contrário. A xícara amarela tinha uma nódoa escura no fundo, bordas lascadas. Ele mexeu o café, sem vontade. De repente, então, enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis fugir. Como se volta a fita num videocassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a ruazinha de casas quase todas brancas. Até algum táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe do Passo da Guanxuma, até a outra vida de onde vinha. Anônima, sem laços nem passado. Para sempre, para nunca mais. Até a morte de qualquer um dos dois, teve medo. E desejou. Alívio, vergonha. — Vá dormir — pediu. — É muito tarde. Eu não devia ter vindo assim, sem avisar. Mas a senhora não tem telefone. Ela sentou à frente dele, o robe abriu-se. Por entre as flores roxas, ele viu as inúmeras linhas da pele, papel de seda amassado. Ela apertou os olhos, espiando a cara dele enquanto tomava um gole de café. — Que que foi? — perguntou, lenta. E esse era o tom que indicava a abertura para um novo jeito. Mas ele tossiu, baixou os olhos para a estamparia de losangos da toalha. Vermelho, verde. Plástico frio, velhos morangos. — Nada, mãe. Não foi nada. Deu saudade, só isso. De repente, me deu tanta saudade. Da senhora, de tudo. Ela tirou um maço de cigarros do bolso do robe: — Me dá o fogo. Estendeu o isqueiro. Ela tocou na mão dele, toque áspero das mãos manchadas de ceratose nas mãos muito brancas dele. Carícia torta: — Bonito, o isqueiro. — É francês. — Que é isso que tem dentro? — Sei lá, fluido. Essa coisa que os isqueiros têm. Só que este é transparente, nos outros a gente não vê. Ela ergueu o isqueiro contra a luz. Reflexos de ouro, o líquido verde brilhou. A cadela entrou por baixo da mesa, ganindo baixinho. Ela pareceu não notar, encantada com o por trás do verde, líquido dourado. — Parece o mar — sorriu. Bateu o cigarro na borda da xícara, estendeu o isqueiro de volta para ele. — Então quer dizer que o senhor veio me visitar? Muito bem.  Ele fechou o isqueiro na palma da mão. Quente da mão manchada dela. — Vim, mãe. Deu saudade. Riso rouco: — Saudade? Sabe que a Elzinha não aparece aqui faz mais de mês? Eu podia morrer aqui dentro. Sozinha. Deus me livre. Ela nem ia ficar sabendo, só se fosse pelo jornal. Se desse no jornal. Quem se importa com um caco velho? Ele acendeu um cigarro. Tossiu forte na primeira tragada: — Também moro só, mãe. Se morresse, ninguém ia ficar sabendo. E não ia dar no jornal. Ela tragou fundo. Soltou a fumaça, círculos. Mas não acompanhou com os olhos. Na ponta da unha, tirava uma lasca da borda da xícara. — É sina — disse. — Tua avó morreu só. Teu avô morreu só. Teu pai morreu só, lembra? Naquele fim de semana que eu fui pra praia. Ele tinha horror do mar. Uma coisa tão grande que mete medo na gente, ele dizia. Jogou longe a bolinha com a pintura da xícara. — E nem um neto, morreu sem um neto nem nada. O que mais ele queria. — Já faz tempo, mãe. Esquece — ele endireitou as costas, doíam. Não, decidiu: naquele poço, não. O cheiro, uma semana, vizinhos telefonando. Passou as pontas dos dedos pelos losangos desbotados da toalha. — Não sei como a senhora consegue continuar morando aqui sozinha. Esta casa é grande demais pra uma pessoa só. Por que não vai morar com a Elzinha? Ela fingiu cuspir de lado, meio cínica. Aquele cinismo de telenovela não combinava com o robe desbotado de flores roxas, cabelos quase inteiramente brancos, mãos de manchas marrons segurando o cigarro quase no fim. — E agüentar o Pedro, com aquela mania de grandeza? Pelo amor de Deus, só se eu fosse sei lá. Iam ter que me esconder no dia das visitas, Deus me livre. A velha, a louca, a bruxa. A megera socada no quartinho de empregada, feito uma negra. — Bateu o cigarro. — E como se não bastasse, tu acha que iam me deixar levar a Linda junto? Embaixo da mesa, ao ouvir o próprio nome a cadela ganiu mais forte. — Também não é assim, não é, mãe? A Elzinha tem a faculdade. E o Pedro no fundo é boa gente. Só que. Ela remexeu nos bolsos do robe. Tirou uns óculos de hastes remendadas com esparadrapo, lente rachada. — Deixa eu te ver melhor — pediu. Ajeitou os óculos. Ele baixou os olhos. No silêncio, ficou ouvindo o tic-tac do relógio da sala. Uma barata miúda riscou o branco dos azulejos atrás dela. — Tu estás mais magro — ela observou. Parecia preocupada. — Muito mais magro. — É o cabelo — ele disse. Passou a mão pela cabeça quase raspada. E a barba, três dias. — Perdeu cabelo, meu filho. — É a idade. Quase quarenta anos. — Apagou o cigarro. Tossiu. — E essa tosse de cachorro? — Cigarro, mãe. Poluição. Levantou os olhos, pela primeira vez olhou direto nos olhos dela. Ela também olhava direto nos olhos dele. Verde desmaiado por trás das lentes dos óculos, subitamente muito atentos. Ele pensou: é agora, nesta contramão(*). Quase falou. Mas ela piscou primeiro. Desviou os olhos para baixo da mesa, segurou com cuidado a cadela sarnenta e a trouxe até o colo. — Mas vai tudo bem? — Tudo, mãe. — Trabalho? Ele fez que sim. Ela acariciou as orelhas sem pêlo da cadela. Depois olhou outra vez direto para ele: — Saúde? Dizque tem umas doenças novas aí, vi na tevê. Umas pestes. — Graças a Deus — ele cortou. Acendeu outro cigarro, as mãos tremiam um pouco. — E a dona Alzira, firme? A ponta apagada do cigarro entre os dedos amarelos, ela estava recostada na cadeira. Olhos apertados, como se visse por trás dele. No tempo, não no espaço. A cadela apoiara a cabeça na mesa, os olhos branquicentos fechados. Ela suspirou, sacudiu os ombros: — Coitada. Mais esclerosada do que eu. — A senhora não está esclerosada. — Tu que pensa. Tem vezes que me pego falando sozinha pelos cantos. Outro dia, sabe quem eu chamava o dia inteiro? — Esperou um pouco, ele não disse nada. — A Cândida, lembra dela? Ô negrinha boa, aquela. Até parecia branca. Fiquei chamando, chamando o dia inteiro. Cândida, ô Cândida. Onde é que tu te meteu, criatura? Aí me dei conta.— A Cândida morreu, mãe. Ela tornou a passar a mão pela cabeça da cadela. Mais devagar, agora. Fechou os olhos, como se as duas dormissem.— Pois é, esfaqueada. Que nem um porco, lembra? — Abriu os olhos. — Quer comer alguma coisa, meu filho? — Comi no avião. Ela fingiu cuspir de lado, outra vez. — Cruz credo. Comida congelada, Deus me livre. Parece plástico. Lembra daquela vez que eu fui? — Ele sacudiu a cabeça, ela não notou. Olhava para cima, para a fumaça do cigarro perdida contra o teto manchado de umidade, de mofo, de tempo, de solidão. — Fui toda chique, parecia uma granfa. De avião e tudo, uma madame. Frasqueira, raiban. Contando, ninguém acredita. — Molhou um pedaço de pão no café frio, colocou-o na boca quase sem dentes da cadela. Ela engoliu de um golpe. — Sabe que eu gostei mais do avião do que da cidade? Coisa de louco, aquela barulheira. Nem parece coisa de gente, como é que tu agüenta? — A gente acostuma, mãe. Acaba gostando. — E o Beto? — ela perguntou de repente. E foi baixando os olhos até encaixarem, outra vez, direto nos olhos dele. Se eu me debruçasse? — ele pensou. Se, então, assim. Mas olhou para os azulejos na parede atrás dela. A barata tinha desaparecido. — Tá lá, mãe. Vivendo a vida dele. Ela voltou a olhar o teto: — Tão atencioso, o Beto. Me levou pra jantar, abriu a porta do carro pra mim. Parecia coisa de cinema. Puxou a cadeira do restaurante pra eu sentar. Nunca ninguém tinha feito isso. — Apertou os olhos. — Como era mesmo o nome do restaurante? Um nome de gringo. — Casserole, mãe. La Casserole. — Quase sorriu, ele tinha uns olhos de menino, lembrou. — Foi boa aquela noite, não foi? — Foi — ela concordou. — Tão boa, parecia filme. — Estendeu a mão por sobre a mesa, quase tocou na mão dele. Ele abriu os dedos, certa ânsia. Saudade, saudade. Então ela recuou, afundou os dedos na cabeça pelada da cadela. — O Beto gostou da senhora. Gostou tanto — ele fechou os dedos. Assim fechados, passou—os pelos pêlos do próprio braço. Umas memórias, distância. — Ele disse que a senhora era muito chique. — Chique, eu? Uma velha grossa, esclerosada. — Ela riu, vaidosa, mão manchada no cabelo branco. Suspirou. — Tão bonito. Um moço tão fino, aquilo é que é moço fino. Eu falei pra Elzinha, bem na cara do Pedro. Pra ele tomar como indireta mesmo, eu disse bem alto, bem assim. Quem não tem berço, a gente vê logo na cara. Não adianta ostentar, tá escrito. Que nem o Beto, aquela calça rasgadinha. Quem ia dizer que era um moço assim tão fino, de tênis? — Voltou a olhar dentro dos olhos dele. — Isso é que é amigo, meu filho. Até meio parecido contigo, eu fiquei pensando. Parecem irmãos. Mesma altura, mesmo jeito, mesmo. — A gente não se vê faz algum tempo, mãe. Ela debruçou um pouco, apertando a cabeça da cadela contra a mesa. Linda abriu os olhos esbranquiçados. Embora cega, também parecia olhar para ele. Ficaram se olhando assim. Um tempo quase insuportável, entre a fumaça dos cigarros, cinzeiros cheios, xícaras vazias — os três, ele, a mãe e Linda. — E por quê? — Mãe — ele começou. A voz tremia. — Mãe, é tão difícil — repetiu. E não disse mais nada. Foi então que ela levantou. De repente, jogando a cadela ao chão como um pano sujo. Começou a recolher xícaras, colheres, cinzeiros, jogando tudo dentro da pia. Depois de amontoar a louça, derramar o detergente e abrir as torneiras, andando de um lado para outro enquanto ele ficava ali sentado, olhando para ela, tão curva, um pouco mais velha, cabelos quase inteiramente brancos, voz ainda mais rouca, dedos cada vez mais amarelados pelo fumo, guardou os óculos no bolso do robe, fechou a gola, olhou para ele e — como quem quer mudar de assunto, e esse também era um sinal para um outro jeito que, desta vez sim, seria o certo — disse: — Teu quarto continua igual, lá em cima. Vou dormir que amanhã cedo tem feira. Tem lençol limpo no armário do banheiro. Então fez uma coisa que não faria, antigamente. Segurou-o pelas duas orelhas para beijá-lo não na testa, mas nas duas faces. Quase demorada. Aquele cheiro — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, cansaço, velhice. Mais qualquer coisa úmida que parecia piedade, fadiga de ver. Ou amor. Uma espécie de amor. — Amanhã a gente fala melhor, mãe. Tem tempo, dorme bem. Debruçado na mesa, acendeu mais um cigarro enquanto ouvia os passos dela subindo pesados pela escada até o andar superior. Quando ouviu a porta do quarto bater, levantou e saiu da cozinha. Deu alguns passos tontos pela sala. A mesa enorme, madeira escura. Oito lugares, todos vazios. Parou em frente ao retrato do avô — rosto levemente inclinado, olhos verdes aguados que eram os mesmos da mãe e também os dele, heranças. No meio do campo, pensou, morreu só com um revólver e sua sina. Levou a mão até o bolso interno do casaco, tirou a pequena garrafa estrangeira e bebeu. Quando a afastou, gotas de uísque rolaram pelos cantos da boca, pescoço, camisa, até o chão. A cadela lambeu o tapete gasto, olhos quase cegos, língua tateando para encontrar o líquido. Ele abriu os olhos. Como depois de uma vertigem, percebeu-se a olhar fixamente para o grande espelho da sala. No fundo do espelho na parede da sala de uma casa antiga, numa cidade provinciana, localizou a sombra de um homem magro demais, cabelos quase raspados, olhos assustados feito os de uma criança. Colocou a garrafa sobre a mesa, tirou o casaco. Suava muito. Jogou o casaco na guarda de uma cadeira. E começou a desabotoar a camisa manchada de suor e uísque. Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpura, da cor antiga do tapete na escada — agora, que cor? —, espalhadas embaixo dos pêlos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o chão. Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da cadela quase cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pêlos. Crespos, escuros, macios. — Linda — sussurrou. — Linda, você é tão linda, Linda.

143. CAIO FERNANDO ABREU. AQUELES DOIS. HISTÓRIA DE APARENTE MEDIOCRIDADE E REPRESSÃO. PARA ROFRAN FERNANDES. A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, um deles diria que a repartição era como "um deserto de almas". O outro concordou sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. E longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto, vezenquando salgadinhos no fim do expediente, champanha nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra — talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou. Não chegaram a usar palavras como "especial", "diferente" ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos. Mas as diferenças entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão interminável que terminara um dia, e um curso frustrado de Arquitetura. Talvez por isso, desenhava. Só rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam. Passaram no mesmo concurso para a mesma firma, mas não se encontraram durante os testes. Foram apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um. Disseram prazer, Raul, prazer, Saul, depois como é mesmo o seu nome? sorrindo divertidos da coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a gente, afinal, nunca sabe onde está pisando. Tentaram afastar-se quase imediatamente, deliberando limitarem-se a um cotidiano oi, tudo bem ou, no máximo, às sextas, um cordial bom fim de semana, então. Mas desde o princípio alguma coisa — fados, astros, sinas, quem saberá? conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois. Suas mesas ficavam lado a lado. Nove horas diárias, com intervalo de uma para o almoço. E perdidos no meio daquilo que Raul (ou teria sido Saul?) chamaria, meses depois, exatamente de "um deserto de almas", para não sentirem tanto frio, tanta sede, ou simplesmente por serem humanos, sem querer justificá-los — ou, ao contrário, justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem? Pois foi o que aconteceu. Tão lentamente que mal perceberam. Eram dois moços sozinhos. Raul tinha vindo do norte, Saul tinha vindo do sul. Naquela cidade, todos vinham do norte, do sul, do centro, do leste — e com isso quero dizer que esse detalhe não os tornaria especialmente diferentes. Mas no deserto em volta, todos os outros tinham referenciais, uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não tinham ninguém naquela cidade — de certa forma, também em nenhuma outra —, a não ser a si próprios. Diria também que não tinham nada, mas não seria inteiramente verdadeiro. Além do violão, Raul tinha um telefone alugado, um toca-discos com rádio e um sabiá na gaiola, chamado Carlos Gardel. Saul, uma televisão colorida com imagem fantasma, cadernos de desenho, vidros de tinta nanquim e um livro com reproduções de Van Gogh. Na parede do quarto de pensão, uma outra reprodução de Van Gogh: aquele quarto com a cadeira de palhinha parecendo torta, a cama estreita, as tábuas do assoalho, colocado na parede em frente à cama. Deitado, Saul tinha às vezes a impressão de que o quadro era um espelho refletindo, quase fotograficamente, o próprio quarto, ausente apenas ele mesmo. Quase sempre, era nessas ocasiões que desenhava. Eram dois moços bonitos também, todos achavam. As mulheres da repartição, casadas, solteiras, ficaram nervosas quando eles surgiram, tão altos e altivos, comentou, olhos arregalados, uma das secretárias. Ao contrário dos outros homens, alguns até mais jovens, nenhum tinha barriga ou aquela postura desalentada de quem carimba ou datilografa papéis oito horas por dia. Moreno de barba forte azulando o rosto, Raul era um pouco mais definido, com sua voz de baixo profundo, tão adequada aos boleros amargos que gostava de cantar. Tinham a mesma altura, o mesmo porte, mas Saul parecia um pouco menor, mais frágil, talvez pelos cabelos claros, cheios de caracóis miúdos, olhos assustadiços, azul desmaiado. Eram bonitos juntos, diziam as moças. Um doce de olhar. Sem terem exatamente consciência disso, quando juntos os dois aprumavam ainda mais o porte e, por assim dizer, quase cintilavam, o bonito de dentro de um estimulando o bonito de fora do outro, e vice-versa. Como se houvesse entre aqueles dois, uma estranha e secreta harmonia. Cruzavam-se, silenciosos mas cordiais, junto à garrafa térmica do cafezinho, comentando o tempo ou a chatice do trabalho, depois voltavam às suas mesas. Muito de vez em quando, um pedia um cigarro ao outro, e quase sempre trocavam frases como tanta vontade de parar, mas nunca tentei, ou já tentei tanto, agora desisti. Durou tempo, aquilo. E teria durado muito mais, porque serem assim fechados, quase remotos, era um jeito que traziam de longe. Do norte, do sul. Até um dia em que Saul chegou atrasado e, respondendo a um vago que que houve, contou que tinha ficado até tarde assistindo a um velho filme na televisão. Por educação, ou cumprindo um ritual, ou apenas para que o outro não se sentisse mal chegando quase às onze, apressado, barba por fazer, Raul deteve os dedos sobre o teclado da máquina e perguntoü: que filme? Infâmia, Saul contou baixo, Audrey Hepburn, Shirley MacLayne, um filme muito antigo, ninguém conhece. Raul olhou-o devagar, e mais atento, como ninguém conhece? eu conheço e gosto muito. Abalado, convidou Saul para um café e, no que restava daquela manhã muito fria de junho, o prédio feio mais que nunca parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica, falaram sem parar sobre o filme. Outros filmes viriam, nos dias seguintes, e tão naturalmente como se de alguma forma fosse inevitável, também vieram histórias pessoais, passados, alguns sonhos, pequenas esperança e sobretudo queixas. Daquela firma, daquela vida, daquele nó, confessaram uma tarde cinza de sexta, apertado no fundo do peito. Durante aquele fim de semana obscuramente desejaram, pela primeira vez, um em sua quitinete, outro na pensão, que o sábado e o domingo caminhassem depressa para dobrar a curva da meia-noite e novamente desaguar na manhã de segunda-feira quando, outra vez, se encontrariam para: um café. Assim foi, e contaram um que tinha bebido além da conta, outro que dormira quase o tempo todo. De muitas coisas falaram aqueles dois nessa manhã, menos da falta que sequer sabiam claramente ter sentido. Atentas, as moças em volta providenciavam esticadas aos bares depois do expediente, gafieiras, discotecas, festinhas na casa de uma, na casa de outra. A princípio esquivos, acabaram cedendo, mas quase sempre enfiavam-se pelos cantos e sacadas para contar suas histórias intermináveis. Uma noite, Raul pegou o violão e cantou Tú Me Acostumbraste. Nessa mesma festa, Saul bebeu demais e vomitou no banheiro. No caminho até os táxis separados, Raul falou pela primeira vez no casamento desfeito. Passo incerto, Saul contou do noivado antigo. E concordaram, bêbados, que estavam ambos cansados de todas as mulheres do mundo, suas tramas complicadas, suas exigências mesquinhas. Que gostavam de estar assim, agora, sós, donos de suas próprias vidas. Embora, isso não disseram, não soubessem o que fazer com elas. Dia seguinte, de ressaca, Saul não foi trabalhar nem telefonou. Inquieto, Raul vagou o dia inteiro pelos corredores subitamente desertos, gelados, cantando baixinho Tú Me Acostumbraste, entre inúmeros cafés e meio maço de cigarros a mais que o habitual. Os fins de semana tornaram-se tão longos que um dia, no meio de um papo qualquer, Raul deu a Saul o número de seu telefone, alguma coisa que você precisar, se ficar doente, a gente nunca sabe. Domingo depois do almoço, Saul telefonou só para saber o que o outro estava fazendo, e visitou-o, e jantaram juntos a comidinha mineira que a empregada deixara pronta sábado. Foi dessa vez que, ácidos e unidos, falaram no tal deserto, nas tais almas. Há quase seis meses se conheciam. Saul deu-se bem com Carlos Gardel, que ensaiou um canto tímido ao cair da noite. Mas quem cantou foi Raul: Perfídia, La Barca e, a pedido de Saul, outra vez, duas vezes, Tú Me Acostumbraste. Saul gostava principalmente daquele pedacinho assim sutil llegaste a mí como una tentación llenando de inquietud mi corazón. Jogaram algumas partidas de buraco e, por volta das nove, Saul se foi. Na segunda, não trocaram uma palavra sobre o dia anterior. Mas falaram mais que nunca, e muitas vezes foram ao café. As moças em volta espiavam, às vezes cochichando sem que eles percebessem. Nessa semana, pela primeira vez almoçaram juntos na pensão de Saul, que quis subir ao quarto para mostrar os desenhos, visitas proibidas à noite, mas faltavam cinco para as duas e o relógio de ponto era implacável. Saíam e voltavam juntos, desde então, geralmente muito alegres. Pouco tempo depois, com pretexto de assistir a Vagas Estrelas da Ursa na televisão de Saul, Raul entrou escondido na pensão, uma garrafa de conhaque no bolso interno do paletó. Sentados no chão, costas apoiadas na cama estreita, quase não prestaram atenção no filme. Não paravam de falar. Cantarolando Io Che Non Vivo, Raul viu os desenhos, olhando longamente a reprodução de Van Gogh, depois perguntou como Saul conseguia viver naquele quartinho tão pequeno. Parecia sinceramente preocupado. Não é triste? perguntou. Saul sorriu forte: a gente acostuma. Aos domingos, agora, Saul sempre telefonava. E vinha. Almoçavam ou jantavam, bebiam, fumavam, falavam o tempo todo. Enquanto Raul cantava — vezenquando El Día Que Me Quieras, vezenquando Noche de Ronda —, Saul fazia carinhos lentos na cabecinha de Carlos Gardel, pousado no seu dedo indicador. Às vezes olhavam-se. E sempre sorriam. Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. As moças não falaram com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares que os dois não saberiam compreender, se percebessem. Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas. Quando faltavam dez minutos para as seis, saíram juntos, altos e altivos, para assistir ao último filme de Jane Fonda. Quando começava a primavera, Saul fez aniversário. Porque achava seu amigo muito solitário, ou por outra razão assim, Raul deu a ele a gaiola com Carlos Gardel. No começo do verão, foi a vez de Raul fazer aniversário. E porque estava sem dinheiro, porque seu amigo não tinha nada nas paredes da quitinete, Saul deu a ele a reprodução de Van Gogh. Mas entre esses dois aniversários, aconteceu alguma coisa. No norte, quando começava dezembro, a mãe de Raul morreu e ele precisou passar uma semana fora. Desorientado, Saul vagava pelos corredores da firma esperando um telefonema que não vinha, tentando em vão concentrar-se nos despachos, processos, protocolos. Á noite, em seu quarto, ligava a televisão gastando tempo em novelas vadias ou desenhando olhos cada vez mais enormes, enquanto acariciava Carlos Gardel. Bebeu bastante, nessa semana. E teve um sonho: caminhava entre as pessoas da repartição, todas de preto, acusadoras. À exceção de Raul, todo de branco, abrindo os braços para ele. Abraçados fortemente, e tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro. Acordou pensando mas ele é que devia estar de luto. Raul voltou sem luto. Numa sexta de tardezinha, telefonou para a repartição pedindo a Saul que fosse vê-lo. A voz de baixo profundo parecia ainda mais baixa, mais profunda. Saul foi. Raul tinha deixado a barba crescer. Estranhamente, ao invés de parecer mais velho ou mais duro, tinha um rosto quase de menino. Beberam muito nessa noite. Raul falou longamente da mãe — eu podia ter sido mais legal com ela, disse, e não cantou. Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem saber ao certo o que fazia, Saul estendeu a mão e, quando percebeu, seus dedos tinham tocado a barba crescida de Raul. Sem tempo para compreenderem, abraçaram-se fortemente. E tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro: o de Raul, flor murcha, gaveta fechada; o de Saul, colônia de barba, talco. Durou muito tempo. A mão de Saul tocava a barba de Raul, que passava os dedos pelos caracóis miúdos do cabelo do outro. Não diziam nada. No silêncio era possível ouvir uma torneira pingando longe. Tanto tempo durou que, quando Saul levou a mão ao cinzeiro, o cigarro era apenas uma longa cinza que ele esmagou sem compreender. Afastaram-se, então. Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra coisa qualquer como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras grandes — ninguém, mundo, sempre — e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados de fumo e álcool. Embora fosse sexta e não precisassem ir à repartição na manhã seguinte, Saul despediu-se. Caminhou durante horas pelas ruas desertas, cheias apenas de gatos e putas. Em casa; acariciou Carlos Gardel até que os dois dormissem. Mas um pouco antes, sem saber por quê, começou a chorar sentindo-se só e pobre e feio e infeliz e confuso e abandonado e bêbado e triste, triste, triste. Pensou em ligar para Raul, mas não tinha fichas e era muito tarde. Depois, chegou o Natal, o Ano-Novo que passaram juntos, recusando convites dos colegas de repartição. Raul deu a Saul uma reprodução do Nascimento de Vênus, que ele colocou na parede exatamente onde estivera o quarto de Van Gogh. Saul deu a Raul um disco chamado Os Grandes Sucessos de Dalva de Oliveira. O que mais ouviram foi Nossas Vidas, prestando atenção no pedacinho que dizia até nossos beijos parecem beijos de quem nunca amou. Foi na noite de trinta e um, aberta a champanhe na quitinete de Raul, que Saul ergueu a taça e brindou à nossa amizade que nunca nunca vai terminar. Beberam até quase cair. Na hora de deitar, trocando a roupa no banheiro, muito bêbado, Saul falou que ia dormir nu. Raul olhou para ele e disse você tem um corpo bonito. Você também, disse Saul, e baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um na cama atrás do guarda-roupa, outro no sofá. Quase a noite inteira, um conseguia ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados. Pela manhã, Saul foi embora sem se despedir para que Raul não percebesse suas fundas olheiras. Quando janeiro começou, quase na época de tirarem férias — e tinham planejado, juntos, quem sabe Parati, Ouro Preto, Porto Seguro — ficaram surpresos naquela manhã em que o chefe de seção os chamou, perto do meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, o chefe foi direto ao assunto. Tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, ouviram expressões como "relação anormal e ostensiva", "desavergonhada aberração", "comportamento doentio", "psicologia deformada", sempre assinadas por Um Atento Guardião da Moral. Saul baixou os olhos desmaiados, mas Raul colocou-se em pé. Parecia muito alto quando, com uma das mãos apoiadas no ombro do amigo e a outra erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes que o chefe, entre coisas como a-reputação-de-nossa-firma, declarasse frio: os senhores estão despedidos. Esvaziaram lentamente cada um a sua gaveta, a sala deserta na hora do almoço, sem se olharem nos olhos. O sol de verão escaldava o tampo de metal das mesas. Raul guardou no grande envelope pardo um par de olhos enormes, sem íris nem pupilas, presente de Saul, que guardou no seu grande envelope pardo, com algumas manchas de café, a letra de Tú Me Acostumbraste, escrita à mão por Raul numa tarde qualquer de agosto. Desceram juntos pelo elevador, em silêncio. Mas quando saíram pela porta daquele prédio grande e antigo, parecido com uma clínica ou uma penitenciária, vistos de cima pelos colegas todos postos na janela, a camisa branca de um, a azul do outro, estavam ainda mais altos e mais altivos. Demoraram alguns minutos na frente do edifício. Depois apanharam o mesmo táxi, Raul abrindo a porta para que Saul entrasse. Ai-ai, alguém gritou da janela. Mas eles não ouviram. O táxi já tinha dobrado a esquina. Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.

144. CARLITO MAIA. A VOLTA POR BAIXO. De dom José Cavaca, humorista inesquecível: "Criminosos brasileiros brilham na Inglaterra, cuja polícia só está preparada para crimes inteligentes". Verdade: somos especialistas em crimes burros, irreparáveis; tal a grandeza das perdas que acarretam. Sem falar da impunidade. Crimes contra a Pátria, contra o povo, contra a Humanidade. Como no tempo da Inventona de 1° de abril de 64, quando a ditadura militar deitou e rolou, sem que os criminosos fossem punidos e, em muitos casos, sequer identificados. Caso de Sete Quedas, hoje só uma saudade para os que conheceram aquela maravilha da Natureza, que foi por água abaixo, literalmente, porque os milicos no poder (e bota poder nisso) assim o quiseram. Resolveram (resolviam tudo) fazer a hidrelétrica de Itaipu, de parceria com os donos do Paraguai, e mandaram alagar tudo. O fim da picada. Em nome do sinistro binômio "segurança & desenvolvimento", que os levou também à loucura das usinas atômicas, feitas só para salvar da falência a indústria nuclear alemã, jogando fora (boa parte na Suíça) bilhões de dólares. Os jovens que me honram com a sua leitura não fazem idéia do que foi aquele tempo, embora estejam sofrendo como todo mundo — as conseqüências do desvario do "Brasil potência". Ou onde vocês acham que teve início a rebordosa em que estamos, heim? E o pior é que a pusilanimidade aqui reinante botou uma pedra em cima da imundície e nunca mais se tocou no assunto. Outro crime monstruoso, e igualmente irreparável: a morte de Henfil. Paradigma da dignidade, da coragem, do patriotismo, Henfil foi assassinado. Hemofílico, como seus irmãos homens, submetia-se a freqüentes (e caríssimas) transfusões de sangue para sobreviver. Numa dessas — em busca da salvação — encontrou foi a morte. Injetaram nele sangue contaminado pela Aids. Também em Chico Mário e Betinho, seus manos. Mas a viúva de Chico Mário acaba de ser reconhecida pela Justiça, que condenou a União e o Estado do Rio pelo seu desaparecimento. E, claro, também pelo de Henfil. Mas o juiz teve uma recaída e não reconheceu o direito de Lúcia Lara, brava e digna companheira de Henrique por mais de dez anos, impedindo-a de fazer jus a indenização pela brutal perda sofrida. A verdade é que Lucinha não cogitou jamais de receber dinheiro em troca da vida de Henfil, o que não o traria de volta. Mesmo que — num acesso de loucura, dando uma de amoral nato — exigisse a execução dos responsáveis pelo crime nefando, não teríamos de novo o exemplar cidadão. Crime irreparável e, portanto, impunível. Mas Henfil acaba de dar a volta por baixo, se deu! Henfil vive! "Se não houver frutos/ valeu a beleza das flores/ Se não houver flores/ valeu a sombra das folhas/ E, se não houver folhas, valeu a intenção da semente". Suas lições não serão esquecidas jamais. Valeu, Henfil!

145. CARLOS COQUEIJO. JORGE OXOSSI AMADO. No alto mastro da República Independente do Rio Vermelho tremula, invicta, a bandeira de Iemanjá, a dos cinco nomes. No peji, os deuses que vieram da África começam a se inquietar. Exigem o tam tam dos grandes atabaques, porque o dia é hoje. O Pai Branco de não sei quantos capitães de areia, saveiristas, gente da beira do cais, capoeiristas, amigos de Rosa Palmeirão, de Besouro irmão, vai sair do seu terreiro para batizar novos filhos que ele deu à Grande Cidade, onde vão morar, correr, gargalhar, roubar, sofrer, amar no areal do cais, onde as negrinhas são derrubadas nas noites estreladas e perdem a sua virgindade sem muitos ais de amor. Lá vai ele, o Pai, que é filho de Inaê e habita as terras de Aioká, onde acena a bandeira de Janaína, a que é Maria. Vai carregado de alegria e com ele vão todos os que saíram dos seus livros, como os Orixás que nasceram do ventre de Iemanjá, numa noite de temporal terrível. E desde então Inaê nunca mais teve sossego, seu filho Orungan perseguindo-a sem piedade. Vão para a Cidade Alta, onde vivem os que sorriem a boa vida e se divertem às custas de Pedro Bala, do Sem Pernas, de João Grande, do Gato, e nem se lembram que a bexiga roeu Almiro, mesmo com as rezas do Querido de Deus e com a bondade do Padre José Pedro. Eles não sabem porque Volta Seca quer retomar ao cangaço para o seu "padrim", seu herói que vinga os meninos das malvadezas da Polícia tirando a vida e o couro dos macacos do sertão, nem conhecem as estórias que contam a valentia de João de Adão e enchem as noites de lua dos capitães de Areia, que são os donos da Cidade. O cortejo já engrossa, o chefe branco vai na frente, batendo pernas com eles por essa Cidade que é só deles. Mas ainda há muita gente para aumentar as fileiras desse povo sofredor, que ama nas noites da Bahia como Iemanjá ama os seus filhos do mar. É preciso não esquecer Jubiabá, o pai preto, que tem o poder nas mãos, todo o mistério das rezas, dos filtros de amor, das benzeduras que curam tudo. Com ele irão Antônio Balduino, sem as suas luvas de box, que nessa hora ele não é mais escravo do empresário Luigi, e Zé Camarão, que lhe ensinou os segredos dos rabos de arraia e do violão. Augusta das Rendas diz que está vendo lobisomem mas vai sem medo. E Felipe o Belo, o Gordo sempre rezando, o Sem Dentes, o Anão Viriato, saem todos da "Lanterna dos Afogados", sob o comando do Capitão de Longo Curso Vasco Moscoso de Aragão, e se unem ao grupo. Do cais partem os que não podem faltar à festa do Grande Pai que os gerou na Cidade da Bahia. Guma e Lívia estão de mãos dadas, tanto amor enche seus corações, mas ele vai escrabriado, porque seu peito dói quando vê Rufino, e sente na carne o pecado daquela noite em que Lívia à morte no quarto, ele no chão da sala se perdia na carne de Esmeralda. Rosa Palmeirão deixou suas armas no cais, não leva a navalha no cós da saia nem o punhal no seio, porque hoje é dia de festa, não de lutar pelos seus direitos e de seus irmãos perseguidos. Vêm também o invencível Besouro, o velho Francisco, o misterioso Leôncio, que chegou só para a grande data, o Dr. Rodrigo, com sua maleta de médico, seu Manoel e Maria Clara cantando aquelas cantigas que embalam o saveiro nas viagens disparadas. Todos vieram do "Farol das Estrelas" onde combinaram encontro, tomaram um trago e quem pagou foi Quincas Berro d'Água, para quem "o impossível não há". Estão todos com o olho da piedade bem aberto, que hoje é dia de festa no peji de Dmeval, na rua da Ajuda, novos irmãos vão nascer nas estórias de d. Flor e suas complicações com os dois maridos. Vão todos se misturar no mundo mágico que Oxossi do Rio Vermelho, o de corpo fechado pelas mandingas de Jubiabá, criou para eles.

146. CARLOS HEITOR CONY. A sede e a água. O ditado é antigo. Recebeu a confirmação, o veredicto dos séculos. Nunca se deve dizer: "Desta água não beberei", na vida de cada um de nós, no dia a dia de nossos desafios e deslumbramentos, o bom senso e a experiência, a nossa e a alheia, recomendam cuidado a respeito da água que em dado momento desdenhamos, achando que nunca beberemos dela. Nunca se sabe o dia de amanhã. O deputado José Genoíno, presidente do PT, no passado e até recentemente, preferiria morrer de sede, no mais escaldante dos desertos, a aceitar a água de Paulo Maluf, no suculento oásis criado pelo segundo turno das eleições na capital paulista. Em princípio, não se devia estranhar a opção que o partido dos trabalhadores será obrigado a engolir. Faz parte do jogo político formar e aceitar alianças pontuais. Acontece que entre o PT e Maluf o fosso não é apenas político nem ideológico. É pessoal, visceral, integral. Evidente que Genoíno, Marta Suplicy, todo e qualquer petista de São Paulo e do resto do Brasil, garantirão que o partido não firmará nenhum acordo com Maluf, não lhe dará qualquer compensação em caso de vitória. Afinal, quem ficou sem opção foi o próprio Maluf, que terá de apoiar um ou outro de seus adversários. Se Marta vencer a parada, Maluf terá um argumento poderoso não para pleitear qualquer coisa do governo municipal petista, mas para engrossar a sua crítica com mais autoridade. Dirá que a prefeita traiu o eleitorado, traiu inclusive a Maluf e aos malufistas que nela votaram, esperando um governo bom e decente, e, no entanto, etc etc. E não adiantará a Marta alegar que nada pediu a Maluf. Ela só chegará ao segundo mandato se beber aquela água que jurou nunca beber.

147. CARLOS HEITOR CONY. Lição de humanidade. Vi o documentário sobre o desastre com o Concorde, em Paris, que matou mais de 100 pessoas, em não me lembro mais qual ano. Foi o início do fim do primeiro supersônico disponível na aviação comercial. Pouco depois, os Concordes que sobraram foram retirados de circulação e parece que destinados a museus e exposições. Não foi o custo do aparelho nem o alto preço das passagens para se voar nele que motivaram a sua aposentadoria. Tampouco o desastre em si, uma vez que qualquer homem e qualquer coisa por ele produzida estão disponíveis ao desastre. O que espantou os especialistas foi a insignificância da causa que provocou a catástrofe. Ao rolar na pista para a decolagem, um dos pneus do aparelho foi cortado por uma pequena peça metálica, de 40 centímetros, desprendida de um outro avião que decolara pouco antes. O piloto do Concorde não poderia ver objeto tão pequeno e aparentemente tão inofensivo. A peça fez explodir um dos pneus das rodas que estavam sendo recolhidas. Um pedaço do pneu bateu com violência na asa esquerda, fazendo um furo, pelo qual saiu o combustível, logo inflamado por uma fagulha. Menos de dois minutos após a decolagem, mais de cem mortos, a poucos quilômetros do aeroporto De Gaulle. A desproporção entre a causa e o efeito me horrorizou. As criações mais sólidas do homem, que parecem indestrutíveis, perfeitas, costumam ir para o brejo por motivos banais, como o iceberg que afundou o Titanic. No caso do Concorde, a tecnologia da época era bem mais adiantada. Mas o resultado foi o mesmo. Os dois casos são uma lição de humildade que habitualmente esquecemos não apenas na vida pública, mas na vida pessoal de cada um de nós.

148. CARLOS HEITOR CONY. Não tenho nem pretendo ter procuração das louras para defendê-las das acusações de burrice e cafonice, que estão se avolumando nos últimos tempos contra elas. Leio num jornal que as louras não estão com nada, nem no cinema, na TV, nem na vida em geral. As deusas de alguns anos atrás estão com dificuldade para renovar contrato e já não causam gritos e sussurros por onde passam. Pior: uma caçadora de talentos, dessas que dão dicas para empregos de futuro, recomenda que as pretendentes façam as unhas, usem vestidos comportados, falem só o essencial mas em hipótese alguma sejam louras, nem naturais nem artificiais. "O quê que é isso?" - era o bordão de famoso locutor esportivo do passado, quando via jogadas violentas que mereciam cartão vermelho. É o que me pergunto: "O quê que é isso?" Onde está a lei que pune a discriminação, seja a discriminação que for? Não aceito a teoria de que a onda contra as louras possa ser atribuída ao despeito, à inveja. O furo deve ser mais em cima. O que há de morena burra também não é mole. Quanto à beleza em si, há gosto para tudo. Helena de Tróia, segundo a tradição, é a mulher mais bonita da história e da lenda. Segundo a tradição, era loura, diferenciando-se de outras mulheres do Mediterrâneo que costumam ser morenas. E a mulher mais inteligente que conheci era loura, uma loura até suspeita, parecia artificial, no detestável estilo de "amarelo ovo". Não chegava a ser feia mas não era bonita, embora não merecesse ser jogada fora. Herdei de meu pai um ditado esquisito: "Fugir de gato que faz him e de mulher que sabe latim". Esta loura não sabia latim mas sabia tudo da vida e o pouco que me ensinou foi o bastante. Se não cheguei lá, a culpa não foi dela.

149. CARLOS NASCIMENTO SILVA. DESCONCERTO. — Papai Noel não existe — disse Ninico, baixinho, concentrado no fundo do copo de conhaque Napoleão. Já eram onze horas da noite e os quatro, em volta da pequena mesa de tampo de mármore mal polido, terminavam a quinta rodada, um pouco sonolentos, meio nostálgicos pelo passamento da data, o bar vazio de fregueses, o Joaquim da Maria a cabecear cochilos sobre o alto banco de madeira, por trás do balcão. — O quê que você disse? — assustou-se Feliciano, levantando a cabeça para olhar o amigo — Que Papai Noel não existe? O que você quer dizer com isso? — Ele quer dizer que Papai Noel não existe — confirmou Mariano, tautológico, os olhos vidrados, mirando de esguelha a luz amarelada do poste, no outro lado da rua — Ora, você não sabe que o Ninico adora afirmações controvertidas? Ele sabe muito bem que não pode provar isso. E só provocação. — Não... eu acho mesmo que não existe. Não é polêmica, não, só que ele não existe — confirmou Ninico mansamente, ainda olhando o fundo do copo. — Deixa de bobagem, isso você sabe desde os cinco anos! Feliciano, terra a terra, evitando a armadilha da filosofia barata de Mariano. — Tá bom, se vocês querem passar a noite de Natal dizendo coisas sem sentido, por que não? — Mariano, cansado. — Eu não tenho ninguém me esperando em casa; nem vocês. Só o João. Mas vocês têm que concordar comigo que não se pode provar isso: nem afirmar, nem negar. Não de forma consistente — concluiu exato, taxativo. — Como você coloca, em termos puramente lógicos, é claro que não. Mas você também vai ter que concordar que, nesses termos, o que se pode discutir é muita pouca coisa. Afinal, se você descarta o que não é passível de prova, o que se pode discutir? O que está provado? Mas isso, por definição, não dá margem à opinião, portanto, à discussão — Feliciano, perdendo a paciência com Mariano. — De mais a mais, isso é uma conversa, só isso, uma discordância entre duas pessoas que têm diferentes opiniões. Mariano ia responder à aporia absurda, mas emburrou, e caiu um silêncio incômodo sobre a mesa. Amigos antigos, aquilo não era anormal em sua convivência diária. Cada qual conhecia, demasiadamente bem, o pensamento do outro, havia mais de vinte anos, o que permitia um entendimento rápido entre eles. Os desacordos eram conhecidos, paredes intransponíveis de há muito reconhecidas, respeitadas, ou talvez, apenas toleradas, meras impossibilidades interpessoais: convicções vivenciais, definiria Feliciano. E foi, com surpresa, que os três ouviram João Pedroso dizer: — Não, Ninico, você está errado. Todos vocês estão errados. Não só ele existe como pode ser provado. Quero dizer, eu posso provar, e outros, talvez, também. Ninico tirou os olhos do copo, lentamente, discordante, suspeitoso. Os dois outros olharam o amigo sorrindo, suspicazes. Não era discordância, mas incredulidade ou, talvez, a expectativa de uma brincadeira do João. Mas o rosto do amigo estava sério, vincado. — Ah! Pára com isso, João! Você também? — exclamaram ambos, rindo, com pequenas variações de palavras, mas a mesma significação. João Pedroso olhou cada um dos amigos com o rosto tenso, amargurado, e não se deu ao trabalho de responder a qualquer deles, o pensamento vagueando por um mundo antigo, perdido, passado. — Eu nunca contei isso a vocês. Nunca falei disso a ninguém, aliás. Só de pensar, já me faz sentir mal, como uma nuvem escura de tempestade, um certo mal-estar, algo maligno. O ambiente da mesa mudara. A descontração da conversa se fora, deixando uma tensão progressiva nos corpos, no ar. A própria iluminação no bar, na rua, mudara, como que enfraquecida por uma queda de voltagem tão comum naquela cidadezinha. Ninico contraiu os músculos dos ombros, os intercostais, sem se dar conta. Os demais, mexeram-se nas cadeiras, incomodados, sem saber com o quê. — Eu devia ter uns sete anos, por aí, e o colégio já se tinha encarregado de tirar algumas ilusões que minha mãe alimentara por toda a meninice. Esta não foi, certamente — disse João Pedroso com o ar sonhador de quem relembra a primeira infância — a última delas. Ele já não se lembrava mais das circunstâncias exatas, das causas ou do motivo que o levara a fazer o comentário com a mãe, mostrando a sabedoria que adquirira longe do ninho que, afinal, o enganara com aquela mentirinha. — Eu estava me mostrando, para minha mãe, orgulhoso de como eu já estava crescido, virando homenzinho. Não era uma recriminação a meus pais, nem nada parecido, e fiquei muito assustado com sua reação violenta, seus gritos que só terminaram com minhas lágrimas, abraços, beijos e pedidos de desculpa. João Pedroso virou o resto do conhaque e olhou os amigos buscando encorajamento. — Em resumo, minha mãe disse que o Natal só existia para quem acreditava nele. Era pegar ou largar, simples assim. Quem era bom, obedecia aos mais velhos e acreditava no que o Natal significava era recompensado com os presentes, mimos e doces que eu sempre conhecera. Em caso contrário, nada feito: a escolha era de cada um. E esse era o motivo pelo qual muitos meninos não acreditavam em Papai Noel, ou o inverso, como queiram. João Pedroso pediu mais uma rodada de bebida, nesta altura muito bem-vinda, e contou que relatara aos colegas de colégio o que ouvira da mãe. — Vocês podem imaginar como fui alvo das mais cruéis caçoadas no grupo escolar. Foi uma experiência bastante dura, dada minha idade. Não só riam de mim, me apontavam, no pátio da escola, como aquele que acreditava em Papai Noel e isso resultou num forte isolamento dentro do grupo. É claro que o menino havia procurado diminuir o atrito insuportável. Naquela altura, a apostasia de suas crenças era o que menos o preocupava, mesmo que ele desconhecesse a palavra. Além disso, sua confiança na mãe estava abalada. — Vocês entendem? Não era apenas uma questão de coragem moral, o que já é bem difícil para adultos quanto mais para uma criança pequena. Mas uma ruptura entre meu mundo primeiro, materno, e minhas crenças grupais, etárias, se vocês quiserem, enfim, do meu mundo, ou do mundo que se armava, não só à minha volta mas com minha participação, já que eu era parte integrante, ativa, dele. A divisão era profunda, não pela questão em si, apenas, mas por tudo que significava. Afinal, aos sete anos não se tem senso crítico, e a cisão se tornou funda, sem termo médio que a diminuísse. — De mais a mais — continuou João Pedroso — a forma como minha mãe colocara a questão, ou seja, em termos de crença, tornou impossível uma decisão. Claro, hoje eu posso ver isto com algum distanciamento. Mas naquela idade, eram pontos irreconciliáveis, um abismo de incerteza e indecisão que não podia ser aproximado. Enfim, uma polaridade insuportável que se estendia a toda matéria ética, estética, religiosa, abrangendo, mais tarde, todas minhas convicções sociais, políticas, econômicas. Em resumo, o mundo das idéias e das ações, como vocês mesmos colocavam o assunto, ainda há pouco. — E então — perguntou Ninico, com seu jeito manso — como você saiu dessa? — Não saí. Não havia como sair, e do meu ponto de vista infantil não só a questão não era nítida como seria a causa do mais completo desastre, dada a importância que o Natal tinha para mim, naquela época. Acho que minha aversão à data vem daí. Reparem nas implicações: ou me tornava um pária social, isto é, dentro da minha sociedade, a escola, meus amigos, ou minha mãe saberia de minha descrença, já que o Natal nada me reservaria, se ela tivesse razão. Mas o pior ainda não estava aí: não importava o que eu declarasse a uns e outros, a divisão permaneceria, interna, dentro de mim, mesmo que eu "quisesse" aceitar uma ou outra opinião, uma ou outra crença, já que era disto que se tratava. E então, a angústia foi excessiva e adoeci. — Meu Deus, João, por que você não falou com sua mãe? Obviamente não tinha sido esta a intenção dela — apartou Feliciano. — Ou mesmo seu pai, um tio, avô. — A criança tem sua lógica própria. A reação dos dois lados, minha mãe e os amigos, foi tão oposta que o assunto se tornou, tabu, proibido, para mim. João Pedroso contou, então, como sua doença veio diminuir o conflito. Chegavam os primeiros dias de novembro e o médico o proibira de qualquer esforço, o que incluía sua ida à escola. Em casa, filho único, acamado nos primeiros dias pela febre nervosa, João Pedroso teve que enfrentar muitas horas de solidão e decorrente ensimesmamento. Filho obediente, ele queria muito acreditar no que a mãe lhe dissera, o que foi facilitado pela ausência dos colegas e amigos. Outra vez no ninho materno, a adequação ao movimento da casa, seus tempos, suas práticas, permitiram finalmente ao menino o retorno à cultura materna, matriarcal? E a doença se evaporou, como se jamais se houvesse instalado. A seqüência das férias consolidou seu melhor estado de saúde, e mesmo a aproximação do Natal não lhe trouxe maiores sobressaltos, uma vez que sua divisão interior quase desaparecera. Cerca de meio século depois, João Pedroso saiu para o alpendre elevado, aonde raramente ia, tanto pelo vento cortante dos dias frios, como pela inclemência da luz, que galgava os céus, fronteira à fachada do sobrado nos dias de verão, e dirigiu-se à terceira coluna de tijolos ingleses envernizados. Contou sete blocos, de baixo para cima e, lentamente, sacou o pequeno tijolo, no silêncio da casa ainda adormecida. Apanhou algo que meteu no bolso da calça e voltou a encaixar o bloco em seu lugar, bem justo, sem deixar qualquer irregularidade que o diferenciasse dos demais. A construção esquinada cavalgava um outeiro que lhe permitia sobrever, da rua em cotovelo que subia à esquerda, as casas menores, pouco acima do peitoril de suas janelas, enquanto à direita, telhados e beirais acompanhavam a íngreme descida. A quem passava, na rua, pouco mais lhe era permitido notar que a alta estante de livros, quase a atingir o teto de um dos cômodos, quando as pesadas cortinas não estavam corridas. João Pedroso herdara do pai, na década de sessenta, o que a cidadezinha preguiçosa gostava de considerar sua mais bela construção, produto da corretora de café, então localizada no rés-do-chão do prédio, amanhada com proficiência e algum descortino comercial, desde os anos trinta. Diferentemente do pai, João Pedroso nunca tivera a mesma capacidade, ou sua habilidade no jogo do comércio atacadista. Compras infelizes e vendas precipitadas tinham dilapidado o capital diligentemente acumulado, e a década de setenta viu a ruína do rendoso negócio paterno. Não que João Pedroso trabalhasse pouco ou mal. Ao contrário, a época adulta fora um nunca findar de trabalhos, esforços e preocupações cujos resultados, sempre negativos, haviam aportado no naufrágio mais completo. "Quase como uma maldição", repetia ao correr da vida, como um refrão ominoso, um dobre de finados. E então seu pensamento voltava ao pequeno pedaço de papel, cuidadosamente dobrado, metido sob o tijolo da sétima fileira da terceira coluna do alpendre. Foi quando João Pedroso começou a jogar, na esperança de equilibrar o orçamento da casa, já que ao da firma não restava qualquer esperança. Da loteria estadual ao bingo, e deste ao bookmaker da cidade mais próxima, foi uma evolução tão rápida quanto danosa, desastrosa. A tentativa de sonegação fiscal da corretora de café, por um desses acasos improváveis, redundou numa multa que montava a quase dez vezes o valor do imposto, como uma pá de cal sobre a firma paterna. A venda da parte inferior do prédio e suas instalações evitou mal maior, permitindo a João Pedroso manter a moradia no sobrado, embora o passadio fosse escasso e fortemente controlado. Móveis, roupas, enfim, qualquer despesa era eternamente, ou quase, protelada, ao custo de muito cuidado no uso de cada objeto, sentindo-se mesmo, na casa, a falta de qualquer comodidade que não viesse dos bons tempos. Ternos, gravatas, camisas sociais de colarinho engomado, o vinco das calças de tropical, os sapatos engraxados, tudo era alvo do trabalho cotidiano da mulher e duas pretas, retaguarda doméstica raramente entrevista entre o corredor e as áreas de serviço, partes da casa sem forro, construídas em telha-vã. O João Pedroso dos amigos era, por assim dizer uma ponta de iceberg, mostruário, vitrina da vida do sobrado e, por ele, a cidadezinha jamais saberia do real estado das finanças familiares. E assim ele arrastara os últimos anos, vivendo de pequenos expedientes, de despesas inexistentes. Mas naquela manhã da véspera de Natal João Pedroso não estava preocupado com isto. Não dormira bem, rolando na vasta cama de casal que fora dos pais, ora puxando as cobertas até o pescoço, com arrepios de frio, ora empurrando-as para longe do corpo, em calores inusitados. E tão logo a luz cinzenta da manhã se filtrou pelas venezianas de madeira azul-claras, saltou do leito e, de camisolão e chinelas, dirigiu-se ao alpendre em silentes passos de gato. De posse do objeto demandado e, talvez porque o não tivesse tocado por mais de cinqüenta anos, meteu-o no vasto bolso sem lançar-lhe uma única mirada, dirigindo-se ao banheiro, para as abluções matinais. Durante o café, enquanto passava uma vista ao jornal, João Pedroso sentia o pequeno papel — um bilhete? — como um objeto morno, no bolso do paletó, a pesar-lhe incomodamente o peito, e perguntou-se por que o pegara, após tantos anos, e com que finalidade. — Bem, foi então que Alberto chegou — disse João Pedroso, baixinho, dando uma bicada no conhaque, sem mesmo se aperceber. — Que Alberto, o Gaguinho da Maria Preta? — interrompeu Feliciano, mal contendo a curiosidade. — Não, não é do tempo de vocês. O Alberto Monteiro era meu primo, por parte de pai. Moleque traquinas e malcriado, o Alberto era o terror de minha mãe e das criadas. Um ano mais velho que eu, era sempre quem inventava os malfeitos, as travessuras, quem começava as brigas e brincadeiras brutas, maldosas. Vocês sabem, cuspir, do sobrado, na cabeça dos passantes, prender barata viva entre a xícara e o pires da mamãe ou amarrar os cadarços dos sapatos da negrinha, por baixo da mesa. Toda a casa ficava em polvorosa, entre os malfeitos e as zangas e castigos. E, como não podia deixar de ser, em muitos eu embarcava, mesmo a contragosto. Enfim, mesmo assustado com sua ousadia, eu admirava o Alberto e me divertia, como qualquer criança, com as traquinadas que ele inventava. Quando a Maria Preta correu como alma penada pelo meio da casa, embrulhada no lençol, por causa do calango que o Alberto colocara debaixo de seu travesseiro, a mamãe perdeu a paciência e nos decretou três dias de castigo, presos no quarto grande, sem revistas ou brinquedos. Saíamos só para as refeições, na sala de jantar, com papai e mamãe de cara feia e voltávamos para o "retiro espiritual", como ela dizia, a fim de que "puséssemos a mão na consciência", como "meninos de família" e não "bugres do mato".Faltavam poucos dias para o Natal, mas não foram dias muito amargos, mesmo com a liberdade perdida, já que Alberto não sossegava, nem mesmo preso num quarto. Arremedava a mamãe, imitava a Maria Preta, tecia planos mirabolantes para quando saíssemos da "prisão", jurava vingança contra a negrinha que, segundo ele, fora a delatora, no episódio do lagarto. — Enfim, apartou Mariano — uma criança normal. — É claro, normal — sorriu João Pedroso pela primeira vez, desanuviado pela lembrança do primo — mas duvido que você ainda o classificasse dessa forma, caso ele passasse um dia em sua casa. Enfim, contei isso para vocês terem idéia de como era o Alberto, naquela época. E assim, ao final do segundo dia de castigo e como minha mãe mencionasse manhosamente o Natal a meu pai durante a refeição, quando voltamos ao nosso castigo contei ao Alberto o que ela me dissera sobre assunto tão palpitante. Alberto quase engasgou de tanto rir, de minha credulidade. — Ô, João, Papai Noel são nossos pais! Ela te contou essa história pra você ser um bom menino, ficar quietinho e não encher a paciência dela. Ela me acha um bom menino? Eu acredito em Papai Noel? Então como você explica que eu ganhe presentes de Natal todo ano? A bola de futebol, a bicicleta, como você explica isso? — Bem, é inútil dizer o quanto essa terceira guinada nas minhas crenças, em tão curto período de tempo, mexeu com a minha cabeça. Então ela tinha mesmo me enganado Pensei na vergonha que eu passara na escola, nas caçoadas, nos meus esforços para acreditar nela, nas minhas boas intenções e prometi, a mim mesmo, nunca mais ser tão crédulo, nem mesmo com meus pais. Prometi, também de mim para mim, sem nada dizer ao Alberto que, quando saíssemos do maldito quarto, ele não seria o único a inventar maldades. Só que eu teria mais cuidado, muito mais cuidado do que ele. Além de fazer as travessuras, eu cuidaria para não ser implicado nelas. E então meu prazer seria duplo, já que o castigo cairia sempre sobre outra pessoa. E por que não a negrinha que me fizera ficar trancado por três dias? Assim, o último dia de castigo foi o mais prazeroso deles. Alberto, cansado de não fazer nada, se calara, emburrado, num canto, enquanto eu aproveitava para imaginar um monte de pequenas maldades com todos da casa mas, principalmente, como evitar que se pudesse saber a autoria do malfeito. Aquela semana de Natal foi muito atribulada, lá em casa, para eles e para nós, e mamãe acabou telefonando ao tio para que fosse buscar o Alberto, pois que, com dois, ela já não estava agüentando. O primo se foi e, livre dele, eu pude armar meus álibis com mais facilidade. Ninguém entendeu como tanta coisa saía errado sem causa aparente. E foi um Natal realmente atabalhoado. — E nunca te pegaram? — perguntou mansamente Ninico. — Você quer dizer alguém lá de casa? Mamãe, papai, as empregadas? Não. Segundo eu pensava, eu já tinha sido apanhado, não é mesmo? E só podia me vingar não pagando pelo malfeito que viesse a cometer; esse era meu primeiro e último cuidado, ou não haveria vingança. Alguém mais, qualquer um, devia pagar o preço, desde que não fosse eu, ou as contas não seriam acertadas. Lembrem-se, eu me sentia credor de um mau pagador. O equilíbrio só viria no caso de, tendo sido mau, eu receber meu presente de Natal, como Alberto dissera que receberia. — Em resumo, através de ações, não de palavras, você discutia ética com sua mãe — definiu Mariano. — Não creio que tenha sido apenas isso — retrucou Feliciano. — Já não se tratava apenas de "provar" a existência ou não de Papai Noel, ou do espírito de Natal, como querem alguns, mas o valor prático do comportamento ético como fonte de justiça. A vingança, que equilibraria a balança, nos força a entrar no terreno da justiça, como compensação ao bem e ao mal, se entendi bem a sua reação infantil. E agora já não mais estamos no terreno da filosofia, mas da religião ou, como você disse no início da história, da crença. — Mas eu creio que se tratou sempre disto, não? Quero dizer, a história de João. A discussão ética foi sempre uma ferramenta, não um fim em si mesmo — raciocinou Ninico em sua voz mansa — desde que eu disse que Papai Noel não existia. Só não entendo como você pretende provar a existência dele. — Bem, me deixem terminar a história e vocês vão entender — retrucou João Pedroso, com rosto amargurado. As lembranças infantis das traquinadas já estavam longe, como ficou claro para todos,e o ambiente tenso voltou a tomar conta dos amigos, do bar, da noite. — A noite de Natal chegou e eu fui me deitar cedo, cheio de expectativa, como vocês podem imaginar. Não sem antes, no entanto, realizar todos os ritos anuais ensinados por minha mãe. E deles fazia parte uma grande meia pendurada, símbolo da gratidão, a mão aberta à oferenda. Escolhi a maior de todas, a meia de futebol de que eu tanto gostava e prendi-a em um prego na parede da sala. Custei muito a pegar no sono em meio a tanta excitação. Afinal, tratava-se mais do que de um simples Natal. Por trás daquilo, houvera muito sofrimento. Aos sete anos, porém, não há insônia que dure mais de cinco minutos, e eu dormi como um anjo até manhã alta, o sol entrando pelas venezianas, zangado por ter que se espremer tanto, como minha mãe dizia, me chamando de preguiçoso. Já acordei pulando da cama, desinsofrido, e corri descalço, de pijama, à sala, onde ficava a árvore de Natal. Não havia nada para mim sob a árvore enfeitada. Eu não pude acreditar e olhei, então, para onde deixara a minha meia de futebol. Mas tampouco ela estava lá. Ficou apenas um pedaço de papel, espetado no prego da parede, com um poema cujo texto é o seguinte: Os bons vi sempre passar, no mundo graves tormentos; E para mais me espantar, os maus vi sempre nadar em mar de contentamentos. Cuidando alcançar assim o bem tão mal ordenado, fui mau, mas fui castigado: Assim que, só para mim anda o mundo concertado. — O Desconcerto do Mundo — gritou Ninico — a mensagem de Camões é clara: não há justiça no mundo, exceto para ele, paranóico que era. Como vocês vêem, eu estava certo. Papai Noel não existe — gargalhou triunfante.— Neste caso — gritou Feliciano, acima da risada de Ninico — quem espetou o bilhete no prego e levou a meia? Você se ateve ao significado do bilhete, não à sua existência! Sua análise foi parcial, então Papai Noel existe! — concluiu vitorioso. — Pronto, voltamos à discussão maluca! — Mariano, cada vez mais cético. — Que importa quem colocou o bilhete no prego? E se foi a mãe ou o pai de João, como castigo por seus atos? Ou seja quem for? Como deduzir daí a existência de Papai Noel? — Pelo próprio bilhete, meu amigo. Ele está escrito num dialeto esquimó oriental que, segundo o lingüista da universidade, só é falado em determinada região do Pólo Norte — disse João Pedroso cansado, o rosto tenso, colocando o papel amarelado pelo tempo sobre o mal polido mármore do tampo da mesa do café.

150. CARLOS SUSSEKIND. O ANTI-NATAL DE 1951. No documento emitido pelo Juizado de Menores lê-se o seguinte: "Requisito-vos" (ao agente da Estação D. Pedro II, no Rio de Janeiro) "duas passagens de ida e volta em 1ª classe dessa estação até a Estação Presidente Franklin Roosevelt, em São Paulo, para o Dr. Lourenço Laurentis, Curador de Menores do Distrito Federal, e um menor, que viajam a serviço deste Juízo".Muito atencioso, o agente-ajudante que me atende na Central. Não me faz esperar. Mas, depois de carimbar a requisição, objeta-me que só amanhã poderá dar as passagens, pois o regulamento ferroviário exige antecedência de três dias, não de quatro. Adiantei-me, pois. Evito discutir, para que não surjam obstáculos futuros. A idéia de fazer essa viagem na companhia unicamente de meu filho, tendo eu me comprometido a não desviá-lo de suas leituras nem durante o percurso nem durante o dia inteiro (25 de dezembro) que passaremos em São Paulo, corresponde satisfatoriamente à nossa concepção (minha e dele) do anti-Natal. Atravessaremos a véspera natalina dentro do trem, sem desejar mal nem bem a quem quer que seja, ele lendo, eu nos meus devaneios. Dia 26 estaremos de volta. Não daremos nem receberemos presentes. O único presente tolerado é essa viagem de graça, que, a bem dizer, não é um presente, é um direito que me dá o cargo de Curador de menores. Doutor Lourenço e o filósofo Lourencinho estarão na deles, numa boa. Verifico que, se fosse de noturno, com leito de luxo, no "Santa Cruz", em cabine individual de dois passageiros, a viagem de ida e volta custaria ao Estado o triplo do preço desse trajeto feito em poltrona comum. Sairíamos do Rio às 22:30 do dia 24 e chegaríamos a São Paulo às 9 da manhã de 25. Magnífico, sem dúvida. Mas repugna à minha consciência abusar da requisição, proporcionando-nos esse luxo nababesco que ficaria documentado para sempre. Basta a fraude de dizer que eu e o Lourencinho vamos "a serviço do Juízo". Tentarei, em todo caso, combinar ida em noturno e volta em diurno, numa última homenagem ao meu escrúpulo. O abuso já não será tanto, nem deixarei de proporcionar a meu filho uma viagem repousada. Se tiver de ir e vir de diurno — o que seria a hipótese mais econômica —, a consciência ficará mais leve, mas não sei como se comportariam o fígado dele e os meus rins. Enfim, veremos. Precipitado no meu otimismo, faço, depois do jantar, uma descrição para a família toda reunida de como é o trem encantado em que viajaremos os dois. Vagões de aço inoxidável. As poltronas forradas de camurça. Giratórias. Ninguém em pé, todos acomodados, de fisionomias risonhas. A composição move-se deslizando, sem nenhuma trepidação, nenhum ruído, não entra pó, o ar que circula é como o do cinema Metro, trem de cinema, primeiro você pensa que é por causa do dia chuvoso, mas deixe chegar uma estação, abrir-se a porta e verá que é como se se abrisse uma fornalha. É a temperatura que faz lá fora. Dentro do carro, no entanto, a mesma inalterável e suavíssima ambiência! Moças e rapazes falam-se aos beijos. Quando não se beijam, cantam. Um sonho! Diante da minha expansão, Lourencinho tem o comentário desalentador de que só vai a São Paulo para me acompanhar, e que não sabe, afinal, se isso de anti-Natal funcionará mesmo. Se nem o anti-Natal o seduz, meu Deus, que se pode esperar desse rapaz? Deve ser a perspectiva da viagem fatigante. Mas não é só isso, não. Quando lhe falo no que faremos para conhecer a cidade, onde não piso desde 1920 — há mais de 30 anos, portanto —, adverte logo: — Desista disso de querer mostrar parques e avenidas e monumentos e pessoas! Iremos cada qual para seu lado. Vou buscar as passagens na estação. Outro subagente. Atencioso, como o de ontem. Entretanto, fez-me esperar 25 minutos para verificar se a assinatura era mesmo do juiz de menores, um desaforo. Conclui dizendo, amabilíssimo, que só amanhã, 22, poderá me dar os bilhetes, pois o regulamento fala em "três dias antes da viagem": sendo esta no dia 24, os três dias contam-se 22, 23 e 24. Considera 24 como sendo ao mesmo tempo o dia da viagem e a véspera! Evito discutir etc. Risadas do homenzinho quando lhe falo em "noturno" e "Santa Cruz". A requisição menciona apenas "passagem de 1ª". Sem especificar "noturno", só se pode subentender "diurno". A fim de não dificultar a interpretação favorável em São Paulo, para a volta, escreve "tarifa noturna", o que permitirá que eu cogite de noturno de lá para cá. Mas, noturno em "trem de madeira", sem leito de qualquer espécie. Nem, sequer, poltrona. A poltrona, mesmo para o diurno, tem de ser paga à parte. São 60 para a ida e outros 60 para a volta. Quer dizer que a requisição do Juízo de Menores só me deu o direito de andar dentro do trem até São Paulo e de São Paulo aqui. Custará isso ao Estado 568 cruzeiros redondos. Acho infinita graça, agora, na minha ingenuidade de falar em "escrúpulo" de pleitear coisa melhor... O Governo sabe com quem lida. As bandalheiras não se fazem assim, com recibo. Elas se aninham noutras dobras. Volto no dia seguinte, o guichê das passagens está se abrindo, sou o primeiro passageiro atendido. Entretanto, não posso ter os assentos que peço, na sombra. "Nós aqui desconhecemos os lugares que são no sol e os que ficam na sombra. As ordens são para destacá-los automaticamente, sem intervenção de quem quer que seja". Conformo-me. Ele lê a requisição. O outro funcionário, ao datá-la, pôs certo 21.12.1951; mas, quando se referiu ao dia da viagem, escreveu, sabe-se lá por que, 24.12.1952, equívoco palpável, evidente. Mas S. Exa. o bilheteiro do guichê nº 1 acha que deve ser retificado. Atendo-o, ainda nisto. No guichê n° 5 já está outro funcionário, diverso do "amabilíssimo" com quem falei ontem. Objeta-me que a retificação não é da sua competência, e que o funcionário que poderia fazê-la só começará a trabalhar às 4 da tarde. Não posso tolerar semelhante absurdo. Volto então ao agente substituto. Ouve-me em silêncio. Manda chamar o bilheteiro. Fala-lhe. E se volta para mim, austeramente: — O funcionário tem razão. Ele não pode retificar um erro que não cometeu. Mas o senhor, também, não vai pagar pelo que se fez sem sua culpa. Atenda-o, portanto, Sr. Freitas. Se o algarismo puder ser modificado, modifique-o. Se não puder, extraia outro passe. E dá-me as costas. O algarismo não pôde ser modificado. Depois de ajustar pachorrentamente os carbonos e de "experimentar" noutro papel, de rascunho, Freitas pega solenemente o lápis, calca-o, descobre o carbono e diz: — Não deu certo. — Espero, pois, 15 minutos para que ele extraia novo passe.  Seria justo que minha odisséia terminasse aí. Mas não terminou. Vou para o bilheteiro do guichê n° 1. Examina os novos passes, pede-me a carteira funcional e me diz secamente: 60 cruzeiros pelas duas poltronas. Dou-lhe o dinheiro, mas pergunto: — Que é que essas poltronas têm de mais? Ele não demora na resposta: — Nada. — Então por que se paga à parte? Se eu não pagasse, iria em pé? O homem ajusta os óculos ao nariz, fita-me serenamente, reflete no que vai dizer. Responde-me: — Iria. Quer dizer: um funcionário, viajando a serviço do Estado, tendo sua passagem requisitada pelo Juízo de Menores, em nome do Ministro da Justiça, não tem direito sequer a viajar sentado nas 11 horas do percurso. Mas ainda há mais. Pergunto, delicadamente, ao ditador que tenho pela frente, se as poltronas 37 e 38 do carro "B" ficam, ou não, na sombra. Com uma irritação mal disfarçada em calma "superior", responde-me: — Meu caro senhor, quer um conselho? Peça a Deus que sejam na sombra, porque só Ele pode decidir. Ali a justiça divina já está feita de antemão. Qualquer dos lugares é igual nos benefícios e nas desvantagens. Em 11 horas de viagem, de 7:25 às 18:25, quem tiver sol pela manhã não o terá mais à tarde, e quem, pela manhã, gozar da sombra, escaldará com o sol de depois do meio-dia. Rimo-nos, ambos, para descarregar os nervos, evidentemente tensos, tensíssimos. Desejo-lhe Feliz Natal com toda a sinceridade. Posso respirar, enfim. As providências que tinha de tomar para garantir nosso anti-Natal, meu e do meu filho, já estão tomadas.

151. CARMEN ROCHA. ISABELA, FUGITIVA DO PASSADO. Aquela confissão transtornou a minha vida... A tempestade desabou, e as imagens voltaram fortes em seu espírito atormentado, daquele longínquo ano de 19..., e, meu marido do outro lado do leito, dando-me as costas, confessava em desespero, em gemidos contundentes, como ela, Isabela, o amara, tanto e tão apaixonadamente como só se pode amar uma primeira vez... E o quanto tentou corresponder-lhe: Isabela, Isabela - soluçou ele, quase como um fantasma - sua silhueta me vinha através do espelho, e sua tristeza... envolvia-me. Como conseguiste tocar-me assim!- continuou em devaneio - o meu amor é tão forte e verdadeiro. "Eu irei para tão longe, amado" ele sussurrava por ela, em memórias - sentiu-a em sua imagem fantasmagórica, perdido em lembranças, e lágrimas desceram de seu rosto - "farei tudo para melhorar e voltar para ti, prometa não me esquecer, vamos prometa-me, pois ficarei tão só... e está tão frio..." - Sim, sim, eu te prometo... - meu marido engasga-se em sua dor, e só ouço sua respiração entrecortada. Suas lembranças eram tão claras, tão verdadeiras, que eu própria vertia lágrimas. Virei-me mais um pouco. Sabia que a imagem que via, pois refletida, era a sombra do desespero daquele homem, totalmente tomado pelo passado tenebroso, que não percebia o meu desalento, nem minha dor, talvez nem minha presença... Claro que prometo, irei esperá-la até sua cura ... - continuou dolorosamente em lembranças - nunca imaginei o que isso mudaria a minha vida... voltou-se um pouco para mim. e num desabafo, partilhando... Que desgraça, meu Senhor, onde andaste Tu? - voltou-se um pouco mais, - Ela escrevia-me a cada dois dias. Eu de nada sabia, pois minha tia escondia suas cartas. No entanto, sofria calado, e em total desespero, imaginando sua dor, perdoando o que achava a precariedade dos seus sentimentos, por não escrever-me. Passava fome e frio... para ofertar-lhe em paixão, pois compartilhava tudo o que sentia. Suas febres... suas dores... sua fragilidade... nunca desconfiei da verdade - continuou. Foi quando veio a funesta notícia. Ela expôs-se à morte, em desespero, por amor a mim. Imaginou que eu a abandonara. Pobrezinha! Nunca pôde saber como foi amada... - estendi-lhe a mão penalizada, mas não pude tocá-lo. Por sua confissão, minha própria vida se desmoronava naquele mesmo instante... naquele dia fatal - continuou sua confissão, em total alucinação, como se contasse para ele próprio- ela levantara-se do leito e arrastando-se ficara à janela do imenso corredor. Nada se fechava ali. Era norma dos sanatórios, nem portas ou janelas, para que o ar se conservasse o mais puro possível, e se renovasse à noite... - e - continuou com a voz enfraquecida - naquela ânsia de me vislumbrar na noite tenebrosa, pois assim foi em nossa despedida, ela se nutriu daquela friagem suicida, como se pudesse me absorver inteiro. A carta... - voltou-se para mim - chegou dias depois, e esta sim, minha tia fez questão de mostrar-me, como se quisera pôr fim à minha paixão e à minha vida. Seus olhos opacos mostravam-se, doloridos, enquanto punha sua desdita a nu. E então eu soube. Aquela vida de sofrimento louco, não era por mim, sua esposa... mas por outra mulher cujo amor fôra tão forte, que o acompanhou vida afora, em nossa vida, chegando agora, através daquela imagem refletida a incomodar-me, a insultar-me, anos e anos após aqueles acontecimentos insólitos. Meu marido, em sua louca lembrança, num desafogo irracional, vertia lágrimas, para meu espanto, e soluçava, de forma incontida e sem pudor, pela pessoa que tanto amara num passado-remoto, e cuja imagem o matava aos poucos e marcava seus dias tão tristes e vãos - sua mão desabou exausta. Sentei-me desajeitada no leito e voltei-me mais para o espelho acusador, quase encobrindo a imagem de meu marido, para evitar seu rosto-reflexo-dor. Queria o meu, isso sim, a minha imagem, com ousadia, para enfrentar essa realidade que, de repente, me é revelada, dessa forma abrupta. Virei-me mais. Olhei-me de frente. Que silhueta triste. Quão pouco fora amada... ah... quão pequeno fora o meu papel na vida desse homem. Ele não partilhara da minha. Ele nunca me pertenceu. Essa mulher, paixão pungente, em forte imagem transformada e presente em reflexos vigorosos e doloridos, de lembranças tão poderosas, destruiu sua vida e até mesmo a minha. Ah, meu Deus! Será a vida uma realidade, ou apenas uma lembrança... Quem fui eu na vida desse homem? Vive-se ou imagina-se que vive? Senti uma vertigem. Eu sim, em sua vida, fôra apenas um reflexo.

152. CARMEN ROCHA. O HOMEM QUE VÊ A VIDA. ...ele precisou muito amor para se resolver... Bom humor está no ar, nesta bela manhã - puro cheiro de mato, dos arvoredos do Morumbi. Assobio. São sete e meia da manhã. Tiro o carro da garagem e em velocidade moderada faço o curso rotineiro para o escritório. Tudo em sossego. Alegria. Mas estranhamente aos poucos, meu coração acelera suas batidas conforme ritmos insolentes de garotos na idade das danceterias. Sinto um tênue déjà vue. E consigo respirar com certa dificuldade. Coisas diferentes estavam me acontecendo? Continuação de sonho mal? Como se fora caso de vida ou morte... esses fatos futuros, que eu achava que desconhecia, já estavam me abalando... E de repente, minha cabeça começa a latejar horrivelmente. Seria outro dia maluco, como tinha sido algum tempo atrás, quando coisas estranhas começaram a dar sinal? O que estaria acontecendo aos meus olhos. Estaria eu tendo alguma doença desconhecida? Resolvi reagir a toda essa loucura que estava me tomando, me torturando, como se eu fosse um robô e devesse obedecer a não sei lá o quê, ou não sei a quem. Perceberam? Alguma coisa estava tomando conta de mim. Isso mesmo, comandava meus olhos, e eu via. Via o quê? Não, vocês não podem imaginar o que eu via! Engreno a primeira e rápido breco para não atropelar a moça que atravessa em minha frente, vira-se para mim, e um brilho estranho é emanado de seus lábios. Mais percebo do que vejo. Intrigado, fico toda a vida olhando pelo espelho retrovisor para entender. Então, escuto o apito do guarda de trânsito arrebentando os tímpanos e percebo o brilho: idiota! - que fica flutuando a certa distância. O carro pára quase na esquina, e percebo a sua silhueta quase à minha frente. Tento fechar os olhos, mas como guiar? Torno a abri-los e lá vem... preciso mostrar serviço... vou multar esse bobalhão... se ele avançar... - aparece a frase brilhante de sua boca. Seguro o carro, para não andar um milímetro sequer, abre o sinal, continuo. O suor poreja minha fronte. Na quadra seguinte... o homem do caminhão: Passo em cima desse idiota. Como segura o trânsito! - Aperto a direção do carro. Estou péssimo e realmente tudo se embaralha em minha vista e só vejo o que não quero. Contorno e desço para a garagem, estaciono. O manobrista se aproxima sorridente e amavelmente me diz: Bom dia! - E horrorizado vejo em luz forte - como estaciona mal. ...se esse idiota não der minha gorjeta... - fecho os olhos e tateio o elevador. Subo para o 3ºandar. Cumprimento a moça da recepção. Bom dia, senhor... Como é feio! Tem cara mesmo é de pastel, eu hem?... O suor escorre pelo meu pescoço. Meu sossego foi quebrado definitivamente. Meu olho esquerdo começa a tremer, dando aviso de estranho, estranho... Sigo apreensivo, tentando manter a calma. Passo pela secretária rapidamente. Fecho-me em minha sala. Viro-me daqui e dali à procura de paz, de calma salvadora à minha frente. Respiro fundo. Minha secretária bate à porta Entre, Eunice - pão duro, quando virá o aumento? - Tento fechar imediatamente os olhos. Bom dia! O senhor não passa bem? - pergunta assustada. Reanimado pelo tom cortês abro os olhos e vejo claramente, escrito em seus lábios, com todas as letras... se esse cara chato bater as botas, fico sem emprego... - Saia, Eunice, eu chamo depois. Senti profunda falta de ar, e a iniqüidade do ser humano. Tentando disfarçar, chamo o boy e peço com certa urgência - Vá ao primeiro camelô que encontrar e compre uns óculos grandes, curvos e bem, bem escuros, maiores que este, está bem? Tá bem, chefe - o diabo que te carregue, acabei de tomar café, não tenho sossego, ache! - Estremeço. Finalmente, sento-me e pego os papéis empilhados à esquerda e começo a despachá-los, sem prestar muita atenção. Minha irritação e meu susto são tão grandes que necessito recompor o fôlego em grandes respirações. O boy entrega-me o embrulho. Abro. Suspiro. Horrivelmente grande e negro, como pedi. Quando vou pô-los... quase nos olhos, a secretária adianta-se e assustada pergunta apontando meu rosto: Patrãozinho o que é isso? - mais parece uma coruja, coitado, como é feio! - Acabo de colocá-los rápido. Deu certo, e passo a usá-los. Quase sorrio de alegria... a mais pura, aquela que pode me tirar daquele mal-estar insano, pois passo a ver somente umas luzinhas na boca das pessoas. Volta o fôlego. - Tem recado? Sim, a Cobrança. Ah! A D. Marieta telefonou! Diga-lhe que não estou bem e que hoje irei direto para casa, PAM! - dando um murro na mesa - ela estremece. O mal humor correu o andar todo até a mulher do bolinho-para-acompanhar-o-café e transbordou até o andar de baixo. Começam instintivamente a andar nas pontas dos pés. Acho melhor tirar de uma vez os óculos. Será que a besta vai se vingar em nóis - brilhou na boca da mulher da limpeza. Ponho os óculos. Protegido pela grossa e escura armação desse enorme visor, quase me acalmo, pois não percebo mais os pensamentos do pessoal piscando em minha frente. Respiro. Assim o dia passa, e eu em atitude submissa não encaro mais ninguém. Aposento os óculos, até que minha secretária pergunta: - Sr. Chato! Precisa de mais alguma coisa, patrãozinho? - Estremeço. Dou sinal que ela pode ir. Que vá logo. Recoloco os óculos. Respiro fundo e retorno a casa, quase feliz, pois usando os especiais made in camelô, sinto um quase sossego. No outro dia, a secretária amável: Patrãozinho, hoje é seu dia, não é? Mais um aninho, hem? - Uau, como disse? Como você sabe? Bem, parece que... foi a D. Marieta, aquela moça italiana que falou que ia dar uma festa surpresa. Ai!, já falei, agora não será mais surpresa! - tampou a boca, vexada. Moça, nem pensar nisso. Dê uma desculpa, e fale que eu, mais tarde passo na casa dela e só. Afasto-me de todos e principalmente de Marieta, minha amada, pois não poderia suportar sequer pensar em ver seus pensamentos. A semana passa assim, assustadora. Alguns dias depois, na verdade, não sei quantos, pois fui perdendo a noção do tempo, mal agüentando a realidade espantosa que virou a minha vida. Eu estava vendo o invisível! O invisível da nossa vida suja. Eunice pergunta-me se é para mandar convites para a minha namorada e os outros, pois, no meu aniversário, costumo convidar o meu pequeno mas seleto grupo de amigos. Eu não poderia! Amigos? Até que ponto? Já não sabia dizer, meu deus! E de repente, assusto-me. Teria que enfrentar uma festa? Já estou afastado deles há quase um mês. Como sair desta? Nada de festa, pronto, dessa vez não tenho mesmo nada para comemorar. Comemorar a verdade das coisas que me são apresentadas de maneira tão crua? O ser humano em sua dimensão real, percebendo uma realidade de forma tão clara e cruel? Meus olhos estupefatos captando essa realidade? Quem agüentaria? Viver essa vida totalmente iludido? Encarar? Mais tarde dou uma desculpa, me embebedo e tchau. E pronto o telefone toca e lá vem novamente o convite para o sábado próximo. Estavam com saudades. Queriam fazer a minha festa na casa de Marieta, e confirmar o dia para a comemoração! Passaram-se três dias. Foram os dias mais insuportáveis da minha vida. Nele eu imaginei qual seria a verdade que iria enfrentar de cada um dos meus pseudo-amigos, agora sabia. Realidade dura, trilha infame, mundo cão. Descubro cada vez mais a baixeza, a vida crua e a duplicidade do ser humano. Era essa a revelação, afinal? Como conviver com ela? Onde os pensamentos amistosos, sinceros, cordiais? Eu, pobre mortal, me contentaria com algum deles, somente. A alegria pura, a amizade sincera... Não sou exigente, compreendo a fraqueza humana... Mas o que tem se passado em minha vida?! Insuportável, simplesmente insuportável. Nunca contei a ninguém sobre tudo o que suportei da raça humana nesses dias. Para que contar? A sordidez, ao expô-la teria que admiti-la. Não poderia. E esse processo estranho? O que estava se passando comigo? Até quando? De que forma surgiu? E principalmente, para que serviria, eu conhecer toda a maldade do homem? Para quê? Um banho relaxante, uma TV, uma cachaça temperada, toca o telefone. Marieta, com seu sotaque, abre o jogo: Venha, caro mio, estamos todos reunidos para uma champanha. Toda a turma! Incrusive o seu chefe, tá bem, belo? Puxa, pensei, era melhor fazer uma força e ir. Tá bom, logo mais estou chegando. Um bacio, me esforcei. Arrumo-me para a festa com o maior esforço. Tomo uns bons drinques para enfrentar essa realidade que eu não supunha tão obscena... Como estava acostumado, vesti-me com apuro, colônia discreta, um toque de seda na lapela. Uma gravata italiana, presente da amada, apanho os sedutores óculos. Dirijo-me para o conversível amarelo ovo, já meio-meio alegre, sem esquecer a máquina filmadora, especial para boas fotos. Num salto ágil pulo para o carro, reajusto a direção conforme minhas medidas e dou uma arrancada. Após vinte minutos, rodeio o jardim da residência, estaciono ao lado da porta, apanho a máquina, coloco os lindos óculos e esquecido das mágoas, aproximo-me rápido da porta. Nem bem bato a belíssima aldrava de bronze, as portas se escancararam e um coral de mais de vinte amigos com o Parabéns a Você. Apesar do susto, rápido, empunho a máquina e filmo a cena toda. Beijinhos, abraços, aquele grupo animado conseguiu alegrar-me. Por que os óculos? Meus óculos? Desculpas. Bem uma ligeira inflamação. Olhem! Nada de mais. Não, não posso tirar. Os champanhes espocam. Muitas risadas. Começo a perceber as luzinhas na boca de todos. Desvio o pensamento. Alegria, presentes, tapinhas nas costas. Se soubessem! A festa foi correndo amistosa, afável, alegremente, com muita emoção, vibrante! Vinhos e deliciosos canapês. Esqueço-me de tudo, e viajo naquele sonho de felicidade, apesar de muitas luzinhas ao falar com meus amigos e principalmente com a querida Marieta. Finjo para mim mesmo, e a noite corre feliz. Petiscos deliciosos e bebidas. Tudo em paz, nada mais me aborreceu. Consegui tornar-me quase feliz. Dei volta ao drama, e no final, me sentindo atordoado, não podendo mais esticar, após belas despedidas e beijos retorno a casa,bêbado eu sei, mas alegre e penso que tudo era um sonho, querendo fugir dessa duplicidade tão pouco suportável. Entro. Meio bêbado. Vou para a TV para passar a filmagem. As imagens perfeitas... A entrada festiva... As pessoas sorridentes. Nos lábios, as luzes tremelicando. Meu amigo: como é petulante; meu vizinho: aturar esse cara o ano inteiro, ufa! meu chefe: como é burro, talvez eu o despeça; minha amada: transo com outro e esse imbecille não percebe... Deixei-me cair no divã estupefato. Ao revelar a filmagem, para o meu pavor, revelo mais uma vez o mundo sórdido, infame que já supunha. Em cada boca, que na festa me cumprimentou e me beijou, em cada boca, leio a sentença de morte que agora aí está estampada e que irá selar a minha vida. Pobre Marieta, como você me amaldiçoou nesses últimos meses. Mas... sempre sorrindo... Sim, darei descanso a todos, não mais imporei esta presença tão odiada a vocês, queridos amigos! É por isso que agora, tiro os meus óculos escuros e abro os meus olhos. Já não importa. No entanto, peço desculpas, mas preciso entender a vida, a vida maior, não o significado obtuso desta, pois essa realidade não é a real, impossível. Preciso da outra, mais verdadeira. Parto, queridos amigos, com um grande abraço amoroso e fraternal, à prova de quaisquer olhos muito abertos. A culpa com certeza não é desse mundo, nem de vocês. Por que me indignar tanto? Talvez a resposta aqui, nem seja necessária. O difícil é entender porque fui eu o escolhido para passar por essa desastrosa realidade. Está bem, eu me ofereço em sacrifício para descobrir a resposta.A verdadeira resposta. Quero entender o lado de lá, quero realmente entender, preciso ver o que esta além dos fatos. A vida, agora eu sei, é uma ilusão!Qual é a minha realidade, a realidade de todos? Eis a revelação. Eu sempre intuí esse lado mau. Mas por que eu? Por que fui escolhido? Todos sabem, mas ninguém enfrenta isso com tanta clareza, nem lhes é revelado com tanta crueldade. Eis a verdade dessa vida suja. Que calor insuportável nesse meu corpo frágil. Saber dos pensamentos mais íntimos e verdadeiros das pessoas que eu quero bem! Nossa, começo a tremer e a suar. Sinto-me muito mal, infinitamente triste. Vou tirar o casaco... a gravata... Que gravata colorida Marieta me deu! Verde! É com certeza a cor da esperança... Terei alguma? Como conviver com isso? Não, não posso ir adiante. Não posso. Ah, desespero! Sim, essa seria uma bela saída... O banquinho tombou.

153. CECÍLIA MEIRELES. Muita gente me pergunta se deixei de escrever o meu sobrenome com letra dobrada devido à reforma ortográfica; e quando estou com preguiça de explicar, digo que sim. Mas hoje tomo coragem, abalanço-me a confessar a verdade, que talvez não interesse senão aos meus possíveis herdeiros. A verdade nunca é simples, como se imagina. E em primeiro lugar, devo dizer que o meu sobrenome simplificado só vale na literatura. Nos documentos oficiais prevalece a forma antiga, e eu por mim gosto tanto da tradição que não me importava nada carregar um ípsilon, um th, todas as atrapalhações possíveis que enrugam e encarquilham um idioma. Por outro lado, as reformas ortográficas são sempre tão arrevesadas que já perdi as esperanças de estar algum dia completamente em condições de escrever sem erros, descansando assim no tipógrafo e no revisor, que são os grandes responsáveis pelas nossas faltas e pelas nossas glórias. Não foi, portanto, por afeição às reformas que sacrifiquei uma letra do meu nome. A história é mais inverossímil. Todos na vida atravessamos certas crises. Dever-se-ia mesmo escrever sobre a gênese, desenvolvimento, apogeu e fim das crises. Se uma pessoa está sem emprego, o natural é que se empregue. Se está doente, o natural é que morra ou se cure. Mas o fenômeno da crise é importante precisamente por ser o contrário do natural. De modo que se a pessoa está desempregada, não há maneira de arranjar emprego, e se está doente não há maneira de se curar, etc... As crises são muito variadas. Há crises sentimentais, econômicas, de inspiração, de talento, de prestígio — e o povo classifica essa situação, que ele, em sua sabedoria, já observou, com o fácil nome de azar. O azar não é lógico. Isso é que o torna desesperador. A pessoa sai de casa, bem com a sua consciência, com as faculdades mentais em perfeita ordem, os músculos, os nervos, tudo bem governado, atravessa a rua como um cidadão correto, observando o sinal, e quando chega do outro lado, apanha na cabeça um tijolo que um operário, inocente, deixou cair do sétimo andar de uma construção. Naturalmente, todo o mundo tem refletido sobre as razões secretas dessas coisas inexplicáveis. E foi assim que, com o correr do tempo, se chegou à caracterização de um certo número de fatos e objetos que servem de prenúncio ao azar: espelhos quebrados, relógios parados, sal entornado na mesa, sapato emborcado, tesoura aberta, gato preto, mariposas, sexta-feira dia treze, mês de agosto, gente canhota e estrábica, vestido marrom, para só falar dos principais. Penetrando mais no estudo de todas essas superstições, pessoas entendidas têm procurado explicá-las pelas correlações existentes com as crenças do paganismo, estas por sua vez baseadas no empirismo e na ignorância dos nossos antepassados, e assim por diante, o que não impede que as pessoas ainda hoje se benzam, quando bocejam, para que o Demônio não lhes entre pela boca; e não cruzem a mãos, quando se cumprimentam, para não atrapalharem algum matrimônio, e não se deitem com os pés para a rua, e não façam muitas outras coisas, só pelo medo das suas conseqüências ocultas. Outras pessoas, igualmente entendidas, dão rumo diverso aos seus estudos, descobrem o entrelaçamento das causas e efeitos universais, chegam até a afirmar que tudo quanto nos acontece nesta encarnação é fruto remoto de encarnações anteriores, e respeitam o que diz um provérbio oriental — que o simples roçar da roupa de um passante, na nossa roupa, é indício de alguma proximidade de vidas, em tempos imemoriais. E há os que seguem o caminho dos astros, e com uma circunferência, umas retas, uns planetas, uns cálculos, dizem e predizem os nossos destinos, com todas as suas inesperadas trajetórias. E há os que lêem nas linhas das mãos, e contam as nossas viagens, os nossos padecimentos de fígado, o que vamos fazer daqui a vinte anos, e o minuto em que empalidece a nossa estrela... Está claro que creio em tudo isso. Eu justamente creio em tudo. Creio até no contrário disso. A minha faculdade de crer é ilimitada. Não compreendendo por que as pessoas crêem numas coisas e noutras não. Tudo é crivei. Principalmente o incrível. Não estou fazendo paradoxo. A vida é que já é por si mesma paradoxal, desde que seja vista não apenas pela superfície. Ora, uma vez, todas as coisas começaram a correr contra mim. Fazendo a mais profunda e leal introspecção, estou bem certa de que não merecia tanto. Se punha roupa branca, chovia; se precisava ver a hora, o relógio estava parado; muitas coisas pequenas, assim e outras maiores, já com intervenção humana, e que, por isso, não é necessário contar. Então, considerando que tal concordância de acontecimentos desagradáveis devia ter uma razão secreta, pus-me a procurá-la. Ao contrário do que geralmente se faz, comecei por atribuir a mim mesma a razão dos meus males. É certo que todos temos muitos defeitos. Mas nunca me dei ao luxo de ter tantos que justificassem a conspiração que se fazia contra mim. Admitida a minha inocência, passei ao exame das circunstâncias que por acaso estivessem sob a minha responsabilidade. Nem espelho partido nem vestido marrom nem gato preto nem número fatídico na porta. E assim descendo de observação em observação, e consultando algum conhecido — e os nossos conhecidos sempre sabem essas coisas ocultas e se não nos ajudam com as suas luzes é pela timidez em não acreditarem o momento propício — passei a analisar o meu nome. Esqueci-me de dizer que estava disposta a todos os despojamentos. Se a culpa fosse de algum mau sentimento, de alguma ação malvada, eu me castigaria energicamente. E até para me estimular recordava o exemplo daquela senhora americana que arrancou um olho e cortou a mão, convencida de que esses dois fragmentos do seu corpo estavam estragando a sua alma.Foi nessa ocasião que me explicaram o valor cabalístico das letras, e a razão por que muitas pessoas mudam de nome, trocando aquele que lhes foi dado por outro em que haja uma combinação de valores mais favorável aos seus destinos. Todos os conhecimentos têm uma profunda sedução. Quem conseguisse saber tudo ficava igual a Deus. Por isso é que muitos são de opinião que se saiba o menos possível, para não se ter a mesma sorte de Eva, que logo no princípio do mundo estragou o Paraíso com o pecado do saber. Digo isto porque um tratado de biologia me atrai com a mesma força que um volume de ciências ocultas, e os números e as letras me parecem tão organizados, tão sensíveis, tão vivos, tão poderosos, enfim, como um animal, uma planta, um átomo. Naturalmente, desmontei o meu nome, peça por peça, calculei, pesei, refleti, devo ter chegado a alguma conclusão de que já não me lembro, e não tenho a impressão de que os meus cálculos fossem assim desfavoráveis. Mas pelo sim, pelo não, como havia uma letra disponível, achei melhor sacrificar essa letra. Há os que sacrificam os filhos, os carneiros, as aves, e há os que sacrificam o seu coração. Sacrifiquei o meu. Porque eu gostava de todas as minhas letras, fervorosamente. Ter de cortar uma, não foi assim coisa tão fácil como as reformas ortográficas ordenam. Uma letra é um signo, é uma coisa misteriosa que as gerações vêm carregando consigo, modificando de longe em longe, por mão inexperiente, por súbito esquecimento, por ignorância de algum escriba emprestado. Deu-me um trabalho muito grande, ficar sem essa letra. Quando olhava para o meu nome sem ela, sentia como se me faltasse um pedaço, como se estivesse realmente mutilada, sem a mão ousem o olho. Consolava a letra perdida. Escrevia-a sozinha, do lado, sorria-lhe, contava-lhe coisas, para distraí-la. Tudo era muito infantil e muito triste. A pobrezinha ficava para trás, e dava-me saudade. Recapitulando estas coisas, sinto-me entristecer, e preciso recobrar a minha força de vontade para não alterar outra vez o sobrenome. Afinal, como último trabalho convincente, estabelecemos este acordo. A letra não ficaria perdida: seria usada nos documentos oficiais, nesses lugares respeitáveis em que a firma é a garantia da nossa pessoa recebendo e pagando os lugares que nos vemos que merecem a consagração e a estima unânimes dos nossos colegas humanos. Quanto às coisas literárias, essas efêmeras coisas pelas quais vamos morrendo dia a dia, não são assim de tal modo graves que precisem da firma autêntica, daquela firma por que os juízes nos podem perguntar um dia, brandindo um papel pavoroso e fulminante: "Dize, bandido, foste tu que assinaste este documento?" Não, as coisas literárias não chegam a esse ponto. O mais que nos pode acontecer é tirarem o nome que escrevemos no fim e substituírem-no por outro, sem juiz, sem fulminação, sem defesa... Isto posto, a letra abandonada e eu nos abraçamos ternamente, e nos separamos. Como era uma letra suave, terá querido dizer com o seu romantismo: "Quero apenas que sejas menos infeliz. Acompanhei-te durante tanto tempo! Tiveste tanta dificuldade em aprender a escrever-me... Pensavas com inocência no mistério das letras dobradas... Sentias orgulho, na escola, por essa letra dobrada no nome... Mas talvez eu esteja pesando demais na tua vida. Não fiques triste. Adeus." Fiquei muito triste. Faltava-me a letra. Já não era como se me faltasse um pedaço de mim, — mas, um parente, um amigo extraordinário. A minha vida, porém, mudou tanto que, por mais saudade que me venha dessa letra perdida, não me animo a fazê-la voltar. E está feita a confissão. Como se vê, uma história longa, que não se pode repetir a cada instante. Principalmente porque é uma história íntima, e ninguém deve cortar as letras do seu nome só por ter visto outras pessoas fazê-lo. E fica explicado para sempre que assino deste modo por motivos sobrenaturais, fantásticos, como quiserem, mas não pela reforma ortográfica, aliás muito cautelosa com os nomes próprios, respeitando-os tanto quanto me parece deverem ser respeitados, principalmente pelos mistérios que dentro deles vão navegando.

154. CECÍLIA MEIRELES. A tardezinha de sábado, um pouco cinzenta, um pouco fria, parece não possuir nada de muito particular para ninguém. Os automóveis deslizam; as pessoas entram e saem dos cinemas; os namorados conversam por aqui e por ali; os bares funcionam ativamente, numa fabulosa produção de sanduíches e cachorros-quentes. Apesar da fresquidão, as mocinhas trazem nos pés sandálias douradas, enquanto agasalham a cabeça em echarpes de muitas voltas. Tudo isso é rotina. Há um certo ar de monotonia por toda parte. O bondinho do Pão de Açúcar lá vai cumprindo o seu destino turístico, e moços bem falantes explicam, de lápis na mão, em seus escritórios coloridos e envidraçados, apartamentos que vão ser construídos em poucos meses, com tantos andares, vista para todos os lados, vestíbulos de mármore, tanto de entrada, mais tantas prestações, sem reajustamento — o melhor emprego de capital jamais oferecido! Em alguma ruazinha simpática, com árvores e sossego, ainda há crianças deslumbradas a comerem aquele algodão de açúcar que de repente coloca na paisagem carioca uma pincelada oriental. E há os avós de olhos filosóficos, a conduzirem pela mão a netinha que ensaia os primeiros passeios, como uma bailarina principiante a equilibrar-se nas pontas dos sapatinhos brancos. Andam barquinhos pela baía, com um raio de sol a brilhar nas velas; há uns pescadores carregados de linhas, samburás, caniços, muito compenetrados da sua perícia; há famílias inteiras que não se sabe de onde vêm nem se pode imaginar para onde vão, e que ocupam muito lugar na calçada, com a boca cheia de coisas que devem ser balas, caramelos, pipocas, que passam de uma bochecha para a outra e lhes devem causar uma delícia infinita. Depois aparecem muitas pessoas bem vestidas, cavalheiros com sapatos reluzentes, senhoras com roupas de renda e chapéus imensos que a brisa da tarde procura docemente arrebatar. Há risos, pulseiras que brilham, anéis que faíscam, muita alegria: pois não há mesmo nada mais divertido que uma pessoa toda coberta de sedas, plumas e flores, a lutar com o vento maroto, irreverente e pagão. E depois são as belas igrejas acesas, todas ornamentadas, atapetadas, como jardins brancos de grandes ramos floridos. Por uma rua transversal, está chegando um carro. E dentro dele vem a noiva, que não se pode ver, pois está coberta de cascatas de véus, como se viajasse dentro da Via-láctea. Todos param e olham, inutilmente. Ela é a misteriosa dona dessa tardezinha de sábado, que parecia simples, apenas um pouco cinzenta, um pouco fria. E a moça que vem, com a alma cheia de interrogações, para transformar seus dias de menina e adolescente, despreocupados e livres, em dias compactos de deveres e responsabilidades. É uma transição de tempos, de mundos. Mas os convidados a esperam felizes, e ela não terá que pensar nisso. Ela mal se lembra que é sábado, que é o dia de seu casamento, que há padrinhos e convidados. E quando a cerimônia chegar ao apogeu, talvez nem se lembre de quem é: separada dos acontecimentos da terra, subitamente incorporada ao giro do Universo.

155. CECÍLIA MEIRELLES. Na Ilha do Nanja, o Natal continua a ser maravilhoso. Lá ninguém celebra o Natal como o aniversário do Menino Jesus, mas sim como o verdadeiro dia do seu nascimento. Todos os anos o Menino Jesus nasce, naquela data, como nascem no horizonte, todos os dias e todas as noites, o sol e a lua e as estrelas e os planetas. Na Ilha do Nanja, as pessoas levam o ano inteiro esperando pela chegada do Natal. Sofrem doenças, necessidades, desgostos como se andassem sob uma chuva de flores, porque o Natal chega: e, com ele, a esperança, o consolo, a certeza do Bem, da Justiça, do Amor. Na Ilha do Nanja, as pessoas acreditam nessas palavras que antigamente se denominavam "substantivos próprios" e se escreviam com letras maiúsculas. Lá, elas continuam a ser denominadas e escritas assim. Na Ilha do Nanja, pelo Natal, todos vestem uma roupinha nova — mas uma roupinha barata, pois é gente pobre — apenas pelo decoro de participar de uma festa que eles acham ser a maior da humanidade. Além da roupinha nova, melhoram um pouco a janta, porque nós, humanos, quase sempre associamos à alegria da alma um certo bem-estar físico, geralmente representado por um pouco de doce e um pouco de vinho. Tudo, porém, moderadamente, pois essa gente da Ilha do Nanja é muito sóbria.Durante o Natal, na Ilha do Nanja, ninguém ofende o seu vizinho — antes, todos se saúdam com grande cortesia, e uns dizem e outros respondem no mesmo tom celestial: "Boas Festas! Boas Festas!"E ninguém, pede contribuições especiais, nem abonos nem presentes — mesmo porque se isso acontecesse, Jesus não nasceria. Como podia Jesus nascer num clima de tal sofreguidão? Ninguém pede nada. Mas todos dão qualquer coisa, uns mais, outros menos, porque todos se sentem felizes, e a felicidade não é pedir nem receber: a felicidade é dar. Pode-se dar uma flor, um pintinho, um caramujo, um peixe — trata-se de uma ilha, com praias e pescadores ! — uma cestinha de ovos, um queijo, um pote de mel... É como se a Ilha toda fosse um presepe. Há mesmo quem dê um carneirinho, um pombo, um verso! Foi lá que me ofereceram, certa vez, um raio de sol!Na Ilha de Nanja, passa-se o ano inteiro com o coração repleto das alegrias do Natal. Essas alegrias só esmorecem um pouco pela Semana Santa, quando de repente se fica em dúvida sobre a vitória das Trevas e o fim de Deus. Mas logo rompe a Aleluia, vê-se a luz gloriosa do Céu brilhar de novo, e todos voltam para o seu trabalho a cantar, ainda com lágrimas nos olhos.Na Ilha do Nanja é assim. Arvores de Natal não existem por lá. As crianças brincam com. pedrinhas, areia, formigas: não sabem que há pistolas, armas nucleares, bombas de 200 megatons. Se soubessem disso, choravam. Lá também ninguém lê histórias em quadrinhos. E tudo é muito mais maravilhoso, em sua ingenuidade. Os mortos vêm cantar com os vivos, nas grandes festas, porque Deus imortaliza, reúne, e faz deste mundo e de todos os outros uma coisa só.É assim que se pensa na Ilha do Nanja, onde agora se festeja o Natal.

156. CECÍLIA MEIRELLES. Com estas florestas de arranha-céus que vão crescendo, muita gente pensa que passarinho é coisa só de jardim zoológico; e outras até acham que seja apenas antigüidade de museu. Certamente chegaremos lá; mas por enquanto ainda existem bairros afortunados onde haja uma casa, casa que tenha um quintal, quintal que tenha uma árvore. Bom será que essa árvore seja a mangueira. Pois nesse vasto palácio verde podem morar muitos passarinhos. Os velhos cronistas desta terra encantaram-se com canindés e araras, tuins e sabiás, maracanãs e "querejuás todos azuis de cor finíssima...". Nós esquecemos tudo: quando um poeta fala num pássaro, o leitor pensa que é leitura... Mas há um passarinho chamado bem-te-vi. Creio que ele está para acabar. E é pena, pois com esse nome que tem — e que é a sua própria voz — devia estar em todas as repartições e outros lugares, numa elegante gaiola, para no momento oportuno anunciar a sua presença. Seria um sobressalto providencial e sob forma tão inocente e agradável que ninguém se aborreceria. O que me leva a crer no desaparecimento do bem-te-vi são as mudanças que começo a observar na sua voz. O ano passado, aqui nas mangueiras dos meus simpáticos vizinhos, apareceu um bem-te-vi caprichoso, muito moderno, que se recusava a articular as três sílabas tradicionais do seu nome, limitando-se a gritar: "...te-vi! ...te-vi", com a maior irreverência gramatical. Como dizem que as últimas gerações andam muito rebeldes e novidadeiras achei natural que também os passarinhos estivessem contagiados pelo novo estilo humano. Logo a seguir, o mesmo passarinho, ou seu filho ou seu irmão — como posso saber, com a folhagem cerrada da mangueira? — animou-se a uma audácia maior Não quis saber das duas sílabas, e começou a gritar apenas daqui, dali, invisível e brincalhão: "...vi! ...vi! ...vi! ..." o que me pareceu divertido, nesta era do twist. O tempo passou, o bem-te-vi deve ter viajado, talvez seja cosmonauta, talvez tenha voado com o seu team de futebol — que se não há de pensar de bem-te-vis assim progressistas, que rompem com o canto da família e mudam os lemas dos seus brasões? Talvez tenha sido atacado por esses crioulos fortes que agora saem do mato de repente e disparam sem razão nenhuma no primeiro indivíduo que encontram. Mas hoje ouvi um bem-te-vi cantar E cantava assim: "Bem-bem-bem...te-vi!" Pensei: "É uma nova escola poética que se eleva da mangueira!..." Depois, o passarinho mudou. E fez: "Bem-te-te-te... vi!" Tornei a refletir: "Deve estar estudando a sua cartilha... Estará soletrando..." E o passarinho: "Bem-bem-bem...te-te-te...vi-vi-vi!" Os ornitólogos devem saber se isso é caso comum ou raro. Eu jamais tinha ouvido uma coisa assim! Mas as crianças, que sabem mais do que eu, e vão diretas aos assuntos, ouviram, pensaram e disseram: "Que engraçado! Um bem-te-vi gago!" (É: talvez não seja mesmo exotismo, mas apenas gagueira...)

157. CHICO ANYSIO. Andando há 40 anos por este país, catando dinheiro para levar pra casa, eu aprendi a acreditar. Acreditar na terra, no homem, na chuva, na benção, na semente, no fruto, no coração, na mente… na inteligência. Aprendi, com o meu povo, que quando uma coisa está muito séria, o melhor que se faz é brincar com ela. E, naquelas tardes terríveis, sozinho num quarto de hotel, esperando a hora do show, eu comecei a desenhar o pais dos meus sonhos. Um país onde cada lavrador tenha um par de bois para puxar seu arado e que de tarde, ao voltar para casa, encontre um par de filhos o esperando e à noite quando for dormir, tenha um par de pernas para amar; no país dos meus sonhos, todo pobre vai comer, todo hospital terá remédios, todo aluno terá colégio, todo professor ganhará um salário decente e todo policial apenas prenderá os bandidos, em vez de os ajudar a matar e a roubar; no país dos meus sonhos todo cego vai ver, todo surdo vai ouvir e todo mudo vai ver e ouvir coisas tão lindas que nem será preciso dizer nada; no país dos meus sonhos a integração do homem com a natureza será tanta que eu chego a imaginar uma árvore dizendo a um homem: “Você me tratou tão bem, foi tão legal comigo, que eu gostaria de me transformar na mesa da sua casa, nas cadeiras onde sua família sentará, no berço do seu filho”. No país dos meus sonhos, o homem branco, afinal, vai descobrir que o coração do negro é do tamanho do seu e o sangue da mesma cor. O país dos meus sonhos um dia será verdade. E ele será tão feliz que nem vai precisar de mim para fazer rir um pouco. Não faz mal. Eu perco o emprego, mas não perco o meu sonho. Boa noite.

158. CHICO ANYSIO. Houve um tempo, no Rio de Janeiro, que cada bairro tinha o seu valentão. Era o Frederico em Copacabana, o Raul na Urca, o Waldemar no Catete, o Silvão no Cosme Velho. Tudo no bairro tinha que acontecer dentro do desejado por eles, de acordo com a vontade do valentão. O interessante é que todos se respeitavam e ninguém soube, nunca, de um ter que encarar o outro numa disputa, uma briga, fosse por que motivo fosse. O fato de mandar na sua circunscrição era mais que suficiente para todos eles. No Leme, o valentão era o “Chave Inglesa”. Ninguém sabia o seu nome de batismo, mas no Rio não havia quem não soubesse da existência do “Chave Inglesa”, mandando e comandando do Leme até o Lido. “Chave Inglesa” morava na Ladeira Ary Barroso – que naquela época chamava-se Ladeira do Leme, numa casa de madeira, pobre, mas isto não interessava para ele. Tinha – segundo se dizia – apenas um amigo, o ex-salva-vidas “China”, também morador da Ladeira e que mantinha um Centro Espírita em sua casa. China foi um dos primeiros banhistas do Rio e professor da maioria deles. Mas o fato de ser amigo do China não aliviava ninguém de uma pressão do “Chave”, se este fosse o desejo dele. Ao China ele respeitava – até mesmo pela idade, mas ser amigo do China não livrava a cara de ninguém. Um dia um jovem casal, saído da praia, dirigia-se para seu carro e passou pelo “Chave” que conversava com um amigo perto do “Sacha’s”, cheio de palavrões. O rapaz deixou a moça um pouco afastada e veio até o “Chave” e seu amigo, muito gentil: - Oh, amigo… eu estou passando aqui com a minha menina e o senhor aí com a boca cheia de palavrões… O amigo do “Chave” foi quem respondeu: - Esquece isso e vai embora, garotinho, porque esse aqui é o Chave Inglesa e ele faz o que quiser. O rapaz, que era faixa-preta de jiu-jitsu, segurou com o polegar e o indicador nas banhas da cintura do “Chave” e, enquanto apertava o que podia, foi falando, mansamente: - E então ? Sendo o Chave Inglesa é até um motivo mais forte para ter a boquinha limpa, porque vamos que eu me aborreça e resolva lhe dar uma surra. Vai ficar bonito para o famoso Chave Inglesa apanhar feito boi ladrão de um garotão que ninguém sabe quem é… aqui, na casa dele ? Passe a tomar conta do que fala, para não apanhar e muito quem sabe até sem ter conserto. OK? E como apertava mais a cada frase falada, Chave Inglesa, no final, já estava todo retorcido. O rapaz soltou as banhas dele e foi embora com a namorada, enquanto Chave Inglesa levantou a camisa e, dando massagem naquela poça de sangue da cintura, comentava com o amigo: - Rapazinho forte…

159. CHICO ANYSIO. Eu sou da safra de 31. Uma boa safra. Muita gente de boa categoria é desta safra. Não digo os nomes deles por não ter certeza de que eles não se aborrecerão por terem sido citados, mas gente de importância. Só que eu tenho comigo um problema muito esquisito. Apesar de ter nascido em 1931 – 12 de abril – a minha certidão de idade é de 1929. Seria impossível eu ter nascido em 29, porque eu sou de abril e minha irmã de julho. Ela, nascida em 1929. Minha mãe, apesar de ter sido uma pessoa especialíssima, jamais poderia ter um filho em abril de 29 e 3 meses depois uma filha. É que a minha certidão de idade não veio de Maranguape, mas de Maracanaú e eu a recebi e, sem olhar, imediatamente a entreguei ao colégio. Só nos demos conta do erro quando o exército me convocou para servir. Eu tinha 16 anos. Fomos verificar e ali estava o grande grilo: eu oficialmente era de 29. Apresentei-me ao exército com dezesseis anos. É claro que seria impossível eu ser aceito, porque a minha magreza era algo  fora do comum. Basta dizer que, aos 10 anos, eu pesava 18 quilos e calçava 39. Eu era um L. No quartel onde me apresentei, em São Cristóvão, as pessoas chegavam a rir de mim. Fui gozado e apresentado a todos como uma figura ímpar…Meu certificado de reservista ficou sendo de terceira categoria, e o capitão que me deu este documento fez questão que eu ficasse em sua companhia por mais algum tempo, o que não me criou problema algum. Acabou que eu tive o prazer de ser convidado por ele para almoçar com os oficiais. Eu havia me transformado numa espécie de talismã daquele quartel, eu acho. E foi aí, na hora da refeição, que eu presenciei algo de que nunca mais me esquecerei. Um soldado chegou ao capitão com um prato e o mostrou ao oficial. - Por favor…capitão. O que é isso? O capitão olhou, deu uma ligeira provada, cuspiu de lado e disse de modo definitivo. - Ora, soldado. Isto é piche. E o soldado: - Pois é, capitão… O cozinheiro quer convencer a gente de que isso é tutu. Nesta hora eu dei graças a Deus pelo certificado errado que me enviaram de Maracanaú.

160. CHICO ANYSIO. Quando o Carlos Manga, na Excelsior, me deportou para São Paulo, para que eu trabalhasse numa emissora que tinha um único estúdio e duas câmeras, talvez pensasse que estava decretando a minha morte; o negócio é que, ao mesmo tempo, ele me deu o direito de escolher um diretor e eu escolhi Daniel Filho. O Manga riu muito ao saber que meu escolhido era o Daniel e disse uma frase ao telefone que eu de longe escutei: - Vai no primeiro avião. O Daniel foi, e o Edson Leite, diretor geral da Excelsior, resolveu nos ajudar. Alugou um equipamento de externas, uma unidade móvel e o Daniel e eu, com a ajuda do Irvando Luiz e do Marcos Cesar, escrevemos programas a serem gravados em externa. Tudo in loco. Uns oficina era gravado numa oficina, (essa frase está meio truncada, meu primo) um colégio num colégio real… e um dia combinamos com a direção e o treinador e foi escrito um programa para ser gravado na concentração do Santos. Quando, na terça-feira, o caminhão de externa e o ônibus com os atores chegaram à Vila Belmiro, às 7.30 da manhã, o porteiro nos informou que, como o jogo de quinta era considerado fácil, o Lula (o técnico) havia cancelado a concentração. Eu, imediatamente, fui à casa do Pelé, de quem durante muito tempo fui vizinho. Dona Celeste me atendeu sempre gentil e, ao saber do caso, sugeriu que eu o acordasse. Fui ao quarto do rei e… - Pelé…Pelé… Ele acordou num pulo e tomou um susto ao me ver. - Que aconteceu ? Eu contei o caso e ele, sem titubear: - Me espera aí. Eu vou tomar um banho e vou acordar os jogadores e mandar todos eles pra Vila. Eu sei onde eles moram. 15 minutos depois ele saiu, e eu voltei para o estádio. Daniel já começou a posicionar as câmeras e preparar tudo para filmagem. Meia hora depois começaram a chegar os craques do Santos: Orlando Peçanha, Rildo, Mengálvio, Dorval, Coutinho, Pepe, Zito… Ao meio-dia chegou o Pelé. De táxi. - Mandei um cara com o meu carro a São Paulo buscar o Gilmar e o Mauro. A que horas eu posso chegar ? Daniel disse que ele poderia chegar apenas à noite, pois a cena dele era a última. O programa terminava com o Pelé e eu trocando cabeçadas e eu sugeri que eles me levantassem e saíssem comigo, como se me fosse jogar na piscina. O Pelé com a camisa do Santos e eu com a do Palmeiras. Tudo bem. Eles me levantaram… o Daniel gritou: “Corta”. O programa acabou. Pelé chegou para o Daniel e pediu: - Por favor, não põe no ar esta cena da gente levantando o Chico. - Por quê? - Eu manjo esse safado. Ele vai dizer que isto é o Santos reconhecendo a superioridade do Palmeiras. Nem pude reclamar, porque era exatamente isso que eu iria dizer. Por causa dessas coisinhas é que igual ao Pelé… ninguém. Ou “nadie”- como diria o Maradona. 

161. CHICO ANYSIO. Cada um de nós tem o seu conceito de feiúra e isto é um assunto bastante discutível. Há pessoas que são feias na sua opinião e que na minha não são, assim como muitas a quem eu considero horríveis, vivem cheias de namorados que se encantam com elas. Há ainda a não ser esquecido aquele papo de que "quem come cara é bexiga" e, diante disto, uma mulher não deve ser medida pelo que o rosto promete ou deixa de prometer. Mas somos obrigados a reconhecer que há as irremediavelmente feias, porque mulheres cujas feiúras são absolutas e nada têm de relativo. Feiúra total. Roberinha nem era assim tão feia, mas parece que ficou combinado que era. É verdade que ela nasceu feia. Contam que o médico que a aparou ao se deparar com a carinha de Roberinha, passou-a para os braços da enfermeira e saiu em desabalada carreira. Roberinha nasceu no interior e, quando o pai a levou para ser batizada o padre a olhou, examinou bem e disse: -Sr. Gonçalves, vamos combinar o seguinte: o senhor leva a menina para casa. Se dentro de três dias ela não latir, o senhor traz de volta que eu batizo. Roberinha, aos quatro anos vinha com seu pai a cavalo, sentadinha ali junto ao Santo Antonio da sela e uma vizinha convidou o pai para um café. -Bom dia, Seu Gonçalves. Suba até aqui. Venha tomar um café... Sr. Gonçalves subiu para a entrada da cozinha, apeou do cavalo e tirou Roberinha de sela, segurando-a no colo. O vizinho, que se aproximava... -Sua filha ? -Sim. Roberinha. –Bonitinha. E o pai: -Liga, não, filha. Ele está falando isso só pra te agradar. Roberinha sempre soube que era feia e, por esta razão, não se aborreceu ou se surpreendeu quando, ao contar a uma autoridade o que sabia de um assalto havido na rua, o homem disse ao policial. -Eu vi tudo. Ele assaltou a mulher e depois botou a mulher dentro de um carro e sumiu com ela. -E como era a mulher ? -Feia. Assim como essa mocinha aqui. A mocinha era Roberinha. Mas depois de casar, ou melhor, depois de ter conseguido casar, Roberinha parou de aceitar esta discriminação. E sua decisão incluía o próprio marido. Assim, quando ela perdeu o avião que a levaria para Roraima e só havia outro no dia seguinte, ao voltar para casa e entrar, dizendo... -Perdi o avião. Na hora em que Cláudio, seu marido, a olhou exclamando feliz por tê-la de volta ao lar: -Mas que beleza !...Roberinha rebateu. -Vai pra... E deu o endereço de um lugar para onde ele ir.

162. CHICO ANYSIO. Acho que todos sabem que eu morei dois anos nos Estados Unidos e foi lá que eu descobri uma coisa interessante: os americanos inventaram o automóvel mas esqueceram de inventar a garagem. Em Manhattan, coração de New York, que é coração dos Estados Unidos, não adianta ter carro, porque não há onde o guardar. Os prédios super-novos estão construindo garagens nos 3 primeiros andares, mas nos antigos é impossível, porque se furar o chão para fazer uma, dá no metrô. E os prédios continuam sendo construídos sem quarto de empregada. Assim, à primeira vista, parece um erro, mas não é, porque lá é muito difícil alguém ter empregada. As empregadas têm os latinos, acostumados a este luxo. Mas será que é luxo,mesmo? Os apartamentos americanos são mínimos, inteiramente diferentes dos daqui que, muitas vezes, têm quatro suítes, três salas, três quartos de empregada e seis vagas na garagem. Mas numa coisinha o negócio continua absurdo: o tamanho do quarto de empregada. Uma mulher que tenha um metro e setenta não pode tentar este emprego, a não ser que concorde em dormir em pé. Cama, num quarto de empregada, o máximo que pode ter de tamanho é um metro e sessenta e cinco. Ali, então, você coloca um armário de uma porta e fim. Não cabe mais nada. Janela, nem pensar. Basculante de uma folha e, vizinho, um banheiro que se a porta abrir para dentro não dá para a empregada entrar. A porta abre para fora, ela entra e o seu banho tem que ser tomado sem que ela queira se dar ao luxo de virar de frente ou de costas para a água que cai nela, no vaso, na pia de palmo e meio, na parede geral e na porta, além da toalha, é claro. Um dia, os engenheiros vão chegar à conclusão de que empregada doméstica é um ser humano e vão construir quartos e banheiros de serviço pelo menos SUPORTÁVEIS. Estou falando deste assunto, porque uma empregada maravilhosa que eu havia encontrado, ontem foi embora. Achei que era por uma questão de salário e lhe propus um aumento, mas ela recusou e me deu a explicação numa frase que achei muito interessante: -O problema é o banheiro, Sr. Francisco. -Qual é o problema ? -Quando tomo banho, o papel higiênico fica encharcado, e papel higiênico molhado, o senhor sabe: não serve para cumprir sua finalidade.

163. CHICO ANYSIO. Eu comecei cedo a trabalhar no rádio, num tempo em que eu ainda estudava e tinha, portanto, minhas obrigações escolares a cumprir. Isto me obrigava a escrever seis programas semanais, além de ser locutor, narrador, rádio-ator, enfim… essas tantas, as minhas obrigações, me impediam de “inventar” um tempo para ir ao Ministério do Trabalho cuidar da minha carteira profissional. Por uns três anos (primeira na Guanabara e depois já na Mayrink Veiga) eu consegui driblar o homem do Departamento do Pessoal, que vinha pelo menos duas vezes por semana com a mesma reclamação: - Anysio, sua carteira profissional. - Esta semana eu estou em provas, Sr. Varela, mas na próxima o senhor pode ficar descansado que… Era uma época em que ninguém podia ficar descansado. A diminuição do dinheiro na Mayrink a obrigou a diminuir o elenco e, de uma hora para outra, eu escrevia treze programas semanais, atuava em todos e estudava. Um dia o Sr. Varela não agüentou mais minhas transferências e, sem briga ou aborrecimento, me deu o bilhete azul. Eram três e quinze da tarde. Às três e meia eu já estava empregado. Ronaldo Lupo, com quem me encontrei no saguão, com um telefonema para o Sr. Arnaldo Pinto, no Recife, me colocou na Rádio Clube de Pernambuco, a gloriosa Pioneira da Avenida Cruz Cabugá, no Recife. Era um contrato de três anos e eu estava, numa terça-feira, escrevendo o meu programa de estréia que aconteceria na sexta quando o Luiz Maranhão, diretor do rádio-teatro, entrou na sala e me pediu para fazer um papel (uma pontinha de um capítulo só) na novela “Três Vidas” do Amaral Gurgel. - Está aqui o papel. Não precisa nem ensaiar. Na hora o contra-regra vem lhe buscar. - OK. Eu faço. Era um monólogo, onde um homem contava a uma mulher, em pleno Times Square de New York, uma aventura que lhe acontecera. O contra-regra me chamou, eu fui e entrei no estúdio onde não conhecia ninguém e ninguém me conhecia. Estava no intervalo comercial. Eu disse um “alô”geral, em cumprimento e recebi de volta um gemido total. A cena abria com o meu monólogo, e a mulher para quem eu contava o caso era desse tipo de atriz que gostava de falar uma coisinha nos vazios. - Você nem imagina o que me aconteceu. - Sim…(Ela falou sem estar escrito). Ao perceber isto eu já fui deixando os brancos para os murmúrios que ela adorava. Até que cheguei ao final do monólogo: - … devolvi a carteira a ele na casa dele e imagine que ele me deu, de presente, dois mil dólares ! E ela, pernambucana de Casa Forte, nordestina da gota, cachorra da mulesta, vivendo o papel de uma americana, em Times Square: - Arre, égua ! Saí do estúdio mijado. Era o único modo de segurar o riso. 

164. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. A CASA DO OSCAR. A casa do Oscar era o sonho da família. Havia o terreno para os lados da Iguatemi, havia o anteprojeto, presente do próprio, havia a promessa de que um belo dia iríamos morar na casa do Oscar. Cresci cheio de impaciência porque meu pai, embora fosse dono do Museu do Ipiranga, nunca juntava dinheiro para construir a casa do Oscar. Mais tarde, num aperto, em vez de vender o museu com os cacarecos dentro, papai vendeu o terreno da Iguatemi. Desse modo a casa do Oscar, antes de existir, foi demolida. Ou ficou intacta, suspensa no ar, como a casa no beco de Manuel Bandeira. Senti-me traído, tornei-me um rebelde, insultei meu pai, ergui o braço contra minha mãe e sai batendo a porta da nossa casa velha e normanda: só volto para casa quando for a casa do Oscar! Pois bem, internaram-me num ginásio em Cataguazes, projeto do Oscar. Vivi seis meses naquale casarão do Oscar, achei pouco, decidi-me a ser Oscar eu mesmo. Regressei a São Paulo, estudei geometria descritiva, passei no vestibular e fui o pior aluno da classe. Mas ao professor de topografia, que me reprovou no exame oral, respondi calado: lá em casa tenho um canudo com a casa do Oscar. Depois larguei a arquitetura e virei aprendiz de Tom Jobim. Quando a minha música sai boa, penso que parece música do Tom Jobim. Música do Tom, na minha cabeça, é a casa do Oscar.

165. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. ANDANDO COM TOM. Eu era um garoto que, como os outros, amava a Bossa Nova e o Tom Jobim. Queria ser um compositor igual ao Tom Jobim. Não gostava mais das canções desesperadas. Só queria aquela música que era toda enxuta, porque derramada para dentro. Queria tocar piano igual ao Tom Jobim. Como nada me saísse direito, eu disse "este piano é uma droga" e fugi de casa. Queria contar histórias igual ao Tom Jobim. Fui dar na casa de Tom Jobim em Ipanema. Aloysio de Oliveira me apresentou a ele e eu mostrei meu samba no violão. Tom olhou. Noutro dia, inventou um acorde para o meu samba, ficou repetindo o acorde dele e dizendo "você é um craque". Quando o Tom entra com um acorde dele, parece que abriram a janela. Foi para Nova Iorque, gravou com Sinatra e o pessoal disse "poxa". Voltou porque sentiu saudade dos chatos. Se mudou para o Leblon, mas continuou no bar de Ipanema. Me deu parceria, um pouco para se vingar de Vinícius, que estava saindo muito com Baden e Edu. Nossa Sabiá foi vaiada no Maracanãzinho e ele chorou um pouquinho no túnel Rebouças. Me telefonou de Londres para Roma, preocupado com a poluição do ar. Desligou 50 minutos depois. Me acordou de madrugada porque se lembrou que a poluição no ar também é coisa grave. Esteve comigo em Roma, mas não gostou da cerveja. De volta ao Rio, passeamos bastante. Bebemos uísque no Antonio's, no Luna Bar, na sauna, no Canecão, depusemos juntos no Dops. Vi Águas de Março sendo rabiscada. Às vezes, acho que é o samba mais bonito do mundo. Me deu dois dicionários de espanhol, um de inglês, me emprestou The wast land em italiano, me releu Drummond, me emprestou seu feiticeiro, me ensinou arquitetura. Gostava do meu pai. Me falou do seu pai e um dia me levou para a sua sessão de análise, mas isso foi muito antes. Me ajudou a comprar um piano e me explicou que eu não levo jeito para pianista.

166. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. PASQUINO. O Departamento de Pesquisas decidiu inaugurar suas atividades em Roma rebuscando as origens remotas do PASQUIM. Seu generoso arquivo de amizade informara-lhe que a palavra pasquim deriva de Pasquino, personagem que habitou e abalou a Roma do Século XV. Partindo desse dado o Departamento passou a desemaranhar os livros e as ruas desta cidade para, após cuidadoso e exaustivo exame, salvar de traças e ruínas o serviço que segue abaixo. Mestre Pasquino teria sido o barbeiro predileto dos figurões da corte e do clero. Corta daqui, apara dali, e a nobre clientela fofocando. Pasquino fazia-se de surdo e bobo, mas na manhã seguinte os vícios dos ilustres já eram do conhecimento público. Outras versões sustentam que Pasquino foi um alfaiate ou, ainda, proprietário dum restaurante. Uma última fonte classifica-o "literator seu magister Iudi (vide Carmina qua ad Pasquillum fuerunt posita in anno MCCCCCIX)", coisa que o Departamento de Pesquisa não pode constatar por absoluta ignorância do latim. De um modo geral, porém, as indicações coincidem na imagem dum Pasquino intimamente ligado à classe dominante, da qual gozava os melhores favores e publicava os piores segredos. O privilégio da informação direta e o talento para o verso satírico valeram-lhe uma reputação que lhe sobreviveu. Ainda depois de morto, Pasquino continuou a desacatar autoridades através de manifestos pendurados numa estátua de origem obscura. Escondidos sob o prestígio e o estilo do mestre, seus "secretários" compuseram célebres pasquinadas, muitas delas impublicáveis, que atacaram desde os papas do renascimento até os líderes do fascismo. Com o tempo, Pasquino ficou sendo nome da estátua que servia de mural às pasquinadas. E esse monummento, que na verdade ninguém sabe o que representa, acabou por superar a reputação do mestre. Tanto é que, em 1500 e tantos, o Papa Adriano VI, ficou fulo da vida e resolveu destruir a estátua, ordenando que se a mutilasse e atirasse no Tibre. Torquato Tasso, com muita sabedoria, dissuadiu o Papa afirmando que, mesmo no fundo do rio, Pasquino contaria com a voz das rãs para espalhar o vitupério. Como testemunha da História e das lendas, sobra apenas um rosto desfigurado sobre um tronco de mármore corroído. Trata-se da outrora implacável estátua de Pasquino, encostada discretamente na pequenina praça do mesmo nome. Ultimamente Pasquino tem andado quieto, protegido ou censurado por uma cerca de um guarda civil. Entretanto, graças à fotografia de Araújo Netto e à ousadia dum alpinista eventual, o Departamento de Pesquisa conseguiu reanimar a velha estátua em versão tropical. Desafiando a polícia, eis o fruto da temível pasquinada: um papagaio de Copacabana, uma alusão ao rato televisivo, um exemplar do Pasquim e o boneco Fio travestido em tricolor.

167. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. PRIMEIRO ANIVERSÁRIO. Outro dia completei um ano de Roma. Triste aniversário, um frio de cão. A cidade chuvosa e sem assunto, igual a quando cheguei e com um Vinícius a menos. Os amigos italianos só pensam em San Remo. Glauber Rocha, que, felizmente, nada tem com San Remo, está montando um leão de sete cabeças que não quero incomodar. Os jornais têm omitido os fatos brasileiros, com exceção do milésimo gol, e do Apolo 12. Enfim, a gente acaba aqui isolado, apavorado com a idéia de virar estrangeiro. Nisso aparece Jorge Ben e o Trio Mocotó, vindo do "Midem" de Cannes e já de saída para São Paulo. É o tempo de jantarmos juntos, o que me dá muita alegria, apesar de Nereu Mocotó misturar água com açúcar no vinho italiano. Jorge Ben, que eu praticamente só conhecia de samba, é a cara de seus sambas. Pertence a outro mundo, outro critério. Só ele tem direito a cantar uma mulher de nome Domingas. Pode dizer tranqüilamente que "é olímpica a sua beleza" ou que "sambaby, eu sou um menino de mentalidade mediana". Pode até, imaginem só, afirmar que é Flamengo sem arriscar vexame. Um conhecido meu andou tentando julgar friamente os versos de "Domingas", "País tropical", "Crioula", "Silva Lenheira", etc. Isso de julgar samba friamente é como extrair raiz quadrada com excessivo calor humano, quase sempre dá errado. Mas Jorge e seus Mocotós partiram depressa sem explicar direito como foi o negócio lá em Cannes, no festival do "Midem". Agora cá está o jornal italiano que não me deixa nem exagerar. "O Pranto de Jorge Ben" é a manchete. "Não é sempre que a gente vê - diz o jornal - um grande negro de calças escarlates chorar tão desconsoladamente como chorava esta noite o cantor brasileiro. Seus próprios acompanhantes pareciam preocupados, embora continuassem sorrindo ao público para tranqüilizá-lo. Jorge Ben chorava sobretudo com o nariz que se lhe dilatou e inchou..." e vai por aí afora. O enorme sucesso de sua música, para o jornalista europeu, é de menos, estava previsto. Inédita é a sinceridade, a ingenuidade de Jorge chorando, enquanto sua cotação subia tantos pontos e seu nome era cogitado, cochichado, pechinchado, revendido e valorizado no mercado internacional do disco. O que parece melancólico, mas é ótimo, é de morrer de rir. É de mandá o plá pegá o tutu, comprá outro fu, machucá as escô e beliscá o mocotó das criô do pa-tro-pi. Mudando de pato pra ganso, deixa dizer que recebi do Brasil um caderno escolar da "Coleção Pra Frente" com minha fotografia sorridente na capa. Até muito bem. Aproveito inclusive para agradecer ao layouter que teve a delicadeza de me limpar a nicotina dos dentes. O diabo é a contracapa, onde resolveram imprimir e atribuir a meu nome uma espécie de poema intitulado "Jovem estudante". A honestidade profissional obriga-me a confessar que não sou autor de tal obra. Eu não poderia, não seria capaz. Portanto, peço desculpas ao jovem estudante, mas nunca me passou pela cabeça exortá-lo a "amar até mesmo os sonhos, acordado", ou a "nutrir na alma uma vontade enorme de vencer". Peço, enfim, o perdão do poeta, o autor verdadeiro, que tão humildemente sacrificou seu nome em meu favor.

168. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. BRASILEIROS EM ROMA. Jornalista Araújo Netto garante que é Roma a cidade mais bonita do Brasil. Não sei não, será? Vejo Rio, Bahia, Ouro Preto e não encontro termos de comparação. Vamos lá que seja Roma a cidade brasileira onde se ouve o melhor samba de rua, exceção feita ao carnaval carioca. Em nenhum outro lugar, em nenhum outro agosto, você pode assistir a um bom sambinha grátis como o que Toquinho, ao violão, e Gláuber Rocha, à caixinha de fósforos, balançaram na Piazza Santa Maria in Trastevere. Juntou tanta gente que a polícia interveio, desconfiada de maconhas e mulheres nuas que ali não havia. E a cantoria seguiu até o dia seguinte. Por outro lado, pelos Alpes, vinha chegando Antônio Carlos Jobim. Mais descia no mapa e mais o desnorteava a familiaridade crescente, na paisagem, nos homens. O trem fazendo mais barulho, o calor, o milho vadio invadindo os trilhos, a gravata arreada do cobrador de passaporte, a senhora gorda ocupando o lugar errado, enfim Roma, o chofer de táxi falastrão, a minha casa, a feijoada, e uma batida de limão. Espiando pela janela, Tom olhou bem no capinzal do terreno baldio: - Pois é, Chiquinho, e eu certo que você tinha deixado Brasil. - Que nada, Antônio, continuo por aqui. Vamos jantar no Moro, sede da melhor mais legítima cozinha romana. Não é restaurante para turista, lógico. Só tem brasileiro. Entre outras vantagens, no Moro você pode pendurar a conta no cabide aí em frente. - Que bom que você veio, diz Odette Lara a Tom Jobim. Assim eu aproveito e faço a entrevista que O PASQUIM me pediu. - Como? - Sou correspondente d'O PASQUIM em Roma, diz Odette. Muito ofendido, este repórter vai protestar mas é interrompido. Juca Chaves, que está noutra mesa, Maristella Denner, mete o nariz na conversa: - Diga a O PASQUIM que eu não disse nada do que disse contra eles. - O Carlinhos de Oliveira é que está do contra, diz uma terceira mesa lendo O Jornal do Brasil. Aí todas as mesas começam a falar ao mesmo tempo, na maior animação. Só quem parece triste é o Grande Otelo, por causa de seu enorme sucesso em Veneza: - Estou com 54 anos, que vantagem... - O poeta é um ressentido, diz Tom Jobim. Não gosto de entrevista porque vivo citando o Drummond, e cito certinho, depois vem aquêle copy-desk e resolve corrigir. Então fica feio, sabe como é, e o Drummond vai acabar com raiva de eu ficar errando os versos dele por aí. Carlos Leonam aparece na porta e pergunta por Hugo Carvana, mas este já se mandou na Ponte Aérea para o Rio. - Senta aí que ele não deve demorar. Cacá Diegues está muito satisfeito com a acolhida de Os Herdeiros no recente festival de cinema: - É mas preciso vender o filme em Paris. Aqui é difícil, o mercado é limitado. Nara Leão acompanha o marido na viagem e na satisfação: - O filme foi muito bem recebido. Pena ter caído no mesmo dia do Fellini. O Fellini fez a maior onda, mil promoções, essas coisas de brasileiro. Brasileiros continuam entrando e saindo pelo ladrão. -Oi, bicho. Oi, meu querido. Como vai essa força? É genial! Aquêle abraco. Caio Mourão distribui amuletos às senhoras e explica: - São chifres. Ponha os chifres de molho até amarelar e assim eles ficam com cara de chifre velho. -Conversa vai, conversa vem, o tempo passa e fecha o restaurante. Lá fora bate o primeiro ventinho frio e o grupo vai-se dissolvendo. Amanhã vai esfriar de verdade. A gente vai usar sapatão pesado, paletó pesado, sobretudo, luva de lã. Ninguém vai falar português, muito menos cantar samba na praça. É claro, que bobagem, o Brasil fica longe pra burro, cada vez mais longe. - Vamos tomar á última no bar que fecha tarde? - Que nada, bicho, deixa eu puxar um ronco que não sou leão.

169. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. NOSSOS CRAQUES SÃO TODOS MAIS ARTISTAS. PARIS Sou veterano em Copas. Posso dizer que assisti no Pacaembu a um Brasil e Suíça pelo Mundial de 50, embora mal me lembre do jogo. Na verdade, só me lembro do uniforme dos suíços, a camisa vermelha com a cruz branca no peito, e quando eles entraram em campo pensei que fossem os salva-vidas. Talvez eu fizesse pouco da partida por causa do Pacaembu, que já estava enjoado de ver aos 6 anos de idade. E a vedete daquele Mundial não era Zizinho ou Ademir, mas o Maracanã recém-concluído, o maior estádio do mundo. Fora o Rio Amazonas, era a primeira coisa maior do mundo que faziam no Brasil, e a molecada enchia a boca para falar "Maracanã". De modo que a verdadeira Copa, para quem morava em São Paulo, chegava pelas ondas da Rádio Panamericana. Mais que o locutor, era o eco do Maracanã quem narrava o jogo. O estádio fazia "óóóóó", e era jogada de efeito. Fazia "úúúúú", bola raspando a trave. Fazia "hhhhhhhhhhhhhhh", Brasil de novo no ataque. Gol, e o Maracanã explodia, e a gente cantava as Touradas de Madri pulando na cama. No dia em que perdemos a taça para o Uruguai, claro que desliguei o rádio e taquei a culpa no Maracanã. Eu tinha razão. Batendo o recorde mundial de público, e portanto cheio de si, o Maracanã não via motivo para se preocupar com a seleção brasileira. A seleção, por sua vez, qualquer um sabe que estava nas mãos do Maracanã. E quando os jogadores mais precisaram do Maracanã, o Maracanã emudeceu. Quer dizer, a estádio de futebol não se pode dar confiança, lição que calou fundo em nossos atletas a partir de 50. Anos a fio, se eram recebidos com fanfarra e foguetório, fechavam a cara. Alinhavam-se para as fotos, cinco agachados e sete em pé, contando o massagista gordo, mas dava para notar que posavam de má vontade, olhando cada qual para um lado, e todos para lugar nenhum. Bola rolando, seguiam alheios à torcida, que se esgoelava, e quanto mais alheios seguiam, mais se esgoelava a torcida. A turba fazia "óóó", "úúú", "hhhhhhhh", e nossos heróis viravam as costas. Na hora do gol, aí sim, comemoravam. Mas comemoravam entre si, com efusão, com estardalhaço, com pirâmides humanas, com mãos nas bundas, que era mesmo para tripudiar sobre o adversário. E o grande adversário, evidentemente, era o estádio de futebol. Com o tempo veio uma espécie de anistia, prescreveu a culpa do Maracanã, e as novas gerações não guardavam ressentimentos. Quebrou-se o gelo, ou aquilo que em teatro se chama a quarta parede, separando atores de platéia. A parede de vidro, suspeito agora que foi o Pelé quem a espatifou a socos, no gesto que aos nossos olhos desentendidos parecia solto no ar. E a impulsão com que Pelé celebrava o gol chegava a superar aquela, já extraordinária, com que subira para cabecear. Era como se, na celebração do gol, o homem saltasse de dentro do atleta. Não só com a alegria, mas sobretudo com o orgulho que fez falta a Garrincha, Pelé impunha-se ao estádio, antes mesmo que o estádio o aclamasse. Ou coroava a si próprio, como Napoleão ao deixar o Pala de mãos abanando. O último centroavante introvertido que vi jogar chamava-se Oxímoro. Jogava no Bonsucesso e retirou-se com a chegada da televisão, para quem o artista importa mais que a sua arte. Hoje, num espetáculo que prescinde da bola, muitos artilheiros já excedem Pelé, pois até gol de pênalti festejam com saltos mortais. E correm para as arquibancadas, dançam para as arquibancadas, trepam no alambrado e querem abraçar o público, ou se imolar por ele. Consciente de seu papel, a platéia em peso também não tarda a se levantar, levando os braços ao céu numa formidável onda, ou ola. E durante aquele minuto em que as câmeras dão a volta completa do estádio, fica evidente que os povos são fraternos, que a humanidade é generosa e tudo mais. Ou nos enganamos redondamente, e é o jogo lá embaixo que está um tédio. A seleção brasileira conta nesta Copa com o estímulo de sua imensa torcida e o crédito dos expertos internacionais, apesar de tudo. Mesmo entre os donos da casa, deu numa pesquisa que ela tem 80% das simpatias, e não é sempre que se encontra um francês 80% simpático. Pela qualidade de seu elenco, é possível que o Brasil chegue à final no Stade de France recém-concluído, o mais elegante coliseu do mundo. Ostentando-se em tarde de gala para um bilhão de telespectadores, o estádio estará inchado. Mas nem assim há de inibir os nossos craques. Não que eles recordem a lição do Maraca, ou tenham mais arte que Zizinho e Ademir. Mas porque agora, sem dúvida, são todos mais artistas.

170. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. UM LUGAR AO SOL. Chico conta a longa luta de um brasileiro em Capri querendo um lugar ao sol. O vosso correspondente em Roma não se encontra em Roma. Em Roma não há ninguém. Fugiram todos à praia em gozo de sol e férias. Sigo a multidão com minha tenda, meu trapézio e meus leões. Essa é a vida de artista, correr aonde está o público para poder fingir que é o público a nos correr atrás. Dia desse baixei em Capri, que segundo o cicerone, ostenta as praias mais lindas do mundo depois do Rio de Janeiro. Comovido, agradeci, dobrei a gorjeta e fui conferir. Realmente o azul do mar, com as rochas brancas e a mata cheirosa, é um espetáculo único. Mas ir à praia, aí é que são elas. Convenci-me de que brasileiro não sabe tomar banho de mar, e olha que tive o maior empenho em aprender. - Paga-se a entrada!! Pois não. Paga-se o vestiário? Pois não. O mictório também? Não tem problema. Entrada, vestiário, mictório, guarda-sol, cadeira, bóia, desci à praia cheio de tickets e privilégios. Irrepreensível, pensei. Agora que descobri os macetes é só deitar na areia, comprar um chica-bom e pensar besteira, igual a Copacabana. Mas qual não foi minha surpresa quando cheguei à areia (pedregulhos) e a encontrei literalmente repleta de cabeças, pernas, barrigas e bumbuns. Tentei abrir caminho, pedi um passinho à frente, por favor, disse que ia saltar no próximo ponto, mas os corpos estavam surdo-moles no mormaço. Recuei alguns metros, pisei nas partes duma senhora e subi os degraus de volta. Lá em cima, sobre o cimento, havia um colchão de ar jogado à toa. Deitei e ameacei um cochilo mas o bilheteiro balneário veio perguntar em inglês se eu era da família americana. À minha primeira pronúncia ficou evidente que eu não era não de tão boa família, diante do que fui convidado a me retirar do colchão esplêndido. Nisso me revoltei bradando que queria um lugar ao sol, queria um lugar ao sol, frase que aprendi nos bastidores da televisão. Na minha terra, insisti, a praia é do povo como o céu é do condor. - Mas aqui o colchão é dos americanos - disse o bilheteiro friamente. Eu não ia discutir, ainda mais que os americanos tinham acabado de invadir a lua, uns dias antes. Eu não ia discutir por causa dum colchão de ar. Não discuti mas fiquei com aquilo atravessado na garganta, por isso fui até o bar para engolir melhor. Uma droga dum colchão de ar. Sentei no bar e fiquei vendo os americanos prostrados ao sol. Pareciam cada vez mais bonitos, saudáveis, bronzeados, e eu muito cinzento e verde. Assim passavam-se as horas e nada de vagar um só buraquinho. Pelo contrário, chegavam sempre novos banhistas, desses gordos, sem ossos, gelatinas. Iam falando please e acabavam se encaixando. O aglomerado já formava uma massa tão comprimida que dali a pouco, com mais um aperto, dava a impressão que uns e outros iam estourar para o alto que nem pipoca. E quando alguém se levantava, deixava sempre um chapéu para garantir a vaga. Às cinco e meia resolvi desistir, mas aí abriram um primeiro espaço. Saiu um, saíram dois, saí eu e corri a reservar meus pedregulhos. Sobrou uma cadeira, tomei conta. Apossei-me duma bola, dum colchão, dum guarda-sol, tudo junto. Afinal eu tinha os tickets, estava no meu direito. Só achei estranho aquele êxodo assim precipitado, pois em pouco minutos eu estava sozinho na praia. Engraçado, porque americano não é de abandonar um bom lugar sem mais nem menos. Que diabo, se eles foram embora é porque algo de ruim vem por aí. Pensei em chuva, tempestade, tubarão, mas nada. Só os bilheteiros que estavam recolhendo tudo, o bar que estava fechando, o último ônibus que estava partindo e eu que estava sendo expulso. Expulsão não é bem a palavra, não é exata. Mas ficam aqueles garçons resmungando e olhando para a sua cara. E vem aquele empregado mandando você erguer os pés, os dois ao mesmo tempo, para passar o escovão debaixo. Como boteco de português à meia-noite. Que é isso, perguntei, vai fechar a praia? Pois é claro, disse o empregado, às seis horas nós fechamos tudo. E continuou a esfregar sabão na praia. Não era o caso de contestar a organização lá dêles, mas confesso que fiquei perturbado. Ainda mais quando, ao deixar o local, olhei para o mar e vi o que vi. Aliás, não sei se vi mesmo, é difícil acreditar. Vai ver que o sol me batera na cabeça de mau jeito. Ou então fora o gin, sei lá, gin é uma bebida desleal. Não posso jurar nem peço que me creiam, mas o que vi foi o seguinte: o mar esvaziando, esvaziando, os barcos acomodando-se entre as pedras e o Mediterrâneo sendo chupado pelo ralo, dando lugar a magníficas auto-estradas, caminhões, ferrovias, semáforos, supermercados, perdendo-se de vista no horizonte.

171. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. ATÉ A PRÓXIMA. Entro num bar repleto de franceses e já começo a cantar seus hinos, sem saber se estou torcendo pela França ou contra os croatas. Defronte da tela gigante os franceses cantam, cantam muito, improvisam refrões a todo momento, dão vivas e bravos sempre que o goleiro bate o tiro de meta. É divertido, é como se eu visse o jogo em qualquer cidade do Brasil, num bar feminino. Aqui na França muita gente acaba de descobrir o futebol, a exemplo de tantas brasileiras que, na copa do mundo, sofrem algum tipo de desordem no seu metabolismo. De um dia para outro essas mulheres mudam de figurino, de penteado, de temperatura, almoçam em pé, falam dormindo, de madrugada pronunciam nomes de homens misteriosos, tipo Zinedine Zidane. Devo dizer que assistem às partidas com sincera aplicação, disparando vez por outra observações bastante originais, que jamais ocorreriam a um comentarista graduado. Agora, naquele bar, os franceses festejam o terceiro gol, de Zinedine Zidane, que eu francamente não havia percebido. Passa o replay, é um belo lance, mas a bola bate na rede pelo lado de fora. Era o que eu tentava argumentar, quando fui expulso. A festa toma as ruas, e os refrões já anunciam o Brasil como a próxima vítima. Busco asilo em restaurante italiano, onde a derrota para a França, dez dias atrás, ainda é prato quente. Brasiliano? A casa, que já estava fechando as portas, num instante se reacende feito casa de jogos clandestina. "Mozzarella in carrozza, carcioffi alla giudia...", declama o garçom, porque nessas cantinas dispensam o menu, sendo os pratos italianos tão saborosos aos ouvidos. "Cafu"!", intervém o ajudante de garçom, que logo rabisca na minha toalha uma estratégia, de sua autoria, para o nosso lateral chegar à linha de fundo e espaventar os franceses. É romanista, justifica um terceiro, torcedor do Milan e fã do Leonardo, que deve investir em velocidade pelo centro do ataque. Desta vez é o patrão quem sai de seus cuidados, abandona a caixa registradora e põe-se a recitar: "spaghetti alla puttanesca, pesce all'acqua pazza...". É um velho juventino, e já sentado à minha mesa, depois de um gole de grappa confessa sua admiração por Zinedine Zidane. Turim, Milão, Roma, Parma, Gênova, há franceses jogando em cada uma dessas cidades, e os italianos são, antes de tudo, fanáticos por seus clubes. A Itália que Garibaldi unificou, lamenta o patrão, o futebol parte em pedaços. Neste domingo, porém, ele, os garçons, a torcida do Juventus, a Itália inteira estará com o Brasil. Para se vingar da França, suponho. Não, senhor, em homenagem a Ronaldinho. É o cozinheiro calabrês quem traz pessoalmente o tiramisù e o resumo da ópera: "Ronaldo è amato da tutti". Ronaldinho anda lento, gordo, ganhando muito dinheiro, assim falava um brasileiro nos arredores do Velódromo de Marselha, para quem quisesse ou não quisesse ouvir. Passou por mim, a obesa criatura, e tinha o nome Ronaldo impresso nas costas da camisa estufada, com o número 9 tão largo, que mais parecia um zepelim. Coisa de brasileiro? Não, nem tudo é coisa de brasileiro. Para a turma do bar, a França só tem retaguarda. Para a turma da cantina, a Itália tem medo de vencer. Falta harmonia, diz a Holanda a respeito da própria seleção. A Nigéria é badulaque só, diz a Nigéria. A Alemanha está velha, diz a Alemanha. A copa do mundo às vezes lembra um concurso de misses, com mães desnaturadas na platéia. E aos olhos das mães alheias, o futebol do Brasil continua sendo o mais bonito, o mais alegre, o mais espetacular, essas coisas que nos habituamos a ouvir em língua estrangeira. Mesmo quando não está em seus melhores dias, padece de um mal passageiro, é uma miss resfriada, porque ao Brasil tudo se perdoa, exceto que não jogue como joga o Brasil. Apontam ainda em nossa equipe virtudes que, por conhecê-la de muito perto, não enxergamos. Um pouco como, em família, se demora a admitir que a filha adolescente criou corpo. E eu aqui, na véspera da decisão, com esse nome absurdo na cabeça, Zinedine Zidane. Bobagem. A França tem um único craque capaz de nos preocupar, quando for aclamado pelo estádio em coro. Chama-se A Marselhesa, e naqueles minutos os brasileiros podem vacilar, morder a língua, ou cantar junto. Segunda-feira, seja quem for o campeão do mundo, as mulheres acordarão meio enjoadas. Terça feira, nos bares, os franceses dirão "uff" e "bof". E o Brasil? Na quarta-feira, querida, o Brasil desaparecerá do mapa-múndi, e durante quatro anos quedará submerso, para ressurgir glorioso na copa do Japão. Não é um país sério, teria dito o general francês. Houve desmentidos, houve indignação, não sei por quê. O Brasil talvez seja isso mesmo, um país que impõe respeito, quando brinca.

172. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. COM OS MEUS BOTÕES. Tostão me perguntou meses atrás, aqui mesmo em Paris, se o futebol do Denilson lembrava o Canhoteiro (ponta-esquerda do São Paulo que só eu vi jogar, na década de 50). Vinda de quem vinha, aquela pergunta me paralisou. Fiquei postado na praça, sem raciocínio, olhando para o Tostão. Se bem que, quando topamos um craque de bola no meio da rua, vestido à paisana, andando como a gente anda, falando como a gente fala, nós, amadores, sempre nos atrapalhamos. Viramos idiotas. Certa vez fui apresentado a um antigo centromédio do Santos, o Formiga. Depois de um breve diálogo, o assunto esgotado, sem saber por que continuei a encará-lo. O silêncio se prolongava, incômodo, e ainda encasquetei de colocar a mão no ombro do Formiga. Com o polegar, comecei a pressionar de leve a sua clavícula, e me lembro que ele ficou um pouco vermelho. Então me dei conta de que, pela primeira vez na vida, conversava pessoalmente com um botão. Formiga tinha sido um dos meus melhores botões, apesar de meio oval, um botão de galalite, vermelho. Na minha mesa, Tostão não chegou a ser botão. Eu já era bem crescido quando ele apareceu, e fica um pouco ridículo fazer botão de um jogador mais novo que você. Botões, para a garotada daquele tempo, eram venerados como ícones, beijados, polidos com flanela, concentrados em caixa de charuto e inegociáveis. Pois bem, vi o Tostão deslizar nos gramados e, sem querer desmerecê-lo, era mesmo um homem com braços e pernas. Nem por isso há de nascer um centroavante que se lhe compare, como nunca haverá ponta-esquerda semelhante ao Canhoteiro que só eu vi jogar. Desde já discordo de quem, concordando comigo, sustenta que o futebol era muito mais bonito no passado. Ao contrário de nós mortais, que éramos todos mais bonitos no passado, os craques do passado são ainda melhores hoje. Penduraram as chuteiras, mas na permanente edição da nossa memória vão produzindo novos lances memoráveis. Posso vê-los sempre de uniforme, uniformes diferentes uns dos outros, num vestiário com o teto cheio de chuteiras penduradas. Reúnem-se em torno do técnico, ouvem a preleção em silêncio, mas não prestam muita atenção. Dispensam alongamentos, entram em campo e já começam a jogar. Não dão entrevistas. Não fazem cera, não atrasam a bola, não cobram lateral, não ficam na barreira, faz cada qual o que lhe dá na telha. E no entanto exibem um belo conjunto, mantendo-se invictos há anos e anos, mesmo porque contra eles não há quem se atreva a jogar. Me vendo de boca aberta, naquela tarde gelada, o Tostão não fazia idéia dos gols que continua a marcar dentro da minha cabeça. "Ele te lembra o Canhoteiro?", perguntava o Tostão, e de cinco em cinco minutos a pergunta me rebate no ouvido como um gongo, enquanto vejo o Brasil jogar no Stade de France, sem Denilson. Há o grande Rivaldo, seu estilo de ema, há o nosso Ronaldinho, de quem tudo o que se diz não basta, e há um oco. Sim, a ausência do Denilson agora me lembra exatamente o Canhoteiro, cuja camisa Zagallo usurpou na Copa de 58, privando o planeta de ver o que só eu via. Estamos no segundo tempo, Brasil e Escócia um a um, e já me pergunto se, barrando o Denilson, Zagallo não pretende barrar o Canhoteiro de novo, 40 anos depois. Maldade minha, claro, pois eis que o Denilson entra em campo, recebe a bola rente à lateral esquerda, passa zunindo por dois escoceses e toca para o meio, de calcanhar. A jogada foi bem em frente à minha cadeira, permitindo-me ver até o branco dos olhos do Denilson, e não direi o que se passou naquele instante com a fisionomia dele. Não direi de quem era a figura que vi num relance, vestindo a camisa 19, porque nem eu próprio acredito nessas coisas. Mas alguma coisa os escoceses também viram, e ali se assombraram, e se atarantaram, e perderam a pouca cor que têm, e bateram cabeças entre si e fizeram um gol contra. É um garoto, o Denilson, e imagino o que será seu futebol daqui a mais ou menos 30 anos, quando estarei abarrotado de memórias. Seu drible na corrida, calculo que possa chegar a algo como a velocidade do TGV Paris-Nantes, embora jamais à do Canhoteiro. Babando de antemão, me vejo a lembrar o Denilson adiantando a bola na medida certa, feito isca, para surrupiá-la do bico do pé do beque. Verei o Denilson em nova arrancada, como quem corre num parque, e a bola que corre serelepe ao seu lado, quase latindo. Verei o Denilson desviando a bola sem tocá-la, talvez com um assobio - ele tem boca de assobiador. Verei o molejo dele, trançando as pernas diante do próximo adversário, e, de repente hei de ver o drible de corpo. O drible de corpo é quando o corpo tem presença de espírito. Se eu fosse menino, faria do Denilson um senhor botão. De tampa de relógio, acho. Babando de antemão, me vejo a lembrar o Denilson adiantando a bola na medida certa, feito isca, para surrupiá-la do pé do beque.

173. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. GRITOS E SUSURROS. Em apartamento perto da Bastilha, brasileiros se reúnem neste sábado para ver Brasil e Chile pela televisão, com feijão preto, caipirinha e tudo. Aposto que durante o primeiro tempo haverá vastas emoções, urros, sobressaltos no sofá, cerveja no tapete, quem sabe algum rojão. Já na etapa final, infelizmente, pesado silêncio baixará na sala. Prevejo ranger de dentes diante do aparelho, com o próprio locutor bastante temeroso, contido, transmitindo a partida como se fosse um segredo. E se aos noventa minutos Denilson desbaratar a defesa chilena, centrando para Ronaldinho fazer um gol de letra, nossos convivas vão se entreolhar e sorrir. Um grito de gol, e da janela em frente viria a resposta de bate-pronto: "silence, merde!". Franceses não compreendem a que ponto um silêncio pode incomodar o vizinho. Brasileiros, de sua parte, não compreendem um povo que pode se afeiçoar a caracóis, bem mais que a um jogo de bola. A partir das dez da noite, mesmo que o gol seja francês, e de bicicleta, em prédios residenciais a lei do silêncio é absoluta. Durante a copa do mundo, porém, pelo menos ali nos baixos da Bastilha, essa lei é relativamente absurda, porque a paz que emana das janelas retorna janela adentro em forma de buzinas, cornetas, tambores e gaitas de fole. A vida noturna de Paris pertence às torcidas triunfantes e aos escoceses, que continuam comemorando a sua desclassificação. Com ou sem futebol, vá lá, um estrangeiro incomoda muita gente. Não me refiro ao imigrante que pega o serviço boçal nos subterrâneos, e que por instinto de defesa é mudo. Penso no viajante que, nem bem atravessa a alfândega, adquire um volume de voz acima do que tinha, como se aqui também trocassem vozes em casa de câmbio. E toma o táxi satisfeito com sua voz convertida, ciente de que falando alto todo mundo se entende. Dois estrangeiros, três estrangeiros, dez estrangeiros, patrícios que se esbarram casualmente no bulevar, e a festa já principia num idioma agudo: "você por aqui?" Encontros de viagem se assemelham nisso aos sonhos, porque colocam rostos familiares em lugar improvável. Daí os abraços, o se apalpar uns aos outros, mesmo entre quem nunca teve intimidade, e as gargalhadas quase histéricas, todos falando ao mesmo tempo, as perguntas que não esperam resposta, as extensas respostas sem pergunta. Do ponto de vista do habitante da cidade, esse sonho se inverte e é mais perturbador, pois é seu espaço doméstico que se vê ocupado por visitas imprevistas. Um hooligan na banheira, eis um pesadelo capaz de atormentar o sono de damas parisienses, nestas noites de verão. Mas os hooligans ainda não chegaram, e Paris, bem ou mal, recebe milhões de turistas todo ano. Por isso já não se abala com seus restaurantes apinhados, croatas bebendo no balcão, búlgaros berrando em dialeto búlgaro. A ninguém mais espanta que, lado a lado com uma japonesa em trajes de alta costura, sente-se um dinamarquês de tênis, meião, calção e camisa com número nas costas. Um mexicano de sombreiro, em restaurante de queijos e vinhos, se pedir uma coca-cola não será mais deportado. O fato é que tenho visto de tudo nesta terra, menos o mau humor do francês. Percebo, isso sim, que Paris está muito ofendida. Porque Paris foi feita para ser olhada, necessita ser olhada, não pode passar sem, é um vício. Mesmo o exército de ocupação, quando entrou com seus tanques em Paris, rendeu-se a ela. Tanto se apegou a ela, o alemão, que ao perdê-la por pouco não a explodiu. E hoje, pela primeira vez em séculos de história, a cidade é invadida por forasteiros que não lhe prestam a menor atenção. Em algum momento Paris deve se perguntar, estarei gorda? Os forasteiros nem sequer andam nela, ela que foi feita para ser andada. Os forasteiros se estabelecem nos bares e ficam olhando para o futebol na telinha. Desdenham seus jardins, seus museus, seus palácios, suas pontes, instalam-se nas praças, de costas para os monumentos, e ficam vendo o futebol no telão. No fundo, eu às vezes também acho que copa do mundo em Paris é um contra-senso, como um congresso de cegos em Granada, ou no topo do Pão de Açúcar. Bebi um conhaque, e agora sou tomado de carinho por esta cidade. A noite é propícia para uma caminhada, tendo cessado a chuva. Brilham as pedras do calçamento antigo, pedras arredondadas tipo pé-de-moleque, o que me traz súbito desejo de sapatear. Sapateio e, sinceramente, consigo tirar um belo som, que repercute na rua estreita. Vejo então uma janela que se abre, vejo surgir a cabeça de uma senhora de touca, sua cara nada boa, posso ver sua garganta, já sei o que ela vai gritar, mas dobro a esquina e aperto o passo. Atravesso o Sena, desço as Tulherias, deslizo pé ante pé por ruas cheias de glória, de placas, de luto. Aqui nasceu Voltaire, aqui viveu Victor Hugo, Cézanne pintava nesta casa, Debussy morreu aqui, e lá vou eu mais orgulhoso que Paris, pensando em Nilton Santos, Zizinho, Pagão, pensando em Castilho, Píndaro e Pinheiro.

174. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. COM REVERÊNCIA, CHICO BUARQUE REVELA OS BASTIDORES DE UMA PARCERIA MUSICAL. Essa carta revela, de modo luminoso, os bastidores de uma importante parceria musical. Valsinha, música de Chico Buarque e Vinicius, tem um parto difícil. Chico, filho do historiador Sérgio Buarque de Hollanda, um amigo do poeta, trata Vinicius com reverência. Sabe o que pensa e o que deseja, conhece as vastas diferenças entre ambos, mas desfia seus argumentos com firmeza, sem descuidar da suavidade. Os dois constroem um currículo de canções famosas como o Samba de Orly - composta a seis mãos com Toquinho - e Gente Humilde - letra a quatros mãos,sobre uma melodia de Garoto. E constroem, sobretudo, uma amizade erguida sobre o afeto e sobre o susto. Rio, 2 de fevereiro (sem o ano). "Caro Poeta, Recebi as suas cartas e fiquei meio embananado. É que eu já estava cantando aquela letra, com hiato e tudo, gostando e me acostumando a ela. Também porque, como você já sabe, o público tem recebido a valsinha com o maior entusiasmo, pedindo bis e tudo. Sem exagero, ela é o ponto alto do show, junto com o Apesar de Você. Então dá um certo medo de mudar demais. Enfim, a música é sua e a discussão continua aberta. Vou tentar defender, por pontos, a minha opinião. Estude o meu caso, exponha-o a Toquinho e Gessy, e se não gostar L. se, ou f..me eu. - Valsa Hippie é um título forte. É bonito, mas pode parecer forçação de barra, com tudo o que há de hippie à venda por aí. Valsa Hippie, ligado à filosofia hippie como você o ligou, é um título perfeito. Mas hippie, para o grande público, já deixou de ser a filosofia para ser a moda pra frente de se usar roupa e cabelo. Aí já não tem nada a ver. Pela mesma razão eu prefiro que o nosso personagem xingue ou, mais delicado, maldiga a vida, em vez de falar mal da poesia. A solução é mais bonita e completa, mas eu acho que ela diminui o efeito do que segue. Esse homem da primeira estrofe é o anti-hippie. Acho mesmo que ele nunca soube o que é poesia. É bancário e está com o saco cheio e está sempre mandando sua mulher à merda. Quer dizer, neste dia ele chegou diferente, não maldisse (ou xingou mesmo) a vida tanto e convidou-a pra rodar. Convidou-a pra rodar eu gosto muito, poeta, deixa ficar. Rodar que é dar um passeio e é dançar. Depois eu acho que, se ele já for convidando a coitada para amar, perde-se o suspense do vestido no armário e o tesão da t... final. "pra seu grande espanto", você tem razão, é melhor que "pra seu espanto". Só que eu esqueci que ia por itens. Vamos lá: - Apesar do Orestes (vestido dourado é lindo), eu gosto muito do som do vestido decotado. E gostoso de cantar vestido decotado. E para ficar dourado o vestido fica com o acento tendendo para a primeira sílaba. Não chega a ser um acento, mas é quase. Esse verso é, aliás, o que mais agrada, em geral. E eu também gosto do decotado ligado ao "ousar" que ela não queria por causa do marido chato e quadrado. Escuta, ó poeta, não leve a mal a minha impertinência, mas você precisa estar aqui para sentir como a turma gosta, e o jeito dela gostar desta valsa, assim à primeira vista. É por isso que estou puxando a sardinha para o lado da minha letra, que é mais simplória, do que pelas suas modificações que, enriquecendo os versos, também dificultem um pouco a compreensão imediata. E essa valsinha tem um apelo popular que nós não suspeitávamos. - Ainda baseado no argumento acima, prefiro o abraçar ao bailar. Em suma, eu não mexeria na segunda estrofe. - A terceira é que mais me preocupa. Você está certo quanto ao "o mundo" em vez de "a gente". Ah, voltando à estrofe anterior, gostei do último verso onde você diz "e cheio de ternura e graça" em vez de "e foram-se cheios de graça". Agora estou pensando em retomar uma idéia anterior, quando eu pensava em colocá-los em estado de graça. Aproveitando a sua ternura, poderíamos fazer "Em estado de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar". Só tem o probleminha da junção "em-estado", o em-e numa sílaba só. Que é o mesmo problema do começaram-a. Mas você me disse que o probleminha desaparece, dependendo da maneira de se cantar. E eu tenho cantado "começaram a se abraçar" sem maiores danos. Enfim, veja aí o que você acha de tudo isso, desculpe a encheção de saco e responda urgente. Há um outro problema: o pessoal do MPB-4 está querendo gravar essa valsa na marra. Eu disse que depende de sua autorização e eles estão aqui esperando. Eu também gostaria de gravar, se o senhor me permitisse, porque deu bolo como o Apesar de Você, tenho sido perturbado e o disco deixou de ser prensado. Mas deu para tirar um sarro. É claro que não vendeu tanto quanto a Tonga, mas a Banda vendeu mais que o disco do Toquinho solando Primavera. Dê um abraço na Gessy, um p... no Toquinho e peça à Silvina para mandar notícias sobre shows etc. Vou escrever a letra como me parece melhor. Veja aí e, se for o caso, enfie-a no ralo da banheira ou noutro buraco que você tiver à mão.

175. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. O MOLEQUE E A BOLA. À espera da Noruega, e estudando outros rivais com gráficos e afinco, vi Áustria x Chile, vi Itália x Camarões, depois vi mais uma partida cujo resultado não recordo, pois era um sonho e só me lembro do gramado azul. Acordo, almoço vendo a resenha da copa, vejo África do Sul x Dinamarca, vejo Arábia Saudita x França, e na minha cabeça as idéias já começam a carambolar. Porém, ainda que esses times jogassem com uniformes embaralhados, penso que não seria difícil distinguir o país rico do país pobre. Os pobres são os folgados, os esbanjadores, os exibicionistas, matam a bola no peito, a bola gruda ali que nem uma goma e o locutor francês faz "ôôôôô, bien joué, magnifique!". Ou, como diz o locutor brasileiro, eles têm intimidade com a bola. De fato controlam, protegem, escondem, carregam a bola para cima e para baixo, e em vez de intimidade, talvez tenham ciúmes dela. Já os ricos são alunos de outra escola, uma escola prática. Recebem a bola e um-dois, tocam, recebem, desprendem-se dela, não fazem questão dela, correm soltos por toda parte. Parecem conhecer e ocupar melhor o espaço de jogo, podendo se dizer que têm intimidade com o campo. Assim, quando se enfrentam países ricos e países pobres - na Holanda eles se enfrentam dentro do mesmo time - estão se enfrentando os donos do campo e os donos da bola. Eram eles os donos da bola, marca Mac Gregor, quando sem refletir a desembarcaram na América do Sul, um século atrás. No Rio, em São Paulo, em Buenos Aires, os ingleses detinham, além de todas as bolas, o monopólio das chuteiras, das camisas listradas e dos campos de grama inglesa, como manda a regra, perfeitamente planos e horizontais. Em sensacionais torneios, com turno e returno, jogavam então Inglaterra versus Inglaterra. Aos nativos, além da liberdade de torcer por uma ou outra equipe, sobrava a alegria de catar e devolver as bolas, que já naquele tempo os britânicos catapultavam com freqüência. Em 1895, segundo a crônica paulistana, confrontavam-se Railway Team e Gas Team, quando huma pellota imprensada entre dous athletas subiu aos céus e foi cahir às mãos de hum assistente. D'improviso, o cidadão seqüestrou a pellota. Metteu-a sob o braço e escafedeu-se no matagal, perseguido por dezenas de crioulos. Foi alcançado ao cabo de meia hora, às margens do rio Ypiranga. E celebrou-se alli, em terreno pedroso e cascalhudo, o primeiro jogo de bola entre brasileiros, com cincoenta actuantes e nenhum goalkeeper. Livremente inspirada no football association, a pelada é a matriz do futebol sul-americano e, hoje em dia mais nitidamente, do africano. É praticada, como se sabe, por moleques de pés descalços no meio da rua, em pirambeira, na linha de trem, dentro do ônibus, no mangue, na areia fofa, em qualquer terreno pouco confiável. Em suma, pelada é uma espécie de futebol que se joga apesar do chão. Nesse esporte descampado todas as linhas são imaginárias - ou flutuantes, como a linha da água no futebol de praia - e o próprio gol é coisa abstrata. O que conta mesmo é a bola e o moleque, o moleque e a bola, e por bola pode se entender um coco, uma laranja ou um ovo, pois já vi fazerem embaixada com ovo. Daí, quando o moleque encara uma bola de couro, mata a redonda no peito e faz a embaixada com um pé nas costas. E quando ele corre de testa erguida no gramado liso feito um mármore, com a passada de quem salta poças por instinto, é uma elegância. Mas se a bola de futebol pode ser considerada a sublimação do coco, ou a reabilitação do ovo, ou uma laranja em êxtase, para o peladeiro o campo oficial às vezes não passa de um retângulo chato. Por isso mesmo, nas horas de folga, nossos profissionais correm atrás dos rachas e do futevôlei, como o Garrincha largava as chuteiras no Maracanã para bater bola em Pau Grande. É a bola e o moleque, o moleque e a bola. No fim da tarde vejo entrar um bando de garotos, de seus dez, doze anos, num desses complexos esportivos que a prefeitura administra na periferia de Paris. Não estão para brincadeiras. Chegaram todos paramentados, provavelmente de metrô, e gastam quinze minutos correndo em círculos. Há meninos muito, muito brancos, outros muito, muito pretos, e outros tantos bastante árabes. Já se dispõem em campo, no sistema três-cinco-dois, antes mesmo do primeiro apito. Um marmanjo vestido de escoteiro autoriza a saída, e a bola rola correta na grama sintética. Penso nas escolinhas de futebol como a do Zico, ou a do Rivelino, onde o Toquinho matriculou o filho. Aliás, o Rivelino disse que o menino leva jeito, porque puxou à mãe. Tento imaginar - e não consigo - que espécie de futebol será o nosso, se um dia tivermos escolinhas para todos os moleques com o talento de um Pelé, ou pelo menos com o da mulher do Toquinho. Distraído, quase perco o primeiro gol, assinalado pelo árabe da camisa 9. Mas posso descrevê-lo: driblou dois na corrida, ficou cara a cara com o goleiro, fez que ia chutar, arrastou a bola com a sola do pé direito, estatelou o goleiro, concluiu com um toque de canhota, abriu os braços e saiu cantando: "Ronaldôôôôô".

176. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. OS MELHORES MOMENTOS. Hospedou-se no Hotel Fraternité, perto da Estação do Norte. Quarto de dez metros quadrados, televisão vinte polegadas, pia, frigobar, banheiro no corredor, estava de bom tamanho. Dia dez de junho foi a Saint Denis, misturou-se aos brasileiros na porta do estádio, gritou "ah, eu tô maluco", tomou o metrô de volta e no Hino Nacional já estava sentado na ponta da cama, a janela escancarada. Vitória do Brasil, e ele ali respirando o clima da copa. Tão logo terminou o jogo ligou para Naná, mas caiu na secretária eletrônica. Naná odeia futebol. Chegou com dois mil dólares costurados por dentro da calça de moletom, que não tira do corpo. Na bagagem trouxe as cuecas, as meias, doze camisas amarelinhas e o terno xadrez para ocasiões especiais. Descobriu a dois passos do hotel um bar chamado 44 e simpatizou com o garçom tunisiano, pinta de cearense. Almoça ali todo dia por quarenta e quatro francos, gorjeta incluída, prato completo, doce, café expresso, tudo muito bom. Mas também não é lá dessas coisas que ouvia falar. Dá direito a um copo de beaujolais, que é o que ele mais aprecia. "Vinho nacional!", fala, e o tunisiano ri muito, ri além do necessário, deve entender outra piada. Foi a Nantes, respirou o clima, gritou "ah, eu tô maluco", viu a goleada num telão, voltou de madrugada no TGV, coisa de primeiro mundo. No bar repleto de brasileiros tocando corneta, bebeu vinte latas de cerveja com uma japonesa de Tupã, meio barriguda porém meiga. Na chegada a Paris ela disse "foi um prazerão", entrou num ônibus com seu grupo, e era ele o único brasileiro sem grupo. Voltou a pé para o hotel, chegou às cinco da manhã, meia-noite no Brasil, achou que era uma boa hora para pegar Naná em casa. Secretária eletrônica. De certa forma foi ótimo, porque ele estava assim eufórico e ela era capaz de nem saber quem jogava. A viagem à França é vapt-vupt, foi o que lhe disse no Galeão, porque esse timeco não passa da primeira fase, e Naná com voz mole respondeu "Deus te ouça". Entre um jogo e outro, dá tempo de ver o Louvre, Notre Dame, adquirir conhecimentos, mas com duas semanas não restam grandes atrações. Vitrines, passa longe, já tendo escolhido o perfume de Naná, um frasco tamanho família imitando a taça Jules Rimet. À noite compra um sanduíche de presunto e leva para comer na cama com o vinho, que encontra barato no supermercado. Vê a partida, qualquer partida, estuda a tabela, adormece assistindo a uns debates confusos, sonha com o matemático Oswald de Souza, acorda de madrugada com a garganta seca e o aparelho chuviscando. Aí toma água do frigobar, faz xixi na pia, torna a se deitar, apaga tudo. Custa a dormir porque tem pensamentos, e o quarto é abafado, os farelos da baguete pinicam a pele. Mulher, até agora não rolou. Também é verdade que não são dessas coisas que ouvia falar. A melhor que viu, na estação do metrô, era morena e talvez fosse carioca, vista de costas até lembrava Naná. Aproximou-se, quis puxar algum assunto, tossiu, de repente falou "nasceu o bebê da Xuxa", mas a moça nem piscou, continuou olhando os trilhos com cara de doida. Para ir a Marselha, o orçamento andava curto. Viu a derrota da ponta da cama e achou mesmo que voltaria mais cedo para casa, pois aquele timeco não ganhava nem do Chile. O hindu que manda no hotel talvez pensasse a mesma coisa, e solicitou em péssimo espanhol que ele pagasse sem embargo a quinzena vencida. Esgarçou o moletom ali na cara do hindu, sacou quinhentos dólares e quitou a conta. Era alta, por causa dos quinze telefonemas internacionais, e ele nem ao menos falava com Naná. Se bem que, só para deixar um beijo no coração e o telefone do hotel - que Naná pode ter perdido quinze vezes - tinha de ouvir umas músicas lentas que ela agora punha na máquina antes do bip. Jurou que nunca mais ligaria, mas não agüenta quando Cesar Sampaio abre o placar contra os chilenos. Secretária. É depois desse lance que, sem mais nem menos, dá pane na televisão, a imagem rateia, fica impossível ver o jogo. Muda de canal, e na tela só vê Naná. Dá um cascudo no aparelho, arranca o fio da tomada e continua a ver Naná na tela, corada, exuberante como em seus melhores momentos. Só que ela evolui num apartamento esquisito, e usa boné, usa short azul e camisa amarela, e grita que está maluca nos gols do Brasil. Na noite de sexta-feira despiu a camisa para o exercício de torcer contra o Brasil, e era exatamente como se tivesse uma adaga enfiada entre as costelas. Porque a cada arrancada da seleção, sorria sem querer com o corpo inteiro, e se doía todo. Se era a Dinamarca que atacava, falava baixinho "dá-lhe, Dina", e com isso a adaga se mexia ali dentro. Corria o segundo tempo, o jogo lá e cá, e ele já era um ser contorcido. Mas quando Rivaldo marcou o terceiro gol, saltou contra a vontade, deu um murro no teto, uivou, caiu prostrado na cama e pensou em Naná. Respirou fundo. Tomou um banho no fim do corredor e vestiu o terno xadrez. Saiu em direção a Pigalle, entrou numa boate chamada Les Chiens, pediu uma garrafa de champanhe em balde de gelo e convidou a garçonete para um brinde. Superpintada, voz grave e sensual, peitos grandes, a saia que era um lenço, quando cruzou as pernas parecia atriz americana, exceto pelos joelhos que eram de jogador de futebol. Entornou três garrafas, deixou a espelunca chutando o balde, rodou pela cidade, voltou ao hotel dia claro. Sentiu culpa por ter feito mau juízo de Naná, telefonou para escutar os boleros e deixar um beijo no coração, mas foi Naná em pessoa quem atendeu, falou "viva o timeco", soltou uma gargalhada e desligou sem esperar explicação. "Alô!, alô!, alô!", gritou, e o hindu da portaria respondeu "si?". Então mandou chamar um táxi para o aeroporto. Amontoou na mala as camisas imundas, as meias, as cuecas, o perfume de Naná, desceu as escadas, meteu as unhas no moletom, jogou os dólares na cara do hindu e saiu batendo a porta do Hotel Fraternité.

177. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. FRANCESCO DE ROMA. Tinha oito anos em fevereiro de 1953, quando desembarquei em Roma com minha mãe e tantos irmãos. Meu pai já estava aqui há alguns meses, como professor de Estudos Brasileiros. Recordo-me de que era já noite funda quando entramos no palazzo (como os italianos chamam os antigos edifícios) da Via San Mariano, que papai nos tinha descrito nas suas cartas. Achei o apartamento um tanto grande demais, muito velho, muito escuro, muito úmido. E tinha um problema com o aquecimento. Naquela noite, vestido com o capote, debaixo dos cobertores, fiquei imóvel na cama, os olhos abertos. No dia seguinte, já tinha sol no jardim da casa e tudo era novidade. Tinha a pastaciutta, o copo de vinho, a Via Nomentana, Villa Torlonia, Porta Pia, o ônibus pela Piazza Fiume, tinha o Cine Capranica, o Cine Capranichetta, tinha a Lollobrigida, tinha Pane, amore e fantasia. E eu corria em bicicleta pelo Viale Gorizia, brincava com novos amigos, aprendia belas palavras, como calcio di rigore (pênalti), rovesciatta (rebatida), Sampdoria (clube de Gênova), Sentimenti IV (goleiro do Juventus), e palavrões que ensinava às minha irmãs. Minha mãe conhecia bastante bem o italiano, mas não os jogadores de futebol e palavrões, e meu pai tinha um certo acento napolitano, porque imitava roberto Murolo ao cantar Anema e core. Papai tinha também uma professora de italiano, e eu me lembro bem do dia em que a apresentou à família, mais ou menos com o mesmo orgulho com que tinha nos introduzido naquele palazzo frio, empoeirado e meio arruinado. A signorina, porém, era muito jovem, viçosa, luminosa, a pele muito clara, os cabelos muito negros, os olhos enorme, e ao olhá-la compreendi logo a palavra desiderio (desejo). Tinham me explicado que a Itália era um país pobre, apenas saído de uma guerra atroz. Não nos faziam estudar numa escola italiana porque o ensino não era satisfatório, assim diziam. Fomos matriculados na Notre Dame International School, e eu pensava sempre no meu pai que, vindo de tão longe, talvez não fosse um professor satisfatório ou dava lições numa escola atroz. A minha casa era uma escola onde se falava em inglês, lia-se Mark Twain e se jogava beisebol. Quando a bolinha era atirada fora dos muros, coisa que acontece a cada minuto naquele esporte bizarro, cabia a mim procurá-la lá na Via Aurelia ou pedi-la ao jardineiro de uma casa vizinha. Quase todos os meus colegas eram meninos norte-americanos que não tinham o hábito ou a necessidade de falar a língua dos outros. Ali também fiz algumas amizades, mas na verdade não amava tanto a escola americana, porque lá dentro me sentia mais estrangeiro do que na rua. De fato, para os meus colegas, eu, um certo Francisco, originário de um vago Brasil, era italiano e me chamava Francesco. Em janeiro de 1969, quando voltei a Roma, reencontrei os monumentos, os palazzi, as fontannne (fontes), os viali (avenidas), tudo ali, tudo igual às minhas recordações, somente um pouco menor. Logo na primeira manhã caminhei pelas ruas da minha infância, certo de poder rever os mesmos personagens de tantos anos atrás, talvez pequeninos eles também. Senti-me porém como o míope de Italo Calvino, encontrando rostos desconhecidos ou cumprimentando gente que não me respondia. À hora do almoço, perdi-me num labirinto perto do Pantheon. Vaguei pelos becos desertos, entre casas amarelas com portas e janelas fechadas, depois me encontrei numa praça com a estátua de um elefante, e à sombra da igreja tinha um carabiniére que dormia sentado no cavalo. Despertei o carabiniére, porque precisava de uma indicação, mas em seguinda permaneci mudo. Vinham-me à mente palavras soltas como Sampdoria, calcio d'angolo (córner), e naquele momento me dei conta de que não sabia mais falar o italiano. Humilhado, voltei ao hotel, onde minha mulher, grávida, falava ao telefone com o Rio de Janeiro. As notícias do Brasil não eram maravilhosas, de modo que minha permanência no exterior, prevista para três semanas, devia se prolongar por uma duração incerta. Estabeleci-me em Roma, deixando o Albergue Raphael por um apartamento num bairro que parecia mais um subúrbio do Rio. Roma, a sentia agora mais dura, como se suspeitasse de que vivia nela pensando numa outra. Era verdade, mas ao mesmo tempo estava sinceramente decidido a não pensar mais na minha cidade. O meu coração queria pensar em Roma, somente Roma. Gravei um disco em italiano quase sem acento, fui à radio e à televisão, cantei no meio da Piazza Navona, mas Roma não me compreendeu. Inventei um samba em dialeto romanesco, mas Roma não é boba. Disse a Roma que no Rio não me queriam, disse-lhe que não podia viver assim no ar, sem uma cidade. Era ridículo, queria desesperadamente que Roma me aceitasse. Então ofereci a Roma minha primogênita. Minha filha Sílvia nasceu romana no fim de março, e Roma mandou à Clínica Moscati dois poetas. Vinícius de Morais fez uma enfermeira gravar o primeiro choro da criança. E à mãe ainda adormecida, Giuseppe Ungaretti dizia: "Bella!, bella!". Depois Roma me acolheu no Piazzele Flaminio, num apartamentinho com um balcãozinho de onde se via a Villa Borghese. Dali saía a pé pela Via del Corso, Piazza Colonna, o Cine Capranica, o Cine Capranichetta e daí pela Via Tritone, Fontana de Trevi e o restaurante Al Moro, do qual uma noite vi sair Federico Fellini e emudeci, porque me pareceu que viesse a cavalo. No fim, Roma me deu poucos amigos, mas amigos feitos como Roma, para sempre. Nesta cidade vivi ainda um ano e meio, e aqueles não podiam ser os tempos mais felizes da minha vida. Mas com o consenso de Roma, nela vivi um tempo que, em outra parte, talvez teria sido invivível. Em Fiumicino (aeroporto romano), o policial olha e torna a olhar cada folha do meu passaporte, sacode a cabeça, procura o meu nome no computador, chama alguém pelo telefone. Já esperava toda essa operação. Estamos já num país rico, e o meu documento é sempre aquele de um cidadão sul-americano. Fecha o passaporte, reabre o passaporte, me observa e observa a foto, na qual nem eu mesmo me reconheço, porque me vejo com a cara de meu pai quando veio ensinar na Universidade de Roma. "Músico", exclama enfim o policial, e de repente se põe a tocar um tambor imaginário. Revela-me que ele também é um contrabaixista diletante, e me restitui o passaporte dizendo-me um fã da nossa música, a música étnica. "Musica latina", acrescenta, e me diverte saber que no coração do Lácio se chama latina uma música tão estranha. Giro agora pelo aeroporto que não recordava tão grande. Depois de 30 anos o ampliaram, sem dúvida, mas é possível também que com o tempo os objetos da memória comecem a comprimir-se, como se estiessem dentro de um ônibus superlotado. Quando consigo pegar minha maleta, que rodava também solitária no aeroporto, me vejo diante de uma jovem com um sorriso que me é familiar. É uma signorina tão viçosa, tão luminosa, com a pele tão clara, os cabelos tão negros, os olhos tão grandes, que poderia ser uma professora de italiano. Mas ao contrário é a agente de turismo que me pergunta: "may I help you?". No, grazie, le dico, il mio nome é Francesco. (Discurso escrito em Italiano e lido por Chico Buarque de Holanda, no dia 31 de março, ao receber o Prêmio Roma-Brasília, Cidade da Paz, conferido pelo prefeito de Roma, Francesco Rutelli. A versão do italiano para o português foi feita por Araújo Netto, correspondente do JB em Roma.)

178. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. Estava mal chegando a São Paulo, quando um repórter me provocou: "Mas como, Chico, mais um samba? Você não acha que isso já está superado?" Não tive tempo de me defender ou de atacar os outros, coisa que anda muito em voga. Já era hora de enfrentar o dragão, como diz o Tom. Enfrentar as luzes, os cartazes, e a platéia, onde distingui um caro colega regendo um coro pra frente, de franca oposição. Fiquei um pouco desconcertado pela atitude do meu amigo, um homem sabidamente isento de preconceitos. Foi-se o tempo em que ele me censurava amargamente, numa roda revolucionária, pelo meu desinteresse em participar de uma passeata cívica contra a guitarra elétrica. Nunca tive nada contra esse instrumento, como nada tenho contra o tamborim. O importante é ter Mutantes e Martinho da Vila no mesmo palco. Mas, como eu ia dizendo, estava voltando da Europa e de sua música estereotipada, onde samba, toada etc. são ritmos virgens para seus melhores músicos, indecifráveis para seus cérebros eletrônicos. "Só tenho uma opção, confessou-me um italiano - sangue novo ou a antimúsica. Veja, os Beatles, foram à Índia..." Donde se conclui como precipitada a opinião, entre nós, de que estaria morto o nosso ritmo, o lirismo e a malícia, a malemolência. É certo que se deve romper com as estruturas. Mas a música brasileira, ao contrário de outras artes, já traz dentro de si os elementos de renovação. Não se trata de defender a tradição, família ou propriedade de ninguém. Mas foi com o samba que João Gilberto rompeu as estruturas da nossa canção. E se o rompimento não foi universal, culpa é do brasileiro, que não tem vocação pra exportar coisa alguma. Quanto a festival, acho justo que estejam todos ansiosos por um primeiro prêmio. Mas não é bom usar de qualquer recurso, nem se deve correr com estrondo atrás do sucesso, senão ele se assusta e foge logo. E não precisa dar muito tempo para se perceber "que nem toda loucura é genial, como nem toda lucidez é velha."

179. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. Acordo com nova disposição, penteado novo. Jornalista Francisco, prazer, exercendo meu ofício com toda a assunção. Já começo até a receber cartas, vejam só. Um jornalista recebe muitas cartas. Transcreve as amáveis quando falta assunto e responde às odiosas com fina ironia. De qualquer modo, o jornalista sai-se sempre tão bacana que é comum duvidar-se da autenticidade de sua correspondência. Pois dou hoje minha entrada no rol dos suspeitos afirmando que desde a minha estréia neste pasquim, recebi um trecho de carta, dois pacotes de cigarros, um telefonema e uma dúzia de lingüiças. A carta partiu da Sra. Lúcia Reis, de Ipanema, flamenguista, casada com flamenguista, naturalmente. No gostou do meu primeiro artigo, isto é, não gostou da vitória do Fluminense. A Sra. Lúcia Reis, de Ipanema, informa que ser Flamengo é morar no Encantado. É tomar umas e outras, sentar na geral, participar do suor comum, coisas que também aprovo sem o menor pudor. Depois ela fala da coluna social, de impedimento, de Armandinho, e de outros argumentos que não entendi bem. Mas deixo de responder diretamente à Sra. Reis, em cuja caligrafia reconheço a inspiração do marido, para desfazer um equívoco maior. Duma vez por todas: sou Flamengo. Todo bom tricolor, a princípio, é rubro-negro. Porém, é um rubronegro tão curtido e fermentado pela vida que, um belo dia, pode chegar à mesa e declarar: "Irmãos, consegui! Finalmente torço pelo Fluminense." E os irmãos, pondo-se em fila indiana, inclinando-se e cumprimentando-o: "Parabéns, companheiro, você merecia." Bem-vindos os vinte maços do meu cigarro enviados por João Manuel Fernandes, de São Paulo. Menos bem-vinda a notícia que os acompanha: a minha marca preferida está acabando. Parou no Rio, parou em Minas. Seu último reduto é a valente capital bandeirante que não pode parar. Aí fico meditando sobre a ingratidão humana. Porque, quando a gente adota um cigarro, presume estar fazendo uma opção para o resto da vida. Assim fiz eu aos 15 anos, com precoce determinação. Vieram os cigarros com filtro, não me alterei. Não me arrebataram os cigarros longos king size, marca de nobreza e distinção. Resisti até ao anúncio da moça loira, aquela da boca grande, disposta a qualquer aventura com o homem que fumasse mentolados. Veio o cigarro americano, a propaganda do câncer, veio o aumento, a tosse, e cá estou eu inexpugnável, dez anos de fidelidade, cinqüenta cigarros por dia. Façam as contas, senhores fabricantes, pensem no caso e tenham piedade de mim. Tom Jobim telefona de Londres... Diz ele que Londres é bom, é civilizado, é civilizado mas é bom. Então ele mostra o bolero que compôs para o filme. O João Gilberto faz muito bem de estar lá no México, diz ele. O Vinícius voltou ao Brasil, né? É, o Vinícius é que está certo. O Caetano Veloso também. Aí ele manda eu esperar um pouco e fica aquela linha pendurada na Europa. A telefonista não gosta disso e começa a brigar comigo. Volta o Tom e diz que o Drummond é que tem razão: "O poeta é um ressentido, o mais são nuvens." O Caymmi também sabe o que diz. Quando o cobrador pergunta pelo último samba, o baiano responde que emburreceu, só isso. Em Londres ninguém cobra nada, tem aquela cerveja inteligente e aquela grama bem cortada. Em Londres só não come bem quem não conhece o Mercado e as sutilezas da língua. Tom, por exemplo, vai à compra toda manhã e ordena: "Dry meat and string beans", ou seja, carne seca e feijão de corda, que além de bom engorda. Por falar em comida brasileira, e para terminar, quero agradecer à alma bondosa e anônima que deixou lingüiça na porta de casa. Era só o que faltava. Enfim tenho a matéria prima para organizar a maior feijoada de Roma, assim que as fraldas de minha filha desocuparem o caldeirão.

180. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. A exemplo da galinha e do ovo, esporte e indústria têm-se gerado reciprocamente na Itália. A melhor época da bicicleta italiana coincidiu com a glória de Fausto Coppi nos giros ciclísticos europeus. Escalando barrancos a trancos e pedaladas, Coppi foi o justo herói para os anos difíceis de após guerra. Agora, pernas pro ar que ninguém é de ferro. A monotonia vingou na Itália como em nenhuma outra parte. E para ilustrar o sucesso da mercadoria, eis que surge imbatível o campeão mundial de motociclismo, um italiano, boa pinta, chamado Agostini. No entanto, dizer que Agostini foi simplesmente inventado pela indústria é como insinuar que Pelé jogue do jeito que ele joga para satisfazer a fábrica que exporta chuteiras com o seu nome. A verdade é que esse corredor está atingindo a popularidade dos grandes nomes da canção, do futebol e do cinema. É o modelo que faltava para desenfrear de vez o já fabuloso consumo de bicicletas motorizadas. Sempre em dia com a onda, comprei também a minha motoneta. É uma vespa de 50 cilindros, ou 50 cilindradas, ou pistões, não sei bem, é uma vespa de 50 alguma coisa. Todos os meninos do bairro têm a sua, e domingo a gente promove umas corridas legais, lá na vila Borghese. Com isso evito a amolação de viver pedindo chave de carro ao papai. E não bastasse o prazer que a motoneta proporciona, precisa ver como ela é útil durante a semana. Segunda-feira, de gravata e capacete, vou motorizado ao centro da cidade e estaciono a bicha de qualquer jeito. O diretor tem uma Mercedez grande e uma raiva enorme de minha pessoa. Cáspite, Tchico, você deveria ser o último a montar nessas bicicletas. Venha cá que te faccio vedere una cosa. Ecco, vedi questo? Ele abre um fichário e mostra a crise do disco na Itália. A queda começa no ano passado, justamente quando aparece a moda desses motorini maledetti. Pois é natural, digo eu. O jovem que, até então, comprava dois discos por mês, com as mesmas duas mil liras paga a prestação de uma mini motocicleta. Depois, as garotas não vão sair comigo só porque tenho um disco do Morandi em casa. Você sabe, elas hoje querem saber é de velocidade, emoção, aventura, e com a minha vespa chego a dar oitenta por hora na descida. Ma stai attento, Tchico, que você já não é um ragazzo. Se os seus discos encalharem, se a fábrica falir, quem é que vai pagar a benzina del tuo motorino? Quem paga o latte de tua figlia? Ora velho, não tem problema, adoro correr esses riscos. Adoro apostar em cavalo azarão. Não é à toa que escrevo para um jornal carioca que toda semana é motivo de apostas, se vai a falência neste ou no próximo número.

181. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. É difícil voltar a O PASQUIM depois de tanta ausência, principalmente porque prometi, e vou ficar devendo, uma entrevista com Josephine Baker. Para quem não se lembra ou não era nascido, Josephine foi a bacana lá da Martinica, a tal que se vestia de banana nanica. Profetizou a minissaia, valorizou a pele mulata, espalhou o charleston, depertou paixões e escandalizou os puros. Pouco a pouco foi trocando o escândalo pela caridade pública, as bananas pelo vestido longo. Hoje, com 63 anos, volta ao palco porque não tem outros meios e precisa sustentar 14 filhos adotivos. Acompanhei-a, junto ao bravíssimo chitarrista brasiliano Toquiño, em seus 45 dias de tournée pela Itália. 45 vezes esperei a oportunidade de lhe falar d'O PASQUIM, do Sérgio Cabral que reclama e da leitora que me chama de relapso. Mas Josephine só dá entrevistas coletivas, sempre muito simpática, sempre muito profissional, sempre mãe adotiva de 14 crianças de todas as raças. Evidentemente não a impressionei, nem como repórter amador, muito menos como menino desamparado. Num desses coquetéis à imprensa cheguei até a posar ao lado dela para as fotografias. Dia seguinte comprei todos os jornais, mas só deu retrato de Josephine Baker às vezes com um pedaço de bochecha minha. Sem fotos e sem entrevista, resta-me a lembrança de 45 espetáculos assistidos vagamente dos bastidores. Josephine entra em cena pedindo desculpas, pois na sua idade não há pernas que agüentem um charleston. Aí ela dança um charleston. Hélas, mes amis, já não tenho pernas para a minissaia. Aí ela senta lá dum jeito que o público aplaude com entusiasmo os 63 anos sem varizes ou celulite. Segue uma bossa-nova francesa que não é boa não. Boa é a sua interpretação de "La vie en rose". Fala de Edith Piaf com muito carinho, muda para um potpourri de boogie-woogies, desce à platéia e vai conversar com a primeira fila. Geralmente perco essa parte do show porque tem alguém que me procura no camarim. Chego lá, não paga dez, é brasileiro. "Eu estava aqui passando e vi seu nome..." Brasileiro está sempre passando em qualquer fim-de-mundo. Feitas as confraternizações pergunto como vão as coisa no Brasil e o brasileiro diz que vão mal, apesar da classificação nas eliminatórias para o México. No resto, diz ele que as coisas vão muito mal porque a televisão é aquela mesma coisa, os programas não mudam, só tem um agora que as pessoas ficam provocando até que Rio e São Paulo começam a brigar. "Fora isso, Juca, muitas saudades de você, daquela sua música, A praça, minha filha sempre pergunta onde é que anda o Juca, e tem meu filho que todo mundo acha que é a sua cara." Antes de se despedir, o brasileiro ainda me chama de Juca umas cinco vezes e diz que é meu muito admirador. Voltando ao show, encontro tudo mudado, a luz roxa, a música solene e Josephine que dedica uma mensagem de paz à humanidade. Canta "Quand je pense a ça", e o ça que ela pensa são os pobres órfãos, as guerras, os preconceitos raciais, etc. Quando pensa nisso, dá-lhe uma espécie de tonteira e ela cai no chão com as mãos no rosto, a cortina sobe e desce, o público aplaude e só então ela esquece os pobres órfãos, as guerras e os preconceitos raciais. Levanta-se e manda todo mundo sorrir ao amor, sorrir à vida, sorrir ao próximo, sourrir toujours sourrir, encerrando o espetáculo com aquilo que o Ciro Monteiro costuma chamar de hipotenusa final.

182. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. Saiu evasão, a palavra da moda. Neste verão todos vão de evasão. Contestam a evasão. Dão os jornais: o movimento financeiro das indústrias discográficas italianas, em 1968, superou os 170 bilhões de cruzeiros velhos. Sublinhe-se que os melhores fregueses habitam a região mais pobre do país, tais como a Calábria, a Sicília e a Sardenha. Que significa isso? Evasão. A torcida do Cagliari, na Sardenha, impediu que se vendesse o centroavante Riva, Pelé mediterrâneo, pela soma de 9 bilhões de cruzeiros velhos. Os trabalhadores da cidade decidiram sacrificar parte do salário para manter seu herói em casa. Evasão, é claro. Tem um outro Riva, industrial de Milão, que enfiou a bancarrota no bolso e fugiu para o Líbano. Evasão? Não senhor, ai é que você se estrepa. Evasão, no sentido atual do termo, é uma fuga sem dinheiro, sem remédio e sem sair do lugar. A música e o futebol italianos estão, comercialmente, mais desenvolvidos que no Brasil. Vide prova no preço de um jogador ou na vendagem de um disco, aqui mais que lá, dez vezes mais. Portanto, dez vezes mais ferozes urlam os críticos da evasão. Sem querer perder meu emprego (de futebolista, lógico), peço permissão para urlar junto. Também acho um absurdo. O pobretão de bicicleta sonhando com os astronautas. A mocinha sem namorado comprando disco de consolação. O menino descalço fazendo gol com bola de vento. O preço que pagam por um minuto de evasão é de fato escandaloso. Eu mesmo, ao ver o Imposto de Renda, fiquei achando que não deveria ter ganho tanto assim. Mas o que me espanta é a agressividade que os técnicos em evasão descarregam sobre os ídolos populares. Aí já deixo de compartilhar, porque excesso de rancor afeta sempre o funcionamento do pâncreas. Os mais irritados são justamente os jornalistas encarregados de comentar a música popular. Exercem seu ofício com tamanha má vontade que a gente fica pensando: de duas, uma. Ou esse cara queria cantar e não tem voz, ou queria comentar política internacional e o diretor do jornal não deixa. No mundo da canção italiana não há lugar para a canção desvinculada do esquema industrial. Se faz sucesso, o crítico dá nota três porque é aquela besteira comercial de sempre. Se faz fracasso, a nota é dois porque onde já se viu uma canção popular que ninguém entende, é produto encalhado, é prego de duas cabeças. Apenas a título de informação deixa acrescentar que cantor mais compositor, juntos, não percebem num disco mais que 12% de seu preço de custo. Nos demais 88% ninguém ousa atirar tomates. Diga-se de passagem que a maior acionista da maior fábrica de discos italiana é uma potência econômica religiosamente protegida de qualquer repreensão. E olha que não tenho nada de pessoal contra esse Papa. Só acho que o João XXIII era mais bacana.

183. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. Ser antiflamenguista e ostentar no meio da cara um diploma de ressentido. É detestar Mangueira, o carnaval e tudo o que cheire a popular e unânime. O neném desmamado, o menino asmático e o homem traído, esses terão sempre o direito de gritar contra o Flamengo. Por isso mesmo é muito fácil ser rubro-negro. Fácil de mais. É como ser a favor do sol no meio do deserto, ou comemorar o Dia da Árvore no coração da Amazônia. Aliás, nunca existiu um flamenguista. Flamengar é verbo imperfeito que só se conjuga no plural. Por exemplo: E advogo, tu bates o ponto, ele mata mosquito; nós flamengamos, vós flamengais, eles flamengam. Mas torcer pelo Fluminense, modéstia à parte, requer outros talentos. Precisa saber dançar sem batucada. O tricolor chora e ri sem ninguém por perto. Ele merece um campeonato, ele merece. Antes mesmo de ser informado, via satélite, por essa estranha seita chamada "Jovem Flu", fiquei sabendo da notícia por meu pai, que é Bonsucesso. Um "Velho Bom", em suma. Depois veio o telefonema dum bando de amigos, jogadores e rodrigues, cujo amontoado de vozes deixou-me entender pouco mais que a confirmação da vitória. Mas foi o bastante para me deixar emocionado e sem sono, fumando na janela. Eram cinco horas da madrugada e ninguém se manifestava nas redondezas do Vaticano. Ignoravam o campeão carioca num silêncio canônico, donde pude constatar que, naquele exato momento, em assuntos de futebol eu era o homem mais feliz de Roma. O amigo Franco Beretta, co-proprietário do bar Nuova Sicília, ofereceu-me um vinho pela vitória do Fluminense no campeonato brasileiro. Bom, eu disse brasileiro para simplificar, porque eles não entendem os nossos campeonatos regionais. Disse também que a bandeira do campeão brasileiro era igual à da Itália, vermelha, verde e branca, mas evitei jurar que se tratasse de uma homenagem. O Franco Beretta achou que era uma homengem sim, que tem muito italiano no Brasil, ele mesmo tem um primo que está milionário em Montevidéo. Para dizer a verdade, o vermelho do Fluminense é mais chegado ao tom do vinho barolo que o Franco ofereceu mais um. E o verde da camisa tricolor é o mesmo das azeitonas que a gente foi comendo e comendo, falando de futebol. Não, o Pelé é do Santos. Se o Fluminense ganhou do Santos? Ora, pois já não lhe disse que o meu clube foi campeão? (Franco Beretta, como todo italiano, desconfia muito de futebol brasileiro sem Pelé). Você pode comparar o Fluminense com o time da Fiorentina, campeão da Itália. No lugar do Superach temos o Félix, goleiro da seleção. No lugar de Amarildo temos o Lula, e daí? Se achar pouco um Lula, tome um Lulinha que eu nunca vi mas já gostei. Pega o Ferrante, líbero da cabeleira loura e abundante, faz uma permanente e pinta todo de preto, pinta de novo porque não ficou no ponto, passa uma terceira mão de tinta, fosforescente, e você tem o Denílson. O De Sisti, capitão fiorentino e gênio nacional, é um Samarone sem malícia. Se o Samarone é do escrete? Não é não. Nem o Galhardo. O Chiarugi, ah. Chiarugi é um maluco, segundo o meu amigo italiano. Chegou a ser afastado do primeiro time porque dribla muito mais, engraçado, foi com a sua volta que a Fiorentina partiu firme para a liderança. Vem cá, O que Chiarugi seria capaz de marcar um gol com a mão? Ah, aquele é capaz de tudo, diz o italiano, pode ser até que o juiz confirme o gol. E então meu caro Beretta, você não acha que ele é um ponta-direita para a seleção italiana? Para a seleção está bem, diz ele, se o Chiarugi marcar gol de mão contra a minha Roma desço no campo e faço um estrago naquela cara.Franco Beretta ia sendo convertido mansamente. Passei do Wilton para o Oliveira, deste para o Assis, daí ao Silveira e a bola foi parar nos pés do Cláudio. Nisso o Franco centrou e perguntou pelo nosso Riva, o artilheiro. Mas qual Riva, qual nada, muito melhor! (Riva foi o goleador do campeonato italiano: 19 gols em trinta partidas.) E você vem falar de Riva. Olha aqui, não sei como lhe explicar, mas o campeonato carioca começa com doze clubes e de repente tem oito, quer dizer... O fato é que o Flávio foi o artilheiro do Brasil com 49 gols e pronto. Se é novo esse Flávio? É, começou este ano. Não, antes dele a gente não costumava fazer gols. Antes do Flávio jogava de centro-avante o fantasma do Valdo. E tem mais: a revelação do ano é um sujeito que se chama Cafuringa. Mas ao aouvir Cafuringa o meu amigo achou demais, disse que eu já estava exagerando e foi cuidar da vida.

184. CHICO BUARQUE DE HOLANDA. No dia 28 de março, nascia a filha de Chico Buarque de Hollanda e Marieta Severo. O parto, induzido e difícil, causou algumas complicações. A menina nasceu com algumas manchas no rosto e a cabeça ligeiramente deformada. Mas, apesar da preocupação do pai, os problemas desapareceram no terceiro dia e Sílvia já está em boa forma. Marieta, que foi internada na Clínica Moscatti, nos arredores de Roma, resistiu bravamente ao seu primeiro parto e assim que pode, numa rápida assembléia com Chico, escolheu Vinícius de Moraes para padrinho, Na confusão dos três primeiros dias de sua filha Chico fala para Fatos e Fotos sobre a menina, o trabalho e as saudades do Brasil. Estou em Roma desde o início do ano e pretendo ficar até julho, mais ou menos, depende... É preciso tomar um chá de tranqüilidade assim de vez em quando. A Itália oferece trabalho, Roma é apaixonante e o italiano é quase irmão da gente. Saudades do Brasil é claro que tenho. Da praia, do Antonio´s, do futebol, dos amigos. Dos amigos, principalmente, mas ainda bem que puseram um satélite lá em cima e a gente se telefona volta e meia. Não vou vou dizer que estou estourando na praça européia porque é mentira. Meus discos vendem bem, está dando para viver, já é muito. Os críticos aplaudem, os teatros também, mas o sucesso popular, popular mesmo, não é mole, sabe? A gravação Far Niente (bom tempo), as aparições na televisão e um programa fixo na rádio estão ajudando. Pelo menos o público já sabe que eu sou Tchico Barcue, cantautore brasiliano, conterrâneo de Pelé, Garrincha e Altafini. Vou a Paris gravar um álbum em francês, com as mesmas músicas do disco italiano. Isso de ficar cantando em língua estrangeira não estava nos meus planos, mas é o mínimo que a gente pode ajudar para se fazer entender. Esse tal de velho mundo tem o ouvido cansado, carece de um ritmo novo, de melodia diferente. Mas é preciso ir aos poucos, facilitar, senão eles acham que samba é exotismo nosso. É por isso que faço questão de acopanhar as traduções, mesmo convencido de que é impossível traduzir o espírito, as rimas e os ritmos que o samba tem. Ainda bem que tenho como tradutor a excelente figura de Sérgio Badotti, italiano que ama o Brasil como poucos brasileiros. Agora ele está trabalhando também com o Vinícius. Ele paquera o samba com amor e tempo integrais. Tenho composto sim, devagar e sempre, coisas novas para lançar no Brasil. Aliás, no fundo tenho pensado mesmo é nas gravações brasileiras. A essa altura já deve ter saído por lá um disquinho com umas e outras. Taí uma gravação que me deu gosto. O resto segue num elepê até junho. É bom mesmo que faça esse disco correndo, senão a fábrica continua lançando meus discos estrangeiros no Brasil. Quanto a festivais, trato de tirar o corpo fora. É justo que o público exija caras novas e vice-versa. Eu já estava virando cara velha. Não, minha filha não vai se chamar Rita, nem Carolina. Nem Roda-Viva. Talvez Sílvia, não sei. Temos ainda um mês para decidir e registrar no consulado, brasileirinha sim senhor. Olha aí, pode dizer até que eu sou esse artista de projeção, mas deixa eu brincar de vez em quando. Três anos de vida pública cansam qualquer um, mas não quero que minha filha me encontre circunspecto. Afinal, ela é afilhada do Vinícius, há de ser minha amiga. É por isso que, à noite, sempre vou grudar o rosto no vidro do bercário. Ela é muito preguiçosa e dorme o tempo inteiro, rindo. Mas, quando abrir o olho, ela talvez me veja como vejo meu pai. Sabe duma coisa? Ela não vai ser filha de Chico Buarque nenhum. Eu é que vou ser pai dela.

185. CLARICE LISPECTOR. Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã. Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio. Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado. Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre. Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se pode­ria contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma. Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, pare­cia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem! Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros. Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto. Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado. Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos. Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

186. CLARICE LISPECTOR. A família foi pouco a pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana. A nora de Olaria apareceu de azul-marinho, com enfeite de paetês e um drapeado disfarçando a barriga sem cinta. O marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandara sua mulher para que nem todos os laços fossem cortados — e esta vinha com o seu melhor vestido para mostrar que não precisava de nenhum deles, acompanhada dos três filhos: duas meninas já de peito nascendo, infantilizadas em babados cor-de-rosa e anáguas engomadas, e o menino acovardado pelo terno novo e pela gravata. Tendo Zilda — a filha com quem a aniversariante morava — disposto cadeiras unidas ao longo das paredes, como numa festa em que se vai dançar, a nora de Olaria, depois de cumprimentar com cara fechada aos de casa, aboletou-se numa das cadeiras e emudeceu, a boca em bico, mantendo sua posição de ultrajada. "Vim para não deixar de vir", dissera ela a Zilda, e em seguida sentara-se ofendida. As duas mocinhas de cor-de-rosa e o menino, amarelos e de cabelo penteado, não sabiam bem que atitude tomar e ficaram de pé ao lado da mãe, impressionados com seu vestido azul-marinho e com os paetês. Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá. O marido viria depois. E como Zilda — a única mulher entre os seis irmãos homens e a única que, estava decidido já havia anos, tinha espaço e tempo para alojar a aniversariante — e como Zilda estava na cozinha a ultimar com a empregada os croquetes e sanduíches, ficaram: a nora de Olaria empertigada com seus filhos de coração inquieto ao lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras fingindo ocupar-se com o bebê para não encarar a concunhada de Olaria; a babá ociosa e uniformizada, com a boca aberta. E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que fazia hoje oitenta e nove anos. Zilda, a dona da casa, arrumara a mesa cedo, enchera-a de guardanapos de papel colorido e copos de papelão alusivos à data, espalhara balões sungados pelo teto em alguns dos quais estava escrito "Happy Birthday!", em outros "Feliz Aniversário!"  No centro havia disposto o enorme bolo açucarado. Para adiantar o expediente, enfeitara a mesa logo depois do almoço, encostara as cadeiras à parede, mandara os meninos brincar no vizinho para não desarrumar a mesa. E, para adiantar o expediente, vestira a aniversariante logo depois do almoço. Pusera-lhe desde então a presilha em torno do pescoço e o broche, borrifara-lhe um pouco de água-de-colônia para disfarçar aquele seu cheiro de guardado — sentara-a à mesa. E desde as duas horas a aniversariante estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa. De vez em quando consciente dos guardanapos coloridos. Olhando curiosa um ou outro balão estremecer aos carros que passavam. E de vez em quando aquela angústia muda: quando acompanhava, fascinada e impotente, o vôo da mosca em torno do bolo. Até que às quatro horas entrara a nora de Olaria e depois a de Ipanema. Quando a nora de Ipanema pensou que não suportaria nem um segundo mais a situação de estar sentada defronte da concunhada de Olaria — que cheia das ofensas passadas não via um motivo para desfitar desafiadora a nora de Ipanema — entraram enfim José e a família. E mal eles se beijavam, a sala começou a ficar cheia de gente que ruidosa se cumprimentava como se todos tivessem esperado embaixo o momento de, em afobação de atraso, subir os três lances de escada, falando, arrastando crianças surpreendidas, enchendo a sala — e inaugurando a festa. Os músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam mais, de modo que ninguém podia saber se ela estava alegre. Estava era posta á cabeceira. Tratava-se de uma velha grande, magra, imponente e morena. Parecia oca. — Oitenta e nove anos, sim senhor! disse José, filho mais velho agora que Jonga tinha morrido. — Oitenta e nove anos, sim senhora! disse esfregando as mãos em admiração pública e como sinal imperceptível para todos. Todos se interromperam atentos e olharam a aniversariante de um modo mais oficial. Alguns abanaram a cabeça em admiração como a um recorde. Cada ano vencido pela aniversariante era uma vaga etapa da família toda. Sim senhor! disseram alguns sorrindo timidamente.— Oitenta e nove anos!, ecoou Manoel que era sócio de José. É um brotinho!, disse espirituoso e nervoso, e todos riram, menos sua esposa. A velha não se manifestava. Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum. Outros trouxeram saboneteira, uma combinação de jérsei, um broche de fantasia, um vasinho de cactos — nada, nada que a dona da casa pudesse aproveitar para si mesma ou para seus filhos, nada que a própria aniversariante pudesse realmente aproveitar constituindo assim uma economia: a dona da casa guardava os presentes, amarga, irônica.— Oitenta e nove anos! repetiu Manoel aflito, olhando para a esposa. A velha não se manifestava. Então, como se todos tivessem tido a prova final de que não adiantava se esforçarem, com um levantar de ombros de quem estivesse junto de uma surda, continuaram a fazer a festa sozinhos, comendo os primeiros sanduíches de presunto mais como prova de animação que por apetite, brincando de que todos estavam morrendo de fome. O ponche foi servido, Zilda suava, nenhuma cunhada ajudou propriamente, a gordura quente dos croquetes dava um cheiro de piquenique; e de costas para a aniversariante, que não podia comer frituras, eles riam inquietos. E Cordélia? Cordélia, a nora mais moça, sentada, sorrindo.— Não senhor! respondeu José com falsa severidade, hoje não se fala em negócios!— Está certo, está certo! recuou Manoel depressa, olhando rapidamente para sua mulher que de longe estendia um ouvido atento.— Nada de negócios, gritou José, hoje é o dia da mãe! Na cabeceira da mesa já suja, os copos maculados, só o bolo inteiro — ela era a mãe. A aniversariante piscou os olhos. E quando a mesa estava imunda, as mães enervadas com o barulho que os filhos faziam, enquanto as avós se recostavam complacentes nas cadeiras, então fecharam a inútil luz do corredor para acender a vela do bolo, uma vela grande com um papelzinho colado onde estava escrito "89". Mas ninguém elogiou a idéia de Zilda, e ela se perguntou angustiada se eles não estariam pensando que fora por economia de velas — ninguém se lembrando de que ninguém havia contribuído com uma caixa de fósforos sequer para a comida da festa que ela, Zilda, servia como uma escrava, os pés exaustos e o coração revoltado. Então acenderam a vela. E então José, o líder, cantou com muita força, entusiasmando com um olhar autoritário os mais hesitantes ou surpreendidos, "vamos! todos de uma vez!" — e todos de repente começaram a cantar alto como soldados. Despertada pelas vozes, Cordélia olhou esbaforida. Como não haviam combinado, uns cantaram em português e outros em inglês. Tentaram então corrigir: e os que haviam cantado em inglês passaram a português, e os que haviam cantado em português passaram a cantar bem baixo em inglês. Enquanto cantavam, a aniversariante, à luz da vela acesa, meditava como junto de uma lareira. Escolheram o bisneto menor que, debruçado no colo da mãe encorajadora, apagou a chama com um único sopro cheio de saliva! Por um instante bateram palmas à potência inesperada do menino que, espantado e exultante, olhava para todos encantado. A dona da casa esperava com o dedo pronto no comutador do corredor - e acendeu a lâmpada.— Viva mamãe!— Viva vovó!— Viva D. Anita, disse a vizinha que tinha aparecido.—  Happy birthday! gritaram os netos, do Colégio Bennett. Bateram ainda algumas palmas ralas. A aniversariante olhava o bolo apagado, grande e seco.— Parta o bolo, vovó! disse a mãe dos quatro filhos, é ela quem deve partir! assegurou incerta a todos, com ar íntimo e intrigante. E, como todos aprovassem satisfeitos e curiosos, ela se tornou de repente impetuosa: — parta o bolo, vovó! E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação , como se hesitando um momento ela toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina.— Que força, segredou a nora de Ipanema, e não se sabia se estava escandalizada ou agradavelmente surpreendida. Estava um pouco horrorizada.— Há um ano atrás ela ainda era capaz de subir essas escadas com mais fôlego do que eu, disse Zilda amarga. Dada a primeira talhada, como se a primeira pá de terra tivesse sido lançada, todos se aproximaram de prato na mão, insinuando-se em fingidas acotoveladas de animação, cada um para a sua pazinha. Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos, num silêncio cheio de rebuliço. As crianças pequenas, com a boca escondida pela mesa e os olhos ao nível desta, acompanhavam a distribuição com muda intensidade. As passas rolavam do bolo entre farelos secos. As crianças angustiadas viam se desperdiçarem as passas, acompanhavam atentas a queda. E quando foram ver, não é que a aniversariante já estava devorando o seu último bocado? E por assim dizer a festa estava terminada. Cordélia olhava ausente para todos, sorria.— Já lhe disse: hoje não se fala em negócios! respondeu José radiante.— Está certo, está certo! recolheu-se Manoel conciliador sem olhar a esposa que não o desfitava. Está certo, tentou Manoel sorrir e uma contração passou-lhe rápido pelos músculos da cara.— Hoje é dia da mãe! disse José. Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-cola, o bolo desabado, ela era a mãe. A aniversariante piscou. Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a carne de seu coração, Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada. Cadê Rodrigo? Rodrigo com olhar sonolento e intumescido naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria um homem. Mas, piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. Oh o desprezo pela vida que falhava. Como?! como tendo sido tão forte pudera dar á luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom homem a quem, obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão.— Mamãe! gritou mortificada a dona da casa. Que é isso, mamãe! gritou ela passada de vergonha, e não queria sequer olhar os outros, sabia que os desgraçados se entreolhavam vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha, e não faltaria muito para dizerem que ela já não dava mais banho na mãe, jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia. — Mamãe, que é isso! — disse baixo, angustiada. — A senhora nunca fez isso! — acrescentou alto para que todos ouvissem, queria se agregar ao espanto dos outros, quando o galo cantar pela terceira vez renegarás tua mãe. Mas seu enorme vexame suavizou-se quando ela percebeu que eles abanavam a cabeça como se estivessem de acordo que a velha não passava agora de uma criança.— Ultimamente ela deu pra cuspir, terminou então confessando contrita para todos. Todos olharam a aniversariante, compungidos, respeitosos, em silêncio. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Os meninos, embora crescidos — provavelmente já além dos cinqüenta anos, que sei eu! — os meninos ainda conservavam os traços bonitinhos. Mas que mulheres haviam escolhido! E que mulheres os netos — ainda mais fracos e mais azedos — haviam escolhido. Todas vaidosas e de pernas finas, com aqueles colares falsificados de mulher que na hora não agüenta a mão, aquelas mulherezinhas que casavam mal os filhos, que não sabiam pôr uma criada em seu lugar, e todas elas com as orelhas cheias de brincos — nenhum, nenhum de ouro! A raiva a sufocava.— Me dá um copo de vinho! disse. O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo imobilizado na mão.— Vovozinha, não vai lhe fazer mal? insinuou cautelosa a neta roliça e baixinha.— Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. — Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! me dá um copo de vinho, Dorothy! — ordenou. Dorothy não sabia o que fazer, olhou para todos em pedido cômico de socorro. Mas, como máscaras isentas e inapeláveis, de súbito nenhum rosto se manifestava. A festa interrompida, os sanduíches mordidos na mão, algum pedaço que estava na boca a sobrar seco, inchando tão fora de hora a bochecha. Todos tinham ficado cegos, surdos e mudos, com croquetes na mão. E olhavam impassíveis. Desamparada, divertida, Dorothy deu o vinho: astuciosamente apenas dois dedos no copo. Inexpressivos, preparados, todos esperaram pela tempestade. Mas não só a aniversariante não explodiu com a miséria de vinho que Dorothy lhe dera como não mexeu no copo. Seu olhar estava fixo, silencioso. Como se nada tivesse acontecido. Todos se entreolharam polidos, sorrindo cegamente, abstratos como se um cachorro tivesse feito pipi na sala. Com estoicismo, recomeçaram as vozes e risadas. A nora de Olaria, que tivera o seu primeiro momento uníssono com os outros quando a tragédia vitoriosamente parecia prestes a se desencadear, teve que retornar sozinha à sua severidade, sem ao menos o apoio dos três filhos que agora se misturavam traidoramente com os outros. De sua cadeira reclusa, ela analisava crítica aqueles vestidos sem nenhum modelo, sem um drapeado, a mania que tinham de usar vestido preto com colar de pérolas, o que não era moda coisa nenhuma, não passava era de economia. Examinando distante os sanduíches que quase não tinham levado manteiga. Ela não se servira de nada, de nada! Só comera uma coisa de cada, para experimentar. E por assim dizer, de novo a festa estava terminada. As pessoas ficaram sentadas benevolentes. Algumas com a atenção voltada para dentro de si, à espera de alguma coisa a dizer. Outras vazias e expectantes, com um sorriso amável, o estômago cheio daquelas porcarias que não alimentavam mas tiravam a fome. As crianças, já incontroláveis, gritavam cheias de vigor. Umas já estavam de cara imunda; as outras, menores, já molhadas; a tarde cala rapidamente. E Cordélia, Cordélia olhava ausente, com um sorriso estonteado, suportando sozinha o seu segredo. Que é que ela tem? alguém perguntou com uma curiosidade negligente, indicando-a de longe com a cabeça, mas também não responderam. Acenderam o resto das luzes para precipitar a tranqüilidade da noite, as crianças começavam a brigar. Mas as luzes eram mais pálidas que a tensão pálida da tarde. E o crepúsculo de Copacabana, sem ceder, no entanto se alargava cada vez mais e penetrava pelas janelas como um peso.— Tenho que ir, disse perturbada uma das noras levantando-se e sacudindo os farelos da saia. Vários se ergueram sorrindo. A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua pele tão infamiliar fosse uma armadilha. E, impassível, piscando, recebeu aquelas palavras propositadamente atropeladas que lhe diziam tentando dar um final arranco de efusão ao que não era mais senão passado: a noite já viera quase totalmente. A luz da sala parecia então mais amarela e mais rica, as pessoas envelhecidas. As crianças já estavam histéricas.— Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se a velha nas suas profundezas. Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava. E para aqueles que junto da porta ainda a olharam uma vez, a aniversariante era apenas o que parecia ser: sentada à cabeceira da mesa imunda, com a mão fechada sobre a toalha como encerrando um cetro, e com aquela mudez que era a sua última palavra. Com um punho fechado sobre a mesa, nunca mais ela seria apenas o que ela pensasse. Sua aparência afinal a ultrapassara e, superando-a, se agigantava serena. Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo e severo sobre a mesa dizia para a infeliz nora que sem remédio amava talvez pela última vez: É preciso que se saiba. É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta. Porém nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade era um relance. Cordélia olhou-a estarrecida. E, para nunca mais, nenhuma vez repetiu — enquanto Rodrigo, o neto da aniversariante, puxava a mão daquela mãe culpada, perplexa e desesperada que mais uma vez olhou para trás implorando à velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto dilacerante, enfim agarrar a sua derradeira chance e viver. Mais uma vez Cordélia quis olhar. Mas a esse novo olhar — a aniversariante era uma velha à cabeceira da mesa. Passara o relance. E arrastada pela mão paciente e insistente de Rodrigo a nora seguiu-o espantada.— Nem todos têm o privilégio e o orgulho de se reunirem em torno da mãe, pigarreou José lembrando-se de que Jonga é quem fazia os discursos.— Da mãe, vírgula! riu baixo a sobrinha, e a prima mais lenta riu sem achar graça.— Nós temos, disse Manoel acabrunhado sem mais olhar para a esposa. Nós temos esse grande privilégio disse distraído enxugando a palma úmida das mãos. Mas não era nada disso, apenas o mal-estar da despedida, nunca se sabendo ao certo o que dizer, José esperando de si mesmo com perseverança e confiança a próxima frase do discurso. Que não vinha. Que não vinha. Que não vinha. Os outros aguardavam. Como Jonga fazia falta nessas horas — José enxugou a testa com o, lenço — como Jonga fazia falta nessas horas! Também fora o único a quem a velha sempre aprovara e respeitara, e isso dera a Jonga tanta segurança. E quando ele morrera, a velha nunca mais falara nele, pondo um muro entre sua morte e os outros. Esquecera-o talvez. Mas não esquecera aquele mesmo olhar firme e direto com que desde sempre olhara os outros filhos, fazendo-os sempre desviar os olhos. Amor de mãe era duro de suportar: José enxugou a testa, heróico, risonho. E de repente veio a frase:— Até o ano que vem! disse José subitamente com malícia, encontrando, assim, sem mais nem menos, a frase certa: uma indireta feliz! Até o ano que vem, hein?, repetiu com receio de não ser compreendido. Olhou-a, orgulhoso da artimanha da velha que espertamente sempre vivia mais um ano.— No ano que vem nos veremos diante do bolo aceso! esclareceu melhor o filho Manoel, aperfeiçoando o espírito do sócio. Até o ano que vem, mamãe! e diante do bolo aceso! disse ele bem explicado, perto de seu ouvido, enquanto olhava obsequiador para José. E a velha de súbito cacarejou um riso frouxo, compreendendo a alusão. Então ela abriu a boca e disse:— Pois é. Estimulado pela coisa ter dado tão inesperadamente certo, José gritou-lhe emocionado, grato, com os olhos úmidos:— No ano que vem nos veremos, mamãe!— Não sou surda! disse a aniversariante rude, acarinhada. Os filhos se olharam rindo, vexados, felizes. A coisa tinha dado certo. As crianças foram saindo alegres, com o apetite estragado. A nora de Olaria deu um cascudo de vingança no filho alegre demais e já sem gravata. As escadas eram difíceis, escuras, incrível insistir em morar num prediozinho que seria fatalmente demolido mais dia menos dia, e na ação de despejo Zilda ainda ia dar trabalho e querer empurrar a velha para as noras — pisado o último degrau, com alívio os convidados se encontraram na tranqüilidade fresca da rua. Era noite, sim. Com o seu primeiro arrepio.Adeus, até outro dia, precisamos nos ver. Apareçam, disseram rapidamente. Alguns conseguiram olhar nos olhos dos outros com uma cordialidade sem receio. Alguns abotoavam os casacos das crianças, olhando o céu à procura de um sinal do tempo. Todos sentindo obscuramente que na despedida se poderia talvez, agora sem perigo de compromisso, ser bom e dizer aquela palavra a mais — que palavra? eles não sabiam propriamente, e olhavam-se sorrindo, mudos. Era um instante que pedia para ser vivo. Mas que era morto. Começaram a se separar, andando meio de costas, sem saber como se desligar dos parentes sem brusquidão.— Até o ano que vem! repetiu José a indireta feliz, acenando a mão com vigor efusivo, os cabelos ralos e brancos esvoaçavam. Ele estava era gordo, pensaram, precisava tomar cuidado com o coração. Até o ano que vem! gritou José eloqüente e grande, e sua altura parecia desmoronável. Mas as pessoas já afastadas não sabiam se deviam rir alto para ele ouvir ou se bastaria sorrir mesmo no escuro. Além de alguns pensarem que felizmente havia mais do que uma brincadeira na indireta e que só no próximo ano seriam obrigados a se encontrar diante do bolo aceso; enquanto que outros, já mais no escuro da rua, pensavam se a velha resistiria mais um ano ao nervoso e à impaciência de Zilda, mas eles sinceramente nada podiam fazer a respeito: "Pelo menos noventa anos", pensou melancólica a nora de Ipanema. "Para completar uma data bonita", pensou sonhadora. Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contingências, estava a aniversariante sentada à cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior do que ela mesma. Será que hoje não vai ter jantar, meditava ela. A morte era o seu mistério.

187. CLARICE LISPECTOR. O que ela amava acima de tudo era fazer bonecos de barro — o que ninguém lhe ensinara. — Trabalhava numa pequena calçada de cimento em sombra, junto à última janela do porão. Quando queria com muita força ia pela estrada até ao rio. Numa de suas margens, escalável embora escorregadia, achava-se o melhor barro que alguém poderia desejar: branco, maleável, pastoso: frio. Só em pegá-lo, em sentir sua frescura delicada, alegrezinha e cega, aqueles pedaços timidamente vivos, o coração da pessoa se enternecia úmido quase ridículo. Virgínia cavava com os dedos aquela terra pálida e lavada — na lata presa à cintura iam se reunindo os trechos amorfos. O rio em pequenos gestos molhava-lhe os pés descalços e ela mexia os dedos úmidos com excitação e clareza. As mãos livres, ela então cuidadosamente galgava a margem até a extensão plana . No pequeno pátio de cimento depunha a sua riqueza. Misturava o barro à água, as pálpebras frementes de atenção — concentrada, o corpo à escuta, ela podia obter uma porção exata de barro e de água numa sabedoria que nascia naquele mesmo instante, fresca e progressivamente criada. Conseguia uma matéria clara. e tenra de onde se poderia modelar um mundo. Como, como explicar o milagre... Ela se amedrontava pensativa. Nada dizia, não se movia, mas interiormente sem nenhuma palavra repetia: Eu não sou nada, não tenho orgulho, tudo me pode acontecer; se quiser, me impedirá de fazer a massa de barro; se quiser, pode me pisar, me estragar tudo; eu sei que não sou nada. Era menos que uma visão, era uma sensação no corpo, um pensamento assustado sobre o que lhe permita conseguir tanto barro e água e diante de quem ela devia humilhar-se com seriedade . Ela lhe agradecia com uma alegria difícil, frágil e tensa; sentia em alguma coisa como o que não se vê de olhos fechados. Mas o que não se vê de olhos fechados tem uma existência e uma força, como o escuro, como a ausência — compreendia-se ela, assentindo feroz e muda com a cabeça. Mas nada sabia de si, passaria inocente e distraída pela sua realidade sem reconhecê-la; como uma criança, como uma pessoa. Depois de obtida a matéria, numa queda de cansaço ela poderia perder a vontade de fazer bonecos. Então ia vivendo para a frente como uma menina. Um dia, porém, sentia seu corpo aberto e fino, e no fundo uma serenidade que não se podia conter, ora se desconhecendo, ora respirando trêmula de alegria, as coisas incompletas. Ela mesma insone como luz — esgazeada, fugaz, vazia, mas no íntimo um ardor que era vontade de guiar-se a uma só coisa, um interesse que fazia o coração acelerar-se sem ritmo... de súbito, como era vago viver. Tudo isso também poderia passar, a noite caindo repentinamente, a escuridão fresca sobre o dia morno. Mas às vezes ela se lembrava do barro molhado, corria alegre e assustada para o pátio: mergulhava os dedos naquela mistura fria, muda e constante como uma espera; amassava, amassava, aos poucas ia extraindo formas. Fazia crianças, cavalos, uma mãe com um filho, uma mãe sozinha, uma menina fazendo coisas de barro, um menino descansando, uma menina contente, uma menina vendo se ia chover, uma flor, um cometa de cauda salpicada de areia lavada e faiscante, uma flor murcha com sol por cima, o cemitério do Brejo Alto, uma moça olhando... Muito mais, muito mais. Pequenas formas que nada significavam, mas que eram na realidade misteriosas e calmas. Às vezes alta como uma árvore alta, mas não eram árvores, m:to eram nada...Ás vezes um pequeno objeto de forma quase estrelada, mas sério e cansado como uma pessoa. Um trabalho que jamais acabaria, isso era o que de mais bonito e atento ela já soubera. Pois se ela podia fazer o que existia e o que não existia!... Depois de prontos, os bonecos eram colocados ao sol. Ninguém lhe ensinara, mas ela os depositava nas manchas de sol no chão, manchas sem vento nem ardor. O barro secava mansamente, conservava o tom claro, não enrugava, não rachava. mesmo quando seco parecia delicado, evanescente e úmido. E ela própria podia confundi-lo com o barro pastoso. As figurinhas assim, pareciam rápidas, quase como se fossem se desmanchar — e isso era como se elas fossem se movimentar. Olhava para o boneco imóvel e mudo. Por amor ou apenas prosseguindo o trabalho ela fechava os olhos e se concentrava numa força viva e luminosa, da qualidade do perigo e da esperança, numa força de sede que lhe percorria o corpo celeremente com um impulso que se destinava à figura. Quando, enfim, se abandonava, seu fresco e cansado bem-estar vinha de que ela podia enviar, embora não soubesse o que, talvez. Sim ela às vezes possuía um gosto dentro do corpo, um gosto alto e angustiante que tremia entre a força e o cansaço — era um pensamento como sons ouvidos, uma flor no coração: Antes que ele se dissolvesse, maciamente rápido, no seu ar interior, para sempre fugitivo, ela tocava com os dedos num objeto, entregando-o. E, quando queria dizer algo que vinha fino, obscuro e liso — e isso poderia ser perigoso — ela encostava um dedo apenas, um dedo pálido, polido e transparente, um dedo trêmulo de direção. No mais agudo e doído do seu sentimento ela pensava: Sou feliz. Na verdade, ela o era nesse instante, e se em vez de pensar: Sou feliz, procurava o futuro, era porque, obscuramente, escolhia um movimento para a frente que servisse de forma à sua sensação. Assim juntara uma procissão de coisas miúdas. Quedavam-se quase despercebidas no seu quarto. Eram bonecos magrinhos e altos como ela mesma. Minuciosos, ligeiramente desproporcionados, alegres, um pouco perplexos — às vezes, subitamente, pareciam um homem coxo rindo. Mesmo suas figurinhas mais suaves tinham uma imobilidade atenta como a de um santo. E pareciam inclinar-se, para quem as olhava, também como os santos. Virgínia podia fitá-las uma manhã inteira, que seu amor e sua surpresa não diminuiriam.— Bonito... bonito como uma coisinha molhada, dizia ela excedendo-se num ímpeto imperceptível e doce. Ela observava: mesmo bem acabados, eles eram toscos como se pudessem ainda ser trabalhados. Mas vagamente, ela pensava que nem ela nem ninguém poderia tentar aperfeiçoá-los sem destruir sua linha de nascimento . Era como se eles só pudessem se aperfeiçoar por si mesmos, se isso fosse possível. As dificuldades surgiam como uma vida que vai crescendo. Seus bonecos, pelo efeito do barro claro, eram pálidos. Se ela queria sombreá-los não o conseguia com o auxílio da cor, e por força dessa deficiência aprendeu a lhes dar sombra ainda por meio de forma. Depois inventou uma liberdade: com uma folhinha seca sob um fino traço de barro conseguia um vago colorido, triste assustada quase inteiramente morto. Misturando barro à terra, obtinha ainda outro material menos plástico, porém mais severo e solene. MAS COMO FAZER O CÉU? Nem começar podia! Não queria nuvens — o que poderia obter, pelo menos grosseiramente — mas o céu, o céu mesmo, com sua existência, cor solta, ausência de cor. Ela descobriu que precisava usar uma matéria mais leve que não pudesse sequer ser apalpada, sentida, talvez apenas vista, quem sabe! Compreendeu que isso ela conseguiria com tintas. E às vezes numa queda, como se tudo se purificasse, ela se contentava em fazer uma superfície lisa, serena, unida, numa simplicidade fina e tranqüila.

188. CLARICE LISPECTOR. Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação. Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida. Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem. No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera. Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera. O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher. O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto. A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego. O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles. Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados. Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida. Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito. A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram. O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa. Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca. Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite. Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico. Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo. A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si. De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho. Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais. Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu. Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber. Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos. Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante. As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno. Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo. Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto. Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o. Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha? Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver. Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão. Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar. Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos. Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos. Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu. Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico. Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.— O que foi?! gritou vibrando toda. Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras. Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo. Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver. Acabara-se a vertigem de bondade. E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

189. CLÁUDIO MELLO E SOUZA. OS MAIAS, DE EÇA DE QUEIROZ. UMA TRAGÉDIA MODERNA. Em junho de 1888, os livreiros portugueses começaram a vender os primeiros dos cinco mil exemplares da primeira edição de Os Maias. É tiragem que impressiona ainda hoje. O que dizer então naqueles tempos de um Portugal pouco habitado e não muito lido? Foi uma temeridade, mas à audácia dos editores correspondeu a curiosidade dos leitores e o interesse da crítica. E o livro do desconfiado Eça de Queiroz transformou-se, desde então, num sucesso de vendas. E assim é (ou voltou a ser) hoje em dia. Andou uns tempos esquecido, é verdade, mas bastou que a televisão fosse buscar inspiração (palavra perigosa) no velho romance, para que as novas reedições sumissem, recém-chegadas às livrarias, pouco antes do Natal, e fossem totalmente consumidas pouco antes do novo ano. Eça de Queiroz foi impreciso e modesto ao dar a Os Maias o subtítulo "episódios da vida romântica". Na verdade, o seu mais famoso romance é uma tragédia, tal como a entendia Sófocles quando, já na maturidade, compôs o seu Édipo. Uma tragédia burguesa, mas quand même uma tragédia, pois que lá está a grave transgressão moral, cometida em completa inconsciência por seus dois personagens centrais — Carlos Eduardo e Maria Eduarda. Da Maia, ambos; irmãos, apaixonados e incestuosos ambos, e belos e trágicos. Invejo quem agora, instigado pela minissérie, vai ler esse livro pela primeira vez. Terá prazer único e irreproduzível. As releituras que hão de vir, mais tarde, servirão de consolo, mas não de substituto. Esse prazer estará certamente na elegância barroca da forma e no desenvolvimento astucioso do entrecho. Mas estará também, ou principalmente, nos admiráveis retratos que Eça faz de seus tipos principais, com a elegância e a minúcia de um genial pintor romântico, mas com "o seu olho à Balzac". A começar não por um tipo, mas por uma casa, mais exatamente a "casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875", que surge, penumbrosa e prenunciadora, logo na primeira frase do livro, e que era conhecida como a casa do ramalhete "ou, mais simplesmente, o Ramalhete". Então, lemos, já encantados: "Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas janelas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de residência eclesiástica que competia a uma edificação dos tempos da Sra. D. Maria I; com uma sineta e com uma cruz no topo, assemelhar-se-ia a um colégio de jesuítas". Ai está o cenário da tragédia. O Ramalhete é, pela ordem de entrada, o primeiro personagem em cena, com suas paredes sempre fatais àquela antiga família da Beira, tão rica e tão infeliz. E será no Ramalhete e em torno dele que vamos ser apresentados aos personagens nos quais Eça de Queirós se insinua, para nos falar através de suas muitas vozes. Seus retratos eram sempre perfeitos e, ao longo da trama, coerentes. A única personagem que o confunde é Maria Eduarda, por sua beleza de deusa. Quando ela aparece — e como custa a aparecer! —, "é alta, loura, com um meio véu muito apertado e muito escuro que realçava o esplendor da sua carne"; algumas páginas adiante, Carlos a revê e nota que "os cabelos não eram louros, como julgara de longe, à claridade do sol, mas de dois tons, castanho-claro e castanho-escuro, espessos e ondeando ligeiramente sobre a testa". Falei de retratos e o mais correto é falar de auto-retratos. Se Fernando Pessoa tinha seus heterônimos, Eça tinha os seus "eus", como diz Beatriz Berrini, que eram muitos e muito se pareciam. Ele nos fala pela voz severa do velho Afonso da Maia, que "era um pouco baixo, maciço, de ombros quadrados e fortes...o cabelo branco todo cortado à escovinha, e a barba de neve, aguda e longa", a reclamar melhores destinos para o seu lamentável país e a cobrar, do neto tão promissor, menos diletantismo e mais realizações. Fala-nos também com as palavras cruéis e desassombradas do neto Carlos, "um formoso e magnífico moço, alto, bem-feito, de ombros largos, com uma testa de mármore sob os anéis de cabelos pretos, e os olhos dos Maias, aqueles irresistíveis olhos do pai, dum negro líquido, ternos como os dele e mais graves", e que costumava vociferar: "A única coisa a fazer em Portugal é plantar legumes, enquanto não há uma revolução que faça subir à superfície alguns dos elementos originais, fortes, vivos, que isto ainda encerre lá no fundo". Ao que o avô respondia, já impaciente com esse diletantismo do neto, como se falasse em nome do autor:— Pois então façam vocês essa revolução. Mas pelo amor de Deus, façam alguma coisa! Mas nenhum de seus "eus" foi mais ele mesmo que João da Ega, ou João da Eça, ou o Ega de Queirós, que todos esses trocadilhos, embora fáceis, têm cabimento e justeza. Talvez só o Fradique Mendes se lhe possa comparar, mas esse não vem ao caso, agora, porque não é personagem d´Os Maias. Eram "eus" idealizados e muita vez caricaturados, mas que, no fundo, o reproduziam com verdade e o exprimiam com coerência. Ao Ega, deu-lhe o Eça a existência que gostaria de ter tido: discutido e admirado, com a mãe devota, rica e viúva, a lhe garantir o presente e o futuro, permitindo-lhe desfrutar as sofisticações, as intimidades e os desvelos de uma família de aristocratas, como era a dos Maias; mais alguns amores ardentes e com saúde razoavelmente forte para gozar, sem medos nem cuidados, o prazer das boas comidas e dos bons vinhos, dos conhaques e das águas ardentes, das noitadas com espanholas e das devassidões vespertinas, com amantes de luxo. É conclusão a que se chega no momento em que Eça retrata o Ega — e se auto-retrata: cheio de verve e de irreverência, de frases retumbantes e ditos irônicos, um talento amaldiçoado, temido e exaltado. Vejamos o Ega pelos olhos do Eça: "O esforço da inteligência (...) terminou por lhe influenciar as maneiras e a fisionomia; e, com a sua figura esgrouviada e seca, os pêlos arrebitados sob o nariz adunco, um quadrado de vidro entalado no olho direito — tinha alguma coisa de rebelde e de satânico". Ora, se não é esse ou quase esse o retrato do próprio Eça, tal como captado na célebre caricatura que dele fez Rafael Bordalo Pinheiro, então já não sei ver nem distinguir. É ainda o Ega que, em momento de impaciência com a mediocridade e a hipocrisia da sociedade burguesa, e como que falando em nome de seu criador, deixa Lisboa e corre para restaurar-se no interior, lançando a Carlos e a Craft, os dois grandes amigos que o foram acompanhar à diligência, esta frase aterradora: — Sinto-me como se a alma me tivesse caído a uma latrina! Preciso um banho por dentro. Tal como Carlos da Maia, também João da Ega era um diletante. Ambos têm revoltas pouco profundas e de pouca duração. As suas grandes promessas de realização pessoal e de transformação do mundo terminam por desmaiar no culto quase religioso do luxo e do tédio. Passam a representar o que mais incomodava o inconformado Eça: a renúncia e o conformismo. É com mãos hábeis, orgulhosas e brilhantes que Eça os faz florescer em Coimbra, em tempos de sonho e de estudo, a prometer insubmissão e luta. É com olhar de desalento e pessimismo que Eça os deixa vencidos e melancólicos, a "correr desesperadamente pela rampa de Santos", atrás de um bonde e de um jantar, "sob a primeira claridade do luar que subia". Tal como o próprio Eça se sentia, Ega e Carlos eram, naquele momento, dois "vencidos da vida". E assim a tragédia se consuma e nos obriga a repensar o ser humano com inquietação e desconfiança.

190. CLÁUDIO MELLO E SOUZA. OS MAIAS, DE EÇA DE QUEIROZ. EÇA, PINTOR E FOTÓGRAFO. Foi ainda no primeiro ano clássico, e hoje nem sei mais ao que equivale essa antigualha, para me valer de palavra tão castiçamente portuguesa. O ano era o de... deixemos isso pra lá. Por dever curricular, vivia preso, às ordens do professor Mário Barreto, entre as paredes severas de Alexandre Herculano, que impressionavam mas sufocavam, e as extravagâncias sintáticas de Camilo Castelo Branco, que maçavam a leitura e emperravam o entrecho (como vêem, insisto em castigar o estilo, um pouco à maneira daqueles dois). Eles muito me ilustravam, mas pouco ou nada me comoviam. A minha primeira grande e devastadora comoção literária só me veio mesmo, pouco depois, com a leitura de Eça e, principalmente, com a travessia inaugural d´Os Maias. Ainda me lembro das aflições que passei a sentir quando, contando as páginas que faltavam, me dei conta de que me aproximava do desfecho da tragédia e — tragédia ainda maior! — que chegava ao fim do livro. Não vou fazer aqui e agora o inventário das virtudes e grandezas literárias que me seduziram e ainda seduzem em Eça — no romancista, no cronista, no memorialista, no jornalista, no polemista e — o que chega a ser estranho em se tratando de um literato! — no pintor e no fotógrafo que ele foi, com olho sagaz e mãos precisas. Fico apenas — e é bastante — com esses dois últimos. Sim, porque entre as mais fortes impressões que me ficaram, dessa primeira leitura, e que se repetiram, nas seguidas releituras, estavam os personagens que ele retratava, e as paisagens e prédios que reproduzia, dos mais elevados aos mais torpes, das mais belas às mais miseráveis, dando-lhes vida e paixão, velhacaria e nobreza, ventura e tragédia. Não é à toa que essa obra, mesmo na perigosa forma de uma adaptação, chega à TV, como já poderia ter chegado ao cinema. Porque ela é, antes de tudo, mas não acima de tudo, uma visualização. Não há descrições decorativas. São todas lindíssimas, mas todas definidoras de uma circunstância, de um caráter, de um trecho de paisagem significante, que completa a psicologia de um tipo — como o de Afonso da Maia, ao contemplar o Tejo, na sua volta ao Ramalhete e a Lisboa. Quando tive a idéia de lhes apresentar os personagens d´Os Maias, tal como Eça os viu e os escreveu, pensei se não estaria a desmembrar e a apequenar o romance. Concluí que não. Primeiro, porque esses retratos são quase autônomos. Têm valor literário em si mesmos. Podem, por isso, ser entendidos e admirados fora do contexto. Depois, porque, por força de atração, esses retratos acabarão por convencê-los a conhecer o grande painel de que fazem parte, esse empolgante épico das paixões humanas a que o Eça dedicou oito anos de cuidados e talentos — todos recompensados. E agora, chega de papo e vamos à prosa. Comecemos pelo cenário da tragédia e, depois, vamos em frente, a mostrar os retratos. Não todos, que são muitos, mas os principais ao menos. 1 - O Ramalhete: A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete, ou simplesmente o Ramalhete. Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas janelas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de Residência Eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da Sra. D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo, assemelhar-se-ia a um Colégio de Jesuítas. O nome de Ramalhete provinha decerto dum revestimento quadrado de azulejos fazendo painel no lugar heráldico do Escudo de Armas, que nunca chegara a ser colocado, e representando um grande ramo de girassóis atado por uma fita onde se distinguiam letras e números duma data. 2 - Os Maias. Os Maias eram uma antiga família da Beira, sempre pouco numerosa, sem linhas colaterais, sem parentelas — e agora reduzida a dois varões, o senhor da casa, Afonso da Maia, um velho já, quase um antepassado, mais idoso que o século, e seu neto Carlos que estudava medicina em Coimbra. Quando Afonso se retirara definitivamente para Santa Olávia, o rendimento da casa excedia já cinqüenta mil cruzados: mas desde então tinham-se acumulado as economias de vinte anos de aldeia; viera também a herança dum último parente, Sebastião da Maia, que desde 1830 vivia em Nápoles, só, ocupando-se de numismática. 3 - Afonso da Maia: Afonso era um pouco baixo, maciço, de ombros quadrados e fortes: e com a sua face larga de nariz aquilino, a pele corada, quase vermelha, o cabelo branco todo cortado à escovinha, e a barba de neve aguda e longa — lembrava, como dizia Carlos, um varão esforçado das idades heróicas, um D. Duarte de Menezes ou um Afonso de Albuquerque.(...) Todavia, Afonso ainda ia longe, como ele dizia, de ser um velho borralheiro. Naquela idade, de verão ou de inverno, ao romper do sol, estava a pé, saindo logo para a quinta, depois da sua boa oração da manhã, que era um grande mergulho na água fria. (...) Em Santa Olávia as chaminés ficavam acesas até abril; depois ornavam-se de braçadas de flores, como um altar doméstico; e era ainda aí, nesse aroma e nessa frescura, que ele gozava melhor o seu cachimbo, o seu Tácito, ou o seu querido Rabelais. 4 - Carlos da Maia. Era decerto um formoso e magnífico moço, alto, bem-feito, de ombros largos, com uma testa de mármore sob os anéis de cabelos pretos, e os olhos dos Maias, aqueles irresistíveis olhos do pai, dum negro líquido, ternos como o dele e mais graves. Trazia a barba toda, muito fina, castanha-escura, rente na face, aguçada no queixo — o que lhe dava, com o bonito bigode arqueado aos cantos da boca, uma fisionomia de belo cavaleiro da Renascença. 5 - Maria Eduarda (I) (quando ela aparece, pela primeira vez, à porta do Hotel Central): ... uma senhora alta, loura, com um meio véu muito apertado e muito escuro que realçava o esplendor de sua carnação ebúrnea. Craft e Carlos afastaram-se, ela passou diante deles, com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem-feita, deixando atrás de si como uma claridade, um reflexo de cabelos de ouro, e um aroma no ar. Trazia um casaco colante de veludo branco de Gênova, e um momento sobre as lajes do peristilo brilhou o verniz de suas botinas. 6 - Maria Eduarda (II) (quando, afinal, Carlos da Maia conhece-a, pessoalmente): Voltou-se, viu Maria Eduarda diante de si. Foi como uma inesperada aparição — e vergou profundamente os ombros, menos a saudá-la, que a esconder a tumultuosa onda de sangue que sentia abrasar-lhe o rosto. Ela, com um vestido simples e justo de sarja preta, um colarinho direito de homem, um botão de rosa e duas folhas verdes no peito, alta e branca, sentou-se logo junto da mesa oval, acabando de desdobrar um pequeno lenço de renda. (...) E depois dum instante de silêncio, que lhe pareceu profundo, quase solene, a voz de Maria Eduarda ergueu-se, uma voz rica e lenta, dum tom de ouro que acariciava. (...) Os cabelos não eram louros, como julgara de longe à claridade do sol, mas de dois tons, castanho-claro e castanho-escuro, espessos e ondeando ligeiramente sobre a testa. Na grande luz escura de seus olhos havia ao mesmo tempo alguma coisa de muito grave e de muito doce. 7 - Pedro da Maia: O Pedrinho no entanto estava quase um homem. Ficara pequenino e nervoso como Maria Eduarda [Eça refere-se à mulher de Afonso, mãe de Pedro, também Maria Eduarda], tendo pouco da raça, da força dos Maias; a sua linda face oval dum trigueiro cálido, dois olhos maravilhosos e irresistíveis, prontos sempre a umedecer-se, faziam-no assemelhar a um belo árabe. Desenvolvera-se lentamente, sem curiosidades, indiferente a brinquedos, a animais, a flores, a livros. 8 - Maria Monforte: Nunca Maria Monforte aparecera mais bela: tinha uma dessas toilettes excessivas e teatrais que ofendiam Lisboa, e faziam dizer às senhoras que ela se vestia "como uma cômica". Estava de seda cor de trigo, com duas rosas amarelas e uma espiga nas tranças, opalas sobre o colo e nos braços; e estes tons de seara madura batida do sol, fundindo-se com o ouro dos cabelos, (...) banhando as suas formas de estátua, davam-lhe o esplendor duma Ceres. 7- João da Ega: João da Ega, com efeito, era considerado não só em Celorico, mas também na Academia, que ele espantava pela audácia e pelos ditos, como o maior ateu, o maior demagogo que jamais aparecera nas sociedades humanas. Isto lisonjeava-o: por sistema exagerou seu ódio à divindade, e a toda Ordem social: queria o massacre das classes médias, o amor livre das ficções do matrimônio, a repartição das terras, o culto de Satanás. O esforço da inteligência neste sentido terminou por lhe influenciar as maneiras e a fisionomia; e, com a sua figura esgrouviada e seca, os pêlos do bigode arrebitados sob o nariz adunco, um quadrado de vidro entalado no olho direito — tinha realmente alguma coisa de rebelde e de satânico, (...) perorando com os seus gestos aduncos de Mefistófeles em verve... 9 - Eusebiozinho: Do fundo da sala, destacando em preto, o Silveirinha, o Eusebiozinho de Santa Olávia, estendia também o pescoço, afogado numa gravata de viúvo de merino negro e sem colarinho, sempre macambúzio, mais molengo que outrora, com as mãos enterradas nos bolsos — tão fúnebre que tudo nele parecia complemento do luto pesado, até o preto do cabelo chato, até o preto das lunetas de fumo. 10 - Raquel Cohen: Era alta, muito pálida, sobretudo às luzes, delicada de saúde, com um quebranto nos olhos pisados, uma infinita languidez em toda a sua pessoa, um ar de romance e de lírio meio murcho: a sua maior beleza estava nos cabelos, magnificamente negros, ondeados, muito pesados, rebeldes aos ganchos, e que ela deixava habilmente cair numa massa meio solta sobre as costas, como num desalinho de nudez. Dizia-se que tinha literatura , e fazia frases. O seu sorriso lasso, pálido, constante, dava-lhe um ar de insignificância. O pobre Ega adorava-a. 11 - Tomás de Alencar: E apareceu um indivíduo muito alto, todo abotoado numa sobrecasaca preta, com a face escaveirada, olhos encovados, e sob o nariz aquilino, longos, espessos, românticos bigodes grisalhos: já todo calvo na frente, os anéis fofos de uma grenha muito seca caíam-lhe inspiradamente sobre a gola: e em toda a sua pessoa havia alguma coisa de antiquado, de artificial e de lúgubre. (...) E parecia mais lúgubre com a sua grenha de inspirado saindo-lhe de sob as abas largas do chapéu, a sobrecasaca coçada e malfeita colando-se-lhe lamentavelmente às ilhargas. 12 - Dâmaso Salcede: Em cima, no gabinete que o criado lhes indicou, Ega esperava, sentado no divã de marroquim, e conversando com um rapaz baixote, gordo, frisado como um noivo de província, de camélia ao peito e plastron azul-celeste. (...) Ega apresentou a Carlos o Sr. Dâmaso Salcede, e mandou servir vermouth, por ser tarde, segundo lhe parecia, para esse requinte literário e satânico do absinto (...) Desde que Carlos habitava Lisboa, tivera ali, naquele moço gordo e bochechudo, sem o saber, uma adoração muda e profunda; o próprio verniz dos seus sapatos, a cor das suas luvas eram para o Dâmaso motivo de veneração, e tão importantes como princípios. (...) E as suas perguntas foram terríveis. O senhor Maia achava chic ter um cab inglês? Qual era mais elegante, assim para um rapaz de sociedade que quisesse ir passar o verão lá fora, Nice ou Trouville? Depois ao sair, muito sério, quase comovido, perguntou ao senhor Maia (se o senhor Mais não fazia segredo) quem era o seu alfaiate. 13 - A Condessa de Gouvarinho: Os olhos brilhavam-lhe, diziam mil coisas; em certos movimentos, o cabelo crespamente ondeado, tomava tons de ouro vermelho: e em torno dela errava, no calor do gás e da enchente, um aroma exagerado de verbena. Estava de preto, com uma gargantilha de rendas negras, à Valois, afogando-lhe o pescoço onde pousavam duas rosas escarlates. E toda a sua pessoa tinha um arzinho de provocação e de ataque. 14 - O Craft (De um diálogo entre João da Ega e Carlos da Maia): Ega teve um grande gesto. Era indispensável conhecer o Craft! O Craft era simplesmente a melhor coisa que havia em Portugal... — É um negociante do Porto, não é? — Qual negociante do Porto! — exclamou o Ega erguendo-se, franzindo a face, enojado de tanta ignorância. — O Craft é filho de um clergyman da igreja inglesa do Porto. Foi um tio, um negociante de Calcutá ou da Austrália, um nababo, que lhe deixou fortuna. Uma grande fortuna. Mas não negocia. Dá largas ao seu temperamento byroniano, é o que faz (...): coleciona obras de arte. (...) Carlos desceu também do coupê, achou-se em face de um homem baixo, louro, de pele rosada e fresca, e aparência fria. Sob o fraque correto percebia-se-lhe uma musculatura de atleta. 15 - O Cruges (ainda o mesmo diálogo): ...um Cruges, que o Ega não conhecia, um diabo adoidado, maestro, pianista, com uma pontinha de gênio... 16 - O conde de Steinbroken e outros íntimos do Ramalhete (sempre o mesmo diálogo): No Ramalhete, o avô fazia o seu whist com os velhos parceiros. Ia o Diogo, o decrépito leão, sempre de rosa ao peito, e frisando ainda os bigodes...Ia o Sequeira, cada vez mais atarracado, a estourar de sangue, à espera da sua apoplexia... Ia o conde de Steinbroken... — Não conheço. Refugiado? Polaco? — Não, ministro da Finlândia...Queria-nos alugar umas cocheiras e complicou essa simples transação com tantas finuras diplomáticas, tantos documentos, tantas cousas com o selo real da Finlândia, que o pobre Vilaça, aturdido, para se desembaraçar, remeteu-o ao avô. O avô, desnorteado também, ofereceu-lhe as cocheiras de graça. Steinbroken considera isso um serviço feito ao rei da Finlândia, à Finlândia; vai visitar o avô, em grande estado... — Isso é sublime! — O avô convida-o a jantar...E como o homem é muito fino, um gentleman, entusiasta da Inglaterra, grande entendedor de vinhos, uma autoridade no whist, o avô adota-o. COISAS DO B. B. Há muito tempo, quando o Banco do Brasil era considerado o maior banco rural do mundo, mantinha em sua Carteira Agrícola um quadro de avaliadores (também conhecidos por "fiscais") que eram pessoas com conhecimentos na área, contratadas para verificar "in loco" se os pedidos de financiamento estavam em ordem, etc, etc. Ocorre que nem sempre eram pessoas com bom nível de escolaridade. O que valia era o conhecimento prático. Daí nos relatórios constarem algumas "batatadas" que alguns gaiatos, como não poderia deixar de ser, anotaram para gáudio de todos nós: - "O sol castigou o mandiocal. Se não fosse esse gigante astro, as safras seriam de acordo com as chuvas que não vieram". - "Mutuário triste e solitário pelo abandono da mulher não pode produzir". - "Acho bom o Banco suspender o negócio do cliente para não ter aborrecimentos futuros". - "Vistoria perigosa. As chuvas pluviais da região inundaram o percurso, que foi todo feito a muito custo". - "Mutuário faleceu. Viúva continua com o negócio aberto". - "O contrato permanece na mesma, isto é, faltando fazer as cercas que ainda não ficaram prontas". - "Foi a vistoria feita a lombo de burro com quase 8 km". - "A máquina elétrica financiada era toda manual e velha". - "Financiado executou trabalho braçalmente e animalmente". - "O curral todo feito a capricho, bem parecendo um salão de baile a fantasia". - "Visitamos o açude nos fundos da fazenda e depois de longos e demorados estudos constatamos  que o mesmo estava vazio". - "Os anexos seguem em separado". - "A lavoura nada produziu. Mutuário fugiu montado na garantia subsidiária". - "Era uma ribanceira tão ribanceada que se estivesse chovendo e eu andasse a cavalo e o cavalo   escorregasse, adeus fiscal!". - "Tendo em vista que o mutuário adquiriu aparelhagem para inseminação artificial e que um dos touros holandeses morreu, sugerimos que se fizesse o treinamento de uma pessoa para tal função". - "Assunto: Cobra. Comunico que faltei ao expediente do dia 14 em virtude de ter sido mordido pela epigrafada".

191. CORA CORALINA. CONCLUSÕES DE ANINHA. Estavam ali parados. Marido e mulher. Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça tímida, humilde, sofrida. Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho, e tudo que tinha dentro. Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar novo rancho e comprar suas pobrezinhas. O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula, entregou sem palavra. A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou, se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar e não abriu a bolsa. Qual dos dois ajudou mais? Donde se infere que o homem ajuda sem participar e a mulher participa sem ajudar. Da mesma forma aquela sentença: "A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar." Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada, o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso e ensinar a paciência do pescador. Você faria isso, Leitor? Antes que tudo isso se fizesse o desvalido não morreria de fome? Conclusão: Na prática, a teoria é outra.

192. CORA CORALINA. MINGA, ZÓIO DE PRATA. Eram elas as senhoras-donas, ali no beco do Calabrote. Quem transitasse pelo beco, tivesse cuidado... Passasse quieto e bonzinho. Não se engraçasse nem fizesse cara de pouco. E quem fosse de entrar, empurrasse a porta de dentro, com fala curta e dinheiro pronto. Escândalo de mulher-dama não dava; nunca deu; também, nunca foram levadas, como tantas, para capinar na frente da cadeia. Família de respeito podia passar toda hora, não via nada. Macho, porém, que não se fizesse de besta... Eram donas e autoridade no beco. O beco era delas. E tinham prestígio. Duas irmãs, morando juntas na mesma casa, de porta e janela aberta aos homens que quisessem entrar; isso a Zóio de Prata. Já a Dondoca, tinha seu homem e era pontual a ele só. Também eram conhecidas por As Cômodas, na roda da macheza. Minga era durona. Não tretasse com ela, saindo sem deixar a taxa... Um que tentou a rasteira, ela alcançou já fora do beco e deixou sem as calças no meio da rua. Tinha mesmo um bugalho branco, saltado, e era vesga do outro. Espinhenta, de cabelo sarará, mulatona encorpada, de bacia estreita, peito masculino, de mamilos duros, musculosa; servindo bem no ofício, de fala curta, braço forte, mãos grandes. Um dia, voltava ela do mercado com um frango na mão, deu de cara com a irmã chorando, de cara amassada e beiço partido. Tinha entrado na peia do amigo — o Izé da Bina — à-toa, ruindade de pingado ordinário. Dei'stá — disse ela — sai fora e deixa por minha conta. Óia, vai depená esse frango pra nóis na casa da vizinha e só entra quando eu chamá... Dondoca foi fazer o mandado. Estava ela na casa da vizinha depenando o frango, quando chegou o Izé da Bina, todo mandante, de paletó preto, gravata borboleta, calça engomada. Entrou no quarto e gritou autoritário pela Dondoca. Quem apareceu foi a Zóio de Prata, de manga arregaçada e porrete na mão. Atirou-se no mulato com vontade e foi porretada de direita e canhota. Bateu com sustância, sovou com fôlego, quebrou as carnes, moeu bem moído. No fim, jogou fora o cacete e entrou de corpo. Numa boa sobarbada deu com o crioulo no chão. Sentou em cima e esmurrou à vontade. Quebrou as ventas, partiu dois dentes, entrou no olho... xingou nomes... desses de ouvindo dizer o Antônio Meiaquarta, tipo de rua, rei dos bocas-sujas da cidade: eu sei dois contos e quinhentos de nomes indecentes... Zóio de Prata sabe cinco contos... apanhei dela, bateu em mim... tou descarado, apanhei dela... muié praceada... êta muié sagais. Depois de ver o cabra mole, estirado, fungando, Zóio de Prata assungou a saia, abriu as pernas e mijou na cara de Izé da Bina. Estava vingada a Dondoca e consolidada a fama das Cômodas.

193. CORA CORALINA. O LAMPIÃO DA RUA DO FOGO. Ali, naquele velho canto onde a Rua de Joaquim Rodrigues faz um recanteio, morava Seu Maia, casado com Dona Placidina, numa casa de beirais, janelas virgens da profanação das tintas, porta da rua e porta do meio. Portão do quintal, abrindo no velho cais do Rio Vermelho. Isso, há muito tempo, antes da rua passar a 13 de Maio e da casa ser fantasiada de platibanda. Seu Maia era muito conhecido em Goiás e era porteiro da Intendência. Boa pessoa. Serviçal, amigo de todo mundo e companheirão de boas farras. Gostava de uma pinguinha em doses dobradas, dessas antigas que pegavam fogo. Então, se misturava vinho, conhaque e aniseta; só voltava para casa carregado pelos companheiros, que o entregavam aos cuidados da mulher. Esta, acostumada, embora com a sina ruim, como dizia, não poupava a descalçadeira quando recebia o marido naquele fogo, arrastando a língua, de pernas moles, isto quando não virava valente, quebrando pratos e panelas e disposto a lhe chegar a peia. Dona Placidina era muito prática, nessas e noutras coisas... Ajeitava logo um café amargo, misturado com frutinhas de jurubeba torrada, que o marido engolia careteando e o empurrava para a rede, onde roncava até pela manhã ou se agitava e falava a noite inteira. — Coitada de Dona Placidina, comentavam as amigas. Seu Maia é um santo homem sem esse diabo da pinga. E ensinavam remédios, simpatias, responsos, rezas fortes. Simpatia que dera certo em outros casos, era nada para ele. Remédios? Inofensivos como a água do pote. Os próprios santos se faziam desentendidos dos responsos, velas acesas e jaculatórias recitadas. Dona Placidina, cansada daquele marido incorrigível, acabou botando o coração ao largo, embora achasse, no íntimo, que melhor seria uma boa hora de morte para ela... ou antes, para o marido, esta parte no subconsciente. Naquele dia, como a dose da boa fosse mais pesada, Seu Maia, que já vinha se ressentindo do fígado com passamentos e vista escura, se achou pior. Os amigos o trouxeram para casa mais cedo. Tiveram mesmo de o levar para a cama e o meter entre as cobertas. De nada valeu a chazada caseira. No dia seguinte, chamaram Seu Foggia que diagnosticou empanchamento e doença do coração. Receitou um purgativo e uma poção. Seu Maia piorou. Dona Placidina se desdobrou em cuidados especiais. Esqueceu o defeito do marido, as desavenças, os pratos quebrados e passou a sentir, antecipadamente, os percalços da viuvez. Os amigos não arredaram. Faz-se a conferência médica das vizinhas prestativas. Escalda-pés, benzimentos, sinapismo, nada deu jeito. Nem valeu promessa de muito boa cera ao senhor São Sebastião. Seu Maia morreu. Os companheiros tomaram conta do morto. Levaram o corpo.Vestiram-lhe o fato preto de sarjão, que tinha sido do casamento. Calçaram meias, ajuntaram-lhe as mãos no peito. Pearam as pernas e passaram um lenção branco, bem apertado, no queixo. Chamaram um canapé, largo de palhinha, para o meio da sala, deitaram o cadáver, cobriram com um lençol. Cuidou-se do pucarinho de água benta, com seu ramo de alecrim. Acenderam-se as quatro velas e, nos pés do morto, botou-se um caco de telha com brasa e grãos de incenso. Era assim que se arrumava defunto em Goiás, antigamente. Os amigos foram chegando, tomando posição e começou o velório. Dona Placidina, entregue aos cuidados das amigas, mal escapava de uma vertigem, caía noutra. Afinal, à força de chás de arruda, de casca de tomba e de Água Florida de Murray, voltou a si e, como era decidida e de espírito prático, botou de parte o abatimento e passou a cuidar do pessoal que fazia sentinela. Café com biscoito pelas 10 horas. Mais tarde, mexido de lombo de porco e ovos fritos com farofa, comido na cozinha, e requentão quando a noite esfriou mais e os galos passaram amiudar. Entre a diligência caseira e suspiros puxados, a viúva, de vez em quando, levantava a ponta do lençol que cobria o marido e enxugava umas lágrimas hipotéticas. “Bom marido”, lastimava e, lá consigo, “não fosse a pinga, era a falta que tinha...” No dia seguinte, veio o caixão com tampa solta, como de costume. Agasalharam ali o defunto. Chegaram mais amigos e mais comadres. Dona Placidina louvava as virtudes conjugais do finado, em crises nervosas de choro seco — sem lágrimas, o choro mais difícil que existe. A cada visita que chegava, com seu carinhoso abraço e formalíssimos “meus pêsames”; havia uma exaltação no choro ressecado da viúva. Pelas duas horas, começou a fazer vento de chuva e um trovão surdo se ouviu ao lado da Santa Bárbara. Como o caixão teria mesmo de ser carregado na força dos braços, os amigos resolveram apressar o saimento, antes que o tempo enfarruscado se decidisse em água. Vento da Santa Bárbara é chuva certa no São Miguel. E enterro debaixo de chuva era a coisa mais estragada que podia acontecer em Goiás. Dona Placidina se debruçou em cima do morto. Não queria deixar sair Seu Maia, coitado... As amigas com chazadas de alecrim. Os amigos tomaram conta das alçadas e ganharam a rua. Entraram na outra, que era Direita, naquele tempo. Passaram a ponte da Lapa, subiram e entraram no Rosário para encomendação do corpo. Os sinos das igrejas, todas, dobrando a lamentação de finados. Pela intenção do morto, cada amigo mandava dar um sinal nas igrejas, quanto quisesse. Ainda que os sinos tocam como a gente quer, alegres ou soturnos. Os sineiros sempre tiveram esmero especial para anjinho ou defunto. Essas duas palavras, em Goiás, delimitavam as circunstâncias da idade, sem mais explicações. Anjinho era criança mesma ou moça virgem e, defunto, gente pecadora. Ia o cortejo subindo e os homens se revezando nas alças, que o morto estava pesado. Com a doença curta, nem tivera tempo de emagrecer. Iam depressa, que a chuva já tinha posto uma carapuça branca no cocuruto do Canta Galo. Na frente, um popular, afeito àquele préstimo, carregava a tampa que só ia ser colocada na beira da cova. Outros levavam os dois tamboretes, tradicionais, para o descanso do ataúde, quando se trocavam os que iam carregando. Os músicos, de fardão escuro, tocavam um funeral muito triste. Sendo de notar que não havia enterro em Goiás sem acompanhamento de música, somente os muito pobrezinhos. Na rabeira, a molecada da rua. Queriam ver o caixão descer no buraco, se divertiam com aquilo. Na esquina da Rua do Fogo com a Rua da Abadia, existiu, durante muito tempo, um poste de lampião antigo, saliente, fora de linha, puxando mesmo para o meio da rua. Era um tropeço. Coisa embaraçosa. Não foram poucos os esbarros, cabeçadas, encontrões verificados ali. Enterros que subiam, já de longe, começavam a torcer à direita para se desviar do lampião, que não tinha outra conseqüência senão atrapalhar. Naquele dia, com a aflição da chuva que vinha perto e com o peso do caixão que era demais, ninguém se lembrou do poste. Foi quando o compadre Mendanha, que ia na alça dianteira pela esquerda, pisou de mau jeito num calhau roliço, falseou o pé, fraquejou a perna e... bumba! Lá se foi o caixão bater com toda força no lampião. Com a violência do baque, o defunto abriu os olhos, desarrumou as mãos e fez força de levantar o corpo. A essa hora, o pessoal do enterro tinha se desabalado, em doida carreira pela rua abaixo e largado o morto se soltando da laçada das pernas. O dia inda estava claro, não era hora de assombração. Alguns, mais esclarecidos, resolveram voltar e ver de perto o acontecido. Encontraram Seu Maia de pé, muito amarelo, escorado no poste, com tremuras pelo corpo e olhando, com desânimo o caixão vazio. Reconheceram, então, que o mesmo estava vivo e que era preciso voltar com ele para casa. Guardaram o caixão inútil na igreja da Abadia e desceram a rua, amparando o ex-morto. Todas as janelas, agora, com gente assombrada ante aquele caso novo na cidade. A meninada na frente, gritava:— Evém o defunto... De dentro das casas, os moradores corriam para as portas e só se ouvia:— Vem ver, Maricota... vem ver, Joaninha. Óia o defunto que evém voltando... Amparado pelos amigos, metido naquele sarjão preto, desusado, calçado só de meias, lenço na cara e muito devagarinho vinha Seu Maia de volta. Um portador foi na frente avisar Dona Placidina, daquela ressurreição e conseqüente retorno, ao que ela só teve expressão sintomática: — Seja pelo amor de Deus. Seu Maia chegou afinal, entrou, recebendo um abraço de boas-vindas mais ou menos calorosas da mulher. Bebeu um cordial. Meteu-se na cama e de novo foram chamar Seu Foggia. Este veio. Examinou, apalpou, auscultou, pediu para ver a língua. Concluiu, com sabedoria, que tinha sido um ataque de catalepsia, muito parecido com a morte, mas que não era morte, não. A providência tinha sido o lampião do meio da rua, senão teria sido mesmo enterrado vivo. A cidade comentou o caso por muito tempo. Seu Maia foi entrevistado por todos os sensacionalistas da terra — gente insuportável daquele tempo. Muita língua desocupada levantou a suspeita de que vários fulanos e sicranos daquele tempo tivessem sido enterrados vivos e toda a gente ficou se pelando de catalepsia. Os letrados foram até o Chernoviz e Langard. Conferiram-se diploma no assunto e discorriam de doutor e com muita prosódia, sobre catalepsia ou morte aparente. Enquanto os comentaristas faziam roda, o doente recuperava a saúde. Dona Placidina, muito prática como sempre, aproveitou o acontecimento para uma pequena homilia doméstica, complicada e cheia de boa dialética feminina, de que “aquilo fora aviso do céu e castigo de Deus...” E já pelo choque emocional — vá lá que naquele tempo não havia destas coisas não — já pelo medo de novo ataque e de ser mesmo enterrado vivo, o certo é que o homem moderou a bebida. Dona Placidina, no entanto, já havia, no seu foro íntimo, aceitado a idéia da viuvez e aquela volta inesperada do marido vivo não melhorou de muito os pontos de vista da ex-viúva. Alguns meses depois, Seu Maia adoecia gravemente. Vieram os amigos da primeira viagem. Apareceram as clássicas e inefáveis comadres. Deram-se os remédios. Da botica e extrabotica. Foi bem purgado e lhe aplicaram ventosas e sinapismos. Nada serviu. Seu Maia morreu. Seu Foggia então declarou que, por via das dúvidas, só levassem o morto quando começasse a feder. Fez-se de novo o velório com todas as regrinhas de costume. Café com biscoito pelas dez horas. Viradinho de feijão e lingüiça comidos, com voracidade e discrição na cozinha, e quentão forte de canela e gengibre, quando a noite esfriou e os galos amiudaram. Contaram-se casos. Louvaram as virtudes do finado, num breve necrológio. Passaram a anedotas discretas. Falou-se da carestia da vida, dos erros do governo e se fez a filosofia da morte. A viúva chorou, mais ou menos conformada com aquela segunda via. O compadre Mendanha tomou conta de trocar as velas que iam se consumindo, de regrar o pucarinho de água benta com seu raminho de alecrim. No dia seguinte, quando perceberam que não mais haveria engano, os amigos ajuntaram as alças e levantaram o caixão. Dona Placidina, muito experiente, despediu-se do morto em soluços alternados. Teimou com as amigas: dessa vez havia de acompanhar, ao menos até a porta. O compadre Mendanha, muito metódico e apegado aos velhos hábitos de sempre pegar caixão pela alça da frente e da esquerda, tomou posição. Outros pegaram pelos lados, adiante saiu a tampa, carregada por um popular e os tamboretes indispensáveis, renteando o caixão aberto. Espalhado pelas ruas, o acompanhamento, só de homens. Agrupada com seus instrumentos enlaçados de crepes, a banda do funeral. Arrumado o cortejo, Dona Placidina botou o corpo fora da porta e chamou alto: — Compadre Mendanha... Escuta, compadre, cuidado com o lampião da Rua do Fogo, viu... Não vá acontecer como da outra vez.

194. CORA RONÁI. INICIAÇÃO. Nasci em Ardnamurchan, você não vai conseguir nem pronunciar, quanto mais entender. Mas não faz mal, Maria Clara, porque isso já foi há tanto tempo. Hoje não importa mais. Basta você saber que fica na Escócia e que é um lugar muito frio e muito úmido a maior parte do ano, onde as pessoas são tristes e fechadas em si mesmas. Talvez assim você compreenda por que sou como sou de vez em quando. Ou não, quem sabe. De qualquer forma, tudo isto está muito além do que precisamos saber um sobre o outro. Um café? Archibald ergue-se da poltrona devagar, toma cuidado para não derrubar os livros que tem sobre os joelhos. Escolhe um disco na estante. — Bach, Maria Clara, que tal? Gottes Zeit ist die alerbeste Zeit, tenho certeza de que você vai gostar. Maria Clara estica-se no tapete, fecha os olhos aos primeiros compassos. Ultimamente, esforça-se para entender Archibald, gostar das cantatas, sonatas e motetos que povoam a casa. Já consegue reconhecer a música de alguns compositores, pequenos testes que ele lhe apresenta. Vamos ver se você adivinha de quem e este cânon? Sentam-se à mesa, arrumam as xícaras, o café, está bom de açúcar? Archibald remexe uma pilha de cadernos, procura a pagina certa. — Então, vamos ver o que você fez de bom? Gosta de dar aulas para Maria Clara: elas são, hoje, fugas da rotina da universidade da qual começa a sentir-se cansado, ensinando, pelo décimo ano consecutivo, as mesmas coisas a pessoas invariavelmente desinteressadas e desinteressantes. Seu relacionamento com os alunos é frio, quase impessoal: um pouco por timidez, um pouco por européias noções de hierarquia que se recusa a abandonar. Isso nunca chegou a incomodá-lo, especialmente há alguns anos atrás, quando a presença de Lillian tornava outras presenças desnecessárias. Depois, as relações entre ambos foram-se deteriorando e, quando mudou-se para o Brasil, ela recusou-se a acompanhá-lo. Embora tivesse sentido algum prazer em mortificar-se com o fracasso de seu casamento, anos depois Archibald se viu forçado a reconhecer que, na época, o que sentira fora principalmente uma sensação de alívio e liberdade. Não havia mais ninguém para controlar-lhe os movimentos ninguém para reclamar dos cachimbos, impedi-lo de dedicar-se a seus poemas ou abaixar o volume da vitrola. Não havia mais ninguém, igualmente, para afagar-lhe os cabelos, nenhum corpo à noite. Esta ausência, entretanto, só veio a notar muito tempo depois na verdade, quando começou a dar aulas para Maria Clara. Agora gostaria de ter, eventualmente, alguém com quem conversar, algum amigo. Mas os anos de solidão e uma timidez que, geralmente, não se encontra nos homens atraentes, o desacostumaram de conversas íntimas, de confidências sussurradas a meia luz por sobre os cinzeiros. Na universidade, não consegue trocar mais do que polidos cumprimentos com os colegas; dos alunos, sente-se cada vez mais distante com o passar dos anos. Aos 40 anos é um homem só — e, se por um lado, a solidão ensinou-lhe muito a respeito de si mesmo, há sentimentos sobre os quais não lhe disse nada, dos quais começa a ter medo porque os julgava esquecidos para sempre. Maria Clara, marcando o ritmo da cantata com os dedos, conta o número de ripas da veneziana entreaberta, percorre as estantes com os olhos, as lombadas verdes, vermelhas, a imensa pilha de livros de bolso alaranjados. Observa seu professor, a cabeça curvada sobre o caderno, cachimbo numa das mãos enquanto com a outra anota erros, faz correções. Os cabelos muito lisos, desmaiados entre o louro e o cinza, caem-lhe sobre os olhos: quando o cachimbo está preso entre os dentes, a mão, livre, joga-os para trás num gesto inútil. — Muito bom o trabalho. Você está melhorando, sabe. Ainda tem alguma dificuldade em expor seu raciocínio numa linha uniforme, mas acho que, na sua idade, nem poderia ser de outra maneira. E erros de ortografia, precisa prestar mais atenção ao que escreve, menina. — Mas é que inglês é muito complicado. Muito mesmo. — Um pouco de atenção resolve muitas complicações. Há um texto de Saroyan muito bonito que eu quero que você conheça. Vou ditá-lo para você, a metade hoje, a metade amanhã. Onde será que coloquei o livro? Levanta-se da mesa, vai até uma das estantes onde percorre os livros com a ponta dos dedos, puxa um volume pequeno, encadernado em amarelo. Escolhe também outro disco, que leva para a vitrola. — Mais Bach Suite em Ré Maior para violoncelo, Rostropovitch. Pegue o caderno, escreva: pronta? Esta prestando atenção? In the time of our life, live — so in that good time there shall be no ugliness or death for youself or any life your life touches. Seek goodness everywhere and when it is found, bring it out of its hiding-place... — O quê? — Hiding-place. Esconderijo. Bring it out of its hiding-place and let it be free and unashamed. Place in matter and in flesh the least of values, for these are the things that hold death and must pass away. Lê muito devagar, separando as frases com cuidado. Maria Clara gosta das palavras, gosta do som que adquirem na pronúncia clara e um pouco cantada de Archibald. Se ao menos não precisasse anotá-las! Sente que poderá passar ali o resto da vida, ouvindo-as uma após a outra, absorvendo-as tão completamente que, depois de algum tempo, perderiam todo o significado para tornarem-se apenas fragmentos de sons encadeados, como a sonata de Bach que a vitrola repete em surdina. Ou seria uma suite? — Discover in all things that which shines and is beyond corruption. Vamos parar por aqui, hoje. Não e bonito? Deixe o caderno comigo. Não vou poder corrigir nada agora, dentro de meia hora tenho que estar numa reunião na faculdade, você vai ter que ir embora mais cedo. Sabe que os Beatles vão tocar nos Estados Unidos? — Claro que sei. — Então este vai ser o seu dever de casa: escrever trinta linhas sobre a tournée. — Mas como é que eu posso escrever sobre alguma coisa que ainda não aconteceu? — Usando a sua imaginação, por exemplo. Poderia passar ali o resto da vida, entre os sons, o cheiro do fumo e os olhos acinzentados. Depois de quase um ano, ainda não sabe exatamente por que aceitou dar aulas para Maria Clara, filha de um professor de física que acabara de voltar da Inglaterra: para que a menina não perca todo o inglês que aprendeu por lá. Pensou, então, que a experiência talvez valesse a pena. Mas quando a conheceu, jeans surrados, os cabelos escuros e compridos presos num rabo de cavalo, um jeito preguiçoso, disco dos Beatles embaixo do braço, chegou a arrepender-se de não ter afastado a idéia definitivamente. Para sua surpresa, porém, Maria Clara interessava-se muito mais pelo inglês do que julgara a principio. E embora inicialmente a tratasse com o mesmo distanciamento que reservava a todos os alunos — e, de resto, a todo o mundo, sem distinções — começou, com o correr do tempo, a descobri-la e, através dela, toda uma geração que nunca despertara seu interesse antes. Começara a descobrir em si próprio reações que julgava impossíveis, o riso, a conversa fácil e aberta. Divertia-se ouvindo-a contar o dia-a-dia do ginásio, ouvindo-a falar de colegas e professores, dos últimos lançamentos dos Beatles, dos olhos de Paul MacCartney ou das letras de John Lennon. Mais tarde, tornou-se cúmplice de cigarros fumados às escondidas pelos banheiros, corridas em motocicletas clandestinas e aulas mortas no terraço entre brincadeiras e jogos de batalha naval. Eu contei para você mas você jura que não vai contar para o meu pai? Maria Clara também começou a descobrir coisas novas como as crises de choro sem motivo algum, as horas passadas ao lado da vitrola, os olhos perdidos no espaço ao som de concertos e motetos. Há dias em que não sabe se vai conseguir sobreviver a todas as terças, quintas e fins de semana que a esperam sem aulas de inglês. Especialmente quando o tempo começa a escurecer, quando não há sol, não há passeios nem piscinas. As horas passam devagar e, na escola, há o sentimento do tempo e das aulas perdidas, para que matemática, história, geografia se tudo o que precisa aprender é inglês, se sabendo inglês conquistará o mundo e quem sabe Archibald, conseguirá ir até Ardnamurchan onde quer que fique e conhecer os vales verdes, as altas montanhas, o clima que sabe frio e úmido a maior parte do ano. Quinta-feira escorre inútil, a sexta arrasta-se pelas aulas de desenho e francês, pela geografia escamoteada no terraço, o cigarro escondido atrás das costas. De tarde, as horas são ainda mais lentas e há o tamborilar da chuva nas vidraças, há uma goteira na sala e uma professora irritada com a chuva, com a goteira, com os alunos. Há também um ensaio da classe de teatro às quatro e meia e, às quinze para as seis, há a sineta e a liberdade. Sacola as costas, Maria Clara corre feliz, enfrenta a chuva, atravessa a rua, segue a avenida, dobra a esquerda, novamente atravessa uma rua e, quando toca a campainha de Archibald está molhada da cabeça aos pés, a roupa colada ao corpo, a blusa branca transparente de chuva. — Mas não é possível! Será que você não tinha um guarda-chuva, não podia esperar uma carona? — É que não pensei que estivesse chovendo tanto assim. Nossa, estou ensopada. — Entre. Você não vai poder ficar assim. Vá até o banheiro, tome um banho bem quente e vista o meu roupão que está pendurado ao lado do chuveiro. Depois nós poderemos colocar as suas roupas em frente ao fogão, acabarão secando. Ande depressa. Na cozinha, Archibald liga a cafeteira elétrica ouvindo o barulho do chuveiro. tenta concentrar-se nas colheradas de pó, na água, mas não consegue esquecer a blusa molhada de Maria Clara, os seios de Maria Clara, Maria Clara nua no chuveiro, a água escorrendo pelo corpo jovem e moreno. Tenta pensar nos vinte e seis anos que os separam, na tampa da cafeteira que não quer fechar. Volta para a sala e, acendendo o cachimbo, procura o Saroyan da aula passada, relê o ditado de Maria Clara, os seios de Maria Clara, sua pele molhada e brilhante... — Ficou meio grande o teu roupão, estou me sentindo ridícula. — Não há motivo. Está linda, e pelo menos não vai ficar gripada. Estou preparando um café, achei que você precisaria beber algo quente. Vou buscar. Maria Clara senta-se no tapete, pernas cruzadas, tenta ajeitar o roupão lilás em volta do corpo. As mangas cobrem suas mãos, diverte-se levantando-as e olhando para as pontas caídas como hastes dobradas. Archibald traz a bandeja, coloca-a em cima da mesa, inclina-se sobre Maria Clara para entregar-lhe a xícara. A proximidade súbita, o roupão entreaberto, os seios de Maria Clara criam uma atmosfera carregada que os cadernos e uma missa de Haendel não conseguem disfarçar. Volta para a poltrona, olha-a de frente, os cabelos molhados, o roupão, as pernas cruzadas, o rosto pálido. Maria Clara estremece, sente que alguma coisa está acontecendo mas não sabe o que é. Imagina que Archibald a quer, repele o pensamento que volta, intenso, segundos depois. Luta com as mangas do roupão para segurar a xícara, ri, nervosa. — Estou parecendo uma débil mental. — Espere. Vou dobrar as mangas para você, do jeito que estão você nunca vai conseguir beber este café. Deixa-se escorregar da poltrona, caminha sobre o tapete com os joelhos no chão, aproxima-se de Maria Clara. Toma-lhe uma das mãos, começa a dobrar a manga com cuidado, como se mexesse com alguma coisa frágil e quebradiça. — Você está tremendo...! — Estou congelada. Segura a mão tremula e fria entre as suas, levanta o rosto devagar. Os olhos de Maria Clara em frente aos seus, o cheiro de Maria Clara, os seios de Maria Clara... puxa-a para si, beija-lhe a testa, os olhos, a boca. — Eu te queria tanto. Ela treme, tem medo, está feliz. A mão de Archibald atravessa o roupão, acaricia os seios. Tenta afastá-lo. — Não faz isso. A mão foge, sobe para os ombros, abaixa o roupão. — Archie, não. — Por que não? Eu quero você, eu amo você. Vem, você é minha. Bem quietinha, não se mexe. Maria Clara senta-se imóvel, a respiração ofegante. Archibald desamarra o cinto, o roupão escorrega, Maria Clara nua, tremula de medo e de expectativa, o coração aos saltos. As mãos a percorrem, acariciam os seios, a barriga, procuram as pernas, escondem-se entre as coxas. — Vem. Eu vou ensinar tudo para você, tudo. Isto é uma coisa muito mais bonita do que o inglês, vem, muito mais, vou te ensinar tudo. Deita. Maria Clara deita-se no tapete, olha para o lado. Tem vontade e vergonha de olhar Archibald despir-se, mas sente seus movimentos, a camisa atirada em direção a poltrona, os pés que empurram as calças e estremece quando o tem ao lado, quando as mãos a envolvem e guiam suas mãos tímidas, quando os dedos percorrem seu corpo, caminhando de leve pelas pernas, subindo sentindo-a úmida e entregue, quando o tem por cima de si, tão suave e aflito, quando os joelhos forçam suas pernas, as palavras perdem o nexo e o mundo explode, eu te queria tanto. Dez anos depois, Archibald deu um tiro na boca. Teve morte instantânea. Há nove não via Maria Clara que soube do suicídio vários meses depois, através da carta de um amigo que a cumprimentava pelo vigésimo quarto aniversário.

195. DALTON TREVISAN. CRIANÇA. — Tua professora ligou. De castigo, você. Beijando na boca os meninos. Que feio, meu filho. Não é assim que se faz. — ... — Menino beija menina. — Você é gozada, cara. — ... — Pensa que elas deixam? Ele sai do banheiro, a toalha na cintura. — Pai, deixa eu ver o teu rabo. É a tipinha deslumbrada no baile da debutante de três anos. — Rabo, filha? Ah, sei. O bumbum do pai? — Seu bobo. — ... — Esse pendurado aí na frente. O pai telefona para casa: — Alô? — ... Reconhece o silêncio da tipinha. Você liga? Quem fala é você. — Alô, fofinha. Nem um som. Criança não é, para ser chamada fofinha. Cinco anos, já viu. — Oi, filha. Sabe que eu te amo? — Eu também. "Puxa, ela nunca disse que me amava". — Também o quê? — Eu também amo eu.

196. DALTON TREVISAN. Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho. Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, até o canário ficou mudo. Não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam. Ficava só, sem o perdão de sua presença, última luz na varanda, a todas as aflições do dia. Sentia falta da pequena briga pelo sal no tomate -- meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor. O Negócio. Grande sorriso do canino de ouro, o velho Abílio propõe às donas que se abastecem de pão e banana: -- Como é o negócio? De cada três dá certo com uma. Ela sorri, não responde ou é uma promessa a recusa: -- Deus me livre, não! Hoje não... Abílio interpelou a velha: Como é o negócio? Ela concordou e, o que foi melhor, a filha também aceitou o trato. Com a dona Julietinha foi assim. Ele se chegou: Como é o negócio? Ela sorriu, olhinho baixo. Abílio espreitou o cometa partir. Manhã cedinho saltou a cerca. Sinal combinado, duas batidas na porta da cozinha. A dona saiu para o quintal, cuidadosa de não acordar os filhos. Ele trazia a capa de viagem, estendida na grama orvalhada. O vizinho espionou os dois, aprendeu o sinal. Decidiu imitar a proeza. No crepúsculo, pum-pum, duas pancadas fortes na porta. O marido em viagem, mas não era dia do Abílio. Desconfiada, a moça surgiu à janela e o vizinho repetiu: Como é o negócio? Diante da recusa, ele ameaçou: Então você quer o velho e não quer o moço? Olhe que eu conto! Espere um pouco -- atalhou Julietinha. -- Já volto. Abriu a janela, despejou água quente na mão do negro, que fugiu aos pulos. A moça foi ao boteco. Referiu tudo ao velho Abílio, mão na cabeça: Barbaridade, ô neguinho safado! O vizinho não contou e o cometa nada descobriu. Mas o velho Abílio teve medo. Nunca mais se encontrou com Julietinha, cada dia mais bonita.

197. DALTON TREVISAN. Dois velhinhos. Dois pobres inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo. Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas um podia olhar lá fora. Junto à porta, no fundo da cama, o outro espiava a parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no fio de luz. Com inveja, perguntava o que acontecia. Deslumbrado, anunciava o primeiro:— Um cachorro ergue a perninha no poste. Mais tarde:— Uma menina de vestido branco pulando corda. Ou ainda: — Agora é um enterro de luxo. Sem nada ver, o amigo remordia-se no seu canto. O mais velho acabou morrendo, para alegria do segundo, instalado afinal debaixo da janela. Não dormiu, antegozando a manhã. Bem desconfiava que o outro não revelava tudo. Cochilou um instante — era dia. Sentou-se na cama, com dores espichou o pescoço: entre os muros em ruína, ali no beco, um monte de lixo.

198. DALTON TREVISAN. A pobre mãe deu Betinho àquele homem: agradasse ao tio Galileu, com os dias contados, podia ser o herdeiro. Depois de partir lenha, puxar água do poço, limpar o poleiro do papagaio, o menino enxugava a louça para a cozinheira. Toda noite, Betinho subia a escada, para levar o urinol e tomar a bênção ao tio Galileu. Batia na porta: Entre, meu filho, O rapaz beijava a mão — branca, mole e úmida mãe-d’água. No domingo recebia a menor moeda, que o padrinho catava entre os nós do lenço xadrez. Tio Galileu raramente saía e, ao tirar o paletó, exibia duas rodelas de suor na camisa. Arrastava o pé, bufando, sempre a mão no peito. Afagava o papagaio, que sacudia o pescoço e eriçava a penugem: Piolhinho... piolhinho... Subindo a escada, dedos crispados no corrimão, isolava-se no quarto. O assobio através da porta: alegria de contar o dinheiro? Fechava a porta e conduzia a chave. Diante dele era feita a limpeza, pelo rapaz ou pela negra, nunca por Mercedes. Sentado na cama, coçando eterno pozinho na perna, vigiava. E não assobiava com alguém no quarto. Instalado na cama que, essa, ele mesmo arrumava, sem permitir que virassem o colchão de palha. Mercedes fazia compras, perfumada e de sombrinha azul. O homem discutia com ela, que o arruinava, por sua culpa sofria de angina. Domingo, a negra de folga, Betinho preparava o.café para Mercedes. Abria a porta, esperava acomodar-se à penumbra do quarto e, ao pousar a bandeja, sentia entre os lençóis a fragrância de maçã madura guardada na gaveta. Uma noite Mercedes surgiu no quarto de Betinho. Já deitado, luz apagada. Sentou-se ao pé da cama, casara com tio Galileu por ser velho, a anunciar que morria de uma hora para outra. Mentira, para iludir a pessoa e servir-se dela. Não sofria do coração, nem sabia o que era coração, a esconder mais dinheiro entre a palha. Ao crepitar o colchão lá no quarto o avarento remexia no tesouro. Um bruto, que a esquecia, dormindo em quarto separado, com medo fosse roubá-lo. Ó diabo, ela o xingou, pesteado como o papagaio louco, que a bicara ali no dedinho. O rapaz inclinou-se para beijar a unha de sangue. Mercedes ergueu-se e jurou que, se o monstro morresse, daria a Betinho o que lhe pedisse. O rapaz não pôde dormir. Meia hora depois, saltou a janela. Agarrou no poleiro o papagaio, cabeça escondida na asa — os piolhos corriam pelo bico de ponta quebrada. Torceu o pescoço do bicho e o enterrou no quintal. Dia seguinte o homem buscou a papagaio, a assobiar debaixo de cada árvore. Betinho sugeriu que a ave fugira. Foi colocar o vaso sob a cama e, ao tomar a bênção ao padrinho, o piolho correu de sua mão para a do velho — um dos piolhos vermelhos da peste. Mercedes voltou ao seu quarto. Reclinada na cadeira, amarrava e desamarrava o cinto. Noite quente, queixou-se do calor, abriu o quimono: inteirinha nua.— Vá — disse a mulher. — Vá, meu bem. Primeiro o papagaio. Agora o velho. Betinho ficou de pé. Tremia tanto, ela o amparou até a porta:— Vá, meu amor. A vez do velho. Hora de pedir a bênção. Betinho subiu a escada. Aos passos no corredor o avarento, entre a bulha do colchão, perguntava quem era. Aquela noite nada falou. Betinho abriu a porta, avançou lentamente a cabeça. Tio Galileu deitara-se vestido, o saquinho de fumo espalhado no colete de veludo. O último cigarro, sem poder enrolar a palha com os dedos imóveis... Olho arregalado, a boca negra não abençoou Betinho. Fazia-se de morto, nunca mais fingiria. Tio Galileu não gritou. Nem mesmo fechou o olho, mais fácil que o papagaio. Betinho afogou debaixo do travesseiro a boca arreganhada. Os pés descalços de Mercedes desciam a escada. Ele ergueu o colchão, rasgou o pano, revolveu a palha: nada. Deteve-se à escuta: os passos perdidos da mulher. Avisá-la que o velho os enganara. Era tarde, abria a janela aos gritos:— Ladrão. Assassino! Socorro...

199. DALTON TREVISAN. Insinua-se pela cortina de veludo vermelho — úmida e pegajosa —, afasta a mão com nojo: filho bastardo do rei Midas, tudo o que toca se desfaz em podridão. No rosto o bafo quente da sala; entre casal suspeito e velho pervertido e o seu abrigo. Senta-se na última fila, os pés sobre cascas de amendoim, pipoca, papel de bala. Alheio às sombras na tela, enfrentará a passagem do Natal. Escorraçou-o do bar a celebração ruidosa dos bêbados. Mais que ela, dois olhos aflitos no espelho da parede... Exílio de negridão viciosa, no cinema está defendido. Distingue a tosse do guarda que, vez por outra, circulando no corredor, assusta os casais de tarados. No canto, a lâmpada amarela sobre a cortina que, ao ser erguida, espalha nuvem fétida; pela sua agitação incessante, o interesse do público é mais lavar a mão do que assistir ao filme. Entorpecido de álcool e do ar corrupto, cabeceia na cadeira dura. Uma voz melíflua pede-lhe docemente licença, enrosca-se no seu joelho — de todas as cadeiras vazias escolhe a do lado. Sonolento, mal sustém a pálpebra aberta. Mascando e soprando a goma de bola, o mocinho a explode com beijo obsceno. Patinhas de mosca na face, João espanta-a com a mão. Mosca não, o óculo brilhoso da criatura grudado no seu rosto: uma loira de voz rouca senta-se na cama. Estende a perna roliça, que o tipo lhe descalce o sapato. Ele arranca brutalmente o sapatinho dourado. Não é assim, meu amor, assim não. Repete o mocinho no sopro da bola:— Não gosto de bruto. O herói resmunga, a camisa estraçalhada de mil tiros — por amor dela bateu-se com o vilão? A loira estira a outra perna: Não sou a sua gatinha?— Gatinha não sou? — a queixa lamuriosa ao lado. Com as duas mãos, o tipo a descalça e beija a ponta do pé. Bem assim, meu amor. Sabe ser gentil. O olho do mocinho escorre-lhe no rosto — baba fosfórea de lesma —, sem perder a legenda:— Vai ser gentil, amor? O durão de pé, a heroína à beira da cama; ergue o vestido de cetim brilhante, desprende a meia da cinta, oferece a linda perna comprida — mão tremente, ele enrola a meia desde a coxa. Raivoso, atira-a no tapete.— Quieto, benzinho.— Quietinho, meu bem — a voz aliciadora é sufocada pela tosse do guarda. Pisoteando cascas, novo espectador instala-se duas cadeiras na frente, revolve o pacote de amendoim, chupa frenético o dente. Estou doente, vou morrer — lamenta-se o machão, atingido pela bomba de cobalto, no deserto de provas ocultou-se da policia. Minha carne é gélida. Bala de revólver não a atravessa metade homem, metade monstro de ferro. O maníaco do amendoim assobia, o mocinho rumina a bola, João sofre as penas do herói. Agora a loira corre o fecho do vestido, a nudez entrevista: Eu sou Rosinha. Posso derreter o aço. Sei abrasar o corpo gélido.— Rosinha... sei abrasar... — insiste o eco suspiroso do mocinho. Rebenta a bola de goma, esbarra-lhe no joelho e, entre as cadeiras vazias, senta-se ao lado do chupador de dente. Na tela a heroína furiosa rasga a camisa do tipo, descobre o ombro sardento. Unhas rapaces enterram-se — apesar do metal — na carne fofa. João estremece: uma ratazana ali no corredor? Prestes a levantar-se, enxuga a mão no joelho. À sua frente cochicha o moço com o vizinho, que deixa de assobiar. João não ergue o pé, e mordendo o uivo, segue a corridinha da ratazana. Virá, em seu passeio tonto, enroscar-se no sapato e atarantada subir na perna? No silêncio da sala escuta o alarido do peito. O guarda não tosse, o maníaco não assobia, apenas o crepitar das cascas, agora mais perto. Violado o santuário, outra vez em pânico: uma gota de suor brinca-lhe na pálpebra. Perdido com as vozes sem respostas: Onde está minha casa, minha mulher onde está? E onde estão afinal os Natais de antanho? Luta com a imagem na tela, repete em voz baixa a legenda. Surgem das cadeiras vazias as filhas, tão pálidas, meu Deus, camisolinha em farrapos, descalças, a vagar gementes no deserto. Chorosa, indaga a menor, sem vê-lo na penumbra: Onde foi papai? Que fim o levou? Por mais aflito, não pode sair — ainda não, há que esperar a passagem do Natal. Ficará até a explosão da última bomba. Tudo menos o quarto do hotel, medroso de certa gaveta, entre as meias sem pares o brilho da navalha... Ali no cineminha pode esconder-se de si mesmo. Rei da terra, que foi feito de quem ele era? Sem mover a cabeça, relanceia o olho no corredor: as dores do mundo trazidas no focinho úmido da rata piolhenta. Espavorido, o pé plantado nas cascas de amendoim — a ratazana que belisca a barra da calça? Lá fora os sinos, buzinas, gritos de bêbados.— Outro de menos — resmunga João. — Deste eu estou livre. Passada a hora pior, eis que é um homem. Está salvo daquele Natal. Outro não haverá antes de um ano inteiro.

200. DALTON TREVISAN. Curitiba, que não tem pinheiros, esta Curitiba eu viajo. Curitiba, onde o céu azul não é azul, Curitiba que viajo. Não a Curitiba para inglês ver, Curitiba me viaja. Curitiba cedo chegam as carrocinhas com as polacas de lenço colorido na cabeça - galiii-nha-óóó-vos - não é a protofonia do Guarani? Um aluno de avental discursa para a estátua do Tiradentes. Viajo Curitiba dos conquistadores de coco e bengalinha na esquina da Escola Normal; do Jegue, que é o maior pidão e nada não ganha (a mãe aflita suplica pelo jornal: Não dê dinheiro ao Gigi); com as filas de ônibus, às seis da tarde, ao crepúsculo você e eu somos dois rufiões de François Villon. Curitiba, não a da Academia Paranaense de Letras, com seus trezentos milhões de imortais, mas a dos bailes no 14, que é a Sociedade Operária Internacional Beneficente O 14 De Janeiro; das meninas de subúrbio pálidas, pálidas que envelhecem de pé no balcão, mais gostariam de chupar bala Zequinha e bater palmas ao palhaço Chic-Chic; dos Chás de Engenharia, onde as donzelas aprendem de tudo, menos a tomar chá; das normalistas de gravatinha que nos verdes mares bravios são as naus Santa Maria, Pinta e Nina, viajo que me viaja. Curitiba das ruas de barro com mil e uma janeleiras e seus gatinhos brancos de fita encarnada no pescoço; da zona da Estação em que à noite um povo ergue a pedra do túmulo, bebe amor no prostíbulo e se envenena com dor-de-cotovelo; a Curitiba dos cafetões - com seu rei Candinho - e da sociedade secreta dos Tulipas Negras eu viajo. Não a do Museu Paranaense com o esqueleto do Pithecanthropus Erectus, mas do Templo das Musas, com os versos dourados de Pitágoras, desde o Sócrates II até os Sócrates III, IV e V; do expresso de Xangai que apita na estação, último trenzinho da Revolução de 30, Curitiba que me viaja. Dos bailes familiares de várzea, o mestre-sala interrompe a marchinha se você dança aconchegado; do pavilhão Carlos Gomes onde será HOJE! só HOJE! apresentado o maior drama de todos os tempos - A Ré Misteriosa; dos varredores na madrugada com longas vassouras de pó que nem os vira-latas da lua. Curitiba em passinho floreado de tango que gira nos braços do grande Ney Traple e das pensões familiares de estudantes, ah! que se incendeie o resto de Curitiba porque uma pensão é maior que a República de Platão, eu viajo. Curitiba da briosa bandinha do Tiro Rio Branco que desfila aos domingos na Rua 15, de volta da Guerra do Paraguai, esta Curitiba ao som da valsinha Sobre as Ondas do Iapó, do maestro Mossurunga, eu viajo. Não viajo todas as Curitibas, a de Emiliano, onde o pinheiro é uma taça de luz; de Alberto de Oliveira do céu azulíssimo; a de Romário Martins em que o índio caraíba puro bate a matraca, barquilhas duas por um tostão; essa Curitiba não é a que viajo. Eu sou da outra, do relógio na Praça Osório que marca implacável seis horas em ponto; dos sinos da igreja dos Polacos, lá vem o crepúsculo nas asas de um morcego; do bebedouro na pracinha da Ordem, onde os cavalos de sonho dos piás vão beber água. Viajo Curitiba das conferências positivistas, eles são onze em Curitiba há treze no mundo inteiro; do tocador de realejo que não roda a manivela desde que o macaquinho morreu; dos bravos soldados do fogo que passam chispando no carro vermelho atrás do incêndio que ninguém não viu, esta Curitiba e a do cachorro-quente com chope duplo no Buraco do Tatu eu viajo. Curitiba, aquela do Burro Brabo, um cidadão misterioso morreu nos braços da Rosicler, quem foi? quem não foi? foi o reizinho do Sião; da Ponte Preta da estação, a única ponte da cidade, sem rio por baixo, esta Curitiba viajo. Curitiba sem pinheiro ou céu azul pelo que vosmecê é - província, cárcere, lar - esta Curitiba, e não a outra para inglês ver, com amor eu viajo, viajo, viajo.

201. DALTON TREVISAN. Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo. Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque. Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca. Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado. A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado á parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata. Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las. Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso. Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade. Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes. O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão. A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto. Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos. Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva. Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.

202. DALTON TREVISAN. GRANDALHÃO, voz retumbante, é adorado pelos filhos. João não vive bem com Maria ambiciosa, quer enfeitar a casa de brincos e tetéias. Ele ganha pouco, mal pode com os gastos mínimos. Economiza um dinheirinho, lá se foi com a asma do guri, um dente de ouro da mulher. Ela não menos trabalhadeira: faz todo o serviço, engoma a roupinha dos meninos, costura as camisas do marido. Inconformada porém da sorte, humilhando o homem na presença da sogra. Para não discutir ele apanha o chapéu, bate a porta, bebe no boteco. Um dos pequenos lhe agarra a ponta do paletó:— Não vá, pai. Por favor, paizinho. Comove-se de ser chamado Paizinho. Relutante, volta-se para a fulana: em cada olho um grito castanho de ódio.— O paizinho vai dar uma volta. Tão grande e forte, embriaga-se fácil com alguns cálices. Estado lastimável, atropelando as palavras, é o palhaço do botequim. E, pior que tudo, sente-se desgraçado, quer o conchego do corpo gostoso da mulher. Mais discutem, mais ele bebe e falta dinheiro em casa. Maria se emboneca, muito pintada e gasta pelos trabalhos caseiros. Desespero de João e escândalo das famílias, a pobre senhora, feia e nariguda, canta no tanque e diante do espelho as mil marchinhas de carnaval. Os filhos largados na rua, ocupada em depilar sobrancelha e encurtar a saia — no braço o riso de pulseiras baratas. Com uma vizinha de má fama inscreve-se no programa de calouro:— Sou artista exclusiva — ufana-se, com sotaque pernóstico. — A féria é gorda! Aos colegas de rádio oferece salgadinhos e cerveja. João escapole pelos fundos, envergonhado da barba por fazer. Volta bêbado e Maria tranca a porta do quarto, obrigado a dormir no sofá da sala. Noite de inverno, o filho mais velho, ao escutá-lo gemer, traz um cobertor:— Durma, paizinho. A cada sucesso de Maria — o quinto prêmio da marchinha, o retrato no jornal, a carta com pedido de autógrafo:— Ela ainda recebe uma vaia — é o comentário de João. - Com uma boa vaia ela aprende! Ó não — essa aí quem é de cabelo oxigenado? Acompanhada a casa, horas mortas, pelo parceiro de vida artística. Ora o cantor de tangos, ora o mágico de ciências ocultas. Demora-se aos beijos na porta e as mães proíbem as crianças de brincar com os dois meninos. João sabe que é o fim — dona casada que tinge o cabelo não é séria. Vai dormir no puxado da lenha, encolhido na enxerga imunda, a garrafa na mão. Dois dias fechado (assusta-lhe a própria força e jamais bate nos filhos), urra palavrão e desfere murro na parede. Maria faz as malas e, sem que os pequenos se despeçam de João, muda-se para casa dos pais. Lá deixa os meninos e amiga-se com um pianista de clube noturno. Mais uma bailarina, que obriga os clientes a beber. O pianista, vicioso e tísico, toma-lhe o dinheiro e, se a féria não é gorda, ainda apanha. Cansada de surra, volta à casa dos pais. Então a velha sai em busca de João e sugere as pazes.— Ela que fique onde está. Não quero Maria, nem pintada de prata. Despedido da fábrica por embriaguez, sobrevive com biscates. Ao vestir o paletó, da manga surge uma cobra e, aos berros, lança-o no fogo. Aranha cabeluda morde-lhe a nuca; inútil esmagá-la com o sapato, de uma nascem duas e três — enrodilha-se medroso a um canto e esconde nos joelhos a cabeça. Domingo recebe a visita dos filhos, enviados pela sogra. Divertem-se no Passeio Público a espiar os macaquinhos. O pai compra amendoim e pipoca, que os três mordiscam deliciados. Afasta-se de mansinho e, atrás de uma árvore, empina a garrafa saliente no bolso traseiro da calça — as mãos cessam de tremer. Os meninos desviam os olhos: sapato furado, calça rasgada, paletó sem botão. Alisando a mão gigantesca:— Não, paizinho. Não beba mais, pai. Lágrimas correm pelo narigão de cogumelo encarnado. Despede-se com sorriso sem dentes. Na esquina gorgoleja a cachaça até a última gota. Em delírio na sarjeta, recolhido três vezes ao hospício. A crise medonha da desintoxicação, solto quinze dias mais tarde. Mal cruza o portão, entra no primeiro boteco. Maria cai nos braços do mágico de ciências ocultas e, proibida de cantar com voz tão horrorosa, consola-se no tanque de roupa. Nem o amante nem os velhos querem saber dos piás, internados no asilo de órfãos. Cada um aprende seu ofício e, no último domingo do mês, com permissão da freira, vão bem penteadinhos à casa do pai. Ainda deitado, curte a ressaca; com alguns goles sente-se melhor. Os pequenos varrem a casa, acendem o fogo, olhinho irritado pela fumaça. No almoço apresentam café com pão e salame rosa. Sentado na cama, o pai contenta-se em vê-los comer. Sorri em paz, um deles enxuga-lhe o suor frio da testa. Sem coragem de abandoná-lo, os filhos a seu lado durante a noite: fala bobagem, treme da cabeça aos pés, bolhas de escuma espirram no canto da boca. Os meninos adormecem, ouvindo o ronco feio do afogado. O maior acorda no meio da noite, vai espiar o pai em sossego, olho branco. Fala com ele, não se mexe. Tem medo e chama o irmão:— O paizinho morreu. Sem chorar, encolhidos na beira da cama, à escuta dos pardais da manhã.

203. DARCY AZAMBUJA. CONTRABANDO. Marchavam em fila indiana. Na frente ia o Fidêncio Lopes, o maioral do negócio. Dirigia do pescante a travessia arriscada, com tino e segurança de velho boleeiro de diligência que fora, batendo, anos, a mesma estrada. Logo atrás o Zeca e o Osório, em seguida os cargueiros sem arreta, pelas dúvidas, que acolherados num aperto, atrasariam qualquer manobra. Fechavam a marcha o Bento e o castelhano Negrito, que se lhes agregara, de acaso, — "pa mirar de mas cercano a los guitas". E como quarteador, para garantir nos repechos, a umas cinqüenta braças na frente, ia o Chiru — novilho de aspa fina, como dizia o Fidêncio —, para bombear o caminho. A noite pendia para a madrugada, mas a névoa, adensada já nos baixios, cerrava mais a escuridão. Mal se divisavam, diluídos na noite os vultos negros das coxilhas mais próximas, e as árvores e as moitas fundiam-se na tinta escura, surgindo de chofre, a roçar os ombros e as bombachas dos cavaleiros. De quando em quando, ao contornar-lhes as faldas, os coxilhões elevavam-se numa grande mancha negra dentro da cerração e pareciam crescer, barrando a estrada. Silencioso dentro da noite perdia-se o campo enorme, imerso nos vapores cada vez mais densos no ar frio e calmo. Fidêncio Lopes fazia empenho em entregar o contrabando sem desconto algum, não só pelo valor das mercadorias, como por orgulho e capricho de velho cruzador clandestino das fronteiras. Era para diversos negociantes da vila e ia nos três cargueiros; sedas, jóias e armas, afora alguma miudeza de pouca monta. Dezessete a dezoito contos. Mas o comandante da guarda aduaneira, que de há muito lhe seguia os passos fugidiços, esperava desta vez seguramente apreender-lhe o negócio. Fidêncio sabia disso e era, pois, uma questão de honra profissional o enredar o rasto ao fisco e chegar a salvo. — Ultimamente para que serve o quarenta e quatro? — arrematava disposto, antevendo escaramuça quente. Pouca gente levava sempre consigo — que em tropa grande há mais refugo que matambre gordo. Do ponto em que estavam, pouco mais de três léguas havia para entrar na porteira do Capão Grande, já em terras do Fidêncio. Depois de alcançarem-na, estava concluída a empreitada, pois "nos campos dele, só Deus". Tinham passado a linha divisória um pouco acima do Centurion. Mais de uma semana de tempo ruim — as chuvas tinham levantado a água aos galhos — ilhara-os do outro lado da fronteira, na pulperia do Aguirre, a comer carne assada e jogar o truco. Aberto o tempo, fizeram-se de viagem, à boquinha da noite. O rio campo fora. Não era para qualquer achar o caminho certo naquele mundo de água solta. As picadas do passo, borradas pela enchente, perdiam-se por mais de duas quadras entre o mato baixo das margens, torcendo em cotovelos, mergulhando mato a dentro, contornando sangas e atoleiros, sumidas na noite densa. Amarraram os cargueiros uns aos outros para não se extraviarem e levantaram as canastras, se bem que tudo viesse retovado com oleados e as bruacas fossem de couro inteiriço. Mas, pelas dúvidas, que água não é brinquedo. Fidêncio, com as botas atadas nos tentos, cutucou com o calcanhar o colorado, que dava bufidos na beira d'água, e caiu na frente, certo que nem capincho em porto velho. — Rédea curta e venham vindo no mais, que eu aqui estou mesmo que em casa. A água marulhava, soturna, nas patas dos cavalos, subindo às vezes até meia costela. Através da noite grande e negra vinha o rumor abafado da cachoeira, quadras abaixo, afogada pelas águas grossas da cheia. O Negrito, que vinha na retaguarda, chasqueou para o Bento: "Pero, chê, por acá ni los biguás". — E, livrando o corpo a um galho baixo: — "Palos, antonces, adrede pa rachar las aspas a um cristiano. Por lo seguro no me quedo aficionau".O Bento, crioulo daqueles pagos e veterano em passagens idênticas, respondeu no mesmo calão: — "Hace fuego em los ojos, castejano, que te plantas em el charcó".Passado o fio da correnteza, embrenharam-se pela picada que serpejava entre os caponetes ilhados, através dos sarandizais fechados, nunca em linha reta, sempre quebrando à direita, à esquerda, procurando a feição propícia da terra firme. Afinal tinham saído para o campo limpo, e já traziam duas léguas de marcha cautelosa e suspicaz, cada um com a Winchester atravessada no lombilho, a mão no delgado, esperando pelo que desse e viesse. Era a zona perigosa. De dentro da treva podia a cada momento surgir, de abrupto, a guarda que velava. Desafeita e confundida na noite opaca, a emboscada podia atalhar, estrupindo de chofre numa arrancada, atacando à queima-roupa. Por isso, na frente, distanciado da coluna, ia o Chiru, de bombeiro. Nele e na sua perspicácia e sangue-frio, estava a segurança de todos. Era simples mas arriscadíssima a incumbência. Não tinha mais que, ao pressentir a guarda, avisar os companheiros. Se, ao perceber o perigo já não pudesse voltar, preveni-los-ia com um tiro, e depois cuidasse da vida... Era posto que demandava coragem e dedicação. Todos, porém, confiavam no Chiru que, mesmo a custo da vida, não os deixaria cair desapercebidos sob as carabinas da guarda. Não as temiam, porém. Afeitos àqueles perigos e sobressaltos, sempre em risco, na iminência da morte, cristalizara-se-lhes em hábito a existência errante e insegura, noite e dia sobre as coxilhas da fronteira. Ora cautos, resvalando em fugas contornantes, ora afoitos, rebatendo de frente, a bala, o fisco vigilante, carregavam sempre as mercadorias que a tarifa fazia preciosas. Entre a vida e a morte, aproximadas na expectativa dos recontros, passavam calmos, quase indiferentes, derivando para aquele comércio perigosíssimo a bravura e o estoicismo da raça, vindos de longe, do passado guerreiro, aceso outrora nas lutas que haviam feito vibrar o imenso arco da fronteira, distenso do Iguaçu ao Chuí, nos vaivéns incertos das guerras e revoluções. O Zeca, tentando divisar estrelas no céu encoberto pelo nevoeiro, murmurou a meia-voz para o Osório, que vinha logo atrás: "Deve ir virando para as quatro. Como quer, parece que escapamos".Negrito, que não se sofria muito tempo calado, pôs o cavalo ao lado do Bento — "Sabes, chê, que estoy c'una gana danada de pitar?" — O Bento sacudiu os ombros. Que era ordem. Não se fumava. Acender farol aos guitas, não é? Só se fumasse com a brasa para dentro. De feito, naquelas ocasiões bania-se tudo que pudesse assinalar a presença de passantes. Não se fumava e a conversa era pouca e em voz baixa. E deslizavam assim, cortando o campo em silêncio, evitando os pedregulhos da estrada, onde os cascos dos cavalos fariam ruído. O Fidêncio ia sempre alerta, ouvido atento aos mínimos ruídos que dissonassem do rangido abafado dos cargueiros e arreios. Por sorte, nem quero-queros haviam encontrado, que os denunciassem com o alarma estrídulo de eternas sentinelas dos campos. O velho contrabandista prelibava já, no íntimo, mais aquele buçal passado aos aduaneiros. Também, era que nem sorro velho naquelas coxilhas, onde conhecia restinga por restinga, de há tanto que cruzava por ali. Mais algumas quadras e estavam em casa. Depois era um brinquedo. Na frente, meio indistinto, ouviu um estrépito surdo, como de cavalo que tropeça. — Havia de ser o Chiru. Indiozinho de confiança, aquele! Ia certo e vivo no rumo da querência. Com efeito, o Chiru ia na frente, no tranco do picaço, furando com os olhos a treva cinzento-negra da madrugada de névoa, orgulhoso daquele posto de honra que lhe dera o patrão. Era, apesar de muito moço, a confiança do velho Fidêncio. Morrera-lhe o pai o ano atrasado, e ele passou a ser o capataz, o faz-tudo da fazendola da Limeira, onde o dono quase não parava. Deixara o rancho com a mãe e instalara-se definitivamente na casa do patrão, tomando a si todo serviço. Pouco mais que adolescente, a vida do campo fizera-o homem depressa. Fidêncio estimava-o deveras, passando ao filho a velha gratidão que tivera ao pai, de quando andavam na revolução de 93, curtindo juntos as durezas da campanha, e onde fora por ele salvo, num entrevero, baleado na perna e destinado a morrer sob as patas dos cavalos, se o amigo o não tirasse na garupa. Morto o velho companheiro, que jamais juntara pecúlio, a proteção e a amizade reverteram ao filho, aquela amizade funda e concentrada, niveladora de peões e de patrões, criados nas mesmas lides, onde gradua, não o nascimento ou fortuna, mas o valor de cada um. O Chiru ia pensando na sua vida. Tinha ainda que cangar duas juntas antes do inverno e debulhar as carradas de milho que estavam no girau do galpão pequeno. Afora todo o trabalho do campo. Inda mais agora, com a compra das duzentas reses do Ferico. Gado lindo. Tudo pampa. Cada novilha de sobreano que dava gosto olhar-se. O patrão já dera ordem de ajustar mais um peão, que os dois que havia não davam conta do serviço. E ia passando em revista tudo o que havia a fazer, toda a sua vida simples e laboriosa, sem desvios nem ânsias perturbantes, onde mal aflorava uma ambição. Mais tarde, com certeza, assim que tivesse a sua juntinha de tambeiros, podia então, mesmo sem deixar a estância da Limeira, dar uma arrumação na vida. Essa "arrumação" era a Lavica... E ao pensar enchia-se-lhe o peito de uma onda doce. Ah! a Lavica... Como um homem se deixa bolear... A sua imaginação abria uma clareira na noite e, num retângulo do sol, via-a, todo o rosto trigueiro da chinoquinha inundado da luz dos olhos. Mais que os lábios úmidos, mais que o peitinho redondo de rola, mais que tudo nela, prendiam-no aqueles misteriosos olhos de mulher, onde havia o infinito e a suavidade das coxilhas, ora banhadas de sol, cantando de vida, ora imersas na saudade e no langor das noites enluaradas. Neles moravam todos os seus sonhos mal definidos e profundos. Queria-a e, pois, trabalharia para possuí-la. E uma doce certeza confortava-o. Era só mais... Aqui, porém, interrompeu as cismas. Pareceu-lhe ouvir adiante um ruído de metais, qualquer rumor abafado quebrando o silêncio, agora pressago e inquietador. Puxou a pistola para frente e foi seguindo, de ouvido atento, os olhos muito abertos para absorverem a luz escassa da noite nas pupilas dilatadas. Nada percebeu, no entanto, e foi avançando. Raio de noite! Está que nem forno.  Cresceu-lhe à direita o vulto negro de uma reboleira de arbustos, e não a passara ainda, quando uma voz grossa e seca intimou: — Faça alto, amigo! E bem junto, como nascendo da treva, vultos de cavaleiros cercaram-no. Percebeu os reflexos frouxos de botões de metal em dólmãs escuros. Sentiu um nó na garganta, as fontes latejaram-lhe e nos ouvidos rolava como um trovão de intermitências surdas. — Não se mexa e diga quem é. A hesitação foi rápida; aquela voz restituiu—lhe a calma. Num segundo lembrou os companheiros que se aproximavam do perigo sem suspeitar. Tinha que preveni-los. Viu o cano do revólver do guarda apontando-o. Talvez morresse, mas tinha que preveni-los. Foi levantando a mão direita, devagar, colada ao corpo; encontrou o cinto, apertou a coronha da pistola, o indicador tateava o gatilho. — Fale, amigo, senão... Torceu o cano para o lado e premeu o dedo. Uma linguazinha de chama relampejou, chamuscando-lhe os pelegos. O guarda, supondo-se alvejado, atirou também. Era o quanto bastava. Prevenidos pelo duplo sinal, os contrabandistas executaram logo o preconcebido. O Zeca e o Osório, com os cargueiros, penderam por uma encosta, sem ruído, furtando a volta. Fidêncio e os outros infletiram à esquerda, coxilha acima, disparando as armas. Era a manobra de sempre. Os guardas seguiram a direção dos tiros, enquanto o contrabando mesmo, contornando, retomava longe o caminho, já à retaguarda do perigo, reaviado e certo no destino. Fidêncio com os companheiros continuavam retirando. Diferenciava-se o estampido sonoro das Winchesters e a deflagração seca das Mausers da guarda, em tiroteio frouxo, ao acaso dos alvos móveis e indistintos, afastando-se dentro da noite. Tênues, começaram a dealbar no oriente as primeiras claridades do dia. Uma aura leve foi dispersando a névoa adormecida nas baixadas. Em pouco surgiu o sol, longe na imensidão do horizonte, dourando a silhueta dos capões de mato que demoravam no campo como manchas escuras. Arrastado pelo cavalo, Chiru ficara estendido num alto, os braços abertos e o rosto voltado para o céu. O primeiro raio de sol, tangenciando a lombada das coxilhas adormecidas, veio incidir-lhe na face, onde coagulara um fio de sangue. Banhado daquela luz tépida, o gaúcho parecia apenas dormir, tão sereno tinha o rosto e tanto, para aquela alma nobre, era simples a lealdade e até mesmo a morte.

204. DINAH SILVEIRA DE QUEIROZ. ORGIA. As filhas, já às oito ou nove horas, perguntavam, devagarinho, boiando num resto de sono, tomando o café com leite: — "A senhora também hoje se levantou antes das quatro"? — "De certo, meninas. Que é que se vai fazer? Antes das quatro a fila já estava um colosso! Ia até a esquina. Ah! Vocês são umas preguiçosas. Não sabem quanta gente se levanta cedo!". As filhas e o marido se impressionavam com aquele estranho zelo da dona de casa. Por que não mandar a empregada? — "Na leiteria já me conhecem. Se eu mandar a criada, vocês nem vêem a cor do leite. E para mim o leiteiro vende quantos litros eu queira”. Começou a fazer uns vestidos, não tão leves, não tão leves, não... para a fila do leite. As quatro, sempre corria uma aragem friorenta, vinda das bandas da praia. Os vestidos eram folgados — "pra gente estar à vontade" — e também assim eram os sapatos de salto baixo: — "Esses são mesmo próprios. Não cansam. Meninas! Não quero que usem os meus sapatos da fila, Vão deformar o calçado. Eu preciso de toda a comodidade." Era estranho aquele requinte. Dizia o pai à filha: — "Você já reparou como sua mãe agora deu para gostar de fila?" O marido resolveu experimentar a mulher: — "Amanhã eu vou. Ainda tiro um soninho depois". — "Vai, nada ! Você tem trabalhado muito. Mais um sacrifício — e a senhora suspirou — já não é nada para mim !" Ontem, esperava um táxi para a viagem a São Paulo e por acaso surpreendi a dama da fila da madrugada. Uma espessa, íntima união estava naquela fila da leiteria. Encostava-se a dona molemente, um pouco tonta ainda de sono, à árvore. Uma vizinha contava qualquer coisa. Ela ria, um riso ainda com resto de lençol, de travesseiro fofo. 0 cinqüentão do apartamento do primeiro andar coara o próprio café, o cheirava bem o seu hálito na madrugada. Era uma fila limpa, perfumada a dentifrício, a roupa fresca plena de comodidades caseiras. A madame do dezenove, justamente a mais bonita, com um vestido parecendo quimono, dobrou um jornal sobre o chão da calçada. Sentou-se rindo, distribuindo o seu gostoso sorriso, como vinho para todos. E logo, outras a imitaram. Passavam rente as criaturas que voltavam das boites. Um homem largava seus recalques cantando, do outro lado da rua. Sua voz era cálida, um pouco pastosa. Nunca aquele homem cantaria assim em casa. A rua da madrugada era a rua das ousadias. As janelas estavam fechadas sobre mistérios e intimidades. Pela fila agora passavam uns moços morenos, bonitos, que iam à pesca. As aventuras do mar bafejaram a pequena multidão. Os rapazes falavam alto, excitados. O mar noturno vinha molemente até a calçada, por intermédio dos passantes joviais. O dia já se vem anunciando. Em breve a leiteria levantará sua cortina metálica e estudantes, caixeiros, a turba do trabalho, estará na rua. A vida será estúpida, na atividade doméstica. E só amanhã, às quatro horas, haverá a transfiguração da cidade, mostrando seus segredos, mansa, íntima, tão perto, cheia de histórias balbuciadas, plena de orgia da madrugada.

205. DINAH SILVEIRA DE QUEIROZ. HISTÓRIA DE MINEIRO. Estou sabendo de uma historinha que bem valia um conto e feito por quem a narrou, o contista que anda arrebatando todos os prêmios dos concursos em que se inscreve: Edson Guedes de Morais. É um caso de mineiro. Trata de gente pobre e de filho que veio trabalhar no Rio, prosperou e um dia mandou uma carta ao pai: Meu pai, com a graça de Deus, posso dizer que já tenho economia suficiente para pretender realizar qualquer sonho seu. Minha maior felicidade estará em poder propor: que possa fazer para alegrá-lo? 0 que mais desejaria na vida? Tenho pensado muito em sua luta de sacrificado e não me lembro de tê-lo ouvido falar sobre qualquer aspiração. Não se acanhe, papai, mande dizer se o senhor quiser alguma coisa." Lá da cidadezinha das Minas Gerais veio uma carta. Daquele homem religioso, devoto de Nossa Senhora Aparecida, austero, confiando nos seus deveres e trabalhos: o homem que jamais manifestara ao filho o seu desejo de possuir, por exemplo, um carro, ou ter um negócio só seu, ou, no mínimo, de adquirir uma lavadeira automática para desafogar o trabalho da mulher: — "Meu filho, com a graça de Deus, todos vão com saúde. Não me falta nada. Assim como vivo, vivo bem. Mas se você quiser saber de um desejo que sempre tive fique sabendo agora que toda a vida quis ver o mar. É só isso, meu filho, mais nada." Tão pouco lhe pedia o pai ! Mandou-lhe o filho a passagem, depois de ter escolhido um bom hotelzinho na Tijuca, freqüentado por gente de pequenas posses, mas pessoas escolhidas — só família, enfim. E o velho chegou com a alegria de ver o filho que realizara o que inúmeras gerações de sua gente não haviam conseguido: ter dinheiro sobrando. Vieram as efusões, as lágrimas. O primeiro dia passou, e, logo no segundo, o filho veio buscar o pai: Papai, vista-se que eu vou levá-lo a Copacabana. Está na hora de realizar o desejo." 0 velho olhou-o piscando meio trêmulo: — "Hoje, não. Quero visitar a prima Carlota, que mora aqui perto. Amanhã eu vou". Chegou amanhã, e o pai, sempre tremendo e piscando, disse que não se sentia bem para ir a Copacabana. No terceiro e no quarto dias também, afirmou que não podia ir e que queria comprar uma lembrancinha para a mulher e para a filha. Alguns dias decorreram e o grande encontro entre o mineiro e o mar foi sendo protelado. Já, então, o filho estava meio triste com aquela estranha atitude do pai e, afinal, desabafou: — "Parece que o senhor não está querendo mesmo ir ver o mar! Desde que chegou aqui não encontra um dia para realizar aquilo que afirmou ser o único desejo de sua vida!" 0 pai chegou a pegar o chapéu, passou a mão no ombro do filho mas estava tão perturbado, que desta vez, realmente, parecia doente. — "Meu pai, o que é que o senhor tem? O que há?" O velho mineiro, de olhos nublados, hesitou. Por fim, largou o peso da verdade de uma vez : — "Acho uma coisa tão maravilhosa poder ir ver o mar que quero entregar a Nossa Senhora o meu sacrifício. Meu filho, não se zangue. Vou voltar hoje mesmo para casa sem ir a Copacabana". — "Mas por que, meu pai? Por quê? Nem Nossa Senhora vai aceitar esse seu sacrifício. Todo mundo vê o mar todo dia. Gente há que nem liga, passa pela praia e nem volta o rosto para ele..." Mas, a essa altura, o velho já ia juntando os seus trens. Nesse mesmo dia voltou para sua cidade das Minas Gerais, levando em sua imaginação a idéia do abismo de assombro que ele jamais encontraria.

206. DINAH SILVEIRA DE QUEIROZ. O HOMEM QUE SE EVADIU. Ele costumava olhar a cidade como quem passa de trem, e não pode possuir a paisagem. Que belas mulheres, que admiráveis lugares de diversões, e que restaurantes... e que bebidas! Feliz era o turista que chupava a cidade por um canudo. Mas ele — ele era o seu escravo! De casa para o trabalho, do trabalho para casa. Quando chegava o dia de folga — a mulher, que estava dia a dia ficando mais feia e ácida, se agarrava com ele. Ela era quem escolhia o cinema, ou a visita... Numa segunda-feira, em que o homem sentia a vida como um nó na garganta, um companheiro de trabalho deu certa notícia: - "Sabe? O chefe vai mandar-me a Buenos Aires por quinze dias!" - "Mas você é um homem de sorte! Eu que sempre quis conhecer aquela terra!" A viagem do colega a Buenos Aires deu ao nosso conhecido um complexo: o da liberdade! A inveja nele doía. E então, pediu ao felizardo: - "Tive uma idéia. Vou tomar férias. E como não tenho dinheiro para viajar... fico por aqui mesmo. Mas quero que minha mulher pense que estou fora. Meu amigo — eu vou é me acabar! Vou-me divertir para o resto da minha vida. Você vai para Buenos Aires, mas a gente rica de lá vem passear aqui. Quer dizer que isto é bom. O de que se precisa é liberdade, para gozar o Rio." Como o amigo concordasse com sua fantasia — o carioca que queria gozar o Rio como turista disse à mulher: — "Meu bem, tenho uma novidade para contar. O chefe me despachou para Buenos Aires por duas semanas! Vou ter muitas saudades de você. Nós que não nos separamos nunca!" E ele não quis que a mulher o acompanhasse ao Aeroporto: — " Vou ficar muito emocionado." Nesse dia em que deveria embarcar, ele madrugou e foi levar o amigo, entregando-lhe meia dúzia de telegramas que deveria passar... E caiu na orgia. À noite, depois de um dia de companhia alegre, de passeio de lancha, de teatro ao lado de uma loira, à noite, lá pelas onze horas, uns conhecidos que chegavam a uma boate deram com nosso personagem num pileque terrível. Daí a meia hora estava dormindo sobre a mesa: ninguém sabia que ele tomara um quarto em hotel... nem conhecia sua trama inventada. Os amigos, penalizados, o puseram num automóvel e sabendo do seu endereço, o deixaram em casa, onde a mulher o recebeu com espanto, que se transformou em cólera tremenda. Quando, de manhãzinha, o homem acordou em seu quarto — mediu toda a extensão da sua ... desgraça: — " Meu bem, os amigos, lá no aeroporto... O avião atrasara quatro horas... me deram uma festinha de despedida... e eu perdi a hora... Mas não foi minha culpa. Você me perdoe. Isso aconteceu, porque eu não tenho hábito dessas coisas... Mas eu me arranjarei com o chefe... Até foi bom. Ele manda outro funcionário, e eu não me separo mais da minha mulherzinha." A senhora estava furiosa. Foi preciso muito juramento e muita declaração de amor para que amansasse um pouquinho. À tarde, quando estava já querendo fazer as pazes tocou a campainha da porta. Era um telegrama. Ela o abriu: — " Viagem ótima. Morrendo saudades querida mulherzinha." Foi a tempestade. A senhora arrumou a bagagem. Ia para a casa do pai, pois não era uma abandonada. O marido se arrojou ao chão, inventou histórias, disse que se mataria. Ela ficou. Mas quando se recolhiam ao quarto de pazes feitas, chegou novo telegrama: — " Buenos Aires sem ti não vale nada." E os quinze dias do homem que quis quebrar sua rotina foram tremendos. Mesmo porque o amigo que levara os telegramas mudara de hotel, em Buenos Aires, e se desincumbiu religiosamente da sua missão. O último despacho que mandou foi assim: — " Volto amanhã teus braços." E estava gentilmente assinado: " Maridinho".

207. DINAH SILVEIRA DE QUEIROZ. CASA PARA ALUGAR. Ontem fui ver uma casa vazia, que espera seus inquilinos. Onde fica, qual o seu aluguel, isto não são coisas contidas no ofício da cronista. Estava toda escancarada para um sol que lampejava enviesado, desconcertando pelo seu absurdo de má pintura. Já era quase noite num canto do céu. E havia um rasgão azul cintilante, feito para clarear a casinha, que se oferecia, toda branca e nova, para quem quisesse e pudesse. Quando entrei — um operário cantava, outro metia a cabeça pintalgada de branco sob a torneira do jardim. Havia água, espaço, terra em torno, muros cercando o pequeno domínio. Muitas pessoas têm ido ver a casinha vazia. As mulheres ficam perturbadas por um amontoado de sonhos que se desencadeiam, mal elas põem os pés no pequeno terraço. "Aqui fecharei com persianas; será quase um jardim, para que o neném não saia. E mandarei pintar da mesma cor da parede essa tremenda barra de cor verde, na sala de jantar, fingindo mármore".Depois de uma pausa, talvez ainda acrescentem: "Este quarto será transformado em escritório, porque tem muita parede, e bem se pode nele instalar a grande estante de dois metros e oitenta. E neste canto do quarto cabe a cama de casal". A casinha será medida, considerada por uma respeitável quantidade de pessoas. Alguém se alegrará com o quintal, nele instalando em imaginação a casa do seu cachorro ou o galinheiro. Pessoas poéticas verão crescidas, aninhando as paredes, amorosas trepadeiras, assim como as begônias no terraço, mais as avencas e os gerânios. Gostei de ver a casinha desalugada. Ainda não se sabe de quem será! É um palco pequeno e adornado, esperando por seus atores. Até a música que o operário cantarolava me parecia qualquer canto de apresentação, antes de uma peça, cuja primeira parte constará, talvez, da invasão de uma família com sua velha e seu papagaio, seu piano que não encontra parede, sua moça que reclama tudo, e a mãe que briga com os fornecedores. Um gato morrerá, quase, de susto, traumatizado com a alvura das paredes desconhecidas. A jovem achará a barra de imitação de mármore o tipo da coisa suburbana. 0 pai, vindo de uma era de casas mais enfestadas, defenderá aquela aparência de suntuosidade com o calor que só as discussões domésticas podem ter. Haverá um filho estudando, brigas sobre o horário do almoço, objetos perdidos na mudança, e o martirológio da dona da casa entoado por ela própria, sem que ninguém se importe com seu drama. Pode ser que a moça se case, que haja na salinha de barra verde uma mesa com comes e bebes. Acontecerá, quem sabe, em certa madrugada, riscar o escuro o choro de uma criancinha recém-nascida pungentemente cantando dos difíceis começos, doloridos começos de qualquer vida. Haverá alegria, haverá dívidas de dar nó na garganta, e festa de formatura, e discussões políticas. A casinha nova, então, terá paredes riscadas, gordura sobre o forro da cozinha, portas sem chave, torneiras escorrendo. Na ex-cobiçada pequena casa pessoas baterão portas com raiva: — "Esta casa é um inferno!" Outras chegarão nela, já toda sabida e experimentada, como amante sem segredo, e irão diretamente a um canto mais fresco do terraço, ou para a profundeza de um quarto. — "Eu estava morrendo de calor (ou de cansaço). Não agüentava mais a rua." Terá a casinha tão perfeitamente pura, hoje, pregos caídos da parede, ladrilhos que faltam, como dentadura incompleta. Se passar algum tempo mais — talvez que o velho morra, e se enterre com a roupa feita ainda para o casamento da filha em seu caixão, que no alto será levantado, quando atravessar o portãozinho. Ah, casinha que espera seus donos, branca e bonita como uma noiva menina! Estás preparada para teu destino. E, antes dos moradores — compactos fantasmas de vida e de morte já te povoam, eu sei.

208. DINAH SILVEIRA DE QUEIROZ. A moralista. Se me falam em virtude, em moralidade ou imoralidade, em condutas, enfim, em tudo que se relacione com o bem e o mal, eu vejo Mamãe em minha idéia. Mamãe — não. O pescoço de Mamãe, a sua garganta branca e tremente, quando gozava a sua risadinha como quem bebe café no pires. Essas risadas ela dava principalmente à noite, quando — só nós três em casa — vinha jantar como se fosse a um baile, com seus vestidos alegres, frouxos, decotados, tão perfumada que os objetos a seu redor criavam uma pequena atmosfera própria, eram mais leves e delicados. Ela não se pintava nunca, mas não sei como fazia para ficar com aquela lisura de louça lavada. Nela, até a transpiração era como vidraça molhada: escorregadia, mas não suja. Diante daquela pulcritude minha face era uma miserável e movimentada topografia, onde eu explorava furiosamente, e em gozo físico, pequenos subterrâneos nos poros escuros e profundos, ou vulcõezinhos que estalavam entre as unhas, para meu prazer. A risada de Mamãe era um "muito obrigada" a meu Pai, que a adulava como se dela dependesse. Porém, ele mascarava essa adulação brincando e a tratando eternamente de menina. Havia muito tempo uma espírita dissera a Mamãe algo que decerto provocou sua primeira e especial risadinha: — Procure impressionar o próximo. A senhora tem um poder extraordinário sobre os outros, mas não sabe. Deve aconselhar... Porque... se impõe, logo à primeira vista. Aconselhe. Seus conselhos não falharão nunca. Eles vêm da sua própria mediunidade... Mamãe repetiu aquilo umas quatro ou cinco vezes, entre amigas, e a coisa pegou, em Laterra. Se alguém ia fazer um negócio, lá aparecia em casa para tomar conselhos. Nessas ocasiões Mamãe, que era loura e pequenina, parecia que ficava maior, toda dura, de cabecinha levantada e dedo gordinho, em riste. Consultavam Mamãe a respeito de política, dos casamentos. Como tudo que dizia era sensato, dava certo, começaram a mandar-lhe também pessoas transviadas. Uma vez, certa senhora rica lhe trouxe o filho, que era um beberrão incorrigível. Lembro-me de que Mamãe disse coisas belíssimas, a respeito da realidade do Demônio, do lado da Besta, e do lado do Anjo. E não apenas ela explicou a miséria em que o moço afundava, mas o castigo também com palavras tremendas. Seu dedinho gordo se levantava, ameaçador, e toda ela tremia de justa cólera, porém sua voz não subia do tom natural. O moço e a senhora choravam juntos. Papai ficou encantado com o prestígio de que, como marido, desfrutava. Brigas entre patrão e empregado, entre marido e mulher, entre pais e filhos vinham dar em nossa casa. Mamãe ouvia as partes, aconselhava, moralizava. E Papai, no pequeno negócio, sentia afluir a confiança que se espraiava até seus domínios. Foi nessa ocasião que Laterra ficou sem padre, porque o vigário morrera e o bispo não mandara substituto. Os habitantes iam casar e batizar os filhos em Santo Antônio. Mas, para suas novenas e seus terços, contavam sempre com minha Mãe. De repente, todos ficaram mais religiosos. Ela ia para a reza da noite de véu de renda, tão cheirosa e lisinha de pele, tão pura de rosto, que todos diziam que parecia e era, mesmo, uma verdadeira santa. Mentira: uma santa não daria aquelas risadinhas, uma santa não se divertia, assim. O divertimento é uma espécie de injúria aos infelizes, e é por isso que Mamãe só ria e se divertia quando estávamos sós. Nessa época, até um caipira perguntou na feira de Laterra: — Diz que aqui tem uma padra. Onde é que ela mora? Contaram a Mamãe. Ela não riu: — Eu não gosto disso. — E ajuntou: Nunca fui uma fanática, uma louca. Sou, justamente, a pessoa equilibrada, que quer ajudar ao próximo. Se continuarem com essas histórias, eu nunca mais puxo o terço. Mas, nessa noite, eu vi sua garganta tremer, deliciada: — Já estão me chamando de "padra"... Imagine! Ela havia achado sua vocação. E continuou a aconselhar, a falar bonito, a consolar os que perdiam pessoas queridas. Uma vez, no aniversário de um compadre, Mamãe disse palavras tão belas a respeito da velhice, do tempo que vai fugindo, do bem que se deve fazer antes que caia a noite, que o compadre pediu: — Por que a senhora não faz, aos domingos, uma prosa desse jeito? Estamos sem vigário, e essa mocidade precisa de bons conselhos... Todos acharam ótima a idéia. Fundou-se uma sociedade: "Círculo dos Pais de Laterra", que tinha suas reuniões na sala da Prefeitura. Vinha gente de longe, para ouvir Mamãe falar. Diziam todos que ela fazia um bem enorme às almas, que a doçura das suas palavras confortava quem estivesse sofrendo. Várias pessoas foram por ela convertidas. Penso que meu Pai acreditava, mais do que ninguém, nela. Mas eu não podia pensar que minha Mãe fosse um ser predestinado, vindo ao mundo só para fazer o bem. Via tão claramente o seu modo de representar, que até sentia vergonha. E ao mesmo tempo me perguntava: — Que significam estes escrúpulos? Ela não une casais que se separam, ela não consola as viúvas, ela não corrige até os aparentemente incorrigíveis? Um dia, Mamãe disse ao meu Pai, na hora do almoço: — Hoje me trouxeram um caso difícil... Um rapaz viciado. Você vai empregá-lo. Seja tudo pelo amor de Deus. Ele me veio pedir auxílio... e eu tenho que ajudar. O pobre chorou tanto, implorou... contando a sua miséria. É um desgraçado! Um sonho de glória a embalou: — Sabe que os médicos de Santo Antônio não deram nenhum jeito? Quero que você me ajude. Acho que ele deve trabalhar... aqui. Não é sacrifício para você, porque ele diz que quer trabalhar para nós, já que dinheiro eu não aceito mesmo, porque só faço caridade! O novo empregado parecia uma moça bonita. Era corado, tinha uns olhos pretos, pestanudos, andava sem fazer barulho. Sabia versos de cor, e às vezes os recitava baixinho, limpando o balcão. Quando o souberam empregado de meu Pai — foram avisá-lo: — Isso não é gente para trabalhar em casa de respeito! — Ela quis — respondeu meu Pai. — Ela sempre sabe o que faz! O novo empregado começou o serviço com convicção, mas tinha crises de angústia. Em certas noites não vinha jantar conosco, como ficara combinado. E aparecia mais tarde, os olhos vermelhos. Muitas vezes, Mamãe se trancava com ele na sala, e a sua voz de tom igual, feria, era de repreensão. Ela o censurava, também, na frente de meu Pai, e de mim mesma, porém sorrindo de bondade: — Tire a mão da cintura. Você já parece uma moça, e assim, então... Mas sabia dizer a palavra que ele desejaria, decerto, ouvir: — Não há ninguém melhor do que você, nesta terra! Por que é que tem medo dos outros? Erga a cabeça... Vamos! Animado, meu Pai garantia: — Em minha casa ninguém tem coragem de desfeitear você. Quero ver só isso! Não tinha mesmo. Até os moleques que, da calçada, apontavam e riam, falavam alto, ficavam sérios e fugiam, mal meu Pai surgisse à porta. E o moço passou muito tempo sem falhar nos jantares. Nas horas vagas fazia coisas bonitas para Mamãe. Pintou-lhe um leque e fez um vaso em forma de cisne, com papéis velhos molhados, e uma mistura de cola e nem sei mais o quê. Ficou meu amigo. Sabia de modas, como ninguém. Dava opinião sobre os meus vestidos. À hora da reza, ele, que era tão humilhado, de olhar batido, já vinha perto de Mamãe, de terço na mão. Se chegavam visitas, quando estava conosco, ele não se retirava depressa como fazia antes. E ficava num canto, olhando tranqüilo, com simpatia. Pouco a pouco eu assistia, também, à sua modificação. Menos tímido, ele ficara menos afeminado. Seus gestos já eram confiantes, suas atitudes menos ridículas. Mamãe, que policiava muito seu modo de conversar, já se esquecia de que ele era um estranho. E ria muito à vontade, suas gostosas e trêmulas risadinhas. Parece que não o doutrinava, não era preciso mais. E ele deu de segui-la fielmente, nas horas em que não estava no balcão. Ajudava-a em casa, acompanhava-a nas compras. Em Laterra, soube depois, certas moças que por namoradeiras tinham raiva da Mamãe, já diziam, escondidas atrás da janela, vendo-a passar: — Você não acha que ela consertou... demais? Laterra tinha orgulho de Mamãe, a pessoa mais importante da cidade. Muitos sentiam quase sofrimento, por aquela afeição que pendia para o lado cômico. Viam-na passar depressa, o andar firme, um tanto duro, e ele, o moço, atrás, carregando seus embrulhos, ou ao lado levando sua sombrinha, aberta com unção, como se fora um pálio. Um franco mal-estar dominava a cidade. Até que num domingo, quando Mamãe falou sobre a felicidade conjugal, sobre os deveres do casamento, algumas cabeças se voltaram quase imperceptivelmente para o rapaz, mas ainda assim eu notei a malícia. E qualquer absurdo sentimento arrasou meu coração em expectativa. Mamãe foi a última a notar a paixão que despertara: — Vejam, eu só procurei levantar seu moral... A própria mãe o considerava um perdido — chegou a querer que morresse! Eu falo — porque todos sabem — mas ele hoje é um moço de bem! Papai foi ficando triste. Um dia, desabafou: — Acho melhor que ele vá embora. Parece que o que você queria, que ele mostrasse que poderia ser decente e trabalhador, como qualquer um, afinal conseguiu! Vamos agradecer a Deus e mandá-lo para casa. Você é extraordinária! — Mas — disse Mamãe admirada. — Você não vê que é preciso mais tempo... para que se esqueçam dele? Mandar esse rapaz de volta, agora, até é um pecado! Um pecado que eu não quero em minha consciência. Houve uma noite em que o moço contou ao jantar a história de um caipira, e Mamãe ria como nunca, levantando a cabeça pequenina, mostrando a sua nudez mais perturbadora —seu pescoço — naquele gorjeio trêmulo. Vi-o ao empregado, ficar vermelho e de olhos brilhantes, para aquele esplendor branco. Papai não riu. Eu me sentia feliz e assustada. Três dias depois o moço adoeceu de gripe. Numa visita que Mamãe lhe fez, ele disse qualquer coisa que eu jamais saberei. Ouvimos pela primeira vez a voz de Mamãe vibrar alto, furiosa, desencantada. Uma semana depois ele estava restabelecido, voltava ao trabalho. Ela disse a meu Pai: — Você tem razão. É melhor que ele volte para casa. À hora do jantar, Mamãe ordenou à criada: — Só nós três jantamos em casa! Ponha três pratos... No dia seguinte, à hora da reza, o moço chegou assustado, mas foi abrindo caminho, tomou seu costumeiro lugar junto de Mamãe: — Saia!... — disse ela baixo, antes de começar a reza. Ele ouviu — e saiu, sem nem ao menos suplicar com os olhos. Todas as cabeças o seguiram lentamente. Eu o vi de costas, já perto da porta, no seu andar discreto de mocinha de colégio, desembocar pela noite. — Padre Nosso, que estais no céu, santificado seja o Vosso Nome... Desta vez as vozes que a acompanhavam eram mais firmes do que nos últimos dias. Ele não voltou para a sua cidade, onde era a caçoada geral. Naquela mesma noite, quando saía de Laterra, um fazendeiro viu como que um longo vulto balançando de uma árvore. Homem de coragem, pensou que fosse algum assaltante. Descobriu o moço. Fomos chamados. Eu também o vi. Mamãe não. À luz da lanterna, achei-o mais ridículo do que trágico, frágil e pendente como um judas de cara de pano roxo. Logo uma multidão enorme cercou a velha mangueira, depois se dispersou. Eu me convenci de que Laterra toda respirava aliviada. Era a prova! Sua senhora não transigira, sua moralista não falhara. Uma onda de desafogo espraiou-se pela cidade. Em casa não falamos no assunto, por muito tempo. Porém Mamãe, perfeita e perfumada como sempre, durante meses deixou de dar suas risadinhas, embora continuasse agora, sem grande convicção — eu o sabia — a dar os seus conselhos. Todavia punha, mesmo no jantar, vestidos escuros, cerrados no pescoço.

209. DINAH SILVEIRA DE QUEIROZ. TARCISO. Além da ponte cinzenta e empedrada começava o muro dos Vilares. Por cima dele se inclinavam alguns chorões desgalhados e sofredores, pendendo para o chão poeirento, ansiando por um descanso. Um vento morno e enervante roçava-lhes as folhas mais altas, fazia tremer as janelas vermelhas do sobrado, como se as forçasse de propósito. O jardineiro dos Vilares, de joelhos sobre a terra, arrancava, com cuidado para não magoar as flores, aqui e ali, pequenas plantas daninhas. De vez em quando olhava o céu. A terra pedia chuva, e era só aquele vento seco e ruinoso soprando em cima das plantas e das criaturas, com impiedade. Estava no seu trabalho, quando a porta da frente se abriu, e Maninha apareceu com os cabelos voando, o vestido branco palpitando igual a uma asa, fininha, comprida e pálida: — Se chegar alguém de automóvel, espie a entrada da ponte. Avise para ter cuidado com a vala. — Está direito — assentiu o jardineiro. Eu aviso. Espera cá a menina! Pôs-se em pé, apanhou um molho de algumas altas flores vermelhas, inchadas, grandes, tão viçosas que pareciam artificiais, e levou-as à Maninha. — Estas são fortes. Não há vento que dê cabo delas.Maninha sorriu, apanhou as flores, e voltou correndo. Ao entrar na sala sentiu a mesma atmosfera tensa e irritante que ali deixara havia poucos momentos. A mãe e o pai continuavam a discutir, com aquele modo especial. Feriam-se mutuamente numa guerra severa e contida. Nem gritos, nem desabafos, nem acessos de ira, ou crises de choro. Mas uma batalha fria e metódica, em que todos os gestos eram estudados, todas as palavras determinadas e inflexíveis, nunca apaixonadas e descuidosas. Passou Maninha como uma lufada branca e leve pela sala de móveis escuros e pesados, com a mancha vermelha das flores em uma das mãos. Subiu a escada de ferro. Lá em baixo, fitando a filha, disse Carlos Vilares à sua mulher — Luísa. — Já sei para que são estas flores! O menino está doente, talvez em perigo de vida, e você impele a sua própria filha para fazer o irmão piorar, num exagero de beatice! Carlos havia dito isto mais como ironia, com um repuxar nos lábios finos, que queria ser um sorriso, tornar menos graves suas palavras, mas Luísa respondeu erguendo a face fina de ave, fixando-o de perfil, com um olho apenas, como prestes a dar uma bicada violenta, à traição: — São flores para o altar, que Tarciso mesmo fez quando era pequenino. Seu filho sempre foi crente e calmo. Você o mergulhou na dúvida. Você, com seu materialismo, com seus discursos fora da moda! Não foi a minha fé; não foram as flores com que eu e Maninha enfeitamos os pés de Nossa Senhora, que confundiram o menino, que o desnortearam. Foi você! — "Meu filho há de ser mais feliz do que eu, ter mais prazeres na vida. Tome dinheiro, meu filho! Eu não tive. Você tem. Vá divertir-se. Deixe as saias da mãe." Lembre-se! Lembre-se de que foi isso que precipitou a crise — os seus conselhos. Carlos Vilares desabotoou o paletó, começou a dar passadas e mais passadas, que pareciam calmas e medidas: — Chamei Tarciso aqui como qualquer pai o faria. Dei-lhe algumas explicações. É claro! Meu filho não podia continuar como um maricas. Quantas vezes eu mesmo — vendo-o do meu tamanho, já quase um homem feito, me envergonhava da sua timidez. Incrível! Luísa virou a face magra, de todo, focalizou o marido com seu olhar duro: — Sua vaidade sacrificou o menino. A verdade é que de repente você sentiu que ele me pertencia. Era meu! Toda a sua eloqüência, e todas as suas idéias de um materialismo grosseiro não encontraram apoio em Tarciso. O que você fez... foi crime. Sim! — eu digo com a maior clareza e assumo a responsabilidade do que estou dizendo: você fez o menino ficar doente; talvez para sempre! — Minha família não tem malucos. A sua já não é a mesma coisa. Aquele seu tio que vestiu uma opa — e saiu pelo mundo: — "Esmola para os pobres! Esmola para os pobres! " Deu tudo que tinha, botou dinheiro fora com toda a espécie de vagabundos. Minha família é de gente equilibrada! A face de Luísa tremeu, mas sua voz era firme e áspera: — Você?... Nem se deu o respeito. Mostrou livros indecentes a Tarciso... Isto é, não mostrou, mas "esqueceu" de propósito para o menino ler! O que está acontecendo com nosso filho é que... foi um choque que ele teve — grande demais para sua inocência. Carlos passou a mão pelos belos cabelos grisalhos: — Quando o Doutor Laertes chegar — você me chame logo. A fala de Luísa subiu um tom: nunca ela se pareceu tanto com uma ave arisca: — Chamei Padre Nicolau. Os meus direitos são iguais aos seus. Você acha que Tarciso precisa de um médico. Eu acho que não. Prefiro um sacerdote. O marido pôs o pé na escada, pronto para subir: — Coitado! Até tenho pena de você meter o Padre Nicolau nessa história. Aquele jeito dele — não sei se escrúpulo, se falta de inteligência — de pensar meia hora, antes de dizer qualquer coisa! Pode chamar à vontade. Chame o jardineiro, se quiser, também... contanto que o Doutor Laertes venha. Isso é que é o principal. E Carlos foi subindo devagar. No meio da escada encontrou Maninha; vinha correndo para junto da mãe. Enquanto o pai entrava no quarto de Tarciso, Maninha se chegava a Luísa, com maneiras assustadas: — Mamãe — eu jurei, mas pra senhora eu conto: até não foi mesmo um juramento, eu enganei Tarciso, e disse: "Juro por Deus!" bem depressa, ele pensou que eu estava jurando. Eu agora sei tudo! Ele falou! Ele contou! — Fez alguma coisa... malfeita, quando saiu de casa? Hein? Fez? Fale, mas fale baixo por causa de seu pai. Senão tudo arrebenta em cima de mim... — Foi horrível, mamãe. Não sei. Acho que não fez. Mas teve vontade de fazer. Maninha ergueu os olhos, olhou para a porta de Tarciso. Estava fechada, não havia perigo: — Tudo foi por causa de uns sonhos. Foi por isso que ele foi embora. A senhora se lembra quando ele ficava acordado, estudando noites e noites? A senhora zangava e ele dizia que não tinha sono. Mas estava enganando... Ele não queria dormir... com medo dos pesadelos. Meu Deus, como é que uma pessoa como Tarciso pode sofrer tanto? A campainha tocou. — Deve ser o médico. Quieta! — disse Luísa a Maninha, enquanto rápida se encaminhava para a porta. Mas, para sua surpresa, quem chegara era o lento e ofegante Padre Nicolau. — Vim depressa — disse ele, com pequenas pausas para respirar. — O Coronel Juliano me trouxe... de automóvel. Que há... então? E se atirou pesadamente numa poltrona, antes que Luísa o mandasse sentar: — Este vento... me faz mal. Por pouco que o carro não bateu... na quarta da ponte. Quando levamos o susto... apareceu... seu jardineiro para nos avisar... que tivéssemos cuidado... Luísa disse, polida: — O senhor desculpe. Sinto muito. Mas foi só o susto, não foi? — Isso mesmo. Que é que a senhora... quer? Alguma... dificuldade? Esta menina... Maninha disse, viva: — Não é comigo. É com meu irmão Tarciso. Eu não tenho nada. Luísa fê-la interromper-se com um gesto brusco: amaciou a fala, dirigindo-se ao padre: — Tarciso anda esquisito. Meu marido acha que ele está doente. Porque deu pra fugir de casa, e ficar horas e horas, depois, sem querer dar a palavra a ninguém.— Ah! — fez Padre Nicolau. — Então o Tarciso... aquele que brincava de dizer missa, quando era... pequenino... deu para fugir? — Nós pensávamos... que fosse coisa de meninote — disse Luísa. — Até uma paixão...— era a Maninha quem falava, e coma gravidade de irmã mais velha: O padre se abriu num sorriso: — Isso deve ser... um excesso de amor. Talvez... mimos. Mimos demais. — Mamãe, eu posso falar? Posso contar ao Padre Nicolau? — Decerto, Maninha. Mas fale baixo. Olhe seu pai. Seu pai é capaz de ouvir. — Padre Nicolau, — começou Maninha — é uma coisa tremenda. Nem sei como começar. — Minha filha, pense que é como se você... estivesse no confessionário. Não tenha medo. — São os pesadelos de Tarciso. No princípio, ele disse que sempre fazia um esforço... e acordava antes... Era horrível, mas depois... A mocinha fixou o padre e a mãe com os olhos mergulhados num medo denso. — Ele via chagas. Uma porção de chagas. Homens sem rosto, os ossos de fora, a carne escorrendo para o lado, como trapos sangrentos. Via pernas inchadas, via gangrenas, via lábios comidos de ferida, via tumores exalando pus, e o pior... Os olhos de Maninha estavam rasos d'água: — O pior é que tudo isso agradava Tarciso. Não sei. Ele disse assim mesmo: "Maninha, eu não quero mais guardar segredos de você. Nem uma daquelas... posso falar, posso, Padre Nicolau?... Nem uma daquelas figuras de mulheres dos livros — que é pecado a gente ver — me atraíram tanto! Em vez de me encher de nojo, tinha vontade de apalpar aquelas feridas... de beijar aquelas chagas, de mergulhar o dedo no pus." Houve um silêncio. Depois Maninha prosseguiu: — Tarciso disse que no começo reagia. Vinham aqueles homens horríveis à sua frente... Luísa comprimiu os lábios. Logo disse num tom fundo, doído: — Pobre do meu filhinho! Padre Nicolau se tornara vermelho, e mais ofegante ainda, quase apopléctico. Com voz difícil perguntou: — Depois? Ouviu-se o ruído de uma porta que se abria. — Depois os sonhos começaram a ficar confusos: aqueles homens cheios de chagas iam ficando pequeninos, pequeninos, e Tarciso se sentia grande e forte. Eles o enlaçavam com seus braços esqueléticos, cobertos de feridas, pedindo uma esmola, ou o quê, nem Tarciso sabia: — "Não nos deixe! Não nos deixe!", gritavam. E Tarciso sentia vontade de se deixar abraçar, queria beijá-los também. Uma vontade louca de ficar com eles, de se unir a eles. Mas meu irmão não podia explicar direito o que sentia, como era aquela atração terrível, a mais terrível... Mas de repente ele ficava com medo, fugia. E os homenzinhos desfigurados o perseguiam, agarravam-se às suas pernas como anões pavorosos..." — Então era isso! Carlos, muito pálido, estava diante de Maninha: — Conte para seu pai — disse ele. — Eu devo saber! Eu preciso... Não acontece nada. Eu não faço nada! Mas quero saber! Por que Padre Nicolau há de entender melhor o que se passa em minha própria casa? Por que escondem de mim? Diga, então! — Só isso, papai! Nos dias seguintes a esses sonhos tremendos, Tarciso... tinha vontade de ir à igreja... Carlos balançou a cabeça, num gesto raivoso: — Justamente como eu pensava. E então? — Então ele se chegava à escada, ficava... ficava olhando fascinado para os mendigos. Sabe? Aquela mulher com erisipela, a perna inchada — o homem com uma chaga no lugar do nariz... Tarciso ficava olhando, olhando. Dentro dele subia uma vontade esquisita. Beijar! Apalpar aquela chaga, acariciar a perna doente. Depois fugia dali, e dizia para si mesmo: — "Meu Deus! Salvai-me! Estou ficando louco!" — Uma noite andou, andou sonhando confusamente com chamados misteriosos... e o dia veio, e ele sempre sonhando de olhos abertos e andando como se fosse empurrado. Carlos olhou Luísa com um ar ao mesmo tempo vitorioso e triste: — Eu não lhe disse? Ainda imagina que eu sou o culpado? E voltando-se para Padre Nicolau: — Luísa pensou que certas revelações... tivessem chocado demais Tarciso. Pensou, ora, pensou que tudo fosse obra do meu "materialismo". Diga lhe o senhor mesmo que isso — de Tarciso — é uma doença, uma doença cuja culpa não me cabe. Como está vendo! Padre Nicolau estava ansioso: — As vezes... dois... o pai e a mãe, em seu excesso de amor... podem fazer mal... levar um filho à confusão. Querem imprimir sua alma... na alma de seu filho. E lutam por estampar o próprio retrato no coração da criança. Querem destruir seu espírito, por um egoísmo natural, às vezes... Luísa baixou os olhos: — Padre Nicolau, vamos ver o menino? — Tarciso está dormindo. Está extenuado. Não devem acordá-lo agora — disse Carlos. Maninha falou aflita: — E o médico que não vem!... Tarciso me disse que essa força que ele sente é tão grande... Ele tem medo de ir não sabe para onde! Eu tirei a chave lá de cima da porta do quarto que dá para a escada. Primeiro — tranquei, naturalmente. Acho que tranquei direito, nem vale a pena ver — concluiu baixinho. Padre Nicolau, visivelmente perplexo, atirava palavras a esmo: — O menino sempre me pareceu... calmo... normal. E se dirigindo a Luísa: — Minha filha, Deus é bondade, é doçura. Em vez de combater seu marido... dele devia tentar aproximar-se tanto quanto ele da senhora. Não oferecer a Tarciso essa contradição tão viva... que, decerto, feriu o rapaz. Pobrezinho! Não sabia em quem devia crer... Na sua confusão... ficou-lhe perturbado o cérebro, sim... deve ser isso. Não lhe parece... Dr. Carlos? Também não pensa assim? Agora? E é preciso que se não esqueçam — neste momento — do poder da oração... Mas Carlos dardejava sobre Luísa um olhar carregado de intenções: — "Eu não falei?" — parecia significar. Enquanto isso, Maninha abria a porta. Entardecia. Ainda ventava. "E o Doutor Laertes que não chega!" pensava. O automóvel veio muito devagar. Um homem pôs a cabeça para fora. O jardineiro gritou: — Passe por aqui que passa, sim! Por aqui!... Logo que atravessou a ponte o homem freou o carro, e saltou: — Eu bem reconheci você! Logo no mesmo momento... O jardineiro ficou lívido: — Doutor Laertes! — Eu mesmo! Você pensou que pudesse escapar do hospital, assim? A figura do médico tomava certa atitude suficiente, autoritária, semelhante à de um chefe militar: — Por que fez isso? Eu devia puni-lo, Mandar o carro dos doentes pegá-lo aqui mesmo, diante de todos, e depois prendê-lo! Prendê-lo na cela! — Doutor... eu não estou doente... E o jardineiro cruzava os braços atrás das costas, ao mesmo tempo que olhava súplice para o médico. — Você está doente: sabe que está doente. Não esconda as mãos. Quer enganar-me? Pensa que me engana? O homem tremia de emoção: — Já ando muito velho para acostumar-me no hospital... Trinta anos cuidando das flores, mexendo na terra. Ai! Que triste a vida lá, "seu' doutor, para um pobre como eu, que nem sabe ler, nem gosta de ouvir rádio, como os outros... Doutor Laertes... por Deus que está no céu, não me faça voltar! E o pobre homem rompeu em soluços, como uma criança. Depois, continuou: — Mesmo dizer que eu viva com esta família — isto não vivo, não! Durmo num quarto lá para os fundos da casa... Tenho os meus pratos, faço minha comida... — É inútil — disse o médico. — Sou obrigado a dar parte! Se não quiser ir por bem — agora mesmo — pior para você! O carro virá buscá-lo! O doente limpou os olhos com a manga da camisa: — Não é pelo dinheiro que perco, nem pela liberdade de andar pelas ruas... É pelo amor que sinto às plantinhas de Deus. É também pelo menino. Pode-se lá governar o coração? O pequeno vinha por aqui, dava-me prosa... Por alma de minha mãe! Nunca vi uma criança daquele jeito. Gosta-se logo dele, como... um filho. Mas doutor! Só converso com ele assim, como estou falando com o senhor... Nunca lhe ponho as mãos. O médico consultou o relógio, a fisionomia fechada: — Arrume-se, e vá embora; já lhe disse. Se quiser, invente uma desculpa qualquer para se despedir. Mas ande depressa! E o Doutor Laertes, com seus passos rígidos, tomou a direção da casa dos Vilares. O jardineiro então, resolutamente, se encaminhou para os fundos do quintal. Diante do seu quarto, porém, hesitou, e, voltando, começou a subir a escada que dava para o quarto de Tarciso. O homem estava trêmulo, comovido, e sentia o suor correr pela face, como se levasse em si um peso descomunal. Bateu fracamente na porta. Depois, quis torcer o trinco. Mas, ao encostar a mão, a porta cedeu. Talvez fosse o próprio vento que a abrisse e não ele. Lá no canto, sobre a cama de madeira, uma vaga claridade descia da janela alta, semicerrada. O jardineiro aproximou-se, devagarinho. Sentia a fronte latejar. "O menino estaria adormecido? Deus o guarde. Deus o guarde", pensava. Tarciso, ainda imóvel na cama, abriu os olhos. Rodou-os pelo quarto, viu o jardineiro. — Ah, é você? Pode entrar. Sente-se. Eu não estava dormindo. Estava só de olhos fechados. O empregado chegou mais perto do leito: — Pois então aqui venho eu... dizer adeus ao menino. — Você? Você vai embora? Por quê? Então não gosta mais da gente?— Bem que eu não queria dizer... Mas com o menino Tarciso eu não sei mentir. Eu queria continuar... sempre. — Quem sabe se você está ganhando pouco? Quer que eu fale com papai? — Não, meu pequeno. Não precisa falar com seu pai. É que me vou... por andar doente... — Mas não parece! Tarciso sentou-se, e continuou: — Parece vender saúde. Tão forte! Acho que você não quer é mais morar conosco. Deve ser isso. — Pois se não confia em mim... Foi o médico, que agora está lá em baixo, que me mandou... voltar para o hospital. Tenho que estar internado... O menino nunca reparou... que trago doentes as mãos? Verdade é que as tenho sempre sujas de terra. A expressão de Tarciso subitamente mudou, num pressentimento. A tarde declinava, e um raio de luz alaranjada, o sol filtrando através da poeira, descia reto sobre seu rosto. A pele estava estirada, brilhante, cor-de-rosa, tão lisa como se fora de louça. Podia-se acompanhar, transparecendo profundamente, como estava, em seu rosto, uma intensa emoção que lhe ia no íntimo. — Pensei que fosse do trabalho. Mas... Deixe ver suas mãos — ordenou Tarciso, com um estranho tom. — Meu pequeno... O homem ainda estava na sombra, e vinha mais e mais perto do leito iluminado. Porém, chegando rente à cama de Tarciso, parou. Juntou as mãos atrás de si, com receio, envergonhado. Tremia. Balbuciou "não", debilmente, medroso, de súbito, quase como uma criança. — Quero ver suas mãos. As suas mãos. Ande! O homem parecia hipnotizado. Relutou por segundos, depois estendeu as mãos, que penetraram na claridade, ganhando logo um mágico relevo. Eram mãos manchadas e tortas, pisadas, roxas e crescidas. Tarciso nunca reparara nelas. Estavam ali diante de seus olhos, pedaços marcados pela morte próxima, e no entanto vivos, bulindo como dois animais feridos, condenados. Então o menino sentiu em si aquela impetuosa onda de esquisito carinho, avassaladora como um doce fogo de amor, e agarrando as pobres mãos doentes — paralisado o jardineiro por força invencível — inundou-as de longos beijos, de transbordantes beijos, juntando-lhes seus lábios devagar, interminavelmente. Depois que Carlos explicou ao Doutor Laertes a doença de seu filho, disse o médico com certa gravidade afetuosa: — Com quinze anos! Hum! Não deve ser tão grave quanto o senhor pensa. Tudo faz supor que se trate de uma crise de puberdade. Não vi ainda o garoto... Mas assim... como me contam... o caso parece revestir-se de um aspecto fácil até para a moderna psicologia. O temor religioso, infundido pela mãe — desculpe-me, Padre Nicolau! — desviou, com certeza, uma tendência normal. As chagas, as deformidades... tudo não passa, senão, de instinto sexual mascarado, que se não quer revelar... ao próprio menino, de índole tão religiosa, como o senhor disse. Luísa e Padre Nicolau se entreolharam. Maninha fixava o médico com modo indagador. Não estava entendendo, via-se logo. Doutor Laertes consultou novamente o relógio: — Bem. Agora vamos ver o doentinho. Mas um grito, um grito de homem, forte, cortante, encheu o ambiente. O jardineiro abriu a porta do quarto, projetou-se quase caindo pela escada, e chegou diante de todos rindo e chorando ao mesmo tempo, como um louco: — Deus do céu! Deus do céu! Doutor Laertes perguntou severo: — Que é isso, homem? Que é que tem? Por que ainda está aqui? Quer então ser levado pelo carro do hospital? — Eu vou dizer-lhe, doutor, vou dizer-lhe... Aconteceu uma coisa... Preciso falar — e não posso! Eu me fui despedir do pequeno, lá no quarto. — Não, não fique zangado, "seu" doutor. Eu pensava em só dizer adeus... nem queria que ele soubesse... da minha doença. Então... — As lágrimas desciam livremente pelo rosto. — Não sei... ele quis ver as minhas mãos quando sem saber como, fui-lhe dizendo que eram... doentes. Luísa apertou a boca contendo-se apavorada. — "Seu" doutor, aconteceu... aconteceu que o menino ao vê-las ficou mudado de rosto, tão diferente, que causava espanto, parecia outra criatura. Todos cercavam o jardineiro, atônitos, abismados. Algo de terrível sucedera — eles sentiam. O homem continuou: — O menino Tarciso pegou-me as mãos... Meus braços pareciam de pedra. Quis retirá-las, doutor; por Deus que não tive forças! E Tarciso começou a beijá-las... Beijá-las com uma decisão muito meiga e muito carinho, que nem se pode contar direito... E então... aconteceu... O jardineiro sufocava, quase. Por fim, disse com voz liberta, num impulso delirante: — Um milagre! Um milagre! Doutor Laertes: olhe para minhas mão!... Elas foram branquejando com os beijos daquele anjo de Nossa Senhora... Foram desaparecendo as nódoas. Até que se foram de uma vez as manchas! Repare! E o homem estendeu para o médico as mãos puras, lisas, finas, como nascidas de novo. Enquanto todos contemplavam o prodígio, e Padre Nicolau dizia baixinho, como que se lamentando: "e eu que não soube...", "e eu não vi...", Maninha subiu a escada: — Tarciso! — gritou. Abriu a porta e, depois de um momento, tornou a descer: — Ele saiu! — disse, e acrescentou: — mas juro que fechei a porta... Eu me lembro perfeitamente! — Não há mais portas que segurem o menino Tarciso! — gritou o jardineiro. Maninha, acompanhada de Carlos e de Luísa, precipitou-se para o jardim. Os pais foram ficando para trás. Maninha corria leve, o vestido branco flutuando como uma vela no mar. Atravessou a ponte... Mais adiante ia indo Tarciso. — Tarciso, não vá embora! Espere, espere por mim, Tarciso! Apesar do esforço sobre-humano, não conseguiu alcançá-lo. De longe ele acenou sereno, dizendo adeus. Maninha sentiu vertigens imaginando o mundo tremendo de doentes, de miseráveis, de infelizes e deformados para o qual — ela adivinhava agora — seu irmão partia sem retorno, numa ânsia de amor. Todo o crepúsculo, tão violentamente sangüíneo, parecia concentrar-se na sua figura, que estranhamente crescia, ganhando em majestade, em vez de diminuir, na distância sempre maior.

210. DOM ROSSÉ CAVACA. O PENSAMENTO INVENCÍVEL DE... Tenho em mãos uma verdadeira jóia. Uma coleção dos primeiros números do "O Pasquim", lançado aqui no Rio em 26 de junho de 1969, com preço de capa de NCr$ 0,50. Para quem não sabe, isso queria dizer "cruzeiros novos". Passo horas me deliciando com os textos, charges, anúncios - que eram feitos pelos seus proprietários e jornalistas, dentre eles Tarso de Castro, Sérgio Jaguaribe (Jaguar), Sérgio Cabral, Carlos Prósperi, Cláudio Ceccon (Claudius) e tantos outros. O que quero mostrar para vocês é a releitura de alguns pensamentos de Dom Rossé Cavaca. Excelente jornalista, ator genial, produtor e ator de TV, inventor e construtor de coisas (consta que construiu um automóvel no quintal de sua casa, a alavanca de marchas era uma maçaneta de porta), humorista, poeta, boêmio. Enfim, um cara formidável. Em 1961 reuniu alguns trabalhos num livro de alto nível, Um riso em decúbito, (editado e distribuído pelo autor, nem Deus sabe como, segundo ele). Morreu pouco depois, quando voltava da redação da Tribuna da Imprensa, jornal carioca, num estúpido desastre de lambreta. Os textos abaixo constam do citado livro e foram publicados pelo "O Pasquim" número 4, de julho - 1969. Meus mais sinceros agradecimentos aos amigos Regina Werneck e Luiz Jorge, que cederam o material para pesquisa. Na promiscuidade dos bairros que crescem em sentido vertical, há binóculos de comprovada experiência sexual. A Bíblia conta à sua maneira que Adão também comia maçãs em outra macieira. O solteirão sem atrativos segue o destino: Cibalena à noite para dormir com algo feminino. Na reunião de cúpula do Centro de Pesquisas, a ciência revelou aspectos surpreendentes: descobriram doze moléstias até então inexistentes. Morreu de enfarte o João. Comentário geral: um ótimo coração. Chinelo em baixo da cama conforto é. Mas cadê o outro pé? Graças à liberdade de ir e vir, assegurada pela Constituição, o nordestino tem oito milhões, quinhentos e vinte e cinco mil quilômetros quadrados para morrer de inanição. Vendo para Seleções um conto neo-realista bem do tipo Seleções. Tanto que narra a história de um soldado destemido que perdeu pernas e braços, ficou cego, surdo e mudo. Azar inqualificável: até neurose incurável. Voltou da guerra e internou-se no Centro de Readaptação de Ex-Combatentes. Lá se casou por amor com a filha do diretor, que lhe tirou da cabeça todas as coisas complexas. Hoje ele é UM FELIZ FAZENDEIRO NO TEXAS. Na situação em que me encontro, se puserem um revólver na minha frente eu o vendo imediatamente. É tanta polícia que a gente fica sem a mínima garantia. A sífilis e as capitanias eram hereditárias. Bons tempos aqueles! Como se ganhava pouco! Não é para te elogiar não, mas o enterro do teu pai estava um show. Humoristas lutam agora por um mundo menos engraçado. É a quinta massa fria vinda do Sul que o Rio desmoraliza. Agora gostaria que as senhoras fizessem silêncio, mas todas ao mesmo tempo. Os dois são Deuses, mas o da direita tem mais experiência. Letra V da cartilha contemporânea? Vina viu vovô se virando. Alguns átomos também se consideravam íntegros. Depressa, Pedro! Grite logo, que estamos às margens do Ipiranga e a letra do hino já está pronta. Há milhares de notas falsas em circulação, mas tão prestativas que conquistaram a confiança de todos. Que corrupção é esta que a gente morre sem conseguir atingi-la? Flagrei minha mulher me pegando em flagrante. Um destes viveiros que matam de inveja os passarinhos livres. Acredito na sua honestidade mas a quadrilha já está formada. Tem cura, doutor? Se tem, vamos desenterrá-lo. Bebeu veneno e o legista descobriu que era uma solução. Só sabe contar pré-histórias. Que foi que você sentiu quando soube que havia nascido no Brasil?

211. EÇA DE QUEIROZ. A MULTA MUNICIPAL PARA O LIRISMO SENTIMENTAL. No folhetim do Diário Popular de 24 de Junho lêem-se notáveis considerações de ordem moral. São em verso. O poeta dirige-se, na sua declamação solitária, a uma mulher. Numa prosa anterior (prelúdio) escreve que a missão da arte é ensinar a amar (!) — e que na arte não entra realidade, justiça ou moral pública porque (acrescenta) a arte nada tem com os direitos civis. Colocado assim à larga, na anarquia da voluptuosidade e do lirismo, aí está o que o poeta expõe e ensina num jornal popular, com uma tiragem de 20.000 exemplares, que anda por cima das mesas e nos cestos de costura! Começa por dizer: — Que é bom amar no campo, à tarde e a sós! Depois continua: — Que prefere o campo, porque nas salas do mundo não lhe é dado beijar a mão dela às largas! Que o campo é livre e as sombras dão refúgio!.... Por fim acrescenta: — Que queria que os raios cintilantes os cingissem a ele só com ela, erguidos em êxtase, longe de quanto é vil... (Quanto é vil, na gíria da poesia lírica, é o mundo real, a família, o trabalho, as ocupações domésticas, etc.). Dispensamo-nos de citar mais estrofes lascivas. Aquelas bastam para legitimar as seguintes observações: Nenhum jornal publicaria semelhantes teorias em prosa; Nenhum homem que as escrevesse ousaria lê-las a sua filha, sem gaguejar, e sem comer palavras; Nenhuma senhora que por acaso as tivesse lido ousaria citá-las. Como se consente então a sua publicação em verso? A higiene não é só a regularização salutar das condições da vida física; nela devem também entrar os factos da moralidade. Se é proibido que um monturo imundo ou um cão morto corrompam o ar respirável das ruas — porque há-de ser permitido que um poeta, com as suas endechas podres, perturbe o pudor e a tranqüilidade virgem? Há uma postura da Câmara que impõe uma multa a quem pronuncia palavras desonestas: porque não há-de ser igualmente proibido publicar idéias desonestas? Um ébrio, um pobre homem a quem se não deu educação, a quem se não pode dar leitura, a quem quase se não dá trabalho, diz uma praga numa rua, ouvida apenas de três ou quatro pessoas, e vai para a cadeia ou paga uma multa de 3$000 réis. Um poeta lírico, esclarecido, aprovado nos seus exames, empregado nas secretarias, publica num jornal de cinqüenta mil leitores em letra impressa, permanente e indelével, uma série de desonestidades, e é apreciado, cumprimentado no Martinho, indigitado para uma candidatura! Pedimos pois: Ou que seja permitido livremente dizer na rua e no jornal pragas e desonestidades; Ou que a multa da Câmara Municipal seja aplicada a todos — e que tanto o ébrio que não sabe o que diz à esquina de uma rua, como o poeta lírico que escreve, com reflexão e rascunho duma semana, ao canto dum jornal, paguem os 3$000 réis à Câmara, um pela sua praga, outro pela sua endecha.

212. ELIO GASPARI. O ministro Tarso Genro, da Educação, meteu-se numa encrenca. Faz água a moralidade de seu programa “Universidade Para Todos” (um dos slogans mais descerebrados já produzidos pela marquetagem de Brasília). O repórter Josias de Souza o chamou de Promamata e a Associação Nacional dos Fiscais da Previdência diz que a medida provisória que criou o ProUni contém um dispositivo imoral. Tomado pelo lado da propaganda, o Programa se destina a assegurar vagas nas universidades particulares para estudantes pobres. Tomado pelos afagos que a MP faz ao mercado, deu-se outra coisa. O ministro da Educação se atribuiu o poder de revalidar os registros de universidades filantrópicas que tiveram seus benefícios tributários cassados pelo Conselho Nacional de Assistência Social. Nos últimos seis anos foi cancelada cerca de uma centena de registros de instituições que desrespeitavam as normas da Previdência. Em junho do ano passado, instituições como as universidades Mackenzie, Metodista, Cásper Líbero e Gama Filho tiveram seus registros suspensos. Tarso Genro poderá devolver os benefícios às escolas que aderirem ao ProUni. Disso resultará que serão restabelecidos os benefícios fiscais de entidades em débito com a Previdência. Coisa de gente que deve muito, porque a choldra que deve pouco não consegue um refresco desses. Os fiscais do INSS que batalharam para acabar com as mamatas e autuaram instituições desonestas, ficarão no papel de bobos. Pior: a MP transfere ao MEC o poder de fiscalizar as contas e os programas da filantropia universitária. A Previdência, que dispõe de um aparelho fiscalizador, foi substituída pelo MEC, que não tem aparelho nenhum. Já houve universidades filantrópicas com jatinho para seus diretores (Universidade de Marília e Unoeste). Auditores da Receita e do INSS que fiscalizaram algumas dezenas de escolas superiores encontraram esquemas de enriquecimentos das famílias controladoras das escolas, contabilidades paralelas e, como sempre, dinheiro de campanha eleitoral. No ano passado estimou-se que os benefícios fiscais do ensino filantrópico somavam perto de R$ 1 bilhão. Instituições que seguiram a lei e os bons costumes, como quase todas as PUCs e um punhado de universidades comunitárias do Sul do país acabam sendo punidas pela anistia oferecida à pilantropia. A leveza com que o MEC lida com o ensino superior privado levou o professor José Arthur Giannotti a se demitir do Conselho Nacional de Educação, em 1997. Sabendo-se que Giannotti é um dos melhores amigos de FFHH e que se hospedava no Alvorada quando ia a Brasília para as reuniões do Conselho, vê-se quão poderosos são os argumentos da confederação de interesses do ensino superior privado. O que há de mais triste nesse episódio é que a anistia aos educadores punidos por suas malfeitorias sai de uma repartição que se denomina Ministério da Educação.

213. ÉRICO VERÍSSIMO. OS DEVANEIOS DO GENERAL. Abre-se uma clareira azul no escuro céu de inverno. O sol inunda os telhados de Jacarecanga. Um galo salta para cima da cerca do quintal, sacode a crista vermelha que fulgura, estica o pescoço e solta um cocoricó alegre. Nos quintais vizinhos outros galos respondem. O sol! As poças d'água que as últimas chuvas deixaram no chão se enchem de jóias coruscantes. Crianças saem de suas casas e vão brincar nos rios barrentos das sarjetas. Um vento frio afugenta as nuvens para as bandas do norte e dentro de alguns instantes o céu é todo um clarão de puro azul. O General Chicuta resolve então sair da toca. A toca é o quarto. O quarto fica na casa da neta e é o seu último reduto. Aqui na sombra ele passa as horas sozinho, esperando a morte. Poucos móveis: a cama antiga, a cômoda com papeis velhos, medalhas, relíquias, uniformes, lembranças; a cadeira de balanço, o retrato do Senador; o busto do Patriarca; duas ou três cadeiras... E recordações... Recordações dum tempo bom que passou, — patifes! — dum mundo de homens diferentes dos de hoje. — Canalhas! — duma Jacarecanga passiva e ordeira, dócil e disciplinada, que não fazia nada sem primeiro ouvir o General Chicuta Campolargo. O general aceita o convite do sol e vai sentar-se à janela que dá para a rua. Ali está ele com a cabeça atirada para trás, apoiada no respaldo da poltrona. Seus olhinhos sujos e diluídos se fecham ofuscados pela violência da luz. E ele arqueja, porque a caminhada do quarto até a janela foi penosa, cansativa. De seu peito sai um ronco que lembra o do estertor da morte. O general passa a mão pelo rosto murcho: mão de cadáver passeando num rosto de cadáver. Sua barbicha branca e rala esvoaça ao vento. O velho deixa cair os braços e fica imóvel como um defunto. Os galos tornam a cantar. As crianças gritam. Um preto de cara reluzente passa alegre na rua com um cesto de laranjas à cabeça. Animado aos poucos pela ilusão de vida que a luz quente lhe dá, o general entreabre os olhos e devaneia... Jacarecanga! Sim senhor! Quem diria? A gente não conhece mais a terra onde nasceu... Ares de cidade. Automóveis. Rádios. Modernismos. Negro quase igual a branco. Criado tão bom como patrão. Noutro tempo todos vinham pedir a benção ao General Chicuta, intendente municipal e chefe político... A oposição comia fogo com ele. O general sorria a um pensamento travesso. Naquele dia toda a cidade ficou alvoroçada. Tinha aparecido na "Voz de Jacarecanga" um artigo desaforado... Não trazia assinatura. Dizia assim: "A hiena sanguinária que bebeu o sangue dos revolucionários de 93 agora tripudia sobre a nossa mísera cidade desgraçada". Era com ele, sim, não havia dúvida. (Corria por todo o Estado a sua fama de degolador). Era com ele! Por isso Jacarecanga tinha prendido fogo ao ler o artigo. Ele quase estourou de raiva. Tremeu, bufou, enxergou vermelho. Pegou o revólver. Largou. Resmungou "Patife! Canalha!" Depois ficou mais calmo. Botou a farda de general e dirigiu-se para a Intendência. Mandou chamar o Mendanha, diretor do jornal. O Mendanha veio. Estava pálido. Era atrevido mas covarde. Entrou de chapéu na mão, tremendo. Ficaram os dois sozinhos, frente a frente. — Sente-se, canalha! O Mendanha obedeceu. O general levantou-se. (Brilhavam os alamares dourados contra o pano negro do dólmã). Tirou da gaveta da mesa a página do jornal que trazia o famoso artigo. Aproximou-se do adversário. — Abra a boca! — ordenou. Mendanha abriu, sem dizer palavra. O general picou a página em pedacinhos, amassou-os todos numa bola e atochou-a na boca do outro. — Come! — gritou. Os olhos de Mendanha estavam arregalados. O sangue lhe fugira do rosto. — Coma! — sibilou o general. Mendanha suplicava com o olhar. O general encostou-lhe no peito o cano do revolver e rosnou com raiva mal contida. — Coma, pústula! E o homem comeu. Um avião passa roncando por cima da casa, cujas vidraças trepidam. O general tem um sobressalto desagradável. A sombra do grande pássaro se desenha lá em baixo, no chão do jardim. O general ergue o punho para o ar, numa ameaça. — Patifes! Vagabundos, ordinários! Não têm mais o que fazer? Vão pegar no cabo duma enxada, seus canalhas. Isso não é serviço de homem macho. Fica olhando, com olho hostil, o avião amarelo que passa voando rente aos telhados da cidade. No seu tempo não havia daquelas engenhocas, daquelas malditas máquinas. Para que servem? Para matar gente. Para acordar quem dorme. Para gastar dinheiro. Para a guerra. Guerras covardes, as de hoje! Antigamente brigava-se em campo aberto, peito contra peito, homem contra homem. Hoje se metem os poltrões nesses "banheiros" que voam, e lá de cima se põem a atirar bombas em cima da infantaria. A guerra perdeu toda a sua dignidade. O general remergulha no devaneio. 93... Foi lindo. O Rio Grande inteiro cheirava a sangue. Quando se aproximava a hora do combate, ele ficava assanhado. Tinha perto de cinqüenta anos mas não se trocava por nenhum rapaz de vinte. Por um instante, o general se revê montado no seu tordilho, teso e glorioso, a espada chispando ao sol, o pala voando ao vento... Vejam só! Agora está aqui, um caco velho, sem força nem serventia, esperando a todo instante a visita da morte. Pode entrar. Sente-se. Cale a boca! Morte... O general vê mentalmente uma garganta aberta sangrando. Fecha os olhos e pensa naquela noite... Naquela noite que ele nunca mais esqueceu. Naquela noite que é uma recordação que o há de acompanhar decerto até o outro mundo... se houver outro mundo. Os seus vanguardeiros voltaram contando que a força revolucionária estava dormindo desprevenida, sem sentinelas... Se fizessem um ataque rápido, ela seria apanhada de surpresa. O general deu um pulo. Chamou os oficiais. Traçou o plano. Cercariam o acampamento inimigo. Marchariam no maior silêncio e, a um sinal, cairiam sobre os "maragatos". Ia ser uma festa! Acrescentou com energia: "Inimigo não se poupa. Ferro neles!" Sorriu um sorriso torto de canto de boca. (Como a gente se lembra dos mínimos detalhes...) Passou o indicador da mão direita pelo próprio pescoço, no simulacro duma operação familiar... Os oficiais sorriam, compreendendo. O ataque se fez. Foi uma tempestade. Não ficou nenhum prisioneiro vivo para contar dos outros. Quando a madrugada raiou, a luz do dia novo caiu sobre duzentos homens degolados. Corvos voavam sobre o acampamento de cadáveres. O general passou por entre os destroços. Encontrou conhecidos entre os mortos, antigos camaradas. Deu com a cabeça dum prisioneiro fincada no espeto que na tarde anterior servira aos maragatos para assar churrasco. Teve um leve estremecimento. Mas uma frase soou-lhe na mente: "Inimigo não se poupa".O general agora recorda... Remorso? Qual! Um homem é um homem e um gato é um bicho. Lambe os lábios gretados. Sede. Procura gritar: — Petronilho! A voz que sai da garganta é tão remota e apagada que parece a voz de um moribundo, vinda do fundo do tempo, dum acampamento de 93. — Petronilho! Negro safado! Petronilho! Começa a bater forte no chão com a ponta da bengala, frenético. A neta aparece à porta. Traz nas mãos duas agulhas vermelhas de tricô e um novelo de lã verde. — Que é, vovô? — Morreu a gente desta casa? Ninguém me atende. Canalhas! Onde está o Petronilho? — Está lá fora, vovô. — Ele não ganha pra cuidar de mim? Então? Chame ele. — Não precisa ficar brabo, vovô. Que é que o senhor quer? — Quero um copo d'água. Estou com sede. — Por que não toma suco de laranja? — Água, eu disse. A neta suspira e sai. O general entrega-se a pensamentos amargos. Deus negou-lhe filhos homens. Deu-lhe uma única filha mulher que morreu no dia em que dava à luz uma neta. Uma neta! Por que não um neto, um macho? Agora aí está a Juventina, metida o dia inteiro com tricôs e figurinos, casada com um bacharel que fala em socialismo, na extinção dos latifúndios, em igualdade. Há seis anos nasceu-lhe um filho. Homem, até que enfim! Mas está sendo mal educado. Ensinam-lhe boas maneiras. Dão-lhe mimos. Estão a transformá-lo num maricas. Parece uma menina. Tem a pele tão delicada, tão macia, tão corada... Chiquinho... Não tem nada que lembre os Campolargos. Os Campolargos que brilharam na guerra do Paraguai, na Revolução de 1893 e que ainda defenderam o governo em 1923... Um dia ele perguntou ao menino: — Chiquinho, você quer ser general como o vovô? — Não. Eu quero ser doutor como o papai. — Canalhinha! Patifinho! Petronilho entra, trazendo um copo de suco de laranja. — Eu disse água! — sibila o general. O mulato sacode os ombros. — Mas eu digo suco de laranja. — Eu quero água. Vá buscar água, seu cachorro! Petronilho responde sereno: — Não vou, general de bobagem... O general escabuja de raiva, esgrime a bengala, procurando inutilmente atingir o criado. Agita-se todo, num tremor desesperado. — Canalha! — cicia arquejante — Vou te mandar dar umas chicotadas! — Suco de laranja — cantarola o mulato. — Água! Juventina! Negro patife! Cachorro! Petronilho sorri: — Suco de laranja, seu sargento! Com um grito de fera o general arremessa a bengala na direção do criado. Num movimento ágil de gato, Petronilho quebra o corpo e esquiva-se do golpe. O general se entrega. Atira a cabeça para trás e, de braços caídos, fica todo trêmulo, com a respiração ofegante e os olhos revirados, uma baba a escorrer-lhe pelos cantos da boca mole, parda e gretada. Petronilho sorri. Já faz três anos que assiste com gozo a esta agonia. Veio oferecer-se de propósito para cuidar do general. Pediu apenas casa, comida e roupa. Não quis mais nada. Só tinha um desejo: ver os últimos dias da fera. Porque ele sabe que foi o general Chicuta Campolargo que mandou matar o seu pai. Uma bala na cabeça, os miolos escorrendo para o chão... Só porque o mulato velho na última eleição fora o melhor cabo eleitoral da oposição. O general chamou-o a intendência. Quis esbofeteá-lo. O mulato reagiu, disse-lhe desaforos, saiu altivo. No outro dia... Petronilho compreendeu tudo. Muito menino, pensou na vingança mas, com o correr do tempo, esqueceu. Depois a situação política da cidade melhorou. O general aos poucos foi perdendo a autoridade. Hoje os jornais já falam na "hiena que bebeu em 93 o sangue dos degolados". Ninguém mais dá importância ao velho. chegou aos ouvidos de Petronilho a notícia de que a fera agonizava. Então ele se apresentou como enfermeiro. Agora goza, provoca, desrespeita. E fica rindo... Pede a Deus que lhe permita ver o fim, que não deve tardar. É questão de meses, de semanas, talvez até de dias... O animal passou o inverno metido na toca, conversando com os seus defuntos, gritando, dizendo desaforos para os fantasmas, dando vozes de comando: "Romper fogo! Cessar Fogo! Acampar". E recitando coisas esquisitas. "V. Exa. precisa de ser reeleito para glória do nosso invencível Partido". Outras vezes olhava para o busto e berrava: "Inimigo não se poupa. Ferro neles". Mais sereno agora, o general estende a mão pedindo. Petronilho dá-lhe o copo de suco de laranja. O velho bebe, tremulamente. Lambendo os beiços, como se acabasse de saborear o seu prato predileto, o mulato volta para a cozinha, a pensar em novas perversidades. O general contempla os telhados de Jacarecanga. Tudo isto já lhe pertenceu... Aqui ele mandava e desmandava. Elegia sempre os seus candidatos; derrubava urnas, anulava eleições. Conforme a sua conveniência, condenava ou absolvia réus. Certa vez mandou dar uma sova num promotor público que não lhe obedeceu à ordem de ser brando na acusação. Doutra feita correu a relho da cidade um juiz que teve o caradurismo de assumir ares de integridade de opor resistência a uma ordem sua. Fecha os olhos e recorda a glória antiga. Um grito de criança. O general baixa os olhos. No jardim, o bisneto brinca com os pedregulhos do chão. Seus cabelos louros estão incendiados de sol. O general contempla-o com tristeza e se perde em divagações... Que será o mundo de amanhã, quando Chiquinho for homem feito? Mais aviões cruzarão nos céus. E terá desaparecido o último "homem" da face da terra. Só restarão idiotas efeminados, criaturas que acreditam na igualdade social, que não têm o sentido da autoridade, fracalhões que não se hão de lembrar dos feitos dos seus antepassados, nem... Oh! Não vale a pena pensar no que será amanhã o mundo dos maricas, o mundo de Chiquinho, talvez o último dos Campolargos! E, dispnéico, se entrega de novo ao devaneio, adormentado pela carícia do sol. De repente, a criança entra de novo na sala, correndo, muito vermelho: — Vovô! Vovô! Traz a mão erguida e seus olhos brilham. Faz alto ao pé da poltrona do general. — A lagartixa, vovozinho... O general inclina a cabeça. Uma lagartixa verde se retorce na mãozinha delicada, manchada de sangue. O velho olha para o bisneto com ar interrogador. Alvorotado, o menino explica: — Degolei a lagartixa, vovô! No primeiro instante o general perde a voz, no choque da surpresa. Depois murmura, comovido: — Seu patife! Seu canalha! Degolou a lagartixa? Muito bem. Inimigo não se poupa. Seu patife! E afaga a cabeça do bisneto, com uma luz de esperança nos olhos de sáurio.

214. ÉRICO VERÍSSIMO. AS MÃOS DE MEU FILHO. Todos aqueles homens e mulheres ali na platéia sombria parecem apagados habitantes dum submundo, criaturas sem voz nem movimento, prisioneiros de algum perverso sortilégio. Centenas de olhos estão fitos na zona luminosa do palco. A luz circular do refletor envolve o pianista e o piano, que neste instante formam um só corpo, um monstro todo feito de nervos sonoros. Beethoven. Há momentos em que o som do instrumento ganha uma qualidade profundamente humana. O artista está pálido à luz de cálcio. Parece um cadáver. Mas mesmo assim é uma fonte de vida, de melodias, de sugestões — a origem dum mundo misterioso e rico. Fora do círculo luminoso pesa um silêncio grave e parado. Beethoven lamenta-se. É feio, surdo, e vive em conflito com os homens. A música parece escrever no ar estas palavras em doloroso desenho. Tua carta me lançou das mais altas regiões da felicidade ao mais profundo abismo da desolação e da dor. Não serei, pois, para ti e para os demais, senão um músico? Será então preciso que busque em mim mesmo o necessário ponto de apoio, porque fora de mim não encontro em quem me amparar. A amizade e os outros sentimentos dessa espécie não serviram senão para deixar malferido o meu coração. Pois que assim seja, então! Para ti, pobre Beethoven, não há felicidade no exterior; tudo terás que buscar dentro de ti mesmo. Tão-somente no mundo ideal é que poderás achar a alegria. Adágio. O pianista sofre com Beethoven, o piano estremece, a luz mesma que os envolve parece participar daquela mágoa profunda. Num dado momento as mãos do artista se imobilizam. Depois caem como duas asas cansadas. Mas de súbito, ágeis e fúteis, começam a brincar no teclado. Um scherzo. A vida é alegre. Vamos sair para o campo, dar a mão às raparigas em flor e dançar com elas ao sol... A melodia, no entanto, é uma superfície leve, que não consegue esconder o desespero que tumultua nas profundezas. Não obstante, o claro jogo continua. A música saltitante se esforça por ser despreocupada e ter alma leve. É uma dança pueril em cima duma sepultura. Mas de repente, as águas represadas rompem todas as barreiras, levam por diante a cortina vaporosa e ilusória, e num estrondo se espraiam numa melodia agitada de desespero. O pianista se transfigura. As suas mãos galopam agitadamente sobre o teclado como brancos cavalos selvagens. Os sons sobem no ar, enchem o teatro, e para cada uma daquelas pessoas do submundo eles têm uma significação especial, contam uma história diferente. Quando o artista arranca o último acorde, as luzes se acendem. Por alguns rápidos segundos há como que um hiato, e dir-se-ia que os corações param de bater. Silêncio. Os sub-homens sobem à tona da vida. Desapareceu o mundo mágico e circular formado pela luz do refletor. O pianista está agora voltado para a platéia, sorrindo lividamente, como um ressuscitado. O fantasma de Beethoven foi exorcizado. Rompem os aplausos. Dentro de alguns momentos torna a apagar-se a luz. Brota de novo o círculo mágico. Suggestion Diabolique. D. Margarida tira os sapatos que lhe apertam os pés, machucando os calos. Não faz mal. Estou no camarote. Ninguém vê. Mexe os dedos do pé com delícia. Agora sim, pode ouvir melhor o que ele está tocando, ele, o seu Gilberto. Parece um sonho... Um teatro deste tamanho. Centenas de pessoas finas, bem vestidas, perfumadas, os homens de preto, as mulheres com vestidos decotados — todos parados, mal respirando, dominados pelo seu filho, pelo Betinho! D. Margarida olha com o rabo dos olhos para o marido. Ali está ele a seu lado, pequeno, encurvado, a calva a reluzir foscamente na sombra, a boca entreaberta, o ar pateta. Como fica ridículo nesse smoking! O pescoço descarnado, dançando dentro do colarinho alto e duro, lembra um palhaço de circo. D. Margarida esquece o marido e torna a olhar para o filho. Admira-lhe as mãos, aquelas mãos brancas, esguias e ágeis. E como a música que o seu Gilberto toca é difícil demais para ela compreender, sua atenção borboleteia, pousa no teto do teatro, nos camarotes, na cabeça duma senhora lá embaixo (aquele diadema será de brilhantes legítimos?) e depois torna a deter-se no filho. E nos seus pensamentos as mãos compridas do rapaz diminuem, encolhem, e de novo Betinho é um bebê de quatro meses que acaba de fazer uma descoberta maravilhosa: as suas mãos... Deitado no berço, com os dedinhos meio murchos diante dos olhos parados, ele contempla aquela coisa misteriosa, solta gluglus de espanto, mexe os dedos dos pés, com os olhos sempre fitos nas mãos... De novo D. Margarida volta ao triste passado. Lembra-se daquele horrível quarto que ocupavam no inverno de 1915. Foi naquele ano que o Inocêncio começou a beber. O frio foi a desculpa. Depois, o coitado estava desempregado... Tinha perdido o lugar na fábrica. Andava caminhando à toa o dia inteiro. Más companhias. "Ó Inocêncio, vamos tomar um traguinho?" Lá se iam, entravam no primeiro boteco. E vá cachaça! Ele voltava para casa fazendo um esforço desesperado para não cambalear. Mas mal abria a boca, a gente sentia logo o cheiro de caninha. "Com efeito, Inocêncio! Você andou bebendo outra vez!" Ah, mas ela não se abatia. Tratava o marido como se ele tivesse dez anos e não trinta. Metia-o na cama. Dava-lhe café bem forte sem açúcar, voltava apara a Singer, e ficava pedalando horas e horas. Os galos já estavam cantando quando ela ia deitar, com os rins doloridos, os olhos ardendo. Um dia... De súbito os sons do piano morrem. A luz se acende. Aplausos. D. Margarida volta ao presente. Ao seu lado Inocêncio bate palmas, sempre de boca aberta, os olhos cheios de lágrimas, pescoço vermelho e pregueado, o ar humilde... Gilberto faz curvaturas para o público, sorri, alisa os cabelos. ("Que lindos cabelos tem o meu filho, queria que a senhora visse, comadre, crespinhos, vai ser um rapagão bonito). A escuridão torna a submergir a platéia. A luz fantástica envolve pianista e piano. Algumas notas saltam, como projéteis sonoros. Navarra. Embalada pela música (esta sim, a gente entende um pouco), D. Margarida volta ao passado. Como foram longos e duros aqueles anos de luta! Inocêncio sempre no mau caminho. Gilberto crescendo. E ela pedalando, pedalando, cansando os olhos; a dor nas costas aumentando, Inocêncio arranjava empreguinhos de ordenado pequeno. Mas não tinha constância, não tomava interesse. O diabo do homem era mesmo preguiçoso. O que queria era andar na calaçaria, conversando pelos cafés, contando histórias, mentindo... — Inocêncio, quando é que tu crias juízo? O pior era que ela não sabia fazer cenas. Achava até graça naquele homenzinho encurvado, magro, desanimado, que tinha crescido sem jamais deixar de ser criança. No fundo o que ela tinha era pena do marido. Aceitava a sua sina. Trabalhava para sustentar a casa, pensando sempre no futuro de Gilberto. Era por isso que a Singer funcionava dia e noite. Graças a Deus nunca lhe faltava trabalho. Um dia Inocêncio fez uma proposta: — Escuta aqui, Margarida. Eu podia te ajudar nas costuras... — Minha Nossa! Será que tu queres fazer casas ou pregar botões? — Olha, mulher. (Como ele estava engraçado, com sua cara de fuinha, procurando falar a sério!) Eu podia cobrar as contas e fazer a tua escrita. Ela desatou a rir. Mas a verdade é que Inocêncio passou a ser o seu cobrador. No primeiro mês a cobrança saiu direitinho. No segundo mês o homem relaxou... No terceiro, bebeu o dinheiro da única conta que conseguira cobrar. Mas D. Margarida esquece o passado. Tão bonita a música que Gilberto está tocando agora... E como ele se entusiasma! O cabelo lhe cai sobre a testa, os ombros dançam, as mãos dançam... Quem diria que aquele moço ali, pianista famoso, que recebe os aplausos de toda esta gente, doutores, oficiais, capitalistas, políticos... o diabo! — é o mesmo menino da rua da Olaria que andava descalço brincando na água da sarjeta, correndo atrás da banda de música da Brigada Militar... De novo a luz. As palmas. Gilberto levanta os olhos para o camarote da mãe e lhe faz um sinal breve com a mão, ao passo que seu sorriso se alarga, ganhando um brilho particular. D. Margarida sente-se sufocada de felicidade. Mexe alvoroçadamente com os dedos do pé, puro contentamento. Tem ímpetos de erguer-se no camarote e gritar para o povo: "Vejam, é o meu filho! O Gilberto. O Betinho! Fui eu que lhe dei de mamar! Fui eu que trabalhei na Singer para sustentar a casa, pagar o colégio para ele! Com estas mãos, minha gente. Vejam! Vejam!" A luz se apaga. E Gilberto passa a contar em terna surdina as mágoas de Chopin. No fundo do camarote Inocêncio medita. O filho sorriu para a mãe. Só para a mãe. Ele viu... Mas não tem direito de se queixar... O rapaz não lhe deve nada. Como pai ele nada fez. Quando o público aplaude Gilberto, sem saber está aplaudindo também Margarida. Cinqüenta por cento das palmas devem vir para ela. Cinqüenta ou sessenta? Talvez sessenta. Se não fosse ela, era possível que o rapaz não desse para nada. Foi o pulso de Margarida, a energia de Margarida, a fé de Margarida que fizeram dele um grande pianista. Na sombra do camarote, Inocêncio sente que ele não pode, não deve participar daquela glória. Foi um mau marido. Um péssimo pai. Viveu na vagabundagem, enquanto a mulher se matava no trabalho. Ah! Mas como ele queria bem ao rapaz, como ele respeitava a mulher! Às vezes, quando voltava para casa, via o filho dormindo. Tinha um ar tão confiado, tão tranqüilo, tão puro, que lhe vinha vontade de chorar. Jurava que nunca mais tornaria a beber, prometia a si mesmo emendar-se. Mas qual! Lá vinha um outro dia e ele começava a sentir aquela sede danada, aquela espécie de cócegas na garganta. Ficava com a impressão de que se não tomasse um traguinho era capaz de estourar. E depois havia também os maus companheiros. O Maneca. O José Pinto. O Bebe-Fogo. Convidavam, insistiam... No fim de contas ele não era nenhum santo. Inocêncio contempla o filho. Gilberto não puxou por ele. A cara do rapaz é bonita, franca, aberta. Puxou pela Margarida. Graças a Deus. Que belas coisas lhe reservará o futuro? Daqui para diante é só subir. A porta da fama é tão difícil, mas uma vez que a gente consegue abri-la... adeus! Amanhã decerto o rapaz vai aos Estados Unidos... É capaz até de ficar por lá... esquecer os pais. Não. Gilberto nunca esquecerá a mãe. O pai, sim... E é bem-feito. O pai nunca teve vergonha. Foi um patife. Um vadio. Um bêbedo. Lágrimas brotam nos olhos de Inocêncio. Diabo de música triste! O Betinho devia escolher um repertório mais alegre. No atarantamento da comoção, Inocêncio sente necessidade de dizer alguma coisa. Inclina o corpo para a frente e murmura: — Margarida... A mulher volta para ele uma cara séria, de testa enrugada. — Chit! Inocêncio recua para a sua sombra. Volta aos seus pensamentos amargos. E torna a chorar de vergonha, lembrando-se do dia em que, já mocinho Gilberto lhe disse aquilo. Ele quer esquecer aquelas palavras, quer afugenta-las, mas elas lhe soam na memória, queimando como fogo, fazendo suas faces e suas orelhas arderem. Ele tinha chegado bêbedo em casa. Gilberto olhou-o bem nos olhos e disse sem nenhuma piedade: — Tenho vergonha de ser filho dum bêbedo! Aquilo lhe doeu. Foi como uma facada, dessas que não só cortam as carnes como também rasgam a alma. Desde esse dia ele nunca mais bebeu. No saguão do teatro, terminado o concerto, Gilberto recebe cumprimentos dos admiradores. Algumas moças o contemplam deslumbradas. Um senhor gordo e alto, muito bem vestido, diz-lhe com voz profunda: — Estou impressionado, impressionadíssimo. Sim senhor! Gilberto enlaça a cintura da mãe: — Reparto com minha mãe os aplausos que eu recebi esta noite... Tudo que sou, devo a ela. — Não diga isso, Betinho! D. Margarida cora. Há no grupo um silêncio comovido. Depois rompe de novo a conversa. Novos admiradores chegam. Inocêncio, de longe, olha as pessoas que cercam o filho e a mulher. Um sentimento aniquilador de inferioridade o esmaga, toma-lhe conta do corpo e do espírito, dando-lhe uma vergonha tão grande como a que sentiria se estivesse nu, completamente nu ali no saguão. Afasta-se na direção da porta, num desejo de fuga. Sai. Olha a noite, as estrelas, as luzes da praça, a grande estátua, as árvores paradas... Sente uma enorme tristeza. A tristeza desalentada de não poder voltar ao passado... Voltar para se corrigir, para passar a vida a limpo, evitando todos os erros, todas as misérias... O porteiro do teatro, um mulato de uniforme cáqui, caminha dum lado para outro, sob a marquise. — Linda noite! — diz Inocêncio, procurando puxar conversa. O outro olha o céu e sacode a cabeça, concordando. — Linda mesmo. Pausa curta. — Não vê que sou o pai do moço do concerto... — Pai? Do pianista? O porteiro pára, contempla Inocêncio com um ar incrédulo e diz: — O menino tem os pulsos no lugar. É um bicharedo. Inocêncio sorri. Sua sensação de inferioridade vai-se evaporando aos poucos. — Pois imagine como são as coisas — diz ele. — Não sei se o senhor sabe que nós fomos muito pobres... Pois é. Fomos. Roemos um osso duro. A vida tem coisas engraçadas. Um dia... o Betinho tinha seis meses... umas mãozinhas assim deste tamanho... nós botamos ele na nossa cama. Minha mulher dum lado, eu do outro, ele no meio. Fazia um frio de rachar. Pois o senhor sabe o que aconteceu? Eu senti nas minhas costas as mãozinhas do menino e passei a noite impressionado, com medo de quebrar aqueles dedinhos, de esmagar aquelas carninhas. O senhor sabe, quando a gente está nesse dorme-não-dorme, fica o mesmo que tonto, não pensa direito. Eu podia me levantar e ir dormir no sofá. Mas não. Fiquei ali no duro, de olho mal e mal aberto, preocupado com o menino. Passei a noite inteira em claro, com a metade do corpo para fora da cama. Amanheci todo dolorido, cansado, com a cabeça pesada. Veja como são as coisas... Se eu tivesse esmagado as mãos do Betinho hoje ele não estava aí tocando essas músicas difíceis... Não podia ser o artista que é. Cala-se. Sente agora que pode reclamar para si uma partícula da glória do seu Gilberto. Satisfeito consigo mesmo e com o mundo, começa a assobiar baixinho. O porteiro contempla-o em silêncio. Arrebatado de repente por uma onda de ternura, Inocêncio tira do bolso das calças uma nota amarrotada de cinqüenta mil-réis e mete-a na mão do mulato. — Para tomar um traguinho — cochicha. E fica, todo excitado, a olhar para as estrelas.

215. FERNANDO SABINO. A MULHER DO VIZINHO. Contaram-me que na rua onde mora (ou morava) um conhecido e antipático general de nosso Exército morava (ou mora) também um sueco cujos filhos passavam o dia jogando futebol com bola de meia. Ora, às vezes acontecia cair a bola no carro do general e um dia o general acabou perdendo a paciência, pediu ao delegado do bairro para dar um jeito nos filhos do sueco. O delegado resolveu passar uma chamada no homem, e intimou-o a comparecer à delegacia. O sueco era tímido, meio descuidado no vestir e pelo aspecto não parecia ser um importante industrial, dono de grande fabrica de papel (ou coisa parecida), que realmente ele era. Obedecendo a ordem recebida, compareceu em companhia da mulher à delegacia e ouviu calado tudo o que o delegado tinha a dizer-lhe. O delegado tinha a dizer-lhe o seguinte: — O senhor pensa que só porque o deixaram morar neste país pode logo ir fazendo o que quer? Nunca ouviu falar numa coisa chamada AUTORIDADES CONSTITUÍDAS? Não sabe que tem de conhecer as leis do país? Não sabe que existe uma coisa chamada EXÉRCITO BRASILEIRO que o senhor tem de respeitar? Que negócio é este? Então é ir chegando assim sem mais nem menos e fazendo o que bem entende, como se isso aqui fosse casa da sogra? Eu ensino o senhor a cumprir a lei, ali no duro: dura lex! Seus filhos são uns moleques e outra vez que eu souber que andaram incomodando o general, vai tudo em cana. Morou? Sei como tratar gringos feito o senhor. Tudo isso com voz pausada, reclinado para trás, sob o olhar de aprovação do escrivão a um canto. O sueco pediu (com delicadeza) licença para se retirar. Foi então que a mulher do sueco interveio:— Era tudo que o senhor tinha a dizer a meu marido? O delegado apenas olhou-a espantado com o atrevimento. — Pois então fique sabendo que eu também sei tratar tipos como o senhor. Meu marido não e gringo nem meus filhos são moleques. Se por acaso incomodaram o general ele que viesse falar comigo, pois o senhor também está nos incomodando. E fique sabendo que sou brasileira, sou prima de um major do Exército, sobrinha de um coronel, E FILHA DE UM GENERAL! Morou? Estarrecido, o delegado só teve forças para engolir em seco e balbuciar humildemente: — Da ativa, minha senhora? E ante a confirmação, voltou-se para o escrivão, erguendo os braços desalentado: — Da ativa, Motinha! Sai dessa...

216. FERNANDO SABINO. EMPREGADAS. DESAVENÇA. Entre outras virtudes, as novelas de televisão têm a de enriquecer com novas expressões o vocabulário das empregadas. Só porque a patroa riscou três fósforos para acender o gás e em seguida atirou-os ao chão, a cozinheira exclamou: — A senhora não devia fazer assim! Por causa disso ainda acaba provocando uma desavença no lar. Como a patroa não entendesse e pedisse explicações, a cozinheira esclareceu o que parecia óbvio:— Então isso não pode causar um incêndio? FALAR DIFÍCIL. A empregada de um amigo meu tem mania de falar difícil. Está preparando o enxoval da filha e assegura a todos, com firmeza, que sua filha não se casará enquanto não estiver completamente enxovalhada. Comentário dela, extasiada diante de um buquê de flores que a patroa trouxe da feira: — Ah, mas que flores mais bonitas! Tão sinceras! Tão disfarçadas! Outro dia, o gato da casa começou a se esfregar em suas pernas, ela o espantou com um gesto: — Chiba, gato, infalivelmente! Que gato exterior, meu Deus. Os simples de coração. Foi buscar os óculos da patroa, a pedido desta, e depois perguntou, muito séria: — Afinal de contas, a gente diz "ócris" ou "zócris"? A empregada veio anunciar o almoço: — Gente, tá na hora de murçá. — Não é assim que se fala — corrigiu a patroa. E ela, imperturbável: — Eu sei que é "armuçá". Mas eu quero falar murçá.  O TAL DA TELEVISÃO. Ao chegar em casa, recebi o recado da empregada: — Telefonou um moço para o senhor. — Deixou o nome? — Disse que era o tal da televisão. Tenho vários amigos na televisão. Só a TV Globo está cheia deles. E os da Bandeirantes, da TV Educativa... No dia seguinte, a mesma coisa: — O tal da televisão tornou a telefonar. — Se ligar de novo, pergunta o nome dele. Da terceira vez, perdi a paciência: - Eu não disse que era para perguntar o nome? — Eu perguntei! — protestou ela. — Pois ele tornou a dizer que era o tal da televisão. Cheguei a pensar se não seria alguém que eu tivesse chamado para consertar a televisão — que, aliás, estava em perfeitas condições. Até que ele voltou a telefonar — só que desta vez eu estava em casa: — O tal da televisão está chamando o senhor no telefone. Fui atender. Era o meu amigo Dalton Trevisan. COME E DORME. E minha amiga Glória Machado me conta que recebeu da empregada o seguinte recado: — Seu doutor Alfredo telefonou dizendo que vai levar a senhora com ele hoje de noite no come e dorme. Deixa o Alfredo falar! Ela sabia que o marido é surpreendente e dele tudo se espera — mas não a este ponto. Come e dorme! Que diabo vinha a ser aquilo? Só foi entender quando mais tarde ele voltou do trabalho. Na realidade a convidava para um excelente programa: assistir naquela noite à apresentação no Rio da famosa orquestra de Tommy Dorsey. SÓ UMA VEZ. Uma amiga me conta o que se passou com uma empregadinha sua, a quem um dia mandou que fosse à padaria comprar pão. Algum tempo depois a moça apareceu grávida. Quando a patroa lhe perguntou quem tinha sido, informou: — O padeiro. — Mas você só foi uma vez à padaria! — estranhou a patroa: — Como foi acontecer uma coisa dessas? Ela ergueu os ombros, com um suspiro: — Deus quis...

217. FERNANDO SABINO. MINEIRO POR MINEIRO.  A maneira enrolada com que um mineiro fila cigarro? Aqui vai. Ele estava em São João del-Rei admirando um chafariz, quando viu por ali a rondá-lo um velhinho mirrado e seco, roupa de brim e chapéu na cabeça, que acabou se chegando: — Tá aí preciano, moço? — Estou. Não é bonito? Passou a mão pelo queixo, enquanto buscava assunto: — O senhor não é daqui não, é? — Sou de Minas, mas moro no Rio há muito tempo. — Ah, foi educado lá. — Isso mesmo. — Posso saber qual é a sua graça? O velho ouviu o nome e sacudiu a cabeça. Depois perguntou candidamente:— Por acaso o senhor tem um fósforo aí? Em resposta, o outro estendeu-lhe a caixa de fósforo. O velho correu as mãos a ao longo do paletó, como se procurasse alguma coisa, enquanto dizia: — Quer dizer que o senhor fuma...— Fumo sim — e ele tirou o maço do bolso, acendeu um cigarro: ­ E o senhor? Não fuma?— Dez vez em quando — admitiu o velho. — Aceita um? — Já que o senhor dispõe... O velho tirou com dedos finos um cigarro do maço que lhe era estendido e, certamente para não desperdiçar fósforo, acendeu-o no cigarro do outro. E se despediu, levando a mão ao chapéu: — Obrigado, moço. Muito prazer, viu? DAR NOME AOS BOIS é coisa que mineiro não faz, nem mesmo em Uberaba. Ainda me lembro da eleição para Presidente da República em 55, quando, no mais aceso da campanha, Juarez Távora entrou por Minas adentro e encontrou várias cidades cheias de faixas e cartazes aclamando a sua candidatura. Algum tempo depois é que pôs reparo na sutileza daquela manifestação de apoio:a adesão dos mineiros se exprimia através das palavras "Salve o Nosso Candidato!", "Viva o Futuro Presidente da República!". O nome do candidato não aparecia, por uma questão me­nos de esperteza que de economia: as faixas e cartazes eram os mesmos, serviam para qualquer um deles. DE PASSAGEM por sua terra natal, no interior de Minas, foi visitar uma velha tia, cujo filho ganhara um bom dinheiro na loteria esportiva. Espantou-se ao encontrá-la na mesma casa humilde, vivendo pobremente como sempre viveu, da mão para a boca. Então seu filho milionário não lhe dera nada do que havia ganho? — Deu sim — afirmou ela: — Me mandou um presente. — Que presente ele te mandou, tia? — Duas latas de bolachas. Não podia acreditar: latas de bolachas! Vai ser sovina assim na... — Pelo menos as bolachas deviam estar boas — desconversou, para não desapontar a velha. — Não sei, porque não provei — ela explicou: — Eram latas vazias. Pra guardar mantimento. DESDE QUE ENVIUVOU, ficou morando com os três filhos, todos solteirões. E nunca mais se falou em mulher naquela casa. Até que um dia o filho mais novo, e já nem tão novo assim, conheceu uma moça, gostou da moça, acabou se casando com a moça. Casou e mudou. Tempos depois, indo a Minas visitar o pai e os ir­mãos, não escondeu seu entusiasmo: — Gente, vocês não sabem como mulher é bom! Serve pra tanta coisa... OUÇO A PRÓPRIA sabedoria de Minas na voz de um conterrâneo meu, afirmando com segurança, quando lhe propõem um negócio o seu tanto duvidoso: - Eu topo, mas naquela base do Salim. Reza a crônica mineira que o Salim, inegavelmente turco mas criado em Belo Horizonte, vivia em plena prosperidade, embora se expusesse ao que há de mais temerário em Minas Gerais: era avalista do primeiro que aparecesse. Bastava que lhe pedissem e ele metia logo o seu jamegão em caracteres turcos nas costas do papagaio. Até que um dia começou a pipocar promissória vencida em tudo quanto era Banco. Convocado por telegrama a assumir, o Salim comparecia, contestando a assinatura:— Isto aí não é meu nome. Chamava-se um tradutor juramentado, para que ficasse oficialmente estabelecido que, em vez de assinar seu nome, ele havia se limitado a escrever na promissória, em turco: “Salim fica de fora”.

218. FERNANDO SABINO. MINAS ENIGMA. Minas, além do som, Minas Gerais. (Carlos Drummond de Andrade). Se sou mineiro? Bem, é conforme, dona. (Sei lá por que ela está perguntando!). Sou de Belzonte, uai. Tudo é conforme. Basta nascer em Minas para ser mineiro? Que diabo é ser mineiro, afinal? Inglês misturado com oriental? É fumar cigarro de palha, como o poeta Emílio, de Dores do Indaiá? Autran fuma cachimbo. Tem até quem fume cigarro americano. (No bairro do Calafate havia uma fábrica de "Camel"). Em suma: ser mineiro é esperar pela cor da fumaça. É dormir no chão para não cair da cama. É plantar verde pra colher maduro. É não meter a mão em cumbuca. Não dar passo maior que as pernas. Não amarrar cachorro com lingüiça. Porque mineiro não prega prego sem estopa. Mineiro não dá ponto sem nó. Mineiro não perde trem. Mas compra bonde. Compra. E vende pra paulista. Evém mineiro. Ele não olha: espia. Não presta atenção: vigia só. Não conversa: confabula. Não combina: conspira. Não se vinga: espera. Faz parte do decálogo, que alguém já elaborou. E não enlouquece: piora. Ou declara, conforme manda a delicadeza. No mais, é confiar desconfiando. Dois é bom, três é comício. Devagar que eu tenho pressa. Apólogo mineiro: o boi velho e o boi jovem, no alto do morro — lá embaixo uma porção de vacas pastando. O boizinho, incontido: — Vamos descer correndo, correndo e pegar umas dez? E o boizão, tranqüilamente:— Não: vamos descer devagar, e pegar todas. Mais vale um pássaro na mão. A Academia Mineira, há tempos, pagava um jeton ridículo: duzentos cruzeiros — antigos, é lógico. Um dos imortais, indignado, discursava o seu protesto:— Precisamos dar um jeito nisso! Duzentos cruzeiros é uma vergonha! Ou quinhentos cruzeiros, ou nada! Ao que um colega prudentemente aparteou:— Pera lá: ou quinhentos cruzeiros, ou duzentos mesmo. Quem nasce em Três Corações é tricordiano — haja vista Pelé. Quem nasce em Barbacena tem de escolher a Maternidade: ou é do Zezinho ou do Bias. E a Manchester Mineira, terra do Murilo Mendes? O poeta Nava foi-se embora: "parabéns a Pedro Nava, parabéns a Juiz de Fora". Itabira, calçada de ferro: não aceitou chamar-se Presidente Vargas, continuou digna do itabirano Carlos. E Ouro Preto continua digna de ser vista: ali é a casa do Rodrigo; Renato de Lima, ex-delegado e pianista amador, pintando junto à Casa dos Contos. Afonso é de Paracatu. Em Sabará nasceram Lúcia e Aníbal, além de outros ilustres Machados. Alphonsus, o solitário de Mariana. Os profetas de Congonhas. A cidade de Tiradentes — o que não tinha barbas. O Aleijadinho não tinha mãos. São João del Rei, onde nasceu Otto, o que morrerá batendo papo. Solidário só no câncer? Absolutamente, dona: nas virtudes também, uai. Haja vista a Tradicional Família Mineira, que Deus a tenha. As estações de águas: lembrança de São Lourenço, escrito num copinho. E Lambari, terra de Henriqueta! Monte Santo tem a rua mais iluminada do mundo. E uma ambulância com sirene, que seu filho Castejon arranjou. Itaúna fica num quarto andar do Leblon, no apartamento de Marco Aurélio, o bom. Jeremias, outro bom, mineiro como Ziraldo. Os bonecos de Borjalo só ganharam boca depois que começaram a falar. Mineiro por todo lado! O poeta Pellegrino, como psiquiatra, tem garantida uma numerosa clientela. Amílcar modela Minas em arame. Paulo encontrou Minas depois que saiu de lá. João Leite levou-a para São Paulo, Alphonsus para Brasília, Guilhermino para o Sul. João Camilo ficou. Etiene voltou. Paulo Lima voltou. Iglezias voltou. Jaques voltou. Figueiró continua, Rubião recomeçou. Um Estado de nariz imenso, um estado de espírito: um jeito de ser. Manhoso, ladino, cauteloso, desconfiado — prudência e capitalização. O guarda-chuva da proteção financeira, não como lema do Banco do Magalhães mais o Zé Luís, e sim como regra de conduta: — Meu filho, ouça bem o seu pai: se sair à rua, leve o guarda-chuva, mas não leve dinheiro. Se levar, não entre em lugar nenhum. Se entrar, não faça despesas. Se fizer, não puxe a carteira. Se puxar, não pague. Se pagar, pague somente a sua. Mas todos os princípios se desmoronam diante de um lombo de porco com rodelas de limão, tutu de feijão com torresmos, lingüiça frita com farofa. De sobremesa, goiabada cascão com queijo palmira. Depois, cafezinho requentado com requeijão. Aceita um pão de queijo? biscoito polvilho? brevidade? ou quem sabe uma broinha de fubá? Não, dona, obrigado. As quitandas me apertencem, mas prefiro bolinho de januária, e pronto: estou sastifeito... É a hora e a vez de Guimarães Rosa sorrir e dizer pra cumpadre meu Quelemén: perigoso nada, mira e veja, nas Gerais, essas coisas... Falar de Minas, trem danado, sô. É falar no mundo misterioso de Lúcio Cardoso, Cornélio Pena ou Rosário Fusco, no mundo irônico, esquivo ou pitoresco de Cyro dos Anjos, Oswaldo Alves, Mário Palmério, seus romancistas. E num mundo de gente, seus personagens, que vão de Antônio Carlos a Milton Campos, de Bernardes a Juscelino — vasto mundo! ah, se eu me chamasse Raimundo. Dentro de mim uma corrente de nomes e evocações antigas, fluindo como o Rio das Velhas no seu leito de pedras, entre cidades imemoriais. Leopoldina, doce de manga, terra de meus pais... Prefiro estancá-las no tempo, a exaurir-me em impressões arrancadas aos pedaços, e que aos poucos descobririam o que resta de precioso em mim — o mistério da minha terra, desafiando-me como a esfinge com o seu enigma: decifra-me , ou devoro-te. Prefiro ser devorado.

219. FERNANDO SABINO. MAIS UM NATAL. Aviso num restaurante de Brighton, que o dono fez imprimir no cardápio, à revelia dos garçons: Somos seus amigos e lhe desejamos um Feliz Natal. Por favor, não nos ofenda, dando-nos gorjetas." Junto à porta de saída, entretanto, os garçons fizeram dependurar uma caixinha sob o letreiro: "Ofensas”. E no dia de Natal, como sempre, todos os bares de Londres permanecem fechados. Mas consegui realizar o milagre de encontrar em Chelsea um bar aberto, lá para as dez horas da noite. Meio desconfiado, fui entrando — logo um dos fregueses se adiantou, copo de cerveja na mão: — Perdão, cavalheiro, mas o senhor já foi à igreja hoje? E se justificou estendendo o braço ao redor, para apontar os demais fregueses, que bebiam cerveja em silêncio. — Porque aqui dentro, nós todos já fomos. E sem esperar resposta, passou-me o seu copo de cerveja, pedindo ao barman outro para si. Festejou-se o Natal, já se festeja o Ano Novo. Há, porém, muita gente na triste perspectiva de passar ambas as festas em completa solidão. Como é o caso de Ethel Denham, ma velhinha com mais de oitenta anos de idade. Dona Ethel não tem filhos nem marido: nunca chegou a se casar. Mora sozinha numa pequena casa de Exeter, fruto de sua aposentadoria. Para que não lhe aconteça alguma coisa sem ter a quem apelar, foi instalada à porta de sua casinha uma luz vermelha, que ela pode acender para pedir socorro, em caso de necessidade. Na noite de Natal esta necessidade veio, mais imperiosa do que nunca. A boa velhinha não agüentava a idéia de estar sozinha e passar o Natal sem ninguém. Então acendeu luz de socorro e aguardou os acontecimentos. Em pouco chegava um guarda de serviço, para ver o que tinha acontecido. E viu que não tinha acontecido nada.— Fique um pouquinho — pediu ela. — Vamos conversar um pouco. O guarda teve pena e resolveu ficar. Para não estar sem fazer nada, enquanto conversava fiado com a velhinha, fez um chá, aproveitou e lavou a louça, limpou a cozinha, deu ma arrumação na casa. Para quê! Há gestos de solidariedade e compreensão que exigem outros, pois acostumam mal. Ou acostumam bem, ainda que na simples necessidade de participar da humana convivência. A dona da casa, encantada, na noite seguinte, depois de fazer o jantar, ficou esperando o seu Papai Noel tornar a aparecer. Como ele nunca mais viesse, não teve dúvida: acendeu a luz do pedido de socorro. Em pouco surgia outro guarda, para saber o que havia. — Fique um pouquinho — pediu ela: — O senhor não aceita uma xícara de chá? Mas este estava de serviço mesmo, não era mais noite de Natal nem nada. Então confortou a velhinha como pôde e caiu fora. Ela, desde então, está esperando o primeiro guarda voltar — aquele sim, tão bonzinho que ele é. Não se conformando mais, depois de três noites de espera, vestiu um capote­, enrolou-se num chale e saiu para o frio da rua até a guarnição local, a fim de saber onde andava o seu amigo. Mas não lhe guardara o nome, de modo que o comandante da guarnição, apesar de sua boa vontade, não conseguiu localizá-lo. Agora, a velhinha apela através do jornal, pedindo ao próprio que apareça uma noite dessas, para um dedinho de prosa, para uma xícara de chá. Outros, cuja necessidade material é mais imperiosa ainda que o convívio, tiveram quem apelasse em nome deles durante o Natal. O vigário da minha paróquia, em West Hampstead, resolveu perder a cerimônia, durante a prédica:— Vou ser claro e quem tiver ouvidos para ouvir, ouça: estamos nas vésperas do Natal, é preciso ser generoso, proporcionarmos aos pobres um fim de ano decente. Eles também têm direito. Quero hoje uma coleta mais abundante que nos outros domingos. Falei claro? Pois vou lançar mão de uma parábola, para não perder o hábito, e porque fica mais bonito. Já usei essa parábola em outros Natais, e com grande sucesso. Lá vai ela, prestem atenção. E pôs-se a contar a história daquele inglês que estava passeando pelo campo, como só os ingleses costumam fazer, quando de repente caiu uma chuvarada. Ele, naquele descampado, não tinha onde se esconder. Avistou ao longe uma árvore solitária, correu para lá — mas era uma árvore desgalhada e desfolhada, quase que só tinha tronco. No tronco havia um oco — o homem não teve dúvida: meteu-se no oco da árvore, para se esconder da chuva. Vai daí, no que a chuva amainou, o homem quis sair do oco da árvore, não houve jeito: a água tinha feito inchar a madeira e a passagem, já estreita, estreitara-se ainda mais. Ali estava ele, prisioneiro da árvore, sozinho no meio do campo, jamais sairia dali, certa­mente morreria entalado. Então começou a meditar na estupidez que fora sua vida, sempre preocupado com o próprio bem-estar, sem jamais pensar em seus semelhantes. Nunca lhe ocorrera dar uma esmola para os pobres no Natal, por exemplo. Se freqüentasse a igreja da sua paróquia (e aqui o vigário fazia um parêntese: "que certamente podia ser esta aqui mesmo, ele podia ser um dos senhores que estão me ouvindo"), ele seria sensível a este apelo à sua generosidade. Mas não: gastava dinheiro à toa, com bobagem, nunca abrira mão de um mínimo que fosse para atender à necessidade de alguém. E foi-se sentindo cada vez mais ínfimo, diminuindo diante de si mesmo, com a consciência da sua própria iniqüidade. Deu-se então o milagre: tanto diminuiu, ficou tão pequenino, que conseguiu sair do oco da árvore. E o vigário arremata: — Vamos ter uma estação bem chuvosa este fim de ano! Cuidado com o oco da árvore em que se meterem! Lembrem-se da própria pequenez! Dêem esmolas aos meus pobres! Já o dono de uma área de estacionamento de automóveis onde costumo parar o meu carro, em pleno centro de Londres, deixa-se impregnar à sua maneira do espírito de generosidade reinante no Natal. Tanto assim, que dei com o seguinte aviso ali afixado: "Feliz Natal! Hoje o estacionamento aqui é gratuito. Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade. Em tempo: a paz na terra aos homens de boa vontade termina impreterivelmente à meia-noite."

220. FERNANDO SABINO. JÁ SE TORNOU HÁBITO MEU, em meio a uma conversa, preceder algum comentário por uma introdução:— Como dizia meu pai... Nem sempre me reporto a algo que ele realmente dizia, sendo apenas uma maneira coloquial de dar ênfase a alguma opinião. De uns tempos para cá, porém, comecei a perceber que a opinião, sem ser de caso pensado, parece de fato corresponder a alguma coisa que Seu Domingos costumava dizer. Isso significará talvez — Deus queira — insensivelmente vou me tornando com o correr dos anos cada vez mais parecido com ele. Ou, pelo menos, me identificando com a herança espiritual que dele recebi. Não raro me surpreendo, antes de agir, tentando descobrir como ele agiria em semelhantes circunstâncias, repetindo uma atitude sua, até mesmo esboçando um gesto seu. Ao formular uma idéia, percebo que estou concebendo, para nortear meu pensamento, um princípio que se não foi enunciado por ele, só pode ter sido inspirado por sua presença dentro de mim.— No fim tudo dá certo... Ainda ontem eu tranqüilizava um de meus filhos com esta frase, sem reparar que repetia literalmente o que ele costumava dizer, sempre concluindo com olhar travesso:— Se não deu certo, é porque ainda não chegou no fim. Gosto de evocar a figura mansa de Seu Domingos, a quem chamávamos paizinho, a subir pausadamente a escada da varanda de nossa casa, todos os dias, ao cair da tarde, egresso do escritório situado no porão. Ou depois do jantar, sentado com minha mãe no sofá de palhinha da varanda, como namorados, trocando notícias do dia. Os filhos guardavam zelosa distância, até que ela ia aos seus afazeres e ele se punha à disposição de cada um, para ouvir nossos problemas e ajudar a resolvê-los. Finda a última audiência, passava a mão no chapéu e na bengala e saía para uma volta, um encontro eventual com algum amigo. Regressava religiosamente uma hora depois, e tendo descido a pé até o centro, subia sempre de bonde. Se acaso ainda estávamos acordados, podíamos contar com o saquinho de balas que o paizinho nunca deixava de trazer. Costumava se distrair realizando pequenos consertos domésticos: uma bóia de descarga, a bucha de uma torneira, um fusível queimado. Dispunha para isso da necessária habilidade e de uma preciosa caixa de ferramentas em que ninguém mais podia tocar. Aprendi com ele como é indispensável, para a boa ordem da casa, ter à mão pelo menos um alicate e uma chave de fenda. Durante algum tempo andou às voltas com o velho relógio de parede que fora de seu pai, hoje me pertence e amanhã será de meu filho: estava atrasando. Depois de remexer durante vários dias em suas entranhas, deu por findo o trabalho, embora ao remontá-lo houvesse sobrado umas pecinhas, que alegou não fazerem falta. O relógio passou a funcionar sem atrasos, e as batidas a soar em horas desencontradas. Como, aliás, acontece até hoje. Tinha por hábito emitir um pequeno sopro de assovio, que tanto podia ser indício de paz de espírito como do esforço para controlar a perturbação diante de algum aborrecimento.— As coisas são como são e não como deviam ser. Ou como gostaríamos que fossem. Este pronunciamento se fazia ouvir em geral quando diante de uma fatalidade a que não se poderia fugir. Queria dizer que devemos nos conformar com o fato de nossa vontade não poder prevalecer sobre a vontade de Deus - embora jamais fosse assim eloqüente em suas conclusões. Estas quase sempre eram, mesmo, eivadas de certo ceticismo preventivo ante as esperanças vãs:— O que não tem solução, solucionado está. E tudo que acontece é bom — talvez não chegasse ao cúmulo do otimismo de afirmar isso, como seu filho Gerson, mas não vacilava em sustentar que toda mudança é para melhor: se mudou, é porque não estava dando certo. E se quiser que mude, não podendo fazer nada para isso, espere, que mudará por si. Às vezes seus princípios pareciam confundir-se com os da própria sabedoria mineira: esperar pela cor da fumaça, não dar passo maior do que as pernas, dormir no chão para não cair da cama. Os dele eram mais singelos:— Mais vale um apertinho agora que um apertão o resto da vida.— Negócio demorado acaba não saindo.— Dinheiro bom em coisa boa.— Antes de entrar, veja por onde vai sair. Um dia me disse, ao me surpreender tentando armar um brinquedo qualquer com mãos desajeitadas:— Meu filho, tudo que é bem feito se faz com os dedos, não com as mãos. Tenho tido ocasião ao longo da vida de observar como é procedente este seu ensinamento. A mão é grossa, pesada, insensível. Se não fossem os dedos de nada serviria, a não ser para dar bofetadas. Os dedos são refinados, sensitivos, e a eles devemos tudo o que é bem feito e acabado: do mais requintado trabalho manual às mais complicadas operações, da mais fina sensação do tacto à mais terna das carícias.— Se o cafezinho foi bom, melhor não aceitar o segundo: será sempre pior que o primeiro.Como tudo mais nessa vida: uma viagem, uma mulher: não repetir, pois a emoção jamais será a mesma da primeira vez. E não desanimar, pois se nascemos nus e estamos vestidos, já estamos no lucro. Nada neste mundo é cem por cento perfeito. Se contamos com mais de cinqüenta por cento, também já estamos no lucro. Quando conseguimos o que é apenas bom, naturalmente devemos continuar aspirando o melhor, se possível - mas perfeição absoluta, só Deus. E creio que Seu Domingos, homem íntegro, reto e temente a Deus, hoje em Sua companhia, não consideraria sacrilégio comentar, naquele seu jeito ladino:— E assim mesmo, olhe lá... Seus conselhos eram de tamanha simplicidade que tinham a força de provérbios nascidos da voz do povo: nada como um dia depois do outro, um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar, tudo tem seu tempo. Fosse ele influenciado por leituras piedosas, poderíamos mesmo detectar, aqui e ali, vestígios de inspiração bíblica: tempo de semear, tempo de colher...— É o que nos acontece. Há uma diferença sutil entre admitir que as coisas são como são, não como deviam ser, e reconhecer que é o que nos acontece. Aqui, o comentário não pretendia refletir a impossibilidade de modelar (com os dedos) os fatos de acordo com a nossa vontade, mesmo que esta esteja certa. Exprime antes a humilde aceitação da nossa precária condição humana, como frágeis criaturas de Deus. Procura se solidarizar com a desgraça alheia, como a dizer que também estamos sujeitos a ela, somos todos irmãos na mesma atribulação. É o que nos acontece. Portanto, alegremo-nos! Uma amiga minha, que não o conheceu, busca nele se inspirar quando afirma, sempre que se vê diante de algum contratempo:— Antes de mais nada, fica estabelecido que ninguém vai tirar o meu bom humor. Acabei levando esta disposição de minha amiga às últimas conseqüências: o mais importante é não perder a capacidade de rir de mim mesmo. Como Cartola e Carlos Cachaça naquele samba, às vezes dou gargalhadas pensando no meu passado.. . E cada vez acredito mais no ensinamento recebido não sei se de meu pai ou diretamente de Confúcio, segundo o qual há várias maneiras de realizar um desejo, sendo uma delas renunciar a ele. Como adverte outro sábio, se desejamos obstinadamente alguma coisa, é melhor tomar cuidado, porque pode nos suceder a infelicidade de consegui-la. Tudo isso que de uns tempos para cá vem me vem ocorrendo, às vezes inconscientemente, como legado de meu pai, teve seu coroamento há poucos dias, quando eu ia caminhando distraído pela praia. Revirava na cabeça, não sei a que propósito, uma frase ouvida desde a infância e que fazia parte de sua filosofia: não se deve aumentar a aflição dos aflitos. Esta máxima me conduziu a outra, enunciada por Carlos Drummond de Andrade no filme que fiz sobre ele, a qual certamente Seu Domingos perfilharia: não devemos exigir das pessoas mais do que elas podem dar. De repente fui fulminado por uma verdade tão absoluta que tive de parar, completamente zonzo, fechando os olhos para entender melhor. No entanto era uma verdade evangélica, de clareza cintilante como um raio de sol, cheguei a fazer uma vênia de gratidão a Seu Domingos por me havê-la enviado: Só há um meio de resolver qualquer problema nosso: é resolver primeiro o do outro. Com o tempo, a cidade foi tomando conhecimento do seu bom senso, da experiência adquirida ao longo de uma vida sem maiores ambições: Seu Domingos, além de representante de umas firmas inglesas, era procurador de partes — solene designação para uma atividade que hoje talvez fosse referida como a de um despachante. A princípio os amigos, conhecidos, e depois até desconhecidos passaram a procurá-lo para ouvir um conselho ou receber dele uma orientação. Era de se ver a romaria no seu escritório todas as manhãs: um funcionário que dera desfalque, uma mulher abandonada pelo marido, um pai agoniado com problemas do filho — era gente assim que vinha buscar com ele alívio para a sua dúvida, o seu medo, a sua aflição. O próprio Governador, que não o conhecia pessoalmente, certa vez o consultou através de um secretário, sobre questão administrativa que o atormentava. Não se falando nos filhos: mesmo depois de ter saído de casa, mais de uma vez tomei trem ou avião e fui colher uma palavra sua que hoje tanta falta me faz. Resta apenas evocá-la, como faço agora, para me servir de consolo nas horas más. No momento, ele próprio está aqui a meu lado, com o seu sorriso bom.

221. FERNANDO SABINO. O Homem Nu. Ao acordar, disse para a mulher:— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa.  Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum. — Explique isso ao homem — ponderou a mulher.— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém.   Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago. Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão.  Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento. Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa. Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro. Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares...  Desta vez, era o homem da televisão! Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:— Maria, por favor! Sou eu! Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão. Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.— Ah, isso é que não!  — fez o homem nu, sobressaltado. E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!— Isso é que não — repetiu, furioso. Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar.  Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador.  Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer?  Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si. Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso.  — Imagine que eu... A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:— Valha-me Deus! O padeiro está nu! E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:— Tem um homem pelado aqui na porta! Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:— É um tarado! — Olha, que horror! — Não olha não! Já pra dentro, minha filha! Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta. — Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir. Não era: era o cobrador da televisão.

222. FERNANDO SABINO. Mal ele entrou em casa, a mulher o tomou pelas mãos, ansiosa: - Estava aflita para você chegar. E sussurrou, apontando dramaticamente para os lados da cozinha: - Tem um homem no quarto da Valdirene. Sacudiu a cabeça com irritação: - Desde o primeiro dia eu achei que essa menina não era boa coisa. Ela nunca me enganou. Valdirene, a jovem empregada, uma mulata de olhos grandes, não faria feio num palco. - Como e que você sabe? - perguntou ele, para ganhar tempo. Não partilhava da opinião da mulher: desde o primeiro dia achou que a Valdirene era ótima. - Sei porque vi. Escutei um ruído qualquer ai fora no corredor, olhei pelo olho mágico, e vi quando ela punha ele para dentro pela porta de serviço. - Ele quem? - O homem. Não sei quem é, só sei que é um homem. Deve ser o namorado dela, ou o amante, tanto faz. O certo e que os dois estão trancados lá no quarto faz um tempão. - Vai ver que já saiu. - Não saiu não, que eu não sou boba, fiquei de olho. Esta lá dentro com ela até agora. - E o que e que você quer que eu faça? - Quero que bote ele pra fora, essa e boa. - Por quê? Ela botou as mãos na cintura: - Por quê? Você ainda pergunta por que? Então tem cabimento a gente deixar que a empregada receba homens no quarto dela? O que e que essa menina está pensando que minha casa é? Um motel? Se você não for lá, eu mesma vou. - Espera ai, vamos com calma, mulher. Você tem razão, mas deixa a gente raciocinar um pouco. Não podemos é perder a cabeça. Pode ser perigoso. Como é que ele é? - Não cheguei a ver direito. Só vi que era um homem. Para mim, basta. - Não posso ir lá no quarto dela sem mais nem menos. Quem sabe é algum parente? Um irmão, talvez... - Um irmão, talvez... Você tem cada uma! Pior ainda: que é que um irmão tem de ficar fazendo trancado no quarto com a irmã como eles dois estão? Você tem de pôr esse homem pra fora. - E se estiver armado? Ele pode muito bem estar armado. - Já que você está com medo... - Não estou com medo. Só que temos de agir com calma. Vamos ver como a gente sai dessa. Deixa comigo. Ele respirou fundo e se meteu pela cozinha, ganhou a área de serviço, ficou à escuta. Nada, tudo quieto e às escuras no quarto da Valdirene. Bateu de leve na porta: - Valdirene. Via-se pelas frestas da veneziana na própria porta que o quarto continuava no escuro. Ele bateu de novo: - Valdirene, está me ouvindo? Valdirene! Escutou alguém se mexendo lá dentro e a voz estremunhada da moça: - Senhor? - Tem alguém com você ai dentro, Valdirene? - Tem não senhor. - Abra um instante, por favor. Em pouco ela abria a porta, furtivamente, e o encarava sem piscar. Vestia um baby-doll pequenino e transparente que, sob a luz mortiça vinda da área, deixava quase todo seu corpo à mostra. - Acenda essa luz, minha filha. Mais para vê-la melhor do que para olhar o quarto, pois mesmo no escuro podia-se verificar que ali dentro não havia mais ninguém. Luz acesa, ela se protegia discretamente com os braços, enquanto ele dava uma olhada rápida por cima do seu ombro: - Tudo bem. Desculpe o incômodo. Boa noite. Voltou para a sala, onde a mulher o aguardava, tensa de expectativa. - E então? - Não tem ninguém. - Como não tem ninguém? Pois se eu vi o homem entrando! - Se viu entrando, não viu saindo. O certo é que não tem ninguém no quarto da Valdirene, além dela própria. Vamos dormir. - Como é que eu posso ir dormir sabendo que tem um estranho dentro de casa? Você vai voltar lá e olhar direito. - Eu olhei direito. Se não acredita, vai lá e olha você. - Quem e o homem nesta casa? Se você não for olhar eu não fico aqui dentro nem mais um minuto. Vou direto à polícia. Ele ergueu os braços e os deixou cair, com um suspiro resignado: - Essa mulher, meu Deus. Agora é você que está com medo. Direto à polícia. Como se fosse um crime... Tudo bem, eu vou lá olhar direito. Voltou a bater na porta da empregada: - Valdirene. Desta vez ela respondeu logo: - Senhor? - Abra ai um instante, por favor. - Sim senhor. Ela abriu e foi logo acendendo a luz. Estimulado pela nova oportunidade de vê-la tão de perto, ele perdeu a cerimônia e entrou no quarto. Sempre de olho nela e ouvido atento à mulher lá na sala. Ali dentro só cabia a cama e o armariozinho com uma cortina, atrás da qual ninguém poderia se esconder. Ainda assim ergueu o pano para se certificar. Satisfeito, voltou-se para a moça que, ao sentir seus olhos tão próximos, abaixara modestamente os dela: - Desculpe, minha filha. É que minha mulher, você sabe, quando ela cisma uma coisa... Mas pode dormir sossegada. Boa noite. Na sala, a mulher voltou a questioná-lo: - Você olhou direito desta vez? - Não há como olhar errado. Um quarto deste tamaninho! Olhei o que tinha para olhar: a Valdirene e a cama. - A Valdirene e a cama? O que você quer dizer com isso? - Não quero dizer coisa nenhuma. É que ali dentro não cabe mais nada além da Valdirene e da cama. - Não é isso que parece estar insinuando, com essa sua cara. - Que é que tem minha cara? Você é que insinuou que tinha um homem lá dentro, não fui eu. Não me admiraria nada. Mas acontece que não tem. Só faltou olhar debaixo da cama. - Não admiraria nada - ela o imitou, com um trejeito. E ordenou, braço estendido: - Pois então vai olhar debaixo da cama. - Essa não! - relutou ele: - Já disse que não cabe ninguém... Mas acabou indo. Pobre da menina, de novo importunada: - Me desculpe, Valdirene, mas é preciso que você abra aí outra vez. Ela acendeu a luz, abriu a porta e deu-lhe passagem. Seus olhos o acompanharam impassíveis, quando ele entrou e se agachou para olhar debaixo da cama. De quatro, sentindo-se ridículo naquela postura, ele baixou a cabeça até que a ponta do queixo tocasse o chão, e enfiou-a sob o estrado. Seu nariz esbarrou de cheio em algo branco e macio - era nada menos que o traseiro de um homem. - Oi - assustou-se, recuando. - Oi - fez o homem, como um eco, encolhendo-se ainda mais. Ele se ergueu. perturbado, limpou a garganta, procurando dar firmeza à voz: - O senhor tem um minuto pra sair deste quarto. Um último olhar para Valdirene, como a dizer que sentia muito mas não podia deixar de cumprir o seu dever, e foi ter com a mulher na sala: - Tinha sim. Tinha um homem debaixo da cama. Está satisfeita? - Eu não disse? E o que é que você fez? - Mandei que ele se pusesse pra fora. É o tempo de se vestir. - Meu Deus, ele estava nu? - Que é que você queria? Não sei é como ele pôde caber lá debaixo. Imagino o susto dele. E o da Valdirene, coitadinha. No dia seguinte, mal amanheceu, ela despedia a Valdirene, coitadinha.

223. FERNANDO SABINO. Tenho a informar que arquivarei a partir de hoje, espero que para todo o sempre, esta máquina de escrever na qual venho juntando palavras como Deus é servido, desde que me entendo por gente. Não a mesma, evidentemente. Ao longo de todos estes anos, da velha Remington Rand no escritório de meu pai, passei pela Underwood, a Olympia, a Hermes Baby, a Hermes 3.000, a Smith Corona, a Olivetti, a IBM de bolinha, algumas de mesa, outras portáteis ou semi-portáteis. Todas mecânicas, com exceção desta última, que é elétrica. Pois agora aqui estou, pronto a me passar para algo mais sério, iniciar uma nova aventura amorosa. Sim, porque segundo me ensinou minha filha, que entende de ambos os assuntos, os computadores e as mulheres têm uma lógica que lhes é própria e que devemos respeitar. Pois vamos ver como esta computa - e nem o palavrão contido em seu nome sugere-me outra coisa senão que se trata de minha nova e casta namorada. Assim como para o homem tudo se ilumina na presença da mulher amada, para o escritor este invento é uma forma igualmente luminosa de realizar a sua paixão pela palavra escrita. Não é uma simples máquina de escrever, que funciona como intermediária entre o escritor e a escrita, às vezes se tornando um obstáculo para a criação literária. Ao contrário, o computador estabelece uma surpreendente intimidade com o texto do momento mesmo de sua elaboração. Permite emendas, acréscimos, supressões, transposições de frases e parágrafos com uma velocidade milagrosa. Deve ter alguém lá dentro comandando tudo, provavelmente uma mulher, uma japonesinha, na certa. Ela dá instruções, chama nossa atenção se esquecemos de ligar a impressora, conversa com a gente: "Operação incorreta. Tente de novo". E quando dá certo: "Operação executada com êxito". Só falta acrescentar: "Meus parabéns. Eu te amo!" Escrever, que durante tantos anos constituiu um tormento para mim, passará a ser um caso de amor. Nunca mais olharei sequer para a máquina de escrever. Serei radical: ou entregar-me a este conúbio com o computador, no suave embalo de suas teclas e no luzente sortilégio de suas letras, ou regredir à solidão do celibato, em companhia da austera e rascante pena de pato. Imagino só a felicidade de Tolstoi, se pudesse ter escrito todo a "Guerra e Paz" com a mesma facilidade com que passei a escrever esta crônica no computador. Pois então lá vai: O melhor de um computador está nisso: poder torocar uma palavra a vo tade, mudar de idéia sem mudar o papel. Sem usar o papel. Uma das vantagens do computador é poder corrigir tuDO o fimmmm. Não precisa de-caneta. Máquina de escrever e canheta já eram. Num com puta dor osonho de um escritor se realiza: o da perfeição absoluta de uma semntença, graças à facilidade em, mudar palavras, cortar, acrescentar. O sonho do escritor e de toda a humanidade. O SONHO DA HUMANIDADE DE ATINGIR A PERFEIÇÃO. atingir a perfeição. A perfeição que a humanidade sonha em atingir Sonha atingir. Que o homem sonha alcançar conseguir realizar. Muita gentye fica admirada ao percebner a facilidade com que Muita gente se admira com a facilidade. Muitos leitores se admirão com a aparente facilidade com que escreverei fraes quae perfeitas escrevo sentenças textos quase per-feitos depois que abandonei troquei a máquina de escrever esta sim uma engenhoca de tração animal por esta fabulosa invençção esta prodigiosa admirável estupenda assombrosa espanto-sa m,iraculosa, extraordinária maravilhosa até pa-rece que os sinônimos fabulosa ocorrem com mais faci-lidade sem precisar consultar dicionários d sinônimos, Desde que é mais fácil revisar e editar um texto computado? Compu-torizado computadorizado do que escrito a mÁQUINA OU A MÂO torna muito extremamente difícil impossível parar de revisae-editarosuficiente para resultar çuma frase legível quanto mais uma crônica sobre a nova namoraddaPOISStãa pois então vai assim meso!!!#@@@***boa x.sorte procês...

224. FERNANDO SABINO. Mal iniciara seu discurso, o deputado embatucou:— Senhor Presidente: eu não sou daqueles que... O verbo ia para o singular ou para o plural? Tudo indicava o plural. No entanto, podia perfeitamente ser o singular:— Não sou daqueles que... Não sou daqueles que recusam... No plural soava melhor. Mas era preciso precaver-se contra essas armadilhas da linguagem — que recusa? — ele que tão facilmente caia nelas, e era logo massacrado com um aparte. Não sou daqueles que... Resolveu ganhar tempo:— ...embora perfeitamente cônscio das minhas altas responsabilidades como representante do povo nesta Casa, não sou... Daqueles que recusa, evidentemente. Como é que podia ter pensado em plural? Era um desses casos que os gramáticos registram nas suas questiúnculas de português: ia para o singular, não tinha dúvida. Idiotismo de linguagem, devia ser.— ...daqueles que, em momentos de extrema gravidade, como este que o Brasil atravessa... Safara-se porque nem se lembrava do verbo que pretendia usar:— Não sou daqueles que... Daqueles que o quê? Qualquer coisa, contanto que atravessasse de uma vez essa traiçoeira pinguela gramatical em que sua oratória lamentavelmente se havia metido de saída. Mas a concordância? Qualquer verbo servia, desde que conjugado corretamente, no singular. Ou no plural:— Não sou daqueles que, dizia eu — e é bom que se repita sempre, senhor Presidente, para que possamos ser dignos da confiança em nós depositada... Intercalava orações e mais orações, voltando sempre ao ponto de partida, incapaz de se definir por esta ou aquela concordância. Ambas com aparência castiça. Ambas legítimas. Ambas gramaticalmente lídimas, segundo o vernáculo:— Neste momento tão grave para os destinos da nossa nacionalidade. Ambas legítimas? Não, não podia ser. Sabia bem que a expressão "daqueles que" era coisa já estudada e decidida por tudo quanto é gramaticóide por aí, qualquer um sabia que levava sempre o verbo ao plural:— ...não sou daqueles que, conforme afirmava... Ou ao singular? Há exceções, e aquela bem podia ser uma delas. Daqueles que. Não sou UM daqueles que. Um que recusa, daqueles que recusam. Ah! o verbo era recusar:— Senhor Presidente. Meus nobres colegas. A concordância que fosse para o diabo. Intercalou mais uma oração e foi em frente com bravura, disposto a tudo, afirmando não ser daqueles que...— Como? Acolheu a interrupção com um suspiro de alívio:— Não ouvi bem o aparte do nobre deputado. Silêncio. Ninguém dera aparte nenhum.— Vossa Excelência, por obséquio, queira falar mais alto, que não ouvi bem — e apontava, agoniado, um dos deputados mais próximos.— Eu? Mas eu não disse nada...— Terei o maior prazer em responder ao aparte do nobre colega. Qualquer aparte. O silêncio continuava. Interessados, os demais deputados se agrupavam em torno do orador, aguardando o desfecho daquela agonia, que agora já era, como no verso de Bilac, a agonia do herói e a agonia da tarde.— Que é que você acha? — cochichou um.— Acho que vai para o singular.— Pois eu não: para o plural, é lógico. O orador seguia na sua luta:— Como afirmava no começo de meu discurso, senhor Presidente... Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa. Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir ajuda ao próprio Presidente da mesa: por favor, apura aí pra mim, como é que é, me tira desta...— Quero comunicar ao nobre orador que o seu tempo se acha esgotado.— Apenas algumas palavras, senhor Presidente, para terminar o meu discurso: e antes de terminar, quero deixar bem claro que, a esta altura de minha existência, depois de mais de vinte anos de vida pública... E entrava por novos desvios:— Muito embora... sabendo perfeitamente... os imperativos de minha consciência cívica... senhor Presidente... e o declaro peremptoriamente... não sou daqueles que... O Presidente voltou a adverti-lo que seu tempo se esgotara. Não havia mais por que fugir:— Senhor Presidente, meus nobres colegas! Resolveu arrematar de qualquer maneira. Encheu o peito de desfechou:— Em suma: não sou daqueles. Tenho dito. Houve um suspiro de alívio em todo o plenário, as palmas romperam. Muito bem! Muito bem! O orador foi vivamente cumprimentado.

225. FERNANDO SABINO. Dizem que tem uma memória extraordinária e sabe tudo sobre futebol. Suas lembranças desafiam contestação. Um dia, porém, viu-se numa reunião em que se achava outro com igual prestígio. E os dois acabaram se defrontando:— Você se lembra da primeira Copa Roca disputada no Brasil? - perguntou-lhe o outro.— Se me lembro. E disse o dia, o mês e o ano.— Fazia um calor danado.— Isso mesmo: um calor danado. Lembra-se da formação do time brasileiro?— Quem é que não se lembra? Cantou para o outro o time todo. O outro ia confirmando com a cabeça. Fez apenas uma ressalva quanto ao extrema-esquerda.— Eu sei: mas estou falando o time titular. Agora vou lhe dizer os reservas. Declamou a lista dos reservas, e sugeriu, por sua vez:— Você naturalmente se lembra da formação do time argentino. O outro embatucou: o time argentino? Não, isso ninguém era capaz de dizer.— Pois então tome lá. E recitou o time argentino. O outro, meio ressabiado, procurou recuperar o terreno perdido:— Para nomes não sou muito bom. Mas me lembro que o goleiro argentino segurou um pênalti. - Um pênalti mal cobrado, foi por isso: faltavam sete minutos para acabar o jogo. O outro, como que ocasionalmente, disse quem cobrara o pênalti, fazendo nova investida:— E lhe digo mais: o juiz apitou quinze "fouls" contra nós no primeiro tempo, dezessete contra eles. No segundo tempo...— Está aí; isso eu não sou capaz de garantir. Tudo mais sobre o jogo eu lhe digo. Aliás, sobre esse jogo, ou qualquer outro que você quiser, de 1929 para cá. Mas essa história de número de "fouls". . Como é que você sabe disso com tanta certeza?— Sei — tornou o outro, triunfante — porque fui o juiz da partida. Com essa ele não contava. O juiz da partida.— Como é mesmo o seu nome? Ficou a rolar na língua o nome do outro.— Você tinha algum apelido? O outro deu uma gargalhada:— Juiz, com apelido? Naquele tempo eu já me fazia respeitar.— Sei, sei — e ele sacudiu a cabeça, pensativo.— Engraçado, me lembro perfeitamente do juiz, não se parecia com você. Chamava-se... Espera aí: se não me falha a memória...— Ela costuma falhar, meu velho. Ao redor a expectativa dos circunstantes crescia, ante o duelo dos dois entendidos.—...o juiz era grande, pesadão, anulou um gol nosso, houve um começo de sururu...— Emagreci muito desde então. E anulei o gol porque já tinha apitado quando ele chutou. Houve realmente um ligeiro incidente, mas fiz valer minha autoridade e o jogo prosseguiu.— Você já tinha apitado...— Já tinha apitado. Os dois se olharam em silêncio.— Quer dizer que quem apitou aquele jogo foi você - recomeçou ele, intrigado.— Fui eu. E lhe digo mais: quando Fausto fez aquele gol de fora da área...— Já na prorrogação.— Na prorrogação: quiseram protestar dizendo que ele estava impedido...— Não estava impedido.— Eu sei que não estava. Tanto assim que não anulei. Mesmo porque, a regra naquele tempo era diferente.— Nem naquele tempo nem hoje nem nunca aquilo seria impedimento. Se o juiz me anula aquele gol...—...teria que anular também o primeiro gol dos argentinos...—...que foi feito exatamente nas mesmas condições. Calaram-se um instante, medindo forças. Mas o outro teve a infelicidade de acrescentar:— Mesmo que o bandeirinha tivesse assinalado... Ele saltou de súbito, brandindo o dedo no ar:— Já sei! isso mesmo! Você não foi juiz coisa nenhuma! Você era o bandeirinha! Me lembro muito bem de você: era mais gordo mesmo, todo agitadinho, corria se requebrando... Tinha o apelido de Zuzú. O outro não teve forças para negar e se rendeu à memória do adversário. Mesmo porque, encafifado, fazia uma cara de Zuzú.

226. FERNANDO SABINO. No dia do enterro de Churchill ele foi barrado pela Polícia nada menos que cinco vezes. Tinha credencial para se postar com as suas cinco câmeras junto ao Parlamento, mas cismou de entrar na Catedral de São Paulo, onde só eram admitidos os fotógrafos oficiais: meto uma conversa, estou aqui, estou lá dentro. O guarda se postava em seu caminho, ele tranqüilamente metia sua conversa em português, desconversava, driblava, embrulhava: -- Deixa pra lá, meu chapa: proibido nada. Pra cima de mim? Na quinta vez o guarda perdeu a paciência e o levou em cana. Mas não saber inglês sempre tinha suas vantagens: passado para as mãos dos policiais do carro de presos, tantas falou e aconteceu, que em pouco voltava, lampeiro, para junto da catedral: eu não dizia? Olha o papai aqui.  Agora vou entrar aí e mandar minhas brasinhas. E acabou entrando. Depois do que, resolveu fazer uma reportagem fotográfica de Londres, vista de cima. Vista de cima de onde? Londres não tem cima. Só se fosse do Hotel Hilton, onde não admitem fotógrafos, para que a intimidade da Família Real, nos jardins do Palácio Buckingham não seja devassada. Mas ele tinha melhor: para que, então, havia sido inventado o helicóptero? -- Onde é que você vai arranjar helicóptero? Ainda mais sem falar inglês. Vai levar no mínimo uma semana. Deve precisar de licença especial. --  Que licença especial! -- e ele peneirava o ar com a mão espalmada: --   Meto aí umas conversas, você vai ver só. No mesmo dia rodava de helicóptero nos céus de Londres, fotografando o que queria e bem entendia. À noite foi ao pub tomar uma cerveja. O lugar estava repleto, derramava freguês pela calçada.  Ele abriu caminho com as mãos, como se nadasse de peito: -- Vai que é mole, minha gente -- e foi se enfiando bar adentro. Mas era impossível alcançar o balcão, atrás do qual o dono se desdobrava passando canecas espumantes aos mais afortunados que se comprimiam ao seu redor. Ele bateu no ombro do inglês que lhe barrava a frente, estendeu-lhe uma nota: -- Olha aqui, ó velhinho, vê se me encomenda uma cerveja ao bigodudo lá do balcão. Vai passando pra frente. -- I beg your pardon? -- o inglês o olhava atônito. -- Bir, bir -- esclareceu ele, correndo o mesmo risco daquele principiante em inglês que sentia não estar fazendo progressos, pois toda vez que pedia uma cerveja lhe traziam um urso. Com uma mímica desabusada, que abria em torno uma clareira de empurrões, conseguiu explicar ao outro o seu propósito. E batia no peito como Tarzan: -- Mim brasileiro. A nota foi passando de mão em mão, e apontavam: -- Uma cerveja. Para um brasileiro ali atrás. Em pouco veio voltando por sobre as cabeças uma caneca de cerveja.  Atrás dela voltou o troco. Todos achavam graça, inclusive o dono do bar, e procuravam colaborar: -- Vai passando. Muito obrigado. Estava inaugurado um novo sistema de atendimento, dentro da ética secular dos bares ingleses. Ele já sugeria ao seu vizinho: -- Quer uma cerveja? Me dá seu dinheiro aqui. Você aí da frente, vai levando. Para um terceiro abriu caminho novo, usando uma série de mãos solicitar à sua direita, em linha torta até o balcão. Estabeleceu mais uma conexão à sua esquerda, aos poucos foi lançando por sobre as cabeças várias rotas aéreas de dinheiro na ida e cerveja na volta, às vezes seguida do troco e de respingos de espuma. Em poucos minutos o bar era um pandemônio: moedas circulavam de mão em mão, canecas eram passadas daqui para ali, algumas se entornavam.  Atrás do balcão, o bigodudo punha as mãos na cabeça, incapaz de atender a um de cada vez, ameaçava botar todo mundo para fora antes da hora de fechar. Onde, desde os tempos de Dickens reinava o mais compungido silêncio e a mais perfeita ordem, baixou pela primeira vez na História a mais animada das confusões e o contentamento era geral. Os fregueses riam, alegres, e se prestavam a multiplicar o movimento, estendendo os braços como remos naquele mar de cabeças: -- Para quem essa cerveja? -- Pega ali o meu troco. -- Mais uma para mim! O sistema do mutirão se alastrara pelo bar inteiro, já ninguém mais sabendo de quem para quem. A horas tantas ele se despediu com um tapa nas costas dos que o circundavam, à brasileira, quando a animação ia no auge e se transformava em cantoria: -- Este bar já está chato. Vou me mandar e inaugurar outro.

227. FREI BETTO. A BÍBLIA PELA ÓTICA FEMININA. A menina marcava as páginas onde estavam impressas aquelas leis absurdas com a intenção de, mais tarde, arrancá-las. 0 pai explicou-lhe que era inútil, havia muitos outros livros com as mesmas leis quisesse mudá-las, teria de convencer as pessoas que faziam leis. Lida por esta ótica, a Bíblia revela a igualdade entre homens e mulheres e denuncia a leitura machista que pretende derivar dos desígnios de Deus instrumentos de dominação, como a interdição de acesso das mulheres ao sacerdócio e ao episcopado, e a preponderância masculina sob o pretexto de que Eva foi criada a partir da costela de Adão — quando a natureza não deixa dúvidas de que todo homem nasce do corpo de uma mulher. 0 evangelista Mateus aponta, na árvore genealógica de Jesus; cinco mulheres. Tamar, Raab, Rute e Maria; e de modo implícito, a mãe de Salomão, aquela "que foi mulher de Urias". Não é bem uma ascendência da qual um de nós haveria de se orgulhar. Em sua atividade pública, Jesus se fez acompanhar pelos Doze e por algumas mulheres: Maria Madalena; Joana, mulher de Cuza, o procurador de Herodes; Susana e várias outras. Portanto, o grupo de discípulos de Jesus não era propriamente machista. Além disso, Jesus freqüentava, em Betânia, a casa de suas amigas Marta e Maria, irmãs de Lázaro. O primeiro milagre de Jesus foi para atender ao pedido de uma mulher, Maria, sua mãe, preocupada com a falta de vinho numa festa de casamento em Canã. Escolhido por Jesus para ser o primeiro Papa, Pedro era casado. Em nosso país, destacam-se Ana Flora Anderson, Teresa Cavalcanti, Wanda Deifelt e Athalya Brenner. O Centro de Estudos Bíblicos (Cebi) há anos forma, pelo Brasil afora, homens e mulheres dos setores populares em novos métodos de interpretação bíblica, pondo fim ao monopólio clerical e machista. Descobrir que a mulher ocupa na Bíblia lugar e importância iguais aos do homem é questionar as igrejas que, às vésperas do terceiro milênio, insistem em reservar aos homens as funções de poder. E, por tabela, subverter os valores desta sociedade que considera a direção política um talento masculino e a questão social um derivativo da primeira dama, e ilustra sua publicidade televisiva e as páginas das revistas com mulheres que se prestam a ser reificadas, reduzidas ao mero apelo de consumo material e simbólico e, no entanto, queixam-se quando tratadas pelos homens como objetos descartáveis.

228. FREI BETTO. O HIPOCONDRÍACO. Em tempo de remédios falsificados e laboratórios incompetentes, vale lembrar deste consumidor compulsivo que faz da bula Bíblia: o hipocondríaco. Ele padece do mal de ter mania de doenças e adora tomar remédios. Ao passar à porta da farmácia não resiste e pergunta: "O que tem de novidade?" Nada mais ofensivo ao hipocondríaco do que erguer um brinde e desejar-lhe "saúde!". Ele só freqüenta coquetel de vitaminas. Encara sempre o interlocutor com aquele olhar de quem diz: "ando sentindo coisas que você nem imagina". No telefone, faz voz de vítima. Cara a cara, suplica, silente, a compaixão alheia. Está sempre entrando ou saindo de uma gripe; já tomou todas as vacinas; sofre da coluna; padece de insônia; e trata médico como faz com motorista de táxi: "Tá livre?" O hipocondríaco entra na Justiça exigindo mandado de prisão contra os radicais livres e duvida que alguém possa imaginar o tamanho da enxaqueca que teve ontem. Enquanto outros fazem shopping, o prazer do hipocondríaco é visitar drogarias de vitaminas importadas. Ingere pela manhã o abecedário em drágeas e nunca se deita sem antes tomar um chá de ervas. Hipocondríaco não tem plano de saúde; prefere cota de cemitério. Gosta de se separar da família para morrer de saudades. E fica doente de raiva quando alguém diz que ele aparenta boa saúde. O autêntico hipocondríaco carrega sempre uma dorzinha de lado, uma unha encravada, uma afta na boca, uma irritação na garganta, uma dor na coluna e umas tonturas estranhas. Para o hipocondríaco, esposa ideal é a que banca a enfermeira; cadeira confortável é a de rodas; e cama macia, a de hospital. O hipocondríaco é a única pessoa que, pelo som, distingue sirene de ambulância da de viatura de polícia e de bombeiro. O guru do hipocondríaco é Hipócrates, e sua filosofia se resume nesta questão metafísica: "Se a gente nasce deitado e morre deitado, por que não viver deitado?" O hipocondríaco morre de medo da vida saudável. Está convencido de que a diferença entre o médico e ele é que o primeiro conhece a teoria e, o segundo, a prática. Nunca pergunte a ele: "Vai bem?" É preferível: "Melhorou?" O hipocondríaco só assina revistas médicas e, nos jornais, lê primeiro o obituário. Mas, ao contrário do que se pensa, o hipocondríaco não quer morrer — isto o curaria de sua loucura. Nunca convide um hipocondríaco a matricular-se numa academia de ginástica. Ofereça-lhe um check-up. Os únicos exames que ele aceita fazer são os clínicos e adora ser reprovado. Se faz cooper, a perna dói; se pratica natação, fica resfriado; se flexiona o abdome, sente dor nas cadeiras. O hipocondríaco escuta o médico com a mesma atenção que o bêbado ouve os conselhos do abstêmio. A turma do hipocondríaco se reúne em porta de farmácia e tira férias em clínicas de repouso. O hipocondríaco é o único paciente que consegue decifrar letra de médico. Ele não se recolhe para dormir, e sim para repousar. Nunca deseje "bom-dia" a um hipocondríaco; pergunte: "Levantou melhor?" Aliás, ele não se levanta; tem alta. No aniversário, dê a ele um vidro de remédios. Todo hipocondríaco é viciado em aspirina, vitamina C e melatonina. O hipocondríaco sabe dar nó nas tripas e acredita que o melhor lazer é curtir uma diverticulite. Considera incompetente todo médico que diz que ele não tem nada. O hipocondríaco acredita em tudo que a mídia fala sobre cuidados com a saúde. Quando viaja, não se hospeda; se interna. No bolso de dentro do paletó ele não carrega caneta, mas termômetro. E é a única pessoa capaz de enxergar vírus e bactérias em talheres de restaurantes. Sonho de hipocondríaco é ser socorrido por um daqueles helicópteros UTI que aparecem na TV. E sempre reclama de que já existem telessexo, telepiada, telepizza, telessorteio, só falta o teledoença: você liga, descreve os sintomas e, do outro lado da linha, uma voz de médico prescreve a medicação. Deve ter sido um hipocondríaco quem deu ao remédio que combate infecções o nome de antibiótico — que significa "contra a vida".O hipocondríaco não tem remédio. Ele só se cura quando morre e, paradoxalmente, a morte é o sintoma mais óbvio de que ele tinha razão. Pena que não possa levantar-se do caixão e enfiar o dedo na cara de quem o tratava pejorativamente como hipocondríaco. De qualquer modo, repare como ele, defunto, traz um sorrisinho de vitória nos lábios.

229. GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ. A LUZ É COMO A ÁGUA. "...mergulharam como tubarões mansos por baixo dos móveis e das camas e resgataram do fundo da luz as coisas que durante anos tinham-se perdido na escuridão." No Natal os meninos tornaram a pedir um barco a remos. — De acordo — disse o pai —, vamos comprá-lo quando voltarmos a Cartagena. Totó, de nove anos, e Joel, de sete, estavam mais decididos do que seus pais achavam. — Não — disseram em coro. — Precisamos dele agora e aqui. — Para começar — disse a mãe —, aqui não há outras águas navegáveis além da que sai do chuveiro. Tanto ela como o marido tinham razão. Na casa de Cartagena de Índias havia um pátio com um atracadouro sobre a baía e um refúgio para dois iates grandes. Em Madri, porém, viviam apertados no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Mas no final nem ele nem ela puderam dizer não, porque haviam prometido aos dois um barco a remos com sextante e bússola se ganhassem os louros do terceiro ano primário, e tinham ganhado. Assim sendo, o pai comprou tudo sem dizer nada à esposa, que era a mais renitente em pagar dívidas de jogo. Era um belo barco de alumínio com um fio dourado na linha de flutuação. — O barco está na garagem — revelou o pai na hora do almoço.— O problema é que não tem jeito de trazê-lo pelo elevador ou pela escada, e na garagem não tem mais lugar. No entanto, na tarde do sábado seguinte, os meninos convidaram seus colegas para carregar o barco pelas escadas, e conseguiram levá-lo até o quarto de empregada. — Parabéns — disse o pai. — E agora? — Agora, nada - disseram os meninos. — A única coisa que a gente queria era ter o barco no quarto, e pronto. Na noite de quarta-feira, como em todas as quartas-feiras, os pais foram ao cinema. Os meninos, donos e senhores da casa, fecharam portas e janelas, e quebraram a lâmpada acesa de um lustre da sala. Um jorro de luz dourada e fresca feito água começou a sair da lâmpada quebrada, e deixaram correr até que o nível chegou a quatro palmos. Então desligaram a corrente, tiraram o barco, e navegaram com prazer entre as ilhas da casa. Esta aventura fabulosa foi o resultado de uma leviandade minha quando participava de um seminário sobre a poesia dos utensílios domésticos. Totó me perguntou como era que a luz acendia só com a gente apertando um botão, e não tive coragem para pensar no assunto duas vezes. — A luz é como a água — respondi. — A gente abre a torneira e sai. E assim continuaram navegando nas noites de quarta-feira, aprendendo a mexer com o sextante e a bússola, até que os pais voltavam do cinema e os encontravam dormindo como anjos em terra firme. Meses depois, ansiosos por ir mais longe, pediram um equipamento de pesca submarina. Com tudo: máscaras, pés-de-pato, tanques e carabinas de ar comprimido. — Já é ruim ter no quarto de empregada um barco a remos que não serve para nada. — disse o pai — Mas pior ainda é querer ter além disso equipamento de mergulho. — E se ganharmos a gardênia de ouro do primeiro semestre? — perguntou Joel. — Não - disse a mãe, assustada. — Chega. O pai reprovou sua intransigência. — É que estes meninos não ganham nem um prego por cumprir seu dever — disse ela —, mas por um capricho são capazes de ganhar até a cadeira do professor. No fim, os pais não disseram que sim ou que não. Mas Totó e Joel, que tinham sido os últimos nos dois anos anteriores, ganharam em julho as duas gardênias de ouro e o reconhecimento público do diretor. Naquela mesma tarde, sem que tivessem tornado a pedir, encontraram no quarto os equipamentos em seu invólucro original. De maneira que, na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam O Último Tango em Paris, encheram o apartamento até a altura de duas braças, mergulharam como tubarões mansos por baixo dos móveis e das camas, e resgataram do fundo da luz as coisas que durante anos tinham-se perdido na escuridão. Na premiação final os irmãos foram aclamados como exemplo para a escola e ganharam diplomas de excelência. Desta vez não tiveram que pedir nada, porque os pais perguntaram o que queriam. E eles foram tão razoáveis que só quiseram uma festa em casa para os companheiros de classe. O pai, a sós com a mulher, estava radiante. — É uma prova de maturidade — disse. — Deus te ouça — respondeu a mãe. Na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam A Batalha de Argel, as pessoas que passaram pela Castellana viram uma cascata de luz que caía de um velho edifício escondido entre as árvores. Saía pelas varandas, derramava-se em torrentes pela fachada, e formou um leito pela grande avenida numa correnteza dourada que iluminou a cidade até o Guadarrama. Chamados com urgência, os bombeiros forçaram a porta do quinto andar, e encontraram a casa coberta de luz até o teto. O sofá e as poltronas forradas de pele de leopardo flutuavam na sala a diferentes alturas, entre as garrafas do bar e o piano de cauda com seu xale de Manilha que agitava-se com movimentos de asa a meia água como uma arraia de ouro. Os utensílios domésticos, na plenitude de sua poesia, voavam com suas próprias asas pelo céu da cozinha. Os instrumentos da banda de guerra, que os meninos usavam para dançar, flutuavam a esmo entre os peixes coloridos liberados do aquário da mãe, que eram os únicos que flutuavam vivos e felizes no vasto lago iluminado. No banheiro flutuavam as escovas de dentes de todos, os preservativos do pai, os potes de cremes e a dentadura de reserva da mãe, e o televisor da alcova principal flutuava de lado, ainda ligado no último episódio do filme da meia-noite proibido para menores. No final do corredor, flutuando entre duas águas, Totó estava sentado na popa do bote, agarrado aos remos e com a máscara no rosto, buscando o farol do porto até o momento em que houve ar nos tanques de oxigênio, e Joel flutuava na proa buscando ainda a estrela polar com o sextante, e flutuavam pela casa inteira seus 37 companheiros de classe, eternizados no instante de fazer xixi no vaso de gerânios, de cantar o hino da escola com a letra mudada por versos de deboche contra o diretor, de beber às escondidas um copo de brandy da garrafa do pai. Pois haviam aberto tantas luzes ao mesmo tempo que a casa tinha transbordado, e o quarto ano elementar inteiro da escola de São João Hospitalário tinha se afogado no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Em Madri de Espanha, uma cidade remota de verões ardentes e ventos gelados, sem mar nem rio, e cujos aborígines de terra firme nunca foram mestres na ciência de navegar na luz.

230. GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ. O AVIÃO DA BELA ADORMECIDA. Era ela, elástica, com uma pele suave da cor do pão e olhos de amêndoas verdes, e tinha o cabelo liso e negro e longo até as costas, e uma aura de antiguidade que tanto podia ser da Indonésia como dos Andes. Estava vestida com um gosto sutil: jaqueta de lince, blusa de seda natural com flores muito tênues, calças de linho cru, e uns sapatos rasos da cor das buganvílias. "Esta é a mulher mais bela que vi na vida", pensei, quando a vi passar com seus sigilosos passos de leoa, enquanto eu fazia fila para abordar o avião para Nova York no aeroporto Charles de Gaulle de Paris. Foi uma aparição sobrenatural que existiu um só instante e desapareceu na multidão do saguão. Eram nove da manhã. Estava nevando desde a noite anterior, e o trânsito era mais denso que de costume nas ruas da cidade, e mais lento ainda na estrada, e havia caminhões de carga alinhados nas margens, e automóveis fumegantes na neve. No saguão do aeroporto, porém, a vida continuava em primavera. Eu estava na fila atrás de uma anciã holandesa que demorou quase uma hora discutindo o peso de suas onze malas. Começava a me aborrecer quando vi a aparição instantânea que me deixou sem respiração, e por isso não soube como terminou a polêmica, até que a funcionária me baixou das nuvens chamando minha atenção pela distração. À guisa de desculpa, perguntei se ela acreditava nos amores à primeira vista. "Claro que sim", respondeu. "Os impossíveis são os outros" Continuou com os olhos fixos na tela do computador, e me perguntou que assento eu preferia: fumante ou não-fumante. — Dá na mesma — disse categórico — desde que não seja ao lado das onze malas. Ela agradeceu com um sorriso comercial sem afastar a vista da tela fosforescente. — Escolha um número — me disse. — Três, quatro ou sete. — Quatro. Seu sorriso teve um fulgor triunfal. — Nos quinze anos em que estou aqui — disse —, é o primeiro que não escolhe o sete. Marcou no cartão de embarque o número do assento e me entregou com o resto de meus papéis, olhando-me pela primeira vez com uns olhos cor de uva que me serviram de consolo enquanto via a bela de novo. Só então me avisou que o aeroporto acabava de ser fechado e todos os vôos estavam adiados. — Até quando? — Só Deus sabe — disse com seu sorriso. O rádio avisou esta manhã que será a maior nevada do ano. Enganou-se: foi a maior do século. Mas na sala de espera da primeira classe a primavera era tão real que havia rosas vivas nos vasos e até a música enlatada parecia tão sublime e sedante como queriam seus criadores. De repente pensei que aquele era um refúgio adequado para a bela, e procurei-a nos outros salões, estremecido pela minha própria audácia. Mas na maioria eram homens da vida real que liam jornais em inglês enquanto suas mulheres pensavam em outros, contemplando os aviões mortos na neve através das janelas panorâmicas, contemplando as fábricas glaciais, as vastas plantações de Roissy devastadas pelos leões. Depois do meio-dia não havia um espaço disponível, e o calor tinha-se tornado tão insuportável que escapei para respirar. Lá fora encontrei um espetáculo assustador. Gente de todo tipo havia transbordado as salas de espera e estava acampada nos corredores sufocantes, e até nas escadas, estendida pelo chão com seus animais e suas crianças, e seus trastes de viagem. Pois também a comunicação com a cidade estava interrompida, e o palácio de plástico transparente parecia uma imensa cápsula espacial encalhada na tormenta. Não pude evitar a idéia de que também a bela deveria estar em algum lugar no meio daquelas hordas mansas, e essa fantasia me deu novos ânimos para esperar. Na hora do almoço havíamos assumido nossa consciência de náufragos. As filas tornaram-se intermináveis diante dos sete restaurantes, as cafeterias, os bares abarrotados, e em menos de três horas tiveram de fechar tudo porque não havia nada para comer ou beber. As crianças, que por um momento pareciam ser todas as do mundo, puseram-se a chorar ao mesmo tempo, e começou a se erguer da multidão um cheiro de rebanho. Era o tempo dos instintos. A única coisa que consegui comer no meio daquela rapina foram os dois últimos copinhos de sorvete de creme numa lanchonete infantil. Tomei-os pouco a pouco no balcão, enquanto os garçons punham as cadeiras sobre as mesas na medida em que elas se desocupavam, olhando-me no espelho do fundo, com o último copinho de papelão e a última colherzinha de papelão, e com o pensamento na bela. O vôo para Nova York, previsto para as onze da manhã, saiu às oito da noite. Quando finalmente consegui embarcar, os passageiros da primeira classe já estavam em seus lugares, e uma aeromoça me conduziu ao meu. Perdi a respiração. Na poltrona vizinha, junto da janela, a bela estava tomando posse de seu espaço com o domínio dos viajantes experientes. "Se alguma vez eu escrever isto, ninguém vai acreditar", pensei. E tentei de leve em minha meia língua um cumprimento indeciso que ela não percebeu. Instalou-se como se fosse morar ali muitos anos, pondo cada coisa em seu lugar e em sua ordem, até que o local ficou tão bem-arrumado como a casa ideal, onde tudo estava ao alcance da mão. Enquanto fazia isso, o comissário trouxe-nos o champanha de boas-vindas. Peguei uma taça para oferecer a ela, mas me arrependi a tempo. Pois quis apenas um copo d'água, e pediu ao comissário, primeiro num francês inacessível e depois num inglês um pouco mais fácil, que não a despertasse por nenhum motivo durante o vôo. Sua voz grave e morna arrastava uma tristeza oriental. Quando levaram a água, ela abriu sobre os joelhos uma caixinha de toucador com esquinas de cobre, como os baús das avós, e tirou duas pastilhas douradas de um estojinho onde levava outras de cores diversas. Fazia tudo de um modo metódico e parcimonioso, como se não houvesse nada que não estivesse previsto para ela desde seu nascimento. Por último baixou a cortina da janela, estendeu a poltrona ao máximo, cobriu-se com a manta até a cintura sem tirar os sapatos, pôs a máscara de dormir, deitou-se de lado na poltrona, de costas para mim, e dormiu sem uma única pausa, sem um suspiro, sem uma mudança mínima de posição, durante as oito horas eternas e os doze minutos de sobra que o vôo de Nova York durou. Foi uma viagem intensa. Sempre acreditei que não há nada mais belo na natureza que uma mulher bela, de maneira que foi impossível para mim escapar um só instante do feitiço daquela criatura de fábula que dormia ao meu lado. O comissário havia desaparecido assim que decolamos, e foi substituído por uma aeromoça cartesiana que tentou despertar a bela para dar-lhe o estojo de maquiagem e os auriculares para a música. Repeti a advertência que a bela havia feito ao comissário, mas a aeromoça insistiu para ouvir de sua própria voz que tampouco queria jantar. Foi preciso que o comissário confirmasse, e ainda assim a aeromoça me repreendeu porque a bela não havia colocado no pescoço o cartãozinho com a ordem de não ser despertada. Fiz um jantar solitário, dizendo-me em silêncio tudo que teria dito a ela, se estivesse acordada. Seu sono era tão estável que em certo momento tive a inquietude que aquelas pastilhas não fossem para dormir e sim para morrer. Antes de cada gole, levantava a taça e brindava. — À tua saúde, bela. Terminado o jantar, apagaram as luzes, mostraram um filme para ninguém, e nós dois ficamos sozinhos na penumbra do mundo. A maior tormenta do século havia passado, e a noite do Atlântico era imensa e límpida, e o avião parecia imóvel entre as estrelas. Então contemplei-a palmo a palmo durante várias horas, e o único sinal de vida que pude perceber foram as sombras dos sonhos que passavam por sua fronte como as nuvens na água. Tinha no pescoço uma corrente tão fina que era quase invisível sobre sua pele de ouro, as orelhas perfeitas sem os furinhos para brincos, as unhas rosadas da boa saúde e um anel liso na mão esquerda. Como não parecia ter mais de vinte anos, me consolei com a idéia de que não fosse a aliança de um casamento e sim de um namoro efêmero. "Saber que você dorme, certa, segura, leito fiel de abandono, linha pura, tão perto de meus braços atados", pensei, repetindo na crista de espuma de champanha o so neto magistral de Gerardo Diego. Em seguida estendi a poltrona na altura da sua, e ficamos deitados mais próximos que numa cama de casal. O clima de sua respiração era o mesmo da voz, e sua pele exalava um hálito tênue que só podia ser o próprio cheiro de sua beleza. Eu achava incrível: na primavera anterior havia lido um bonito romance de Yasumari Kawabata sobre os anciões burgueses de Kyoto que pagavam somas enormes para passar a noite contemplando as moças mais bonitas da cidade, nuas e narcotizadas, enquanto eles agonizavam de amor na mesma cama. Não podiam despertá-las, nem tocá-las, e nem tentavam, porque a essência do prazer era vê-las dormir. Naquela noite, velando o sono da bela, não apenas entendi aquele refinamento senil, como o vivi na plenitude. — Quem iria acreditar — me disse, com o amor-próprio exacerbado pelo champanha. — Eu, ancião japonês a estas alturas. Acho que dormi várias horas, vencido pelo champanha e os clarões mudos do filme, e despertei com a cabeça aos cacos. Fui ao banheiro. Dois lugares atrás do meu, jazia a anciã das onze maletas esparramada mal-acomodada na poltrona. Parecia um morto esquecido no campo de batalha. No chão, no meio do corredor, estavam seus óculos de leitura com o colar de contas coloridas, e por um instante desfrutei da felicidade mesquinha de não os recolher. Depois de desafogar-me dos excessos de champanha me surpreendi no espelho, indigno e feio, e me assombrei por serem tão terríveis os estragos do amor. De repente o avião foi a pique, ajeitou-se como pôde, e prosseguiu voando a galope. A ordem de voltar ao assento acendeu. Saí em disparada, com a ilusão de que somente as turbulências de Deus despertariam a bela, e que teria de se refugiar em meus braços fugindo do terror. Na pressa estive a ponto de pisar nos óculos da holandesa, e teria me alegrado. Mas voltei sobre meus passos, os recolhi, os coloquei em seu regaço, agradecido de repente por ela não ter escolhido antes de mim o assento número quatro. O sono da bela era invencível. Quando o avião se estabilizou, tive que resistir à tentação de sacudi-la com um pretexto qualquer, porque a única coisa que desejava naquela última hora de vôo era vê-la acordada, mesmo que estivesse enfurecida, para que eu pudesse recobrar minha liberdade e talvez minha juventude. Mas não fui capaz. "Que merda", disse a mim mesmo, com um grande desprezo. "Por que não nasci Touro?" Despertou sem ajuda no instante em que os anúncios de aterrissagem se acenderam, e estava tão bela e louçã como se tivesse dormido num roseiral. Só então percebi que os vizinhos de assento nos aviões, como os casais velhos, não se dizem bom-dia ao despertar. Ela também não. Tirou a máscara, abriu os olhos radiantes, endireitou a poltrona, pôs a manta de lado, sacudiu as melenas que se penteavam sozinhas com seu próprio peso, tornou a pôr a caixinha nos joelhos, e fez uma maquiagem rápida e supérflua, o suficiente para não olhar para mim até que a porta foi aberta. Então pôs a jaqueta de lince, passou quase que por cima de mim com uma desculpa convencional em puro castelhano das Américas, e foi sem nem ao menos se despedir, sem ao menos me agradecer o muito que fiz por nossa noite feliz, e desapareceu até o sol de hoje na amazônia de Nova York.

231. GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ. ME ALUGO PARA SONHAR. Às nove, enquanto tomávamos o café da manhã no terraço do Habana Riviera, um tremendo golpe de mar em pleno sol levantou vários automóveis que passavam pela avenida à beira-mar, ou que estavam estacionados na calçada, e um deles ficou incrustado num flanco do hotel. Foi como uma explosão de dinamite que semeou pânico nos vinte andares do edifício e fez virar pó a vidraça do vestíbulo. Os numerosos turistas que se encontravam na sala de espera foram lançados pelos ares junto com os móveis, e alguns ficaram feridos pelo granizo de vidro. Deve ter sido uma vassourada colossal do mar, pois entre a muralha da avenida à beira-mar e o hotel há uma ampla avenida de ida e volta, de maneira que a onda saltou por cima dela e ainda teve força suficiente para esmigalhar a vidraça. Os alegres voluntários cubanos, com a ajuda dos bombeiros, recolheram os destroços em menos de seis horas, trancaram a porta que dava para o mar e habilitaram outra, e tudo tornou a ficar em ordem. Pela manhã, ninguém ainda havia cuidado do automóvel pregado no muro, pois pensava-se que era um dos estacionados na calçada. Mas quando o reboque tirou-o da parede descobriram o cadáver de uma mulher preso no assento do motorista pelo cinto de segurança. O golpe foi tão brutal que não sobrou nenhum osso inteiro. Tinha o rosto desfigurado, os sapatos descosturados e a roupa em farrapos, e um anel de ouro em forma de serpente com olhos de esmeraldas. A polícia afirmou que era a governanta dos novos embaixadores de Portugal. Assim era: tinha chegado com eles a Havana quinze dias antes, e havia saído naquela manhã para fazer compras dirigindo um automóvel novo. Seu nome não me disse nada quando li a notícia nos jornais, mas fiquei intrigado por causa do anel em forma de serpente e com olhos de esmeraldas. Não consegui saber, porém, em que dedo o usava. Era um detalhe decisivo, porque temi que fosse uma mulher inesquecível cujo verdadeiro nome não soube jamais, que usava um anel igual no indicador direito, o que era mais insólito ainda naquele tempo. Eu a havia conhecido 34 anos antes em Viena, comendo salsichas com batatas cozidas e bebendo cerveja de barril numa taberna de estudantes latinos. Eu havia chegado de Roma naquela manhã, e ainda recordo minha impressão imediata por seu imenso peito de soprano, suas lânguidas caudas de raposa na gola do casaco e aquele anel egípcio em forma de serpente. Achei que era a única austríaca ao longo daquela mesona de madeira, pelo castelhano primário que falava sem respirar com sotaque de bazar de quinquilharia. Mas não, havia nascido na Colômbia e tinha ido para a Áustria entre as duas guerras, quase menina, estudar música e canto. Naquele momento andava pelos trinta anos mal vividos, pois nunca deve ter sido bela e havia começado a envelhecer antes do tempo. Em compensação, era um ser humano encantador. E também um dos mais temíveis. Viena ainda era uma antiga cidade imperial, cuja posição geográfica entre os dois mundos irreconciliáveis deixados pela Segunda Guerra Mundial havia terminado de convertê-la num paraíso do mercado negro e da espionagem mundial. Eu não teria conseguido imaginar um ambiente mais adequado para aquela compatriota fugitiva que continuava comendo na taberna de estudantes da esquina por pura fidelidade às suas origens, pois tinha recursos de sobra para comprá-la à vista, com clientela e tudo. Nunca disse o seu verdadeiro nome, pois sempre a conhecemos com o trava-língua germânico que os estudantes latinos de Viena inventaram para ela: Frau Frida. Eu tinha acabado de ser apresentado a ela quando cometi a impertinência feliz de perguntar como havia feito para implantar-se de tal modo naquele mundo tão distante e diferente de seus penhascos de ventos do Quindío, e ela me respondeu de chofre: — Eu me alugo para sonhar. Na realidade, era seu único ofício. Havia sido a terceira dos onze filhos de um próspero comerciante da antiga Caldas, e desde que aprendeu a falar instalou na casa o bom costume de contar os sonhos em jejum, que é a hora em que se conservam mais puras suas virtudes premonitórias. Aos sete anos sonhou que um de seus irmãos era arrastado por uma correnteza. A mãe, por pura superstição religiosa, proibiu o menino de fazer aquilo que ele mais gostava, tomar banho no riacho. Mas Frau Frida já tinha um sistema próprio de vaticínios. — O que esse sonho significa — disse — não é que ele vai se afogar, mas que não deve comer doces. A interpretação parecia uma infâmia, quando era relacionada a um menino de cinco anos que não podia viver sem suas guloseimas dominicais. A mãe, já convencida das virtudes adivinhatórias da filha, fez a advertência ser respeitada com mão de ferro. Mas ao seu primeiro descuido o menino engasgou com uma bolinha de caramelo que comia escondido, e não foi possível salvá-lo. Frau Frida não havia pensado que aquela faculdade pudesse ser um ofício, até que a vida agarrou-a pelo pescoço nos cruéis invernos de Viena. Então, bateu para pedir emprego na primeira casa onde achou que viveria com prazer, e quando lhe perguntaram o que sabia fazer, ela disse apenas a verdade: "Sonho". Só precisou de uma breve explicação à dona da casa para ser aceita, com um salário que dava para as despesas miúdas, mas com um bom quarto e três refeições por dia. Principalmente o café da manhã, que era o momento em que a família sentava-se para conhecer o destino imediato de cada um de seus membros: o pai, que era um financista refinado; a mãe, uma mulher alegre e apaixonada por música romântica de câmara e duas crianças de onze e nove anos. Todos eram religiosos, e portanto propensos às superstições arcaicas, e receberam maravilhados Frau Frida com o compromisso único de decifrar o destino diário da família através dos sonhos. Fez isso bem e por muito tempo, principalmente nos anos da guerra, quando a realidade foi mais sinistra que os pesadelos. Só ela podia decidir na hora do café da manhã o que cada um deveria fazer naquele dia, e como deveria fazê-lo, até que seus prognósticos acabaram sendo a única autoridade na casa. Seu domínio sobre a família foi absoluto: até mesmo o suspiro mais tênue dependia da sua ordem. Naqueles dias em que estive em Viena o dono da casa havia acabado de morrer, e tivera a elegância de legar a ela uma parte de suas rendas, com a única condição de que continuasse sonhando para a família até o fim de seus sonhos. Fiquei em Viena mais de um mês, compartilhando os apertos dos estudantes, enquanto esperava um dinheiro que não chegou nunca. As visitas imprevistas e generosas de Frau Frida na taberna eram então como festas em nosso regime de penúrias. Numa daquelas noites, na euforia da cerveja, sussurrou ao meu ouvido com uma convicção que não permitia nenhuma perda de tempo. — Vim só para te dizer que ontem à noite sonhei com você — disse ela. — Você tem que ir embora já e não voltar a Viena nos próximos cinco anos. Sua convicção era tão real que naquela mesma noite ela me embarcou no último trem para Roma. Eu fiquei tão sugestionado que desde então me considerei sobrevivente de um desastre que nunca conheci. Ainda não voltei a Viena. Antes do desastre de Havana havia visto Frau Frida em Barcelona, de maneira tão inesperada e casual que me pareceu misteriosa. Foi no dia em que Pablo Neruda pisou terra espanhola pela primeira vez desde a Guerra Civil, na escala de uma lenta viagem pelo mar até Valparaíso. Passou conosco uma manhã de caça nas livrarias de livros usados, e na Porter comprou um livro antigo, desencadernado e murcho, pelo qual pagou o que seria seu salário de dois meses no consulado de Rangum. Movia-se através das pessoas como um elefante inválido, com um interesse infantil pelo mecanismo interno de cada coisa, pois o mundo parecia, para ele, um imenso brinquedo de corda com o qual se inventava a vida. Não conheci ninguém mais parecido à idéia que a gente tem de um papa renascentista: glutão e refinado. Mesmo contra a sua vontade, sempre presidia a mesa. Matilde, sua esposa, punha nele um babador que mais parecia de barbearia que de restaurante, mas era a única maneira de impedir que se banhasse nos molhos. Aquele dia, no Carvalleiras foi exemplar. Comeu três lagostas inteiras, esquartejando-as com mestria de cirurgião, e ao mesmo tempo devorava com os olhos os pratos de todos, e ia provando um pouco de cada um, com um deleite que contagiava o desejo de comer: as amêijoas da Galícia, os perceves do Cantábrico, os lagostins de Alicante, as espardenyas da Costa Brava. Enquanto isso, como os franceses, só falava de outras delícias da cozinha, e em especial dos mariscos pré-históricos do Chile que levava no coração. De repente parou de comer, afinou suas antenas de siri, e me disse em voz muito baixa: — Tem alguém atrás de mim que não pára de me olhar. Espiei por cima de seu ombro, e era verdade. Às suas costas, três mesas atrás, uma mulher impávida com um antiquado chapéu de feltro e um cachecol roxo, mastigava devagar com os olhos fixos nele. Eu a reconheci no ato. Estava envelhecida e gorda, mas era ela, com o anel de serpente no dedo indicador. Viajava de Nápoles no mesmo barco que o casal Neruda, mas não tinham se visto a bordo. Convidamos para mulher a tomar café em nossa mesa, e a induzi a falar de seus sonhos para surpreender o poeta. Ele não deu confiança, pois insistiu desde o princípio que não acreditava em adivinhações de sonhos. — Só a poesia é clarividente — disse. Depois do almoço, no inevitável passeio pelas Ramblas, fiquei para trás de propósito, com Frau Frida, para poder refrescar nossas lembranças sem ouvidos alheios. Ela me contou que havia vendido suas propriedades na Áustria, e vivia aposentada no Porto, Portugal, numa casa que descreveu como sendo um castelo falso sobre uma colina de onde se via todo o oceano até as Américas. Mesmo sem que ela tenha dito, em sua conversa ficava claro que de sonho em sonho havia terminado por se apoderar da fortuna de seus inefáveis patrões de Viena. Não me impressionou, porém, pois sempre havia pensado que seus sonhos não eram nada além de uma artimanha para viver. E disse isso a ela. Frau Frida soltou uma gargalhada irresistível. "Você continua o atrevido de sempre", disse. E não falou mais, porque o resto do grupo havia parado para esperar que Neruda acabasse de conversar em gíria chilena com os papagaios da Rambla dos Pássaros. Quando retomamos a conversa, Frau Frida havia mudado de assunto. — Aliás — disse ela —, você já pode voltar para Viena. Só então percebi que treze anos haviam transcorrido desde que nos conhecemos. — Mesmo que seus sonhos sejam falsos, jamais voltarei — disse a ela. — Por via das dúvidas. Às três, nos separamos dela para acompanhar Neruda à sua sesta sagrada. Foi feita em nossa casa, depois de uns preparativos solenes que de certa forma recordavam a cerimônia do chá no Japão. Era preciso abrir umas janelas e fechar outras para que houvesse o grau de calor exato e uma certa classe de luz em certa direção, e um silêncio absoluto. Neruda dormiu no ato, e despertou dez minutos depois, como as crianças, quando menos esperávamos. Apareceu na sala restaurado e com o monograma do travesseiro impresso na face. — Sonhei com essa mulher que sonha — disse. Matilde quis que ele contasse o sonho. — Sonhei que ela estava sonhando comigo disse ele. — Isso é coisa de Borges — comentei. Ele me olhou desencantado. — Está escrito? — Se não estiver, ele vai escrever algum dia — respondi. — Será um de seus labirintos. Assim que subiu a bordo, às seis da tarde, Neruda despediu-se de nós, sentou-se em uma mesa afastada, e começou a escrever versos fluidos com a caneta de tinta verde com que desenhava flores e peixes e pássaros nas dedicatórias de seus livros. À primeira advertência do navio buscamos Frau Frida, e enfim a encontramos no convés de turistas quando já íamos embora sem nos despedir. Também ela acabava de despertar da sesta. — Sonhei com o poeta — nos disse. Assombrado, pedi que me contasse o sonho. — Sonhei que ele estava sonhando comigo disse, e minha cara de assombro a espantou. — O que você quer? Às vezes, entre tantos sonhos, infiltra-se algum que não tem nada a ver com a vida real. Não tornei a vê-la nem a me perguntar por ela até que soube do anel em forma de cobra da mulher que morreu no naufrágio do Hotel Riviera. Portanto não resisti à tentação de fazer algumas perguntas ao embaixador português quando coincidimos, meses depois, em uma recepção diplomática. O embaixador me falou dela com um grande entusiasmo e uma enorme admiração. "O senhor não imagina como ela era extraordinária", me disse. "O senhor não resistiria à tentação de escrever um conto sobre ela". E prosseguiu no mesmo tom, com detalhes surpreendentes, mas sem uma pista que me permitisse uma conclusão final. — Em termos concretos — perguntei no fim —, o que ela fazia? — Nada — respondeu ele, com certo desencanto. — Sonhava.

232. GILBERTO FREYRE. BUNDA-PAIXÃO NACIONAL. De onde vem o encanto do brasileiro pela bunda? O professor Gilberto Freyre, que estudou nossas raízes sociológicas em Casa-Grande & Senzala, aceitou o desafio de investigar as origens dessa magnífica preferência num ensaio. Por motivos de espaço, transcrevemos os principais trechos e resumimos algumas partes do estudo, erudito, de 26 páginas. Erudito, mas que nem por isso evita a ressonante palavra. Lembra alguns sinônimos, principalmente nordestinos, como bagageiro, balaio, banjo, bomba, bubu, além dos tradicionais rabo, traseiro, popô, rabicó, bumbum, tralalá e outros. Objetivo, ele não usa apelidos quando vai à História, anota fatos, faz uma análise e tira conclusões: o brasileiro tem suas razões para gostar de bunda.  Pode não saber quais, mas tem.  Vamos a elas. Um gosto que nasce no madrugador século XVI. "Inclinados a tal, sob que influências vindas de longe?  A esse respeito é bom recorrer-se à fonte de informação do madrugador século XVI, suprida pela própria Igreja através de pesquisas realizadas então, como se estivessem concorrendo para saberes cientificamente sociais pelo santo Ofício em atividades investigadoras no Brasil.  Suponho ter sido, no livro Casa-Grande & Senzala, o primeiro a utilizar os resultados de tais pesquisas, em obra acessível ao grande público. Constam essas informações da Primeira Visitação do Santo Ofício a Partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Surgem, nessas indagações secretas, homens casados casando outra vez com mulatas (talvez do tipo mulher tornada conhecida como "arde-lhe o rabo", decerto por haver se extremado em furor anal), adultos europeus ou de procedência européia pecando contra a natureza, em coitos anais ou através de luxúrias de felação, com efebos, quer da terra, quer da Guiné, participantes, alguns deles, com tal volúpia desses amplexos, que de um deles se registra a exclamação "quero mais". A participação nesses coitos da gente da terra parece indicar, de ameríndios, presentes em contatos madrugadores com europeus, terem sido, eles próprios, dados à sodomia ou à pederastia, com o abuso de bundas já então praticado, quer por europeus em não-europeus, quer - é possível - em reciprocidades volutuosas eurotropicais: euro-ameríndias e euro-afronegras.  Pode-se concluir de mulheres indígenas, desde esses dias, terem revelado preferências, para contatos sexuais com portugueses, por aqueles motivos priápicos já alegados pelo severo Varnhagen:  os portugueses, em confronto com machos indígenas, teriam se revelado mais ardorosamente potentes. Sabe-se por alguma observações antropológicas confiáveis, de homens de culturas primitivas precisarem, em vários casos, para efeitos de procriação tribal, de festas excitantemente sexuais, que os levem a atos procriadores, é claro que acompanhados de gozos. Atos e gozos, entretanto, mais provocados que espontâneos, embora as investigações do Santo Ofício documentem ocorrência de receptividade de indígenas a práticas, já por indígenas conhecidas, em que o coito anal teria se verificado. Das afronegras notáveis por suas bundas e dos ardores patriarcais. (...) Não há evidência alguma de mulheres indígenas terem se feito notar, como aconteceria com mulheres de origem afronegra, introduzidas na colônia, desde o século XVI, por nádegas notavelmente protuberantes ou por bundas salientemente grandes. E, por essas saliências, sexualmente provocantes do seu uso, e até do seu abuso, em coitos de intenções mais voluptuosas. Ao tamanho das nádegas, desenvolveu-se, é de supor, a tendência, quase folclórica, entre brasileiros, de associarem-se os chamados cus de pimenta ou rabos ardorosos, já presentes em referências em registros das investigações do Santo Ofício. Entretanto, é preciso não resvalar-se na simplificação de atribuir-se a presença, entre mulheres brasileiras, de bundas grandes, com ou sem essas conexões, à presença de afronegras notáveis por tais protuberâncias de nádegas.  Mas é preciso atentar-se no fato de mulheres tipicamente ibéricas, inclusive portuguesas, presentes na colonização do Brasil, terem quase rivalizado, por vezes, com afronegras, em tais protuberâncias de nádegas. Num livro notável, (...) The Soul of Sham (Londres, 1908), o mestre em sexologia, Havelock Ellis, lembra dos por Deniken classificados como do tipo antropológico iberóide serem em geral morenos de uma pigmentação de um encanto estético chamado por Gauthier, referindo-se especificamente às telas espanholas de Málaga, de um "dourado pálido" (...). E as mulheres? De modo geral, superiores aos homens, afirma Ellis.O que viria sendo confirmado pela sua maior autenticidade como expressões de tipos nacionalmente ibéricos. E especificando seus característicos antropologicamente físicos à base dos sociais: quando jovens, tendentes a delgadas, embora com bustos e ancas - bundas, portanto - já desenvolvidos. Protuberâncias acentuadas com a idade madura. A idade, em mulher bonita, a associar-se a gordura. E à gordura, juntar-se, segundo Ellis, "maior amplitude e acentuação de ancas em relação com as demais partes do corpo". Para o ideal feminino predominante no Brasil patriarcal, de "gorda e bonita", é de se supor ter concorrido influência árabe, contra a qual teriam se oposto, no século XIX, influências romanticamente européias. (...) Um ideal, o de sinhazinha adolescente, quase menina e, de tão delgada, quase sem bunda e de seios virginalmente discretíssimos, mãos e pés ostensivamente pequenos. Outro ideal, o de sinhadona de meia-idade, gorda, ostensivamente bem nutrida, dignamente bunduda, apta ao desempenho de mulher, mãe de sucessivos filhos e a cujo físico não faltavam bundas mais dignamente maternas que provocantemente sexuais.  Pois para a satisfação de ardores sexuais o macho patriarcal brasileiro tinha, aa seu dispor - por vezes defrontando-se com ciúmes de esposas ciosas de seus direitos conjugais -, escravas, mucamas, morenidades em vários graus de mulheres. Isto, dentro da reciprocidade casa grande-senzala. Miscigenadas, como se a miscigenação se fizesse através de experimentos antropologicamente eugênicos e estéticos. Experimentos que permitissem que fossem com que graduadas saliências de bundas, evitando-se os exageros africanóides. Do andar afrodisíaco das bundas ondulantes à anfíbia Roberta Close. E aqui é preciso que se volte à observação de Havelock Ellis, quanto a uma das superioridades da mulher ibérica sobre as ortodoxamente européias estar na assimilação, pela ibérica, de remota influência africana do andar, como se dançasse. É um movimento de bundas bastante amplas - especifique-se - para permitirem essa ondulação como que - sugira-se - afrodisíaca de andar. A grande número de mulheres brasileiras, a miscigenação pode-se sugerir ter dado ritmos de andar e, portanto, de flexões de nádegas, susceptíveis de ser considerados afrodisíacos. Atente-se nesses ritmos, em cariocas miscigenadas, em confronto com as beldades argentinas que o observador tenha acabado de admirar. Os ritmos de andar da miscigenada brasileira chegam a ser musicais, na sua dependência de bundas moderadamente ondulantes. Para Havelock Ellis, o andar da mulher mais tipicamente ibérica, em contraste com a da ortodoxamente européia - em grande número de casos, acrescente-se a Ellis, como que calvinistamente proibida, em sua maneira de ser femininamente elegante, de ter bunda ostensiva - teria alguma coisa de graciosa qualidade de um corpo felino inteiramente vivo. O homem médio brasileiro não pode deixar de ser sensível à imensidade de provocações que o rodeiam. Não tanto ao vivo, como por meio de anúncios de revistas ilustradas, que se vêm esmerando na utilização de reproduções coloridas de bundas nuas, como atrativos para uma diversidade de artigos à venda. Há, no Brasil de hoje, uma enorme comercialização da imagem da bunda de mulher em anúncios atraentes. Estéticos uns, alguns lúbricos. Também se vem fazendo esse uso na televisão. E, sonoramente, em músicas apologéticas da beleza da bunda de mulher. O sexo da mulher vem, através dessa comercialização da bunda em anúncios, quase perdendo, em publicidade apologética, para esse nada insignificante rival, no Brasil. Ainda agora, a propósito da anfíbia Roberta (Close), vem se destacando dela, como qualidade feminina, ter "bunda grande". À "bunda grande" se contrapõe, no Brasil, como negativo sexual, e até eugênico e estético, a "bunda murcha", a "bunda seca", a "bunda magra". Pois o ideal árabe de mulher bonita, ser gorda, ainda não foi superado de todo, no Brasil, pelo ideal de mulher secamente elegante, desde a chamada flapper, da década de trinta: mulher delgada e como se fosse rapaz. Quase sem bunda! Da teoria à prática ou de como as ditas polacas entram nesta história. Perdendo em anúncios e tendendo a bunda a um tão bom como tão bom em práticas de coito, não é raro, entre brasileiros atuais, a alternativa: o gozo anal tendendo a alternar, para não poucos homens, com o chamado papai-mamãe, que seria o encontro do pênis com a vulva. Por algum tempo foi a bunda o chamariz, da parte de mulheres da vida, do tipo chamado indistintamente polaco, em ruas de ostensiva prostituição comercial, a homens ao alcance de suas vozes, que consideravam cansados de coitos conjugais monotonamente normais. Tais mulheres anunciavam deixarem-se enrabar ou a praticar o sexo oral. Assinale-se que, ao começar a haver, em Mangues, tais ofertas, parece ter havido não pouca repulsa da parte de mulatas mais castiçamente brasileiras, a homens que lhes propuseram facilitar-lhes tais substitutos de coitos convencionais. Que fossem se acanalhar com polacas! O que não parece ter impedido de as alternativas virem sendo adotadas por brasileiras de cor, com as bundas avantajadas sendo cortejadas por homens inclinados a esse tipo porventura mais carnal de coito. Da bunda como inspiração estética nas artes plásticas. Ouvi, em Sussex, do escultor Henry Moore, que os olhos do artista, para criarem esculturas, precisavam não só de ver, como, pelo olhar, apalpar o que viam com vontades de esculpir. O que evidentemente reforça a sensualidade das esculturas, quando de mulheres nuas, dando-lhes maior apelo sexual: o de uma intensidade que não chega a ser lúbrica para ser sexy. Impressionista, Moore? Para lá desse ismo. Mais expressionista que impressionista. Mas na verdade, também, além desse outro ismo. Para o arquiteto finlandês Eliel Saarinem, em Search for Form, (N.Y., 1948), nenhum desses ismos pioneiramente destruidores de convenções das chamadas naturalistas deixou de representar impulsos de criatividade diferentes em artistas inovadores. Diferença, inclusive, de perspectivas do nu de mulher, como desafio, quer de forma, quer de cor. O que inevitavelmente veio a tocar em morenidades ecológicas, condicionadas por sóis e calores tropicais. E a produzir pintores especializados em dar destaque a bundas de mulheres morenas. Um deles, de modo notável, Emiliano di Cavalcanti. Bundas, porque, mais do que faces ou partes superiores de corpos, elas permitem ao pintor dar ênfase estética a curvas femininas. É em nádegas que esses curvas esplendem, irradiando suas maiores provocações, além de estéticas, sensuais. Foi pioneiro em fixá-las o exotista ou tropicalista Gauguin. De onde outros ismos em criações pictóricas em torno de corpos de mulheres, isto é, de formas diferentes das olimpicamente, apolineamente, estaticamente clássicas. Inclusive o muito dionisíaco primitivismo, pretendendo juntar, à apresentação de bundas como partes aliciantemente belas de corpos de mulher, uma perspectiva como que - paradoxo - maliciosamente inocente. As bundas de mulatas célebres de Di Cavalcanti não estão nesse caso. Nem elas nem as das pinturas criativamente inclassificáveis como istas de Cícero Dias, de que emergem mulheres nuas ostentando mais bundas desacompanhadas de pêlos do que sexos com pentelhos ramalhudos. Aliás, a miscigenação brasileira tornou-se tão vasta, que as bundas de mulheres do Brasil constituem, talvez, a mais variada expressão antropológica de uma moderna variedade de formas e nádegas, com as protuberantes é possível que avantajando-se às menos ostensivas. De como a bunda cintila na Literatura e vira anseio no Carnaval de Chico Buarque. Na literatura brasileira, que autor pode ser destacado como tendo dado especial relevo ao liciante assunto? Impõe-se recordar do lúcido modernista de 22, Oswald de Andrade, que, em página de novela com alguma coisa de autobiográfico, confessa: "e enrabei Dona Lalá". Em versos, também modernistas, Manuel Bandeira refere-se a "genipapo na bunda". E em Evocação do Recife dá a entender das lindas recifenses, que viu, com olhos de menino, nuinhas, a se banharem no então também lindo e limpo Capibaribe, que entre as partes de seus corpos mais causadoras do seu alumbramento estavam as bundas. É curioso que, no seu excelente Ensaios de Antropologia Estrutural (Petrópolis, 1977), o professor Roberto da Matta, ao considerar o Carnaval brasileiro como "rito de passagem", destaque ser a rainha do carnaval "sempre uma vedete de formas perfeitas". E sua bunda? É parte ou não dessa perfeição? Se, como recorda de música de Chico Buarque, o típico brasileiro carnavalesco espera "o Carnaval chegar" para "pegar em pernas de moças", como não destacar-se seu ensejo maior de apalpar bundas de mulher?

233. GRACILIANO RAMOS. UM AMIGO EM TALAS. O meu antigo companheiro de pensão Amadeu Amaral Júnior, um homem louro e fornido, tinha costumes singulares que espantavam os outros hóspedes. Para falar com propriedade, aquilo não era exatamente pensão, mas isto não tem importância: com um pouco de esforço podíamos admitir que estávamos numa pensão de gente bem comportada. Bocejávamos em demasia, contávamos as pessoas que subiam ou desciam um morro próximo, dormíamos cedo e recebíamos com regularidade a visita do gerente do estabelecimento, o major Nunes, ótima criatura que deixou o cargo por lhe faltar o espírito do negócio. Amadeu Amaral Júnior vestia-se com sobriedade: usava uma cueca preta e calçava medonhos tamancos barulhentos. Fora isso, o que tinha em cima do corpo era a barba, economicamente desenvolvida, uma barba enorme. Parecia um troglodita. Alimentava-se mal, espichava-se na cama, roncava o dia inteiro e passava as noites acordado, passeando, agitando o soalho, o que provocava a indignação dos outros pensionistas. Quando se cansava, sentava-se a uma grande mesa ao fundo da sala e escrevia o resto da noite. Leu um tratado de psicologia e trocou-o em miúdo, isto é, reduziu-o a artigos, uns quarenta ou cinqüenta, que projetou meter nas revistas e nos jornais e com o produto vestir-se, habitar uma casa diferente daquela e pagar ao barbeiro. Mudamo-nos, separamo-nos, perdemo-nos de vista. Creio que os artigos de psicologia não foram publicados, pois há tempo li este anúncio num semanário: "Intelectual desempregado. Amadeu Amaral Júnior, em estado de desemprego, aceita esmolas, donativos, roupa velha, pão dormido. Também aceita trabalho”. O anúncio não produziu nenhum efeito, é o que meses depois, nos declara Amadeu Amaral Júnior: "Minha situação continua preta. Reitero o apelo às almas bem formadas: dêem de comer a quem tem fome, uma fome atávica, milenária. Dêem-me trabalho." E, catalogando as suas habilidades: "Escrevo poesias, crônicas, contos (policiais, psicológicos, de aventura, de terror, de mistério), novelas, discursos, conferências. Sei inglês, francês, italiano, espanhol e um bocado de alemão. Dêem-me trabalho pelo amor de Deus ou do diabo." De literato brasileiro não conheço página mais sincera e razoável que essa. Ao ler o pedido de roupa velha e pão duro, fiquei meio escandalizado, mas refletindo, confessei publicamente que o meu velho companheiro procedia com acerto. E agora, completamente solidário com ele, admiro a exposição que nos faz das suas aptidões e lamento que não as utilizem. É evidente que Amadeu Amaral Júnior conhece bem o nosso mercado literário e apregoa as mercadorias mais próprias para o consumo: discursos, contos policiais, de aventura, de terror e de mistério. Julgo que vive sem ocupação por não haver falado antes nisso. O meio cento de artigos redigidos naquelas noites de insônia encalhou certamente na redação, preterido pelas novelas de arrepiar cabelos. Indignado, Amadeu Amaral Júnior oferece de novo os seus préstimos ao editor, afirmando que também sabe compor histórias policiais, de aventura, de terror e de mistério, que arrancam lágrimas e se vendem regularmente. A maneira como pede trabalho, pelo amor de Deus ou do diabo, revela que o escritor está impaciente e talvez não escrupulize em pôr a sua pena a serviço de qualquer dessas duas entidades, o que não admira, pois Amadeu é jornalista. Muita gente se espanta com o procedimento desse amigo. Não sei por quê. Os fabricantes anunciam os seus produtos e os sujeitos desempregados costumam, desde que há jornais, dizer neles para que servem. Por que apenas o articulista, precisamente o indivíduo capaz de arrumar umas linhas com decência, deve calar-se e roer chifres? Eu por mim acho que Amadeu Amaral Júnior andou muito bem. Todos os jornalistas necessitados deviam seguir o exemplo dele. O anúncio, pois não. E, em duros casos, a propaganda oral, numa esquina, aos gritos. Exatamente como quem vende pomada para calos.

234. GRACILIANO RAMOS. A ÚLTIMA NOITE DE NATAL. Os grandes olhos claros e aguados boiavam na sombra nevoenta, cheios de espanto. Esfregou-os, arrastou-se pesado e entanguido, mal seguro à bengala,sentou-se num banco do jardim, fatigado, suspirando, examinou a custo os arredores. Gastou uns minutos passeando as mãos desajeitadas na gola do casaco. 0 exercício penoso enfureceu-o. Resmungou palavras enérgicas e incompreensíveis, esforçou-se por dominar a tremura. Com certeza era por causa do frio que os dedos caprichosos divagavam no pano esgarçado e os queixos banguelos se moviam continuamente. Era por causa do frio, sem dúvida. Se conseguisse abotoar o casaco e levantar a gola, os movimentos incômodos cessariam. Em que estava pensando ao chegar ali? Ia jurar que pensava em coisas agradáveis. Ou seriam desagradáveis? Pedaços de recordações incoerentes dançavam-lhe no espírito, acendiam-se, apagavam-se, como vaga-lumes, confundiam-se com os letreiros verdes, vermelhos, que se acendiam e apagavam também quase invisíveis na poeira nebulosa. Tentou reunir as letras, fixar a atenção nas mais próximas, brilhantes, enormes. A igreja toda aberta resplandecia. O incenso formava uma neblina perturbadora. E, através dela, os altares refugiam como sóis, a luz das velas numerosas chispava nas auréolas dos santos. Que doidice! Não é que estava imaginando ver ali, nas transitórias claridades, a igreja vista sessenta anos antes? Tresvariava. Sacudiu a cabeça, afastou a lembrança importuna. De que servia desenterrar casos antigos, alegrias e sofrimentos incompletos? O que devia fazer... Pôs-se a mexer os beiços, procurando nas trevas úmidas e leitosas que o envolviam o resto da frase. O que devia fazer... Repetiu isto muitas vezes, numa cantilena, distraiu-se olhando a chuva amarela, verde, vermelha, dos repuxos. Impossível distinguir as cores. Ultimamente a cidade ia escurecendo. As pessoas que transitavam junto aos canteiros sem flores eram vultos indecisos; .os prédios se diluíam nas ramagens das árvores, manchas negras; os letreiros vacilantes não tinham sentido. O que devia fazer... De repente a idéia rebelde surgiu. Bem. Devia meter os botões nas casas e agasalhar o pescoço. Depois cruzaria os braços, aqueceria as mãos debaixo dos sovacos, ficaria imóvel e tranqüilo. Mas os dedos finos e engelhados avançavam, recuavam, não havia meio de governá-los. Se pudesse riscar um fósforo, chegá-lo a um cigarro, esqueceria os inconvenientes que o aperreavam: o frio, a dureza das juntas, o tremor, a zoeira constante, sussurro de maribondos assanhados. Dores errantes andavam-lhe no corpo, entravam nos ossos e vinham à pele, arrepiavam os cabelos, fixavam-se nas pernas, esmoreciam. Agora não estava no banco do jardim, perto das estátuas, das árvores, do coreto, dos esguichos coloridos. Estava longe, a sessenta anos de distância, ajoelhado na grama, diante da igreja da vila. Os rostos embotados, que se dissociavam, juntaram-se no largo onde um padre velho dizia a missa da meia-noite. Fervilhavam matutos em redor das barracas, num barulho de feira, e uma sineta badalava impondo em vão respeito e silêncio. Os cavalinhos rodavam. Esgueiravam-se casais pelos cantos. O padre velho dirigia olhares fulminantes àquela cambada de hereges. Uma figura pequenina cantava os hinos ingênuos, de versos curtos, fáceis. Tudo parecera de chofre muito sério, eterno. Os hinos capengas elevavam-se, estiravam-se. A mulher tinha um rosto de santa e exigia adoração. Sessenta anos. As fachadas enfeitavam-se com lanternas de papel, janelas escancaradas exibiam presépios, listas de foguetes cortavam o céu negro. A sineta badalava, zangada. E o burburinho da multidão não diminuía. Sessenta anos. Da cinza que ocultava os olhos frios saltou uma faísca; os alfinetes pregados na carne trêmula embotaram-se; o espinhaço curvo endireitou-se; um débil sorriso franziu os beiços murchos; os braços ergueram-se lentos, buscando a imagem de sonho. Imagem de sonho, que doidice! Era apenas uma bonita criatura de bom coração. Ligara-se a ela. E dezenas de vezes tinham-se os dois ajoelhado ali na grama, olhando as lanternas, os presépios, os foguetes, o padre que dizia a missa da meia-noite. Algumas esperanças, muitos desgostos. Os meninos cresciam, engordavam. E no jardim da casa miúda um jasmineiro recendia. Depois tudo fora decaindo, minguando, morrendo. Achara-se novamente só. Os filhos e os netos se haviam espalhado pelo mundo. Agora... Que extensa caminhada, que enormes ladeiras, pai do céu ! Já nem se lembrava dos lugares percorridos. Conseguiu abotoar o casaco e levantar a gola. Andar tanto e afinal chegar ali, arriar num banco, não perceber as letras que se acendiam . e apagavam. Certamente àquela hora, diante duma igreja aberta, outro homem novo admirava outra pessoinha ajoelhada, sentia desejos imensos, formava planos absurdos. Os desejos e os planos iam desfazer-se como a. fumaça luminosa dos repuxos.

235. GUILHERME DE ALMEIDA. SOMBRA AMIGA. Não pude deixar de pensar nesse “John Doe” (1) — nesse Homem Comum — que está animando a tela do Art Palácio, quando, na noitinha chuvosa de anteontem, olhei em torno de mim, no ônibus abarrotado, macio e morno. O homem, que eu tinha a meu lado, era vago como uma capa de borracha e simpático como um desconhecido. — O sr., naturalmente, não me conhece. Ninguém me conhece. E isso é justamente o meu orgulho e a minha melhor felicidade. Sabe quem sou eu? Não sabe. Ninguém sabe. No entanto, eu estou todos os dias em todos os jornais. Eu sou aquele "Etc.” cômodo e fácil, que é o remate comum, o exit smiling de todas as notícias de reuniões sociais, ajuntamentos representativos em gares, aeroportos, enterros... “Notamos a presença dos srs. A., B., C., D., E., F. etc.”...Eu sou esse "etc.” Eu sou aquele transeunte de que falam muito confortavelmente as reportagens urbanas: "Um transeunte deu o alarme e o Corpo de Bombeiros acorreu prontamente”:... Eu sou aquele “popular" que socorre sempre cardíacos e atropelados: "Transportada por um popular à farmácia mais próxima, a vítima recebeu os primeiros curativos”... Eu sou o homem coletivo. Não há, na vida, melhor situação do que a minha. 0 sr. é um homem na multidão: eu sou a multidão num homem. Todo o mundo me deve uma atenção, um serviço; e eu não dou a ninguém o trabalho ou a honra de me agradecer. Toda gente me incomoda, e eu não incomodo ninguém... O ônibus parou numa esquina anônima. O homem saiu. Saiu todo banhado por um meu longo olhar; que era de gratidão, de ternura, de admiração e de inveja.

236. HÉLIO PELLEGRINO. MENSAGENS A FERNANDO SABINO. Na juventude, já grande amigo do escritor Fernando Sabino, Hélio Pellegrino lhe escreveu a seguinte mensagem: "O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar a si próprio. Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo em sua liberrérima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma. Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro, do possível encontro com o outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do homem que merece seu nome." Muitos anos depois, quando completava 60 anos, Hélio reformulou o que havia escrito para Sabino, com muito humor: "Quando você faz 20 anos está de manhã olhando o sol do meio dia. Aos 60 são seis e meia da tarde e você olha a boca da noite. Mas a noite também tem seus direitos. Esses 60 anos valeram a pena. Investi na amizade, no capital erótico, e não me arrependo. A salvação está em você se dar, se aplicar aos outros. A única coisa não perdoável é não fazer. É preciso vencer esse encaramujamento narcísico, essa tendência à uteração, ao suicídio. Ser curioso. Você só se conhece conhecendo o mundo. Somos um fio nesse imenso tapete cósmico. Mas haja saco!"

237. HÉLIO PELLEGRINO. SUPERMÃE. Mário de Andrade, em seu livro A Costela do Grão Cão, tem um poema que começa assim: “Existirem mães, /Isso é um caso sério. /Afirmam que a mãe /Atrapalha tudo, /É fato, ela prende /Os erros da gente, /E era bem melhor /Não existir mãe.” O poema segue, por aí afora, numa ascendente espiral de beleza, até a inigualável explosão final: “Oh virgens, perdei-vos, /Pra terdes direito /A essa virgindade /Que só as mães têm!” Rubem Braga, numa crônica deliciosa de O Homem Rouco, dedicada ao Dia das Mães, conta a história de uma Mãe que, de repente, na praia, dá por falta do filho. Catastrófica, amputada, a Mãe hasteia o seu supergrito de desespero e horror: todo o mundo, siderado, põe-se a procurar o afogado, em rebuliço, em pânico, em convulsões e preces, até que o Joãozinho aparece lampeiro, com um sorvete na mão. A Mãe, com um tapa, quase derruba sorvete e filho — "menino desgraçado!" —, e a este, trombudo, humilhado, só resta o recurso de murmurar, entre dentes: "Mãe é chaata...". Otto Lara Resende, num conto chamado Mater Dolorosa, narra a desventura de um menino progressivamente asfixiado pela longa — e incurável — doença da mãe. O sofrimento materno, à semelhança de um miasma em expansão, passou a impregnar todo o espaço doméstico, invadindo as salas, os móveis, o porão, o quintal, as gaiolas de passarinhos, e tudo o mais que existisse na casa. O menino, as criações,as próprias plantas começaram a morrer, confinados e apáticos, até que a morte da mater dolorosa, num cruel paradoxo, lhes trouxesse de novo o sol, a vida e a liberdade. Mãe será chata mesmo? Parece que, por um lado, os depoimentos neste sentido convergem, numa quase unanimidade afirmativa. O próprio Ziraldo, em bilhete a mim enviado, a propósito de sua personagem, a Supermãe, dá a respeito um testemunho saboroso. Diz ele: “Na província; nós fomos criados jogando bola na rua e voltando pra casa, pra lavar os pés e dormir. Mãe era uma coisa boa e meio distante. Cheguei aqui, e era um tal de fazer amigo que tinha que voltar pra casa, por causa da mãe, que eu fiquei besta. Cunhei até uma frase para um deles: ‘A mãe é o maior inimigo do homem".O Ziraldo, como bom mineiro, não se compromete. Fala da mãe dos outros e das supermães alheias, no que, aliás, obra bem. De qualquer forma, a frase dele é uma jóia de humor e de intuição psicológica. Mãe é coisa de tal forma portentosa, e de tão subida força, que um pouco é preciso denegri-la, pichá-la, para poder perdê-la. O curioso e dramático, na dialética da relação mãe-filho, é que o filho, para poder ganhar-se, enquanto sujeito humano autônomo, dono do próprio nariz, precisa criar uma distância respeitável, que o separe da mãe. Isto significa que o filho, para ter a mãe, saudavelmente, necessita perdê-la. O mesmo ocorre com a figura materna, na sua relação com o filho. Ter o filho, enquanto pessoa, centrado na própria liberdade, é abrir mão dele, é consentir na sua existência, como inventor de caminhos. Mãe e filho se perdem para ganhar-se, e se ganham perdendo-se. É esta a contradição geradora da inevitável ambivalência que caracteriza a relação de mãe e filho, nos dois sentidos. Há um luto e uma perda a elaborar, no diálogo entre ambos. Há o tempo que passa, e a nostalgia incurável que dele roreja — pois o tempo não volta nunca. Há, por fim, um progressivo e doloroso reconhecimento de imperfeições, perdas e danos: a mãe, com o tempo, se torna menor, na medida que o filho cresce, até que mãe e filho passam a ser do mesmo tamanho — ambos se tornam maiores. O velho Freud, que não me deixa mentir, tem por um lado uma visão idílica — e isto nele é raríssimo — da relação da mãe com o filho. Trata-se do único vínculo de amor em que o desprendimento, a generosidade e o altruísmo constituem a tônica da relação. Mas, por outro lado, o criador da psicanálise, com a sua cerrada — e sábia — mania de referir tudo e todas as coisas aos componentes da sexualidade, afirma que o filho, para a mulher, é o ressarcimento, ou a indenização, por ela exigidos, em virtude do fato de lhe faltar o pênis. Pela maternidade, a mulher consegue superar a invidia penis, fonte para ela segundo o supracitado Freud — de mortificantes sentimentos de inferioridade. O filho, inconscientemente, para a mãe, pode vir a representar a insígnia fálica que lhe falta. Ele será, então, pedaço e brinquedo narcísico da mãe, coisa e loisa dela, propriedade privada e inalienável, sem direito a uma vida própria. Eis aí, a meu ver, o substrato psicológico a partir do qual a mãe viria a transformar-se em supermãe. Ziraldo, cartunista de gênio, conseguiu apreender a essência do problema, através do seu traço e das situações, universais, e cotidianas, fixadas pela personagem que criou. E espantoso como o artista, pela graça do seu talento, chega a resultados que o cientista só alcança depois de longa — e porfiada — capina. Supermãe, como o mostra Ziraldo, é mãe demais, dominadora e engolfadora, cuidadosa e fervorosa a ponto de transformar o filho num permanente afogado, do qual ela representa a salvação — ou o salva-vidas. Acontece, porém, que a supermãe, ao mesmo tempo que é salvação e salva-vidas, é também o oceano, o báratro profundo, mundão de água onde o filho submerge, por contraditório decreto daquela que o deu à luz. É isso aí: a supermãe dá o filho à luz, isto é, ao pai, ao mundo, à cultura, aos outros e, ao mesmo tempo, quer reabsorvê-lo, aspirá-lo, reintegrá-lo na noite do seu ventre. A supermãe, na verdade, é servidora da noite, rainha da escuridão, e trabalha no sentido de uma dissolução das diferenças. Ela aspira à unidade, à fusão, ao esplendor espesso e escuro do que é completo e silencioso — esfinge de pedra. Acontece que a supermãe, além do mais, corresponde ao mais profundo sonho que o coração humano é capaz de sonhar. Ou melhor: a supermãe corresponde ao desejo de um sono sem sonhos, onde possamos nos perder sem sequer termos notícia de que estamos perdidos. Neste sentido, a supermãe, do ponto de vista psicanalítico, representa em nós a pulsão de morte, a tentação que temos de abdicar de nós mesmos, num naufrágio que nos dissolva no grande oceano cósmico: “É doce morrer no mar”. Nascemos prematurados, desequipados, numa inermidade enorme. Costumo dizer que o ser humano tem sempre mãe de menos, na medida que, ao ser dado à luz da realidade, não tem condições de suportá-la. A criança, nos seus primeiros tempos de vida, veste-se de mãe, cria para si, na fantasia, um agasalho de carne, onde se refugia - como num útero. Ela fica, desta forma, fundida à mãe — à supermãe! —, totalmente identificada a ela, num sono e num sonho em que recupera o paraíso perdido: “e que tudo o mais vá para o inferno”. É assim, a partir desses primórdios, que nos acumpliciamos com a supermãe. No princípio, a exigimos, por questão de sobrevivência. Depois, não sabemos abrir mão dela. Por fim, não queremos abrir mão dela. Fruto do desejo da mãe e do filho, a supermãe é criação a dois, exclusiva e excludente. Haja pai, haja terceiro, haja luz e Logos, para resolver a parada. Do contrário, estaremos fritos.

238. HÉLIO SCHWARTSMAN. Cura-te a ti mesmo. Como ainda estou recebendo e-mails por conta de minha coluna de 23/09 sobre a regulamentação do ato médico, acho que é o caso de voltar ao assunto. Para quem não leu, sustentei que o projeto que tramita no Senado tem caráter alarmantemente corporativo e que a idéia de reservar apenas a médicos todos os procedimentos diagnósticos e indicações terapêuticas não se justifica. Tampouco faz sentido a proposta, algo delirante, de vedar a não-médicos cargos de chefia em hospitais e clínicas. Antes que me tomem por um psicólogo ou enfermeiro despeitado, pronto a lançar-me sobre o butim de uma eventual desregulamentação da área médica, esclareço que sou um mero bacharel em filosofia exercendo --irregularmente, segundo alguns-- o ofício de jornalista. Não tenho, portanto, nenhum interesse profissional nessa intricada questão. A rigor, como marido de médica, até deveria torcer pela regulamentação, já que ela supostamente favorece uma atividade de cujos proventos minha família se beneficia. Meu cinismo, contudo, ainda não chegou ao ponto de fazer-me subordinar minhas opiniões intelectuais a discutíveis ganhos materiais. E não é necessário muito mais do que o bom senso para perceber que a pretensão de médicos de criar uma gigantesca reserva de mercado não faz sentido econômico, social nem sanitário. É claro que o ideal seria que todo mundo passasse por um médico antes de trocar seus óculos, tomar um antibiótico para dor de garganta ou submeter-se a um exame de HIV/Aids. E, já que estamos falando de ideais, o melhor mesmo seria que todos tivessem formação em medicina. Como escreveu Montaigne, "Quem viu jamais um médico servir-se da receita do colega sem lhe tirar ou acrescentar alguma coisa?". É razoável supor que o mundo seria um pouco mais saudável se todos os seus habitantes tivessem bons conhecimentos de anatomia, farmacologia, semiologia etc. Só que nem o mais rematado lunático ousa sugerir que cada cidadão deva passar oito ou dez anos de sua vida em caríssimos cursos universitários estudando essas matérias apenas para se tornar um paciente melhor --ou pior, dependendo da perspectiva. Como em tudo, precisamos aqui pensar em termos de custo e benefício. O médico é provavelmente o profissional mais caro em circulação na sociedade. No Brasil, são seis anos de graduação em regime integral em cursos que exigem, além de aulas expositivas, laboratórios, cadáveres, cobaias e muito material descartável. Depois, são dois anos de residência em hospitais-escola sob estrita supervisão de outros médicos. Uma especialização pode requerer mais dois ou três anos de estudo. E tudo é muito fugaz. Um especialista de ponta que passe um ano sem abrir um "journal" e freqüentar colóquios estará mortalmente defasado. É contraproducente colocar médicos nos quais se investiu tanto para desempenhar tarefas mais simples para as quais outros profissionais podem ser treinados. É mais do que razoável que um optometrista prescreva receitas de óculos, que enfermeiras realizem partos de baixo risco e que fonoaudiólogos diagnostiquem e tentem curar distúrbios da fala. Tudo isso, é claro, dentro de um sistema de referência e contra-referência no qual o médico segue desempenhando papel central. Se aquele parto de baixo risco apresentar complicações ou se o distúrbio de fala for conseqüência de um tumor, é o médico que será chamado para "arrumar a casa". Teria sido melhor que esses tivessem sido encaminhados para o médico antes? É possível que sim. Mas temos condições de arcar com esse custo? É provável que não. Para cada parto que se complica ou gagueira provocada por neoplasia, há centenas ou milhares de casos que se resolvem sem maiores problemas. Reforça meu argumento o contexto de forte aumento dos custos médicos a que assistimos. Entre as várias causas que contribuem para o fenômeno estão os preços cada vez mais elevados que pagamos pela incorporação de novas tecnologias. E esse é um processo que, em princípio, não tem fim. O sucedâneo da PET (tomografia por emissão de posítrons, equipamento de radiodiagnóstico de última geração) será com toda probabilidade um aparelho ainda mais caro, mas que todos quererão ver incluído em suas coberturas de seguro-saúde. Acredito que a iniciativa de regulamentar o ato médico esteja associada à acentuada "proletarização" por que a categoria passou nas duas últimas décadas. Com efeito, é absolutamente comum encontrar hoje médicos com três empregos, fazendo jornadas de 72 horas semanais para garantir rendimentos brutos da ordem de R$ 6.000 ou 7.000. O resultado é o pior círculo vicioso possível: o profissional atende mal porque está sempre cansado e, como não tem tempo para reciclar-se, acaba prestando um atendimento que só piora à medida que ele vai ficando mais desatualizado. (Sem me alongar muito registro aqui que a perda de status do médico está irremediavelmente ligada ao problema da proliferação das escolas de medicina, que formam gente demais e muito mal). Até por razões pessoais, os médicos tem toda a minha solidariedade. Só que solidariedade não é sinônimo de emburrecimento. Tentar resolver as coisas a golpes de caneta criando um gigantesco monopólio não apenas não devolverá aos médicos o status econômico e social de que eles já gozaram como ainda tenderá a colocar mais pressão sobre o combalido sistema de saúde. Se, no setor público, pacientes estão levando até quatro meses para marcar uma consulta, como não ficará a fila se o projeto de regulamentação que está no Congresso for aprovado em seus termos originais e até diagnósticos de unha encravada tiverem de ser feitos por médicos? A resposta inteligente a essa situação não se encontra na sanha legiferante, mas na promoção da própria medicina. Por mais que paramédicos passem a desempenhar tarefas que já foram de médicos, sempre haverá funções que deverão ser realizadas pelos que têm a formação mais completa. Se, no passado, o grosso da clientela de um oftalmologista consistia de pessoas querendo uma receita de óculos, hoje muitos buscam livrar-se dos óculos através de operações que só podem ser feitas por cirurgiões oftálmicos. Com a tendência de envelhecimento da população, cada vez mais doenças crônicas --mais difíceis de diagnosticar e controlar-- deverão surgir. E, num país subdesenvolvido como o Brasil, há também uma imensa demanda reprimida por serviços de saúde. Se há uma certeza, é a de que não faltará serviço para médicos por aqui nas próximas décadas. Em vez de querer resolver as coisas no grito, procurando impor-se sobre outras profissões, os médicos ganhariam mais se dedicassem seus esforços --e poderoso lobby parlamentar-- a melhorar de verdade a formação dos estudantes de medicina, o que teria como efeito colateral positivo a limitação da entrada de novos profissionais no mercado. O projeto de regulamentação do ato médico tal como foi concebido é um desserviço à sociedade e à própria categoria. A proposta conspira contra a autonomia do cidadão de procurar o profissional de saúde que ele considere adequado para seu caso, tende a elevar ainda mais os custos do sistemas público e privado de saúde e, em vez de buscar resgatar a velha dignidade do médico, apenas consagra o atual círculo vicioso de proletarização e mediocridade. Como conclama a Vulgata: "Medice, cura te ipsum!" (médico, cura-te a ti mesmo!). 

239. HÉLIO SCHWARTSMAN. A alma e o ser. No que diz respeito à pesquisa com células-tronco embrionárias --a grande promessa da medicina para a cura de várias moléstias degenerativas--, o substitutivo da Lei de Biossegurança aprovado na semana passada pelo Senado Federal é menos ruim do que o projeto que veio da Câmara, mas ainda está bastante longe do ideal. Se a proposta dos senadores não chega a liberar a clonagem de embriões humanos para fins terapêuticos, como seria desejável, ela pelo menos não proíbe toda e qualquer pesquisa com as células-tronco embrionárias, que conservam a capacidade de converter-se em qualquer tipo de tecido, de pele a ossos. Lamentavelmente, porém, há dúvidas de que até esse tímido avanço sobreviva à nova passagem do projeto pela Câmara, onde é mais forte o lobby religioso. O que os senadores fizeram é o mínimo dos mínimos: autorizaram a utilização, em investigações científicas, dos milhares de embriões excedentes de tratamentos de fertilização, que se encontram congelados em clínicas. Descartados nas primeiras triagens de qualidade e congelados já há anos, eles já não se prestam a ser implantados num útero com vistas a produzir uma gravidez. Ou esses blastocistos são usados em pesquisas, com a finalidade razoavelmente nobre de salvar vidas, ou são destruídos de modo clandestino, ou ficam congelados indefinidamente. É paradoxal que seja em nome da preservação da vida que católicos e protestantes se oponham com tanta veemência a investigações que buscam a cura para moléstias degenerativas que têm o péssimo hábito de matar, como diabetes, alguns tipos de câncer e até coronariopatias, as grandes genocidas dos dias de hoje. É claro que nem todos os religiosos ficaram loucos. Eles são contrários a essas pesquisas porque elas implicam a destruição do embrião, que, para eles, já é uma vida tão boa quanto a de um bebê nascido ou a do papa. Para quem considera que a vida começa na concepção, que é no instante em que o espermatozóide penetra a parede do óvulo que surge a alma definidora da condição humana, o aborto é de fato uma forma de assassinato. O problema desse ponto de vista é que ele não resiste nem a uma rápida análise biológica. A atividade cerebral humana, que é o que mais perto chega da noção de alma, emerge gradualmente ao longo das 40 semanas e semanas de gestação e segue se desenvolvendo após o nascimento. Mesmo o instante da concepção não é exatamente um "instante". Entre a penetração do espermatozóide no óvulo e a fusão genética dos gametas ocorre um intervalo de 24 a 48 horas. Será que a alma leva todo esse tempo para ser soprada no novo ser? Pior, se assumimos todas as conseqüências dessa noção, mulheres que usam DIU ou tomam a pílula do dia seguinte deveriam ser processadas como assassinas, pois esses métodos contraceptivos impedem que o concepto --já com alma-- se implante no útero. (Sei que a Igreja Católica de fato condena toda forma "não-natural" de prevenção da gravidez, mas a maioria dos protestantes não vai tão longe). Uma preocupação mais teológica do que biológica é a que diz respeito às almas dos 2/3 a 3/4 dos óvulos fecundados que jamais se fixam no útero, resultando em abortos espontâneos. Como a "morte" vem após a concepção, a alma já estava lá. Para onde vai esse número tão grande de espíritos, superior mesmo ao de toda a população que já pisou sobre a Terra ao longo da história? Como a maioria das doutrinas cristãs rejeita a metempsicose, temos de produzir um limbo várias vezes maior do que o inferno e o paraíso. Sei que não nos é dado conhecer os planos de Deus, mas parece meio estranho sacrificar a maioria das almas imortais antes mesmo de elas nascerem. Também representa um desafio lógico o fenômeno da gemelaridade. Gêmeos monozigóticos (idênticos) se formam entre 1 e 14 dias depois da fertilização, quando o concepto sofre um desenvolvimento anormal dando lugar a dois ou mais indivíduos com o mesmo material genético. A alma, é claro, já estava lá. Ela também se divide, ou outras almas surgem para animar os demais irmãos? No segundo caso, de onde elas vêm? E, se gêmeos partilharem a mesma alma, como fica o livre-arbítrio? Se um irmão pecar, levará o outro --eventualmente bom-- ao inferno, visto que é a parte imaterial que guarda o dom da vida eterna? Decididamente, é difícil, para não dizer impossível, conciliar a noção de alma com o que sabemos de biologia. Pessoalmente, fico com a biologia, mas é claro que cada um é livre para acreditar no que bem entender. Nosso problema então já não é o de encontrar um critério biológico para determinar o instante em que a vida começa --tarefa sempre fadada a produzir novos paradoxos parecidos com os que eu pincelei acima--, mas apenas encontrar uma fórmula democraticamente aceitável para lidar com o problema das células-tronco, que, no fundo, não passa de uma discussão sobre o aborto, só que enfeitada pela promessa de curas milagrosas. (Aqui, devo registrar que alguns cientistas, no legítimo afã de conquistar simpatias para sua causa, vêm exagerando um pouco na propaganda. Grupos organizados de pacientes de moléstias crônicas parecem acreditar que tratamentos para as mais diversas doenças baseados em células-tronco estão ali na esquina, apenas esperando a autorização do Congresso para ser descobertos. Infelizmente, não é bem assim. Por ora, tudo não passa de promessas, que poderão ou não materializar-se, e nos mais variados prazos. Parece mais realista imaginar que serão nossos netos --e não nós nem nossos filhos-- que poderão se beneficiar largamente da clonagem terapêutica). Voltando à democracia, devo, na companhia de Winston Churchill, lembrar que ela não é o regime ideal, mas apenas o menos imperfeito que a humanidade até aqui experimentou. Principalmente numa democracia, temos de tolerar coisas de que não gostamos. Ainda que o aborto e a obtenção de células-tronco embrionárias configurassem assassinato --interpretação de que não partilho-- existem vários casos de homicídio legalmente aceitos. É o que ocorre, por exemplo, com a legítima defesa. Mas as criancinhas e os embriões, diferentemente de ladrões e invasores de propriedade, são inocentes, argumentarão alguns. É verdade. Mas o soldado inimigo que nossos valorosos militares se aprestam a matar --e com autorização legal-- numa guerra tampouco pode ser considerado responsável pelo conflito. De algum modo, ele também é um inocente --e não apenas o matamos como ainda nos regozijamos com isso, dando medalhas a quem lhe tenha tirado a vida. A verdade é que impossível retirar o arbitrário de qualquer sistema legal. A única forma de ser objetivo nesta matéria é aceitar que o Direito é positivo e não natural, e que somos livres para definir a partir de quando o nascituro ganha direito à vida. Em minha modesta opinião, o único critério verdadeiramente universal no que diz respeito à regulação dos costumes é o da maior liberdade possível. Isso significa que só devemos proibir aqueles atos que geram dano físico ou psicológico objetivo e direto a terceiros. Assim, precisamos renunciar definitivamente a tentar controlar coisas como relações sexuais consentidas entre adultos ou o consumo voluntário de substâncias inebriantes. De modo análogo, cabe à mulher decidir se vai ou não gerar um filho. Se ela tiver bom senso, vai tomar as devidas precauções antes de engravidar. Se não tiver, ainda assim ela deve ter, creio, o direito de optar por um aborto, da mesma forma que damos a um soldado o direito de matar um inimigo inocente. E, se aceitamos que um feto no primeiro trimestre da gravidez pode ser sacrificado apenas porque a mãe não deseja esse filho, com muito maior razão devemos aceitar a destruição de blastocistos de poucos dias com o objetivo de salvar vidas. (Essa discussão das células-tronco, aliás, fica ridícula no cenário jurídico norte-americano, no qual o aborto é reconhecido como um direito constitucional da mulher). No fundo, o critério da maior tolerância possível interessa muito aos próprios religiosos. Afinal, é ele que garante a liberdade do indivíduo de rezar para o seu Deus em contextos em que a sua fé seja minoritária.

240. HÉLIO SCHWARTSMAN. É triste o que aconteceu com o PT. Eu não sou exatamente um ingênuo. Nunca esperei que aquele velho partido que a maioria de nós, mesmo discordando aqui e ali, aprendeu a respeitar por seu vigor ético e sua coerência conquistasse o governo federal e permanecesse o mesmo. Para o bem e para o mal, assumir o poder num contexto democrático força à negociação e, portanto, à moderação. Quem esperava ver o Lula dos anos 80 assumindo a cadeira presidencial em 2003 não entende nada de política. Só que, enquanto outros partidos de centro-esquerda deram alguns passos rumo ao centro político para chegar ao comando do governo central de seus países --sim, vivemos numa época conservadora--, o PT foi mais além e simplesmente rasgou toda a sua história. Estou sendo injusto. Seria mais correto afirmar que o grupo majoritário da legenda, isto é a camarilha que cerca o presidente Lula, revogou tudo aquilo que caracterizava o velho PT. Uma minoria de parlamentares e muitos militantes, sobretudo os ligados a tendências de esquerda, ainda insistem em tentar manter pelo menos um núcleo central do antigo ideário. Não me interpretem mal. Ainda não aderi à luta armada. Algumas traições eram de fato necessárias para poder governar. O PT precisou comer o pão que o diabo amassou em suas primeiras administrações municipais e estaduais para aprender que, numa democracia, é preciso dialogar com outras forças. Se o partido tivesse insistido em sua posição purista de nem sentar-se à mesa com aqueles que julgava não-éticos, Lula provavelmente não teria sido eleito e, se tivesse, não completaria um mês de governo. O fato, contudo, é que precisa haver um limite para a transfiguração de um partido. É preciso que sobrem alguns princípios, ou adentramos num reino que o fim último da ação política se torna chegar ao poder para estar no poder. Eu até entenderia --e entender não é sinônimo de aprovar-- se o PT não poupasse esforços para manter-se à frente do governo como condição necessária para implementar um grande projeto político para o país. O problema é que esse projeto, se um dia existiu, ruiu com o Muro de Berlim. Em seu lugar, ficou apenas o desejo de estar no poder. É nesse contexto que Garotinho afirmou que o PT era o "partido da boquinha". Infelizmente, após a sucessão de suspeitas encimada pelo caso Waldomiro Diniz e completada agora com os Correios e o Instituto de Resseguros parece difícil discordar do ex-governador fluminense. E não há muita dúvida de que o novo PT passou como um trator sobre tudo aquilo que outrora o definia. Primeiro foi a economia. Aqui, é preciso reconhecer que a situação era de fato difícil. Lula assumiu em meio a uma grave crise da balança de pagamentos _que seu favoritismo e posterior eleição ajudaram a agravar. Embora tivesse um claro mandato popular para alterar o modelo econômico, preferiu perseverar na ortodoxia instalada por seus antecessores. Nessa escolha, sepultou praticamente todas as teses econômicas que o partido até então defendia. Quem não se lembra do candidato Lula fazendo pesadas --e convincentes-- críticas aos juros estratosféricos fixados na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso? Em outras áreas o PT no governo também foi rápido em renegar seu passado. A bandeira contra os transgênicos, por exemplo, logo foi esquecida em favor dos interesses do superavitário agronegócio. A regulamentação dos jogos de azar, antes sustentada pelo partido, foi rechaçada ao primeiro cheiro de encrenca. Justiça se faça ao ministro da Saúde, Humberto Costa, que não teve receio de procurar avançar na questão do direito ao aborto, princípio sempre defendido pela ala não-religiosa do PT. O golpe mais certeiro contra a essência do partido, contudo, veio no front ético, que era o que mais fortemente o caracterizava. Os esforços do núcleo duro do governo para barrar a CPI dos Correios demonstram que o PT se tornou exatamente aquilo que criticava nas administrações anteriores: colocou o que se costuma chamar de governabilidade (na verdade, a manutenção de alianças discutíveis) à frente do que antes vendia como princípios inegociáveis. Esclareço aqui não sou o maior entusiasta das CPIs. Ou melhor, como jornalista, gosto delas, mas é preciso reconhecer que, em termos técnicos, estão longe de constituir-se num bom esquema de investigações. O trabalho de polícia necessário para uma instrução processual é complexo e cheio de minúcias legais. Parlamentares, com raras exceções, não têm formação nem experiência para exercê-lo. Freqüentemente metem os pés pelas mãos e estragam provas, o que pode resultar num processo capenga, dando maiores chances de absolvição a réus. Independentemente da avaliação que possamos fazer das CPIs --e algumas delas são realmente importantes--, o fato é que muito grave para a imagem de um partido que se criou em meio a comissões tentar bloqueá-las. Na interpretação benigna, o PT, que orgulhosamente se proclamava um partido "diferente", tornou-se "igual". Numa hermenêutica mais maldosa, descobriu o caminho para o butim das compras públicas --e não dá indícios de que esteja disposto a largá-lo. O mal-estar com o novo PT por enquanto parece mais restrito a intelectuais e aos antigos militantes. Banqueiros e agentes do mercado financeiro continuam, é claro, encantados com o presidente. O que se convencionou chamar de "povão", por ora, não dá mostras de grande desilusão. A situação global da economia apresentou melhora em 2004, e mecanismos como o crédito por desconto em folha de pagamento permitiram a aquisição de bens antes inalcançáveis. Lula permanece assim um forte candidato à sua própria sucessão. Se, porém, surgirem turbulências no horizonte, não será nenhuma surpresa uma forte e rápida reversão da popularidade presidencial, que já começou a ocorrer entre parte dos chamados formadores de opinião. Numa primeira análise, a lamentável trajetória do PT ilustra o quanto de oportunismo e cálculo político havia por trás tanto das antigas teses defendidas pela cúpula do partido --"bravatas", nas palavras do próprio presidente-- como de sua recente conversão ao mercadismo. Num plano mais profundo, ela também parece significar que, no mundo globalizado, governos nacionais podem menos do que já puderam. A menos que acreditemos que Lula e seus escudeiros planejaram desde sempre chegar ao poder com o intuito único de fartar-se, hipótese que me parece improvável, é razoável concluir assumiram o comando sem um projeto de nação, isto é, sem ter idéia de aonde queriam chegar nem do caminho a percorrer. Suas prioridades passaram a ser a tal da governabilidade e a reeleição e, para garanti-las, não hesitaram em fazer todo o tipo de aliança que antes catalogavam como espúria. Nesse contexto, os escândalos de corrupção que cercam o partido não despontam como surpreendentes. O inesperado é que a agremiação que se afigurava como a mais articulada e programática do país na verdade não dispusesse de um projeto político. O resto, parece-me, é conseqüência. O mais grave é que do ocaso do PT à descrença generalizada com a política temos uma linha muito tênue. E, agora que o partido que se forjou em duas décadas de oposição sistemática foi testado e revelou-se igual aos demais, as opções parecem esgotadas. Não será uma surpresa se, no próximo pleito, a população deixar-se seduzir pelo pior aventureirismo populista disponível no mercado.

241. HÉLIO SCHWARTSMAN. Um dos muitos paradoxos que caracterizam a vida institucional do país é aquele pelo qual praticamente todo brasileiro se diz favorável à chamada reforma política e, mesmo assim, ela nunca sai do terreno das boas intenções. Aproveito esta semana pós-eleitoral para apresentar algumas considerações sobre o tema. Não chego a afirmar que eu seja contra mudanças nessa área, mas pretendo mostrar que elas nem de longe bastariam para resolver aqueles que são costumeiramente apontados como os grandes problemas do país em termos de representação. Pessoalmente, sou favorável ao fim da obrigatoriedade do voto e do teto de deputados por Estado na Câmara, mas não creio que eu vá ver em vida esses projetos implementados. Em relação a outros pontos freqüentemente citados, como financiamento público de campanha e voto distrital misto, eu pestanejo, isto é, vejo pontos positivos nas propostas, mas receio que elas tragam implicações negativas talvez maiores. Sobre o sufrágio mandatório, eu já cometi uma coluna. Basicamente, é por razões filosóficas que rejeito a idéia de que eu deva ser obrigado a participar do processo eleitoral. Podem me chamar de conservador, mas eu sou um daqueles que não gostam de toques de doce em pratos salgados. Direito é aquilo que é bom e estamos autorizados a fazer. Dever é aquilo que é ruim e somos constrangidos a realizar. Nada pode ser direito e dever ao mesmo tempo. E o voto, até prova em contrário, é um direito, não um dever. A questão da representação dos Estados na Câmara é ainda mais simples: é um escândalo que o eleitor paulista fique com muito menos deputados do que uma simples regra de três prova como justa. São Paulo, com cerca de 37 milhões de habitantes, faria jus a algo como 102 das 503 vagas da Câmara, mas tem seu total de deputados limitado a 70. Não estou de modo algum negando o princípio federativo. É claro que Estados menores têm de ter um espaço para contrapor-se ao peso econômico de São Paulo. Só que esse lugar já existe. É o Senado, onde cada unidade federativa, independentemente de população e economia, tem direito a três representantes. Aplicar esse raciocínio também na Câmara configura um caso de bitributação abusiva do princípio federativo. Outro ponto muito citado da reforma política é o financiamento público de campanha. Muitos são simpáticos a essa idéia, que poderia reduzir um pouco a força do poder econômico e permitiria uma fiscalização mais eficiente das doações de empresas e pessoas físicas, que seriam proibidas ou severamente limitadas. Em algum grau o financiamento público já existe, uma vez que o chamado horário eleitoral gratuito nada tem de gratuito. As TVs e os rádios descontam o prejuízo em que incorrem de seu imposto de renda a pagar. Assim, somas consideráveis de dinheiro público deixam de entrar nos cofres oficiais. O problema do financiamento público integral, para além do aumento de gastos, são seus efeitos colaterais, o que me leva a desconfiar da proposta, ainda que não a rejeitá-la peremptoriamente. Com efeito, é difícil imaginar um cenário em que o Estado distribua recursos para todos aqueles que desejem disputar um mandato popular. Provavelmente surgiriam mais candidatos do que eleitores. A introdução do financiamento público exigiria mudanças no sistema com vistas a reforçar o papel dos partidos políticos, que agiriam como intermediários entre as verbas e os candidatos. O que me preocupa aqui são as eleições não-majoritárias. Para garantir a equanimidade na distribuição dos recursos, é quase certo que o país trocaria o voto direto nos candidatos por listas fechadas, em que o cidadão se limita a escolher a agremiação de sua preferência. E isso decididamente não me agrada. Uma alteração desse gênero atribuiria poder excessivo às cúpulas partidárias, que definiriam as posições ocupadas por cada candidato na lista. Um sistema assim transferiria um poder que hoje está na mão do eleitor --o de definir quem representa a legenda-- para a burocracia interna. Seria o paraíso para Bornhausens, Anibais, Genoinos e Dirceus. Pior, o sistema dificultaria o surgimento do fenômeno dos campeões de voto, que se credenciam no Legislativo para lançar-se depois em eleições majoritárias. Outro ponto muito citado quando o assunto é reforma política é o voto distrital. Muitos defendem a adoção do voto distrital misto para legislativas, mais ou menos nos moldes em que existe na Alemanha. A idéia é manter parte do sistema como é hoje, proporcional, mas criar também distritos onde candidatos ligados àquela região se enfrentariam disputando diretamente a preferência do eleitor. A idéia aqui, inatacável, é aproximar mais representantes de representados. O problema do voto distrital, puro ou em combinação com o proporcional, está na definição dos distritos que nunca é neutra, mas invariavelmente beneficia alguém. O rico idioma inglês até conta com uma palavra específica para designar a criação arbitrária de distritos eleitorais com a finalidade de fazer alguém ganhar e outrem perder. É a palavra "gerrymander" formada a partir do antropônimo Elbridge Gerry e do substantivo salamandra. Elbridge Gerry foi um governador de Massachusetts do início do século 19 que usou e abusou do redesenho de distritos. A adoção do voto distrital também tenderia a dificultar a eleição de parlamentares mais ideológicos ou de lemas específicos, como o da saúde, da educação ou dos direitos de minorias, e a favorecer candidaturas mais clientelistas, que procuram principalmente resolver problemas do distrito. Os vários efeitos colaterais que enumerei não são necessariamente bons ou ruins. Eu mesmo não sei como me posicionar diante de muitos deles. Meu único receio é o de que estejamos empunhando a bandeira da reforma sem uma apreciação mais cuidadosa de suas implicações. O mais provável é que o redesenho das instituições políticas apenas nos leve a trocar dificuldades velhas por novas. Às vezes, isso pode até ser uma solução, mas na maioria das vezes não passa de um embuste. 

242. HÉLIO SCHWARTSMAN. Acho que irritei alguns homeopatas com minha coluna da semana passada, em que equiparei esse ramo da medicina a xamanismos e pajelanças. É verdade que não resisti à piada, mas quem se dispuser a ler o texto com atenção verá que eu reconheci que a homeopatia tem efeitos terapêuticos, o que é mais do que seus adversários costumam fazer. Vou ainda mais longe e afirmo que Samuel Hahnemann (1755-1843), o criador da homeopatia, era um homem à frente de seu tempo e que deve ter sido responsável pelo salvamento de muitas vidas. Numa época em que as práticas médicas mais correntes consistiam de sangrias e enemas, e a farmacologia abusava de medicamentos à base de mercúrio e outras substâncias tóxicas, não há muita dúvida de que as prescrições homeopáticas se afiguravam como alternativas menos letais. Vale recordar que a maioria das doenças que acometem o homem passa sozinha. Mesmo hoje, com um amplo arsenal terapêutico mais ou menos eficaz à disposição, freqüentemente os médicos se limitam a acompanhar o desenvolvimento natural da patologia, só intervindo caso a moléstia provoque complicações inusuais. O "similia similibus curantur" (coisas semelhantes são curadas por semelhantes) postulado por Hahnemann levou à descoberta, em 1796, de que o quinino era um medicamento eficaz contra a malária, pois, quando ministrado a pessoas saudáveis, provocava uma sintomatologia semelhante à dos que padecem de infecção por protozoários do gênero Plasmodium. É claro que, de uma perspectiva epistemologicamente moderna, o sucesso no caso do quinino não autoriza de modo nenhum a transformar o "similia similibus curantur" num princípio heurístico universal. Quem tentar controlar uma hipertensão ministrando drogas que aumentem a pressão de pessoas sadias provavelmente só conseguirá piorar a condição clínica do paciente. O outro grande dogma da homeopatia instituído por Hahnemann é o de que a eficácia dos medicamentos aumenta com a diluição. Doses grandes agravariam a doença, já as pequenas a curariam. A essa doutrina, exposta em seu "Organon der rationellen Heilkunst" (Órganon da Medicina Racional, de 1810), ele chamou de "potenciação da dinamização". De novo, é difícil modernamente compreender o que há de racional na diminuição das doses. É justamente por conta da aplicação desse princípio que a homeopatia é vista com desconfiança hoje pela ciência normal. Medicamentos homeopáticos passam por tantas e sucessivas diluições que, ao final do processo, já não sobraram moléculas do ingrediente original. Daí a dificuldade para explicar sua atuação em bases físico-químicas, as mais utilizadas na medicina alopática. Ficou célebre o caso da memória da água, protagonizado pelo imunologista francês Jacques Benveniste. Em 1988, a revista científica britânica "Nature" trouxe um artigo de Benveniste em que ele reclamava ter encontrado a base farmacológica da homeopatia, que chamou de "memória da água". Segundo o pesquisador, a água era capaz de "se lembrar" do que fora dissolvido nela, apesar das intermináveis diluições. Só que a "Nature" tinha feito um acordo com Benveniste, pelo qual, após a publicação, uma equipe da revista examinaria seu laboratório. Os investigadores apontados foram o físico John Maddox, editor-chefe da revista, Walter Stewart, químico orgânico especialista em fraudes científicas, e o mágico James Randi, líder de uma associação de céticos. Sob a vigilância do trio, os franceses foram desafiados a repetir a experiência e não conseguiram. Em seguida, a "Nature" publicou um artigo devastador ridicularizando Benveniste, que perdeu seu até então prestigiado laboratório e tornou-se um "outsider" da ciência. Como o leitor sagaz deve ter percebido, o fato de não sermos capazes de dizer como uma coisa opera não significa que ela não funcione. Quantos de nós sabem descrever com precisão a teoria que faz com que o forno de microondas esquente os alimentos? No entanto, basta que metamos a comida lá dentro e apertemos o botão para que o engenho trabalhe. A medicina, seja ela alopática ou homeopática, não é exatamente uma ciência. Ela é antes uma arte. Está mais interessada em resultados do que em teorias. Utilizamos com sucesso várias drogas alopáticas mesmo sem saber com exatidão por quais mecanismos ela atua. Sabemos apenas que ela age e isso nos basta --e principalmente ao doente. E a homeopatia também funciona, como demonstram vários estudos com abordagem estatística. Aqui, para sermos justos com a alopatia é preciso dizer que muitos especialistas na chamada medicina baseada em evidências apontam problemas metodológicos nos trabalhos pró-homeopatia. É também um fato que os sucessos apresentados pela homeopatia são em geral menos veementes do que os demonstrados pelas boas drogas alopáticas. A rigor existe uma explicação alopática para os resultados da homeopatia. Antes de prosseguir, peço licença para cometer uma inconfidência. Eu mesmo sou um usuário da homeopatia e posso atestar que ela funciona, embora não do jeito que os homeopatas gostariam. Eu me explico. Éons atrás, sujeito de mente aberta e de espírito científico que sou, resolvi experimentar um tratamento homeopático. É claro que não funcionou, mas os frascos contendo os medicamentos ficaram sobre a minha estante. Hoje, sempre que um de meus filhos gêmeos, agora com dois anos e meio, vem se queixar de dores sem importância, em geral após chocar-se com um objeto ou levar uma mordidela da cachorra, pingo-lhes no local uma gota do preparado --um tal de "bromatum"-- e o incômodo desaparece como num passe de mágica. As mentes de crianças e adultos não são, afinal, tão diferentes assim. Isso é o que os cientistas chamam de efeito placebo, pelo qual o simples fato de alguém achar que está sendo tratado já contribui, às vezes decisivamente, para a sua recuperação. É esse fenômeno que explica, no plano científico, como rezas, pajelanças e várias terapias alternativas baseadas em contra-sensos podem apresentar resultados positivos, se o paciente acredita nelas e quando a doença tem forte fundo emocional, como asma, alergias etc. Não por acaso, essa é a área em que a homeopatia tende a ter melhor performance em estudos controlados. A pergunta que fica é se é possível que a homeopatia tenha efeitos farmacodinâmicos reais e nós não saibamos disso. Sim, possível é. Recentemente, laboratórios não-comprometidos com a homeopatia se depararam com um fenômeno intrigante, no qual sucessivas diluições de determinados compostos, ao invés do afastamento das moléculas, levou à aglomeração e, depois, à formação de grandes agregados. Isso evidentemente ainda não basta para dar uma base farmacológica à homeopatia, mas indica que precisamos estudar mais química. Quem sabe um dia tenhamos uma explicação um pouco melhor para resultados de experimentos com preparados homeopáticos, embora eu não acredite muito nessa possibilidade. Em termos práticos, não há dúvidas de que os próximos grandes avanços no campo da medicina virão da alopatia. As bases epistemológicas da homeopatia são frágeis e seus resultados, embora não inócuos, menos bons do que aqueles obtidos com drogas que contenham princípios ativos e "in vivo" produzam metabólitos. É verdade, por certo, que a indústria farmacêutica nos impinge uma série de produtos alopáticos de efeitos discutíveis, que pouco ou nada acrescentam ao arsenal já existente. Mas apenas cogitar de tratar uma sepse ou uma pneumonia bilateral com produtos homeopáticos e não com antibióticos poderia configurar um caso de omissão de socorro. É por essa e outras razões que defendi que a rede pública se centre na medicina alopática. A linha de frente dos hospitais e postos oficiais está mais esburacada do que um queijo Emmenthal. Consultas estão levando meses para ser marcadas. É preciso resolver esses gargalos com máxima urgência, pois pessoas podem estar morrendo porque um médico não as vê a tempo. Num futuro que espero não seja remoto, talvez seja o caso de oferecer também tratamento homeopático, certamente útil em algumas patologias. E os médicos alopatas podem e devem aprender algumas lições com seus colegas homeopatas, como fazer consultas e anamneses um pouco mais longas, prestando a devida atenção às queixas dos doentes. O tempo "perdido" com as lamúrias tende a ser economicamente recompensado com uma suspeita diagnóstica mais precisa, o que resulta na diminuição de pedidos de exames, muitas vezes caros e com resultados ambíguos. No dia em que o Estado for rico, se é que isso vai ocorrer, por que não oferecer também o serviço de xamãs e carpideiras? Apesar de todos os avanços da medicina, em muitos casos ela é totalmente impotente. É quando o conforto psíquico do paciente, que depende de suas crenças e formação cultural, deve tornar-se a prioridade.

243. HELOISA SEIXAS. ASSOMBRAÇÃO. Clara deu uma risada nervosa quando ouviu a insistência de Clarice ao telefone: — Eles fazem questão de que você vá. Querem que você conheça o sítio mal-assombrado. — Mas... você tem certeza de que vai ter lugar para todo mundo? — indagou. Sabia que Clarice iria com os dois filhos. Ela mesma teria de levar seu menino, pois o ex-marido estaria viajando no fim de semana. Contando com os donos do sítio e mais um casal convidado, que ia com o filho adolescente, seriam ao todo dez pessoas. — Talvez fosse melhor nós irmos num fim de semana em que eles não tenham outros convidados — argumentou. — Não seja boba, Clara. Tem lugar, sim. Senão eles não teriam insistido tanto. Não adianta vir com desculpas. O que há? Está com medo? — Claro que não! Você sabe muito bem que eu não acredito nessas coisas — retrucou. Não, não era medo. Sentia uma inquietação. Sim, estava inquieta, tinha de admitir. Como se pressentisse a aproximação de um perigo. Mas sabia que isso era uma bobagem. O que poderia haver, afinal? Seu filho, Pedro, de sete anos, estava louco para ir. E ela própria ficara curiosa com as histórias de fantasmas. Vinha ouvindo as tais histórias havia meses, desde que conhecera Clarice. Os olhos castanhos da amiga brilhavam de excitação quando ela as contava. Clarice. Era engraçado pensar que só a conhecia havia... quantos meses? Junho, julho, agosto, setembro. Quatro. Só quatro meses. Sentia como se fossem amigas de infância. As crianças também. Pedro e os dois meninos se entendiam e desentendiam como irmãos. E de certa forma o eram. Pelo menos Pedro e Paulo. Os dois, o filho de Clara e o filho mais novo de Clarice, haviam nascido na mesma época, com uma diferença de apenas dois dias. Nada demais, não fosse por um detalhe, descoberto por acaso: um dia em que Clarice aparecera com a certidão de nascimento de Paulo, as duas viram, com grande surpresa, que o nome da testemunha no documento era do ex-marido de Clara, pai de Pedrinho. Como é de praxe em cartórios, os pais que estão na fila do registro assinam como testemunhas uns dos outros. A coincidência engraçada era que os ex-maridos de Clara e Clarice tivessem ido ao mesmo cartório, no mesmo dia e na mesma hora para registrar os filhos, sete anos antes de elas duas se conhecerem. Clara sorri, lembrando-se do espanto de Clarice ao fazer a descoberta. Sempre tão engraçada, tão alegre, Clarice prendia a atenção de todos onde chegava. Era uma mulher bonita, de cabelos. muito negros, pele morena aveludada como a superfície de um pêssego, olhos de um castanho líquido que pareciam a todo momento umedecer seus longos cHios. Uma pessoa tão doce... Pena que se metesse em tantas loucuras. A própria Clarice lhe contava suas aventuras, suas noites de bebedeiras e drogas, a sucessão interminável de namorados, como se quisesse se vingar dos dez anos de casamento que tanto a haviam atormentado. Errava pelos bares à noite em companhia de pessoas que pareciam dispostas apenas a sugá-la, aproveitando-se de sua bondade, gravitando em torno dela como vampiros sedentos. Bebia demais e quanto mais se misturava àquela gente mais compulsiva se tornava. Drogava-se com freqüência, às vezes mesmo subindo morros com os companheiros de noitada, em busca de droga. Clara temia por ela, pelas crianças. Procurava dar-lhe conselhos, mas de nada adiantava. Havia nela, naquela mulher tão delicada, uma poderosa sede de autodestruição, que a subjugava. O tal casal dono do sítio mal-assombrado era talvez um dos poucos de seu círculo de amigos, além da própria Clara, que não vivia metido em loucuras. O sítio. O sítio mal-assombrado. Ia afinal conhecê-lo. Clarice falava tanto nele... Clara não podia negar que estava curiosa. Outro dia, num jantar em casa de amigos comuns, o sítio mal-assombrado fora o assunto da noite. Clara lembrava-se bem. Todos falavam com naturalidade dos fantasmas, parecendo mesmo divertir-se com a situação. Ninguém tinha medo. Clara tampouco. Na verdade ouvia aquilo com grande dose de incredulidade. Mas sentira uma sensação desagradável ao ouvir dos donos do sítio a explicação para tanta assombração: segundo eles, o antigo dono do lugar se suicidara lá, enforcando-se junto a uma bela cachoeira existente dentro da propriedade. Clara arrepiara-se ao ouvir aquilo. Tinha horror a enforcamentos. Desde muito pequena, quando ouvia na escola as histórias de Tiradentes, fixava na professora os olhinhos muito abertos, sentindo um nó na garganta, como se uma invisível corda ali lhe apertasse. Perguntara ao casal como eles tinham ficado sabendo daquilo. Por intermédio dos próprios herdeiros, de quem haviam comprado a propriedade, disseram. Clara engolira em seco. Eram muitas, as histórias. Todos ou quase todos os amigos do casal que já haviam passado dias no sítio tinham um caso para contar. Um rapaz, de nome Caio, relatara que certa vez vira uma mulher agachada chorando num canto da sala. Ia passando distraído quando dera com ela. Voltara-se para olhar uma segunda vez, a fim de se certificar do que estava vendo, e ela já havia desaparecido. Alguém perguntou se ele não tinha bebido muito naquela noite e ele teve de admitir que sim. Todos riram. Outra amiga relatara sua experiência, dizendo ter acordado no meio da noite com um infernal barulho de pratos e panelas na cozinha. Como muitas pessoas estavam hospedadas no sítio naquele fim de semana, levantara-se furiosa pensando em reclamar com a turma que fazia o barulhento lanche da madrugada — e ao chegar ao fim do corredor se deparara com a cozinha silenciosa e vazia. Havia também o caso do suspiro. Este se dera com Pablito, rapaz solteiro e mulherengo que era velho freqüentador dos fins de semana assombrados. Na ocasião, ainda se vangloriava de ser um dos poucos que jamais tinham visto uma alma penada na casa. Certa noite, já estava deitado sozinho no quarto, com as luzes apagadas, quando ouvira, a seu lado na cama de casal, um suspiro. Um suspiro profundo e sentido, um suspiro de mulher. Logo imaginara que alguma das moças hospedadas na casa fora refugiar-se a seu lado. Levantara-se, intrigado. Fora, às apalpadelas, até a parede junto à porta em busca do interruptor, já que o abajur estava sem lâmpada. Acendera a luz. A cama estava vazia. E no mesmo instante ele se lembrara, sentindo-se gelar da cabeça aos pés, de que havia trancado a porta por dentro antes de se deitar. Desde então nunca mais duvidara das histórias de assombração. Clara ouvira aquelas histórias com curiosidade mas, por um motivo ou por outro, fora adiando a ida ao sítio. Agora, ao que parecia, chegara a hora. Tempo de enfrentar os fantasmas, pensou, com um sorriso de incredulidade. Dali a três dias. Já lhe tinham dito que o sítio era um local belíssimo, encravado num vale em meio a montanhas, mas Clara se surpreendeu. Que lugar! Assim que os carros deixaram a Rio-Petrópolis, tomando à direita um caminhozinho de terra, todo esburacado, ela sentiu como se penetrassem um mundo intocado pelo homem. O caminho de terra, que só dava passagem para um carro de cada vez, cortava a mata fechada, com cipós pendurados. Nas margens, tapetes de marias-sem-vergonha e no ar um cheiro penetrante de folhas apodrecidas. Era úmido ali. A mata quase se fechava sobre a estradinha e, como ainda havia muita névoa, o caminho se tornava mais sombrio. Fazia frio, muito frio. Fecharam as janelas. Vidros embaçados, mal se enxergava o caminho à frente e os três carros seguiam devagar, pelo chão de barro escorregadio. Risadas nervosas cortavam o silêncio. De repente, Clara viu surgir o vale à sua frente, deslumbrante. Era um descampado cheio de sol, cercado de montanhas sombrias por todos os lados. A trilha úmida terminava de repente, desembocando em toda aquela luminosidade que quase cegou. Saltaram. A casa, daquelas antigas, com varandões em arco e janelas pintadas de azul colonial, ficava a um canto, junto a um imenso flamboyant. À frente, estendia-se o gramado, salpicado por troncos com bromélias e alguns arbustos. Era um vale descarnado em meio às montanhas cobertas por mata fechada, num lindo contraste. — Não parece uma casa mal-assombrada — comentou Clara. Clarice sorriu, sem nada dizer. E a amiga do casal, mãe do adolescente, dando de ombros: — De noite é que vamos saber. A primeira coisa que fizeram, depois de deixar a bagagem nos quartos, foi sair para conhecer a cachoeira, o lugar mais bonito do sítio, pelo que todos diziam. Do lado esquerdo da casa, havia uma pequena trilha na mata que levava até lá. Um caminho menos sombreado do que a estrada de carro. Ali, a luminosidade penetrava pelo trançado das folhas. Junto à trilha, grandes touceiras de colônias, lírios e xaxins formavam a vegetação. À medida que caminhavam, Clara sentia como se a mata os envolvesse, com seus cheiros de flores e terra úmida, seus murmúrios e zumbidos que se fundiam em uníssono, como uma respiração. Caminharam assim durante algum tempo, até que começaram a ouvir o som das águas. Chegavam ao fim da trilha. A pequena clareira, ornada pelas pedras do regato, foi o ponto onde todos pararam, hipnotizados pela beleza do lugar. A cachoeira era um santuário. Um fio d'água se despejando sobre um laguinho verde-escuro, pequeno e gelado, como um cenário de cinema. Era tudo tão perfeito, tão harmônico e bonito, que o primeiro pensamento de Clara foi que era difícil entender como alguém podia se matar num lugar assim. Arrepiou-se ao pensar nisso. Ficou por um tempo sentada sobre uma pedra limosa, olhando toda aquela beleza. Depois tomou coragem e mergulhou na água cor de esmeralda. Tão gelada que sentiu vontade de rir e chorar. Começou a nadar para se aquecer. Nadou em direção à queda-d'água. Quando já sentia os respingos gelados sobre sua cabeça, parou de nadar e olhou para cima. A água parecia fumaça de gelo seco. E os respingos que lhe caíam no rosto produziam uma sensação de choque na pele. Ficou assim por uns segundos, tentando manter os olhos abertos apesar da água que caía com força. Foi quando sentiu a tontura. Uma tontura tão forte que precisou se segurar na parede de pedra para não afundar. Agarrou-se a ela, respirando fundo, os olhos arregalados, com a sensação de que ia desmaiar. Procurou acalmar-se. Sabia que não havia perigo, já estava passando. E depois todos estavam ali, nada de mal lhe poderia acontecer. Com o coração batendo forte, nadou de volta para a parte rasa. Chegou ofegante. — Está fora de forma, hein? — brincou alguém. Clara deu um sorriso sem graça: — Foi o frio. Quando a água ia ficando cada vez mais gelada e as crianças já começavam a reclamar de fome, decidiram que era hora de voltar. Tomaram outra vez a trilha estreita, um atrás do outro, por entre as árvores. Clarice ia bem à frente de Clara, sempre brigando com o filho, Paulo, que ameaçava embrenhar-se no mato a cada instante. De repente Clara sentiu o cheiro. Um cheiro doce e inconfundível de caju. Caju maduro, já meio pisado, quando dele escorre líquido, fazendo juntar mosquitos. Cheiro forte e gostoso, quente, que destoava da paisagem fria da montanha. — Que engraçado... que cheiro de caju! — disse para Clarice, à sua frente. Ouviu com nitidez a resposta dela, embora Clarice não chegasse a se virar para trás. — É ele. Ele gostava muito de cajus. Clara bateu no ombro da amiga. — Ele quem? Clarice virou-se e olhou para ela. — O quê? — De quem você estava falando? — insistiu Clara. Clarice franziu a testa, com ar debochado. — Ficou maluca, é? Do que você está falando? — Eu estava falando sobre o cheiro de caju. E você respondeu alguma coisa sobre alguém que gosta de cajus... Clarice olhou para ela, espantada. — Eu? Eu não abri a boca! — disse. E depois de uma pausa: — ... e além do mais com o frio que faz nestas montanhas, não sei como você pode estar sentindo cheiro de caju. Um pé de caju aqui morreria congelado... A noite chegou muito fria, mas nada assombrada. Clara sorriu ao pensar nisto. Estivera inquieta todo o dia, por causa dos acontecimentos estranhos na cachoeira, mas já quase se recuperara. A tonteira, claro, fora conseqüência do frio. Ou estômago vazio, talvez. E o comentário de Clarice... bem, com certeza se enganara, ouvira errado. Ou talvez fosse molecagem de Clarice, para testar seu medo. Sorriu. Respirou fundo. Precisava livrar-se daquele aperto no peito. O lugar era tão bonito, tudo tão agradável. Não havia razão para se sentir inquieta. Assim que a noite caiu completamente, todos foram até a varanda olhar o céu. Um céu de planetário. Fundo negro e estrelas, estrelas, estrelas, como só é possível ver num lugar assim. E em torno das montanhas, suas sombras imensas, silenciosas. Nenhum ponto de luz na mata, nada. Nenhum vestígio do ser humano. Depois do jantar, aquecidos por vários copos de vinho tinto, foram todos lá para fora. As crianças também, muito bem agasalhadas, pois o frio era cada vez mais cortante. Iam, por sugestão dos donos da casa, brincar de se pendurar no céu. Estenderam cobertores no gramado em frente à casa e se deitaram, depois de apagar todas as luzes. A brincadeira consistia no seguinte: cada um devia ficar deitado, de olhos fixos no céu, e tentar imaginar que estava em cima dele, pregado em uma abóbada e vendo o infinito a seus pés. Preso ali na crosta terrestre pela força da gravidade, como no brinquedo rotor dos parques de diversão. Clara sorria com excitação. Depois de alguns minutos imóvel ali, a sensação começou. Logo já era perfeitamente nítida. Sentia mesmo como se estivesse no alto, pendurada, grudada, com o céu lá embaixo. Era uma sensação deliciosa e surpreendente. Até as crianças pareciam hipnotizadas pela ilusão da brincadeira. Logo descobriram que quando alguém falava a sensação se perdia. E ficaram em silêncio. Ouviam apenas os grilos, os murmúrios da mata. Clara estremeceu com o frio, mas esforçou-se para se manter imóvel, sabendo que do contrário quebraria o encanto, perderia a sensação de euforia e domínio, de estar acima do céu, senhora do infinito. Era impressionante o silêncio. Parecia fechar-se cada vez mais em torno dela, denso, quase palpável. Ouvia os zumbidos da mata mais e mais fortes, de novo como uma respiração, como lhe parecera na cachoeira. Teve de repente a sensação de estar só ali, apenas ela e as estrelas na noite silenciosa. E ao redor a mata, com seu zumbido que crescia, crescia, como se... a espreitasse. Abriu muito os olhos, assaltada por um medo súbito, a nítida impressão de que ia cair. A vertigem outra vez! Isto não pode acontecer agora, não agora que está ali sozinha, pendurada na crosta da terra. Se não se agarrar com força, vai se desgrudar e despencar no infinito! — Não!!! — Senta-se, assustada. Todos se levantam e olham para ela. — Ah, você estragou a brincadeira! — reclama uma das crianças. Clara se desculpa. — Acho que cochilei e tive um pesadelo... Pouco depois entram. O frio já se tornara insuportável. Comentam a beleza do espetáculo, excitados ainda, como meninos saindo de um circo. Apenas Clara está quieta. Acendem as luzes a contragosto, com pena de macular com sua presença humana aquela noite primitiva e bela. Depois, sentam-se ao redor da mesa tosca, para jogar buraco. O frio os faz beber sem parar, sorvendo em grandes goles o vinho tinto de garrafão, acre, rascante. As crianças se divertem assando na lareira batatas-doces envoltas em papel laminado, que depois comem com melado, entre gritinhos e sopros. O tempo passa. O jogo de buraco se arrasta, entre bocejos e esfregar de olhos vermelhos. Logo as crianças começam a cochilar nos sofás ao redor da lareira. No silêncio, ouve-se o crepitar da lenha, enquanto as chamas fazem dançar as sombras projeta das na parede. O velho cuco de madeira faz seu tique-taque seco, em meio ao lento arrastar das correntes que sustentam os pesos do relógio. Súbito, ouvem passos lá fora. Passos de alguém correndo em volta da casa, passadas rápidas e pesadas no cimento do passeio que circunda a construção. Entreolham-se, sem nada dizer. Clara franze o rosto. Levanta-se e já se prepara para abrir a porta quando a dona do sítio a retém. — Aonde você vai? — Ver quem está lá fora. Quem pode ser, com este frio? — indaga. — É melhor deixar para lá, Clara. Já ouvimos isto muitas vezes. Procuramos simplesmente não dar importância. É isto. É melhor pensar que não ouvimos nada. E depois, não sei... talvez sejam os cachorros — diz a amiga. Clara senta-se, sentindo voltar o aperto no peito, na garganta. Cachorros... Tem certeza de que eram passos humanos. Não é possível! Devem estar querendo pregar-lhe alguma peça. Olha em torno. Onde está Clarice? Teria sido ela? Clarice não estava na sala. Fora lá para dentro havia pouco e não mais voltara. Clara anuncia que está cansada, que não tem mais vontade de jogar. Levanta-se outra vez. Vai até o corredor, mas logo se detém. As portas entreabertas lhe revelam a escuridão dos quartos e um frio de medo lhe percorre a espinha. Decide entrar no banheiro, o grande banheiro de azulejos pintados, que fica à esquerda, logo no início do corredor. Acende a luz. Olha-se no espelho que toma quase toda a parede do banheiro. Chega mais perto, olhando-se. Decide retocar o batom, pois vê que seus lábios estão cada vez mais ressequidos pelo frio. Tira do bolso o batom que traz sempre consigo e começa lentamente a fazer o desenho dos lábios. É quando vê Clarice surgir às suas costas. Sorri para ela através do espelho. Mas Clarice está séria. Tem os olhos avermelhados, olhos de quem bebeu demais. Fica ali alguns segundos, em silêncio junto à porta. Clara a encara com ar interrogativo, o bastão do batom parado no ar. — Onde você estava? Silêncio. — O que houve? — insiste. Clarice a olha com seus olhos líquidos. — Você já sabe, não é? Clara franze o rosto, como quem não compreende. — Sei o quê? Clarice sorri e leva aos lábios o copo de vinho que tem nas mãos. — Sabe, sim — diz. E desaparece na penumbra do corredor. Clara entra na cozinha em busca de um copo d'água, a boca subitamente seca. Encontra a dona da casa, guardando pratos. Ela percebe a inquietação de Clara e sorri    com doçura: — Você já sabe, não é? — Já sei o quê? — Clara recua. — A história dos cajus. Clarice não lhe contou? Ela me disse que lhe contaria. — Ah... não, ela não me contou — Clara retruca, confusa. — Qual é a história dos... cajus? — Clarice me falou do cheiro que você sentiu na cachoeira — diz a dona do sítio. — Não é a primeira vez que acontece, sabia? Houve outros casos. Um dia comentei com a neta dele, a que nos vendeu o sítio, e ela me disse que ele tinha verdadeira loucura por cajus. Era sua fruta preferida. Talvez seja por isso que... — Pra mim chega! — corta Clara, com a voz alterada. — Estou farta dessas histórias ridículas! E sai da cozinha, batendo com força a porta atrás de si. Na divisão dos quartos, Clara havia ficado com Pedro no cômodo ao lado de Clarice, que dormiria com os dois filhos. Só que, na hora de deitar, Pedro preferiu dormir com os outros meninos. E Clara acabou ficando com um quarto só para ela. Não se importou. Talvez fosse até melhor, pensou, pois assim conseguiria dormir até mais tarde. Já havia recuperado seu bom humor e até pedira desculpas à dona da casa por sua irritação na cozinha. Afinal, tudo aquilo não passava de uma grande bobagem, não havia mesmo razão para se irritar. Olhou o quarto à sua volta. Era aconchegante. Tinha cortinas de babadinhos feitas em tecido xadrez azul e branco, igual ao forro da cama. Móveis pesados, de madeira escura, assoalho de parquê desenhado, tapete de corda no chão. Sobre a penteadeira, um escovão antigo e um arranjo de flores secas, com pinhões. O abajur também tinha a cúpula quadriculada, mas logo percebeu, desapontada, que não tinha lâmpada. Vendo a cama de casal, lembrou-se da história. Ouvira quando Pablito, o amigo dos donos do sítio, descrevera o quarto. Com certeza fora ali. Era aquele o quarto. O quarto dos suspiros. Seus olhos examinaram a cama vazia e pousaram nos travesseiros, primeiro um depois o outro, como se procurando adivinhar onde se deitara o fantasma. Mal conteve o riso nervoso ao pensar nisto. Devo ser muito impressionável mesmo, concluiu. Outra vez pensando bobagens. Encolheu os ombros e voltou a concentrar-se no abajur sem lâmpada, em dúvida sobre se valeria a pena ler com a luz de cima e depois ser obrigada a levantar-se para apagá-la. Decidiu afinal que não leria. Estava com tanto sono que não conseguiria ler mais do que duas páginas do livro. Encostou a porta, apagou a luz e deitou-se. Logo seus olhos acostumaram-se à escuridão e ela percebeu a luminosidade que penetrava pela fresta embaixo da porta. Era a luzinha vermelha que a dona do sítio deixava acesa no corredor, para que as pessoas não se perdessem a caminho do banheiro. Sentiu um doce torpor envolvê-la. Vertigem? Suave vertigem de sonho, enredando-a pouco a pouco, como um novelo de lã, macio e quente. Bruma, névoa. Vertigem. Suave vertigem de sonho, enredando-a pouco a pouco, como um novelo de lã, macio e quente. Agora tudo é silêncio. Clara não se move, não pode fazê-lo. É um ser sem vontade própria, envolto pela escuridão que o acolhe. Nada vê. Mas todo seu corpo está à espreita, aguardando, pressentindo. Súbito o silêncio é rompido por um rangido de porta e Clara sente seu corpo ser golpeado pelo sopro do ar frio. Está chegando. Seu coração pára ao perceber a aproximação da presença assombrada. Ouve os passos imateriais, murmúrios, suspiros. Continua imóvel, como se a noite a atasse. De repente, sente o toque das mãos, primeiro em seu rosto, depois descendo lentamente pelo pescoço, pelos ombros. Nos vapores da noite, o hálito espectral se aproxima, buscando-a. Continua inerte. É um sonho estranho, feito apenas de tato e cheiro. Arrepia-se, estremece. Pensa que é preciso abrir os olhos e encarar a presença assombrada, mas não o faz. Apenas se mantém à espera, imóvel e silenciosa, para que ela a possua, envolvendo-a no ectoplasma daquele amor proibido. Assombração, fantasma, espectro, fino tecido translúcido vindo de outro mundo, emergindo das sombras, para tomá-la. Tremendo de pavor e desejo, Clara se entrega. Está agora presa na teia mágica de longos fios, cabelos de seda com cheiro de almíscar que a encobrem e rodeiam, formando a doce tenda que abrigará o beijo, afinal. Sim, o beijo. Lábios carnudos e molhados que tocam os seus, primeiro suavemente, depois com mais e mais ardor, molhando, sugando, buscando, explorando-lhe a boca, sorvendo-lhe a língua, bebendo-lhes a saliva com louca paixão. O beijo vai agora tomando posse de todo seu corpo, sanguessuga que a percorre inteira, vencendo as formas, subjugando a matéria, acendendo-lhe, com seu sopro, imaterial, o fogo do mais louco desejo. Cada parte de seu corpo é uma cidadela que cai ante a fúria daquele beijo úmido e quente, que transforma tudo por onde passa em chama acesa. Seus seios se entregam e, mal são tomados, já seu ventre se arqueia na busca do contato com aqueles lábios que a devoram como animais selvagens. Logo toda ela é uma flor que se abre para revelar seu mais secreto perfume, essência da fenda misteriosa onde o beijo vai penetrar para sorver-lhe a alma. Aroma, néctar, pólen, mágicas poções do amor, todas as delícias que ali se escondem já não são suas, perderam-se na morna mistura de saliva que lhe inundou o ventre, torrente caudalosa que a arrebata, arrastando-a por mares e rios, arrancando as folhas das margens, tomando tudo, tudo dominando, para atirá-la no louco redemoinho do prazer, vertigem que a faz cair no infinito, tendo o céu a seus pés, como se mergulhasse num sonho dentro de um sonho. Não, não está sonhando. Clara sabe. Sabe que já não precisa fugir, que é tudo real. E no entanto o medo cessou. Já não sente pavor ou inquietação. O cheiro doce do prazer impregnou o ar com suas essências eternas, que através dos séculos encharcam o leito dos amantes. Clara abre os olhos. Em meio à penumbra rosada que penetra pela porta entreaberta, ela vê o brilho dos olhos, derramando-se liquefeitos. Olhos vermelhos, como vermelha é a luz que as envolve. Olhos de Clarice. Sim, Clara sabe que não foi um sonho. Sabe que está presa na teia daquele amor de mulher, doce e proibido. Pressentira-o há tempos, lutara contra ele, fingira não vê-lo, mas agora já não pode fugir. Está frente a frente com sua assombração.

244. HELOÍSA SEIXAS. Todos os anos, sempre em setembro, Santa Teresa abre suas portas. Quem quiser pode não só passear pelas ruas, por becos e largos, mas também penetrar nos estúdios, nos ateliês desse bairro tão artístico e tão ímpar. Sempre que posso, vou. Não só para ver as obras de arte ou espiar como trabalham os artistas, mas também para poder ver por dentro os casarões, os detalhes de suas portas, os beirais, as trancas, a fabulosa vista que se descortina das janelas. Porque Santa Teresa é assim - um bairro cheio de segredos. Pára-se diante de um prédio de três andares, por exemplo. Bate-se à porta. Entra-se. E só então descobre-se que o prédio na verdade tem dez andares, dos quais sete estão abaixo do nível da rua, escondidos, debruçados sobre uma ribanceira. E que das janelas de seus apartamentos se avista quase todo o Rio. Mas isso não é tudo. Mais do que segredos, Santa Teresa tem detalhes. Aqui e ali, eles vão surgindo. Um muro onde se derramam buganvílias, uma fachada de azulejos portugueses, um beiral de madeira trabalhada que mais parece renda. Pedras antigas que calçam uma ruela, por entre as quais crescem tufos de capim. Portas esculpidas, colunas, escadarias, vitrais. São delicadezas que estão por toda a parte, é só ter olhos para ver. Acredito que os bairros - assim como as cidades e mesmo os países - têm um espírito, uma alma peculiar, que é só deles. O espírito de Santa Teresa é feito de delicadezas, de detalhes e descobertas. Por isso os artistas gostam de lá. E talvez não haja delicadeza maior do que o bonde, esse bonde tão pequeno, tão frágil em sua casca amarela, mas que, heróico, vem resistindo ao descaso e à transformação dos tempos. Outro dia, estava eu sentada num daqueles simpáticos restaurantes que ficam ao rés da rua, perto do Largo do Guimarães, quando o bonde parou à nossa porta. Sendo ali a calçada tão estreita, as pessoas penduradas nos estribos quase podem tocar aquelas que estão nas mesas mais próximas da rua. E foi então que o motorneiro, um preto simpático, meio gordinho, enxergou um amigo que estava no restaurante. Começaram a conversar. Perguntou o que o outro estava comendo e, ouvindo que era uma caldeirada de frutos do mar, começou a falar de uma deliciosa receita de caldinho de sururu, coisa tradicional, de família. E os passageiros esperando. Não só esperando, mas também participando da conversa, dando palpites, rindo. Ali não havia lugar para mau humor, reclamação, pressa. Era o espírito de Santa Teresa em sua melhor expressão.

245. HELOÍSA SEIXAS. Espelho encantado. Gosto das lagoas. Gosto sobretudo de águas paradas, do cheiro de lodo que delas emana, mesmo nas lagoas mais limpas. É um odor que vem do fundo, de um sedimento que ali vive, adormecido, e que - dizem - guarda fantasmas. Talvez seja isso, esse encantamento das águas estagnadas, aquilo que me atrai. Há pouco tempo, morreu um rapaz na Lagoa Rodrigo de Freitas. Mergulhou para pegar uns documentos que lhe haviam escorregado do bolso, subindo em seguida para respirar. Depois tornou a mergulhar - e desapareceu. Parece absurdo morrer assim, em águas mansas, rasas, de aspecto tão inofensivo. Sempre que leio uma notícia dessas fico pensando nas histórias que ouvia, quando era pequena. Diziam que havia no fundo da Lagoa seres encantados, divindades ou sereias que usavam seus longos cabelos para enredar quem mergulhasse. De preferência, homens. Cheguei mesmo a saber de relatos de alguns que voltaram, que conseguiram escapar no último instante e que deram seu testemunho, afirmando que as águas lodosas, pesadas, quase sólidas os tinham envolvido, segurado. Que pisavam no chão e afundavam, que a lama parecia querer tragá-los como areia movediça. E que tinham tido a impressão de se ver atados por fios compridos que talvez fossem algas - mas que pareciam cabelos de mulher. Não sei se isso chegou a sair no jornal. O mais provável é que alguém me tenha contado essas histórias. Não importa. Com elas, compus para mim mesma a mística da Lagoa, alimentando o fascínio por suas águas vidradas, seu fundo lodoso. Essa lagoa carioca, Sacopenapã, essa Rodrigo de Freitas em cujas águas límpidas nadou o Tom menino. Hoje, quando passo por suas margens, a pé ou de carro, quando a espio de longe, de algum lugar alto, ou mesmo quando me sento num recanto, esperando a tarde cair só para ver a solidão dos remadores rasgando a superfície espelhada, sempre penso nas iaras misteriosas que talvez habitem suas águas. Será por isso que acho a Lagoa encantada? Talvez. Ou talvez seja por causa de tudo que a cerca. Porque a Lagoa é o espelho mágico no qual se debruça nossa cidade, essa mulher vaidosa, curvilínea e sensual que, consciente da própria beleza, sempre sorri ao se ver refletida na água.

246. HELOÍSA SEIXAS. Nasci na Rua Faro, a poucos metros do Bar Jóia, e, muito antes de ir morar no Leblon, o Jardim Botânico foi meu quintal. Era ali, por suas aléias de areia cor de creme, que eu caminhava todas as manhãs de mãos dadas com minha avó. Entrávamos pelo portão principal e seguíamos primeiro pela aléia imponente que vai dar no chafariz. Depois, íamos passear à beira do lago, ver as vitórias-régias, subir as escadarias de pedra, observar o relógio de sol. Mas íamos, sobretudo, catar mulungu. Mulungu é uma semente vermelha com a pontinha preta, bem pequena, menor do que um grão de ervilha. Tem a casca lisa, encerada, e em contraste com a pontinha preta seu vermelho é um vermelho vivo, tão vivo que parece quase estranho à natureza. É bonita. Era um verdadeiro prêmio conseguir encontrar um mulungu em meio à vegetação, descobrir de repente a casca vermelha e viva cintilando por entre as lâminas de grama ou no seio úmido de uma bromélia. Lembro bem com que alegria eu me abaixava e estendia a mão para tocar o pequeno grão, que por causa da ponta preta tinha uma aparência que a mim lembrava vagamente um olho. Disse isso à minha avó e ela riu, comentando que eu era como meu pai, sempre prestava atenção nos detalhes das coisas. Acho que já nessa época eu olhava em torno com olhos mínimos. Mas a grandeza das manhãs se media pela quantidade de mulungus que me restava na palma da mão na hora de ir para casa. Conseguia às vezes juntar um punhado, outras vezes apenas dois ou três. E é curioso que nunca tenha sabido ao certo de onde eles vinham, de que árvore ou arbusto caíam aquelas sementes vermelhas. Apenas sabíamos que surgiam no chão ou por entre as folhas e sempre numa determinada região do Jardim Botânico. Mas eu jamais seria capaz de reconhecer uma árvore de mulungu. Um dia, procurei no dicionário e descobri que mulungu é o mesmo que corticeira e que também é conhecido pelo nome de flor-de-coral. ''Árvore regular, ornamental, da família das leguminosas, originária da Amazônia e de Mato Grosso, de flores vermelhas, dispostas em racimos multifloros, sendo as sementes do fruto do tamanho de um feijão (mentira!), e vermelhas com mácula preta (isto, sim)'', dizia. Mas há ainda um outro detalhe estranho: é que não me lembro de jamais ter visto uma dessas sementes lá em casa. De algum modo, depois de catadas elas desapareciam e hoje me pergunto se não era minha avó que as guardava e tornava a despejá-las nas folhagens todas as manhãs, sempre que não estávamos olhando, só para que tivéssemos o prazer de encontrá-las. O fato é que não me sobrou nenhuma e elas ganharam, talvez por isso, uma aura de magia, uma natureza impalpável. Dos mulungus, só me ficou a memória - essa memória mínima.

247. HERBERTO SALES. EMBOSCADA. Os dois homens começaram a descer a encosta. O velho Patuá, vinha na frente. Era um cabra de ombros estreitos, grande bigode e pernas em arco, muito firmes ainda para a sua idade. O negro Guido seguia-o de perto, sustendo na mão esquerda a capanga de munição. Na semi-obscuridade da madrugada, o vale esboçava amplos paredões hirtos, encaixotando funebremente o rio. Os dois homens saltavam de uma pedra para outra, desciam pelos lajedões talhados quase a pique, subiam por íngremes atalhos, e logo reapareciam atrás de uma touça de malva ou de vela,me, com uma agilidade de cabritos monteses. Agora, porém, tinham eles conseguido alcançar um trecho melhor do caminho, e andavam num passo regular, encolhidos nos capotes surrados. O ar era frio e úmido. — Será que ele passa hoje? – perguntou Guido. — Tem de passa,r — respondeu o outro homem. — Não é possível que o santo dele seja tão forte. — Olhe que já faz dois dias que nós esperamos por ele... — É assim mesmo. Tem emboscadas que dão muito trabalho. Você ainda não viu nada. — De qualquer maneira, confesso que isto já está me amolando — disse o outro. O velho Patuá sacou do bolso do paletó de brim mescla um pedaço de fumo de corda e, com uma dentada, arrancou um naco para mascar. Era um antigo hábito seu, do qual trazia marcas nos longos caninos encardidos. — Quanto mais se você tivesse ajudado agente a matar o Major Cavalcanti! — disse. — O que foi que teve? — Nós esperamos por ele na emboscada oito dias seguidos. — Oito dias? Ah, eu não era capaz de ter tanta paciência. Juro. — Será que nunca lhe aconteceu uma coisa destas? — A mim? Deus me livre! Andando sempre, os dois homens contornaram uma grande rocha, e atravessaram em seguida uma moita de capim-gordura. O negro Guido olhou: amanhecia. A aurora barrava o horizonte de vermelho, e os píncaros lembravam massas carbonizadas em meio a um espantoso incêndio. Então o velho Patuá, que usava chapéu de couro e trazia as calças arregaçadas, disse de repente: — Pois pode preparar o dedo, companheiro, que de hoje ele não passa. — Como é que você. pode saber disso? — indagou o outro homem, meio intrigado. — Como eu posso saber? Bem... Isso não lhe interessa. Sobre certas coisas é melhor a gente; não fazer perguntas. O negro Guido era muito supersticioso e revelava uma espécie de místico respeito pelo seu companheiro. Disse com hesitação: — Eu sempre ouvi dizer que você era um mestre em rezas bravas... Na verdade, eu estou aqui faz somente um mês. Mas em minha terra me contaram muitos casos que aconteceram com você. — Não lhe disseram que eu tinha parte com o Diabo? — perguntou sardonicamente o velho. E o outro, olhando-o de lado: — Você sabe que o povo fala muita coisa... Ouvi dizer que você tinha reza para amarrar rastro, e até para fazer uma pessoa desaparecer. O velho Patuá assumiu um ar de mistério: — Você fala demais, Guido. — Eu não falei por mal... — disse o outro homem, arrancando uma haste de capim com a larga mão de palma musculosa. — Se você não gosta de perguntas, acabou-se. Eu só quero é que ele não deixe de passar hoje. — Pois fique calado, e espere. Os dois homens subiram uma rampa, entraram por um atalho, e pararam defronte de uma pequena caverna. Em torno, a vegetação era rude e agressiva. Instalaram-se atrás de uma pedra, como já vinham fazendo havia dois dias, e ó velho Patuá observou: — Este lugar é o melhor possível. Daqui a gente pode atirar nele à vontade. Estavam instalados na crista de um precipício que dominava a estrada íngreme e pedregosa da serra. O rio escachoava adiante, no fundo do vale rasgado entre selvagens e imponentes escarpas. No céu, um tom róseo substituía, agora o vermelho sangüíneo de antes. Pássaros-pretos cantavam. — Quer fazer uma combinação, Patuá? perguntou o negro Guido. — Qual é? — Como você tem melhor pontaria, atira na cabeça dele. — E você? — Bem... Eu atiro nas costas. É mais fácil. O velho Patuá, teve um risinho sarcástico: — Não pensei que você fosse tão nervoso, Guido. O outro homem guardou silêncio, demonstrando não ter gostado da observação do companheiro. De repente, atentando na pedra que ficava à entrada da caverna, foi empolgado pela certeza de estar bem protegido. "Caso ele reaja" — pensou — "toda a vantagem é minha, pois estou numa boa trincheira." Depois desembainhou a sua longa e afiada faca, de dez polegadas, e começou a cortar fumo para um cigarro. Nisto o velho Patuá levantou-se (tinha uma expressão cruel e concentrada) para inspecionar mais uma vez o local. Completando de maneira magnífica, as virtudes do esconderijo, alastrava-se por toda a crista um imbezeiro, ocultando inteiramente a entrada da caverna. Olhando através da folhagem, que descia em cortina, o velho Patuá viu a estrada coberta de seixos, àquela, hora deserta,, por onde o homem teria de passar. — Vai ser uma pontaria bonita — disse. — Ele não vai nem gemer. O chão da caverna era coberto de capim — tufos verdes, amarelados, macios — e o velho Patuá sentou-se. Depois pegou o clavinote e o pôs sobre as pernas, retirando da capanga a munição para a .carga. — Agora vou carregar, Guido. E você vai ficar de vigia — disse. — Sentado como estou, não posso enxergar a estrada. A pedra não deixa. Ficando de joelhos, você domina a estrada toda. É só um instante, Guido. Eu carrego a arma depressa. — Está certo — concordou o outro homem. — Está enxergando bem? — perguntou ainda o velho. — Estou. De joelhos como se achava, Guido dominava realmente toda a estrada. A pedra lhe dava na altura do peito, e as folhas do imbezeiro ocultavam-lhe a cabeça. Nessa posição, acendeu um cigarro, tendo o cuidado de soltar as baforadas para dentro da caverna, o que fez por duas vezes. Mas logo depois, atinando com a inconveniência de estar fumando ali, pois a fumaça, poderia, denunciar sua presença no loca,l, apagou imediatamente o cigarro, esmagando-o na ponta de uma pedra. Depois soprou com força, para expelir o resto de fumaça que tinha na boca. — Cadê a rolimã? — perguntou o velho Patuá. — Você vai carregar com ela? — disse Guido, sem desviar os olhos da estrada. — Vou. Você não quer que eu atire na cabeça dele? Portanto, vou precisar de uma carga possante. E ande depressa. Porque antes das sete horas ele deve estar passando por aqui. Guido revolveu a capanga para procurar a rolimã, que, em sua terra, lhe dera um ferreiro que trabalhara numa garagem. Seus dedos tocaram em cartuchos de pólvora, barbantes, buchas, latas de chumbo meão e espoletas, e trouxeram afinal a esfera de aço que devia servir de bala. Tinha ela um brilho frio e sólido, e era do tamanho de um caroço de pitanga. — Tome — disse, passando-a ao companheiro. O velho Patuá tomou a rolimã entre os dedos e a examinou por um momento, como se estivesse avaliando o estrago que ela iria produzir na cabeça do homem a ser morto. Com ela carregou a arma, juntando boa dose de pólvora e algum chumbo grosso. Depois socou a bucha e colocou a espoleta. — Pronto? — perguntou Guido. — Pronto — respondeu o velho, limpando nas calças a mão suja de pólvora. E depois de mais uma vez examinar a arma: — Agora você carregue a sua, que eu fico de vigia. Mais que depressa, o negro Guido trocou de lugar com o companheiro e tratou de carregar o seu clavinote. Notando, porém, ao retirar a munição da capanga, que a carga talvez não ficasse bastante forte, perguntou ao velho: — Você não tem aí um chumbo mais grosso do que este meu? — Tenho — respondeu o outro homem. — Tenho este chumbo cabeça-de-macaco, que serve bem; é chumbo para matar onça. Tome. E passou a lata de chumbo ao negro. — Mas eu acho bom você botar estes pregos também — acrescentou. — Reforça mais. O negro Guido recebeu o chumbo e os pregos, e socou, bem socada, a carga do seu clavinote. — Não bote chumbo demais não — observou o velho Patuá. — Você está pilheriando? — respondeu Guido, guardando na capanga o pedaço de chifre que lhe servia de depósito de pólvora. — Pilheriando? — Sim, companheiro. Será que você acha que eu não sei carregar uma arma? — Estou avisando por avisar. — Fique sossegado. A carga foi bem calculada. O velho Patuá voltou-se rapidamente para o companheiro e, vendo que este j á havia carregado a arma, disse: Bem. Passe o resto de meu chumbo para cá. E agora fique aqui junto de mim. O negro devolveu o chumbo restante, que o velho guardou apressadamente na capanga, e entrincheirou-se atrás da pedra. — Eu não estou enxergando bem daqui, não — disse, espiando por entre as folhas do imbezeiro. — Acho melhor eu ficar atrás da ponta da pedra. — Então, fique — concordou o outro homem. — E você j á sabe : só atire quando eu mandar. — Está certo — respondeu Guido. — Ma,s eu acho que a gente só deve atirar quando ele entrar naquela, curva. E com o dedo apontou o local. Era o trecho mais estratégico da estrada, porque ali a vítima poderia ser colhida pelas costas. — O tiro vai ser seguro — garantiu Guido. O velho Patuá parecia não estar disposto a aceitar nenhuma sugestão do companheiro. Como jagunço que já tomara parte em várias emboscadas, tinha, de resto, as suas vaidades. Respondeu secamente: — Deixe isso comigo. Na hora de atirar eu lhe digo. Entretanto, o negro Guido não deixou de mudar de posição, colocando-se atrás da ponta da pedra. O velho Patuá continuou ajoelhado na parte mais alta da caverna, sobre tufos de capim, apoiando o clavinote contra a pedra. O lugar que escolhera proporcionava uma visibilidade perfeita. — Eu dava tudo para tomar uma cachaça agora — confessou Guido. — É. Mas a garrafa esvaziou desde ontem — respondeu o velho Patuá. — Não tem mais nem um pingo. — Se ele não tivesse se atrasado — disse o outro homem — eu não estava agora com a garganta seca. Nós trouxemos bastante cachaça. No fundo, também o velho Patuá sentia falta da bebida. Entretanto, mordaz, com o intuito de rebaixar o companheiro, perguntou: — Será que você precisa beber para criar coragem? Mas já o negro Guido não o escutava: — Está ouvindo, Patuá? Está ouvindo? O outro homem estava ouvindo. E identificou o ruído como sendo o dos cascos de um animal que vinha subindo a serra. — É. Talvez seja ele — disse. — Vamos nos preparar para fazer fogo. Os dois clavinotes estavam apontados em direção à estrada. Os canos tinham sido apoiados sobre a pedra, e os dois homens se entreolharam. A essa altura, já o Sol faiscava nos lajedos, e o ar, embora frio, era reconfortante e seco. Um sabiá veio pousar perto da caverna, mas logo esvoaçou, ao pressentir os dois homens. Houve em seguida um rumor de folhas, provocado por uma lagartixa em fuga. — Já vem bem perto — disse o negro Guido, com o dedo no gatilho da arma. O tropel fazia — se ouvir cada vez mais próximo. De repente, surgiu, no topo do atalho, a cabeça de um cavalo. O velho Patuá estava calmo, ao passo que o outro dava visíveis mostras de excitação. A vista da cabeça do cavalo, seus lábios chegaram mesmo a embranquecer, como se uma sede atroz o tivesse assaltado. — Será ele mesmo? — perguntou. Foi quando o cavaleiro apareceu. Subia a estrada descuidado, assobiando. Guido logo reconheceu o fazendeiro Pedro Neves. Então, o que havia de incerteza no seu espírito transformou-se imediatamente numa sensação de alívio, marcada a um só tempo de medo e crueldade. Apontou a arma, fazendo mira, sempre com o dedo no gatilho. Viu o homem parar de assobiar, enxugar o suor do rosto, com um lenço que de novo guardou no bolso, e acender o cigarro. Foi quando o velho Patuá comandou: — Fogo! O negro procurava fazer um bom alvo, na pontaria contra o paletó de brim cáqui, onde havia manchas de suor. — Fogo! — repetiu o velho Patuá, num tom de irritação. E, com o clavinote apontado para a nuca do homem, apertou o gatilho. O negro Guido acompanhou-o. Dois tiros estrondaram, ao mesmo tempo que a caverna se enchia de fumaça. Como se uma invisível mão os enxotasse, os pássaros voaram. Um desabrido tropel foi então ouvido: era o cavalo do fazendeiro, que fugia com os arreios vazios. Espantado, corria doidamente estrada abaixo – as caçambas batendo como sinos. Como sinos roucos. Estranhamente roucos.

248. HILDA HILST. DELICATESSEN. Você nunca conhece realmente as pessoas. O ser humano é mesmo o mais imprevisível dos animais. Das criaturas. Vá lá. Gosto de voltar a este tema. Outro dia apareceu uma moça aqui. Esguia, graciosa, pedindo que eu autografasse meu livro de poesia, "tá quentinho, comprei agora". Conversamos uns quinze minutos, era a hora do almoço, parecia tão meiga, convidei-a para almoçar, agradeceu muito, disse-me que eu era sua "ídala", mas ia almoçar com alguém e não podia perder esse almoço. Alguém especial?, perguntei. Respondeu nítida: "pé-de-porco". Não entendi. Como? "Adoro pé-de-porco, pé-de-boi também". Ahn... interessante, respondi. E ela se foi apressada no seu Fusquinha. Não sei por que não perguntei se ela gostava também de cu de leão. Enfim, fiquei pasma. Surpresas logo de manhã. Olga, uma querida amiga passando alguns dias aqui conosco, me diz: pois você sabe que me trouxeram uma noite um pé-perna de porco, todo recheado de inverossímeis, como uma delicadeza para o jantar? Parecia uma bota. Do demo, naturalmente. E lendo uma entrevista com W. H. Auden, um inglês muito sofisticado, o entrevistador pergunta-lhe: "O que aconteceu com seus gatos?" Resposta: "Tivemos que matá-los, pois nossa governanta faleceu". Auden também gostava de miolo, língua, dobradinha, chouriços e achava que "bife" era uma coisa para as classes mais baixas, "de um mau gosto terrível", ele enfatiza. E um outro cara que eu conheci, todo tímido, parecia sempre um urso triste, também gostava de poesia... Uma tarde veio se despedir, ia morar em Minas... Perguntei: "E todos aqueles gatos de que você gostava tanto?" Resposta: "Tive de matá-los". "Mas por quê?!" Resposta: "Porque gatos gostam da casa e a dona que comprou minha casa não queria os gatos". "Você não podia soltá-los em algum lugar, tentar dar alguns?" Olhou-me aparvalhado: "Mas onde? Pra quem?" "E como você os matou?" "A pauladas", respondeu tranqüilo, como se tivesse dado uma morte feliz a todos eles. E por aí a gente pode ir, ao infinito. Aqueles alemães não ouviam Bach, Wagner, Beethoven, não liam Goethe, Rilke, Hölderlin(???) à noite, e de dia não trabalhavam em Auschwitz? A gente nunca sabe nada sobre o outro. E aquele lá de cima, o Incognoscível, em que centésima carreira de pó cintilante sua bela narina se encontrava quando teve a idéia de criar criaturas e juntá-las? Oscar, traga os meus sais.

249. HUMBERTO DE CAMPOS. MICROSCÓPIO. Os salões do desembargador Marcelino Pedreira, na Rua São Clemente, achavam-se repletos, como poucas vezes acontecia, naquela noite memorável. Políticos, magistrados, médicos, bacharéis, homens de letras e homens de negócios enchiam os grandes compartimentos do palacete magnífico, de mistura com o que há de mais fino, de mais chic, de mais distinto, nas rodas femininas do Rio. Lauro Müller, Miguel Couto, Pires do Rio, Antônio Azeredo, são silhuetas em evidência. O encanto da reunião está, entretanto, na revoada de moças e senhoras que volteiam pelas salas, e entre as quais se destaca, pela formosura, pela mocidade, pela inocência do olhar e dos modos, Mlle. Júlia Petersen, noiva do Dr. Abelardo Moura e filha única do desembargador Feliciano Mendonça. De repente, como se um punhado de folhas e flores obedecesse a um redemoinho invisível, faz-se uma roda em torno a uma das mesas da sala de chá. Homens de ciência e damas inteligentes formam o grupo. Elevada, culta, a palestra versa os assuntos mais variados, encantando as senhoras. Na sala contígua, dança-se. E, entre os pares, o Dr. Abelardo e a noiva. Súbito, parando, põem-se os dois a conversar: — Que mãos tens tu, Julita! — elogia o noivo, maravilhado, apertando os dedos miúdos, finos, quase infantis, da sua prometida. — Acha-a pequena? — indaga a moça. — Microscópica! — Como? — Microscópica! — insiste o rapaz. Intrigada com o vocábulo, que ouvia pela primeira vez, a moça pede licença por um instante, penetra no salão de chá e, com a sua ingenuidade, indaga do Dr. Álvaro Osório: — Doutor, que significa “microscópico?” — É um derivado de “microscópio”, Mademoiselle! — explica o ilustre fisiologista. — E que é “microscópio”? — torna a menina, franzindo a testa morena, que os olhos iluminam. O Dr. Álvaro medita um momento, e, para não perder tempo, explica: — É um aparelho que faz as coisas crescerem. Compreende? A menina sorri, agradecida. De repente, porém, pisca os olhos, franze mais a testa, e enrubescendo: — Ahn!... Morde o dedinho róseo, meio brejeira, meio encabulada: — Sem vergonha! Agora é que eu compreendo porque é que ele diz que eu tenho a mão microscópica... E sai correndo, vermelha, a abraçar-se com o noivo.

250. IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO. O ANÔNIMO. PRESENÇA DA TRAGÉDIA. Se alguém me matasse. Se eu fosse abatido a tiros por uma amante, pelo marido de uma de minhas amantes, por um neurótico pela fama, por um serial killer americano que tivesse vindo ao Brasil, pelo engano de um traficante, por um assaltante num cruzamento, por uma das milhares de balas perdidas que cruzam a cidade, por uma dessas motos enraivecidas que alucinam o transito, por um colega de profissão inconformado com a minha fama. Se morresse em uma inundação, atingido por um raio ou por um arvore derrubada por um vendaval. Por um remédio com data vencida, por uma comida estragada. Uma tragédia noticiada por toda a mídia, alimentada e realimentada, provocando manchetes vorazes, devoradas com prazer pelo publico e construindo a minha legenda. Melhor que fosse algo misterioso. O noticiário duraria mais tempo, o caso seria revisto por curiosos dispostos a desvendar enigmas. Provocar a necessidade de uma autopsia, de exumação. Ser o enigma do século seria a minha gloria. Se eu tivesse essa certeza, não me incomodaria de estar morto.

251. IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO. O HOMEM CUJA ORELHA CRESCEU. Estava escrevendo, sentiu a orelha pesada. Pensou que fosse cansaço, eram 11 da noite, estava fazendo hora-extra. Escriturário de uma firma de tecidos, solteiro, 35 anos, ganhava pouco, reforçava com extras. Mas o peso foi aumentando e ele percebeu que as orelhas cresciam. Apavorado, passou a mão. Deviam ter uns dez centímetros. Eram moles, como de cachorro. Correu ao banheiro. As orelhas estavam na altura do ombro e continuavam crescendo. Ficou só olhando. Elas cresciam, chegavam a cintura. Finas, compridas, como fitas de carne, enrugadas. Procurou uma tesoura, ia cortar a orelha, não importava que doesse. Mas não encontrou, as gavetas das moças estavam fechadas. O armário de material também. O melhor era correr para a pensão, se fechar, antes que não pudesse mais andar na rua. Se tivesse um amigo, ou namorada, iria mostrar o que estava acontecendo. Mas o escriturário não conhecia ninguém a não ser os colegas de escritório. Colegas, não amigos. Ele abriu a camisa, enfiou as orelhas para dentro. Enrolou uma toalha na cabeça, como se estivesse machucado. Quando chegou na pensão, a orelha saia pela perna da calça. O escriturário tirou a roupa. Deitou-se, louco para dormir e esquecer. E se fosse ao médico? Um otorrinolaringologista. A esta hora da noite? Olhava o forro branco. Incapaz de pensar, dormiu de desespero. Ao acordar, viu aos pés da cama o monte de uns trinta centímetros de altura. A orelha crescera e se enrolara como cobra. Tentou se levantar. Difícil. Precisava segurar as orelhas enroladas. Pesavam. Ficou na cama. E sentia a orelha crescendo, com uma cosquinha. O sangue correndo para lá, os nervos, músculos, a pele se formando, rápido. Às quatro da tarde, toda a cama tinha sido tomada pela orelha. O escriturário sentia fome, sede. Às dez da noite, sua barriga roncava. A orelha tinha caído para fora da cama. Dormiu. Acordou no meio da noite com o barulhinho da orelha crescendo. Dormiu de novo e quando acordou na manhã seguinte, o quarto se enchera com a orelha. Ela estava em cima do guarda-roupa, embaixo da cama, na pia. E forçava a porta. Ao meio-dia, a orelha derrubou a porta, saiu pelo corredor. Duas horas mais tarde, encheu o corredor. Inundou a casa. Os hospedes fugiram para a rua. Chamaram a polícia, o corpo de bombeiros. A orelha saiu para o quintal. Para a rua. Vieram os açougueiros com facas, machados, serrotes. Os açougueiros trabalharam o dia inteiro cortando e amontoando. O prefeito mandou dar a carne aos pobres. Vieram os favelados, as organizações de assistência social, irmandades religiosas, donos de restaurantes, vendedores de churrasquinho na porta do estádio, donas-de-casa. Vinham com cestas, carrinhos, carroças, camionetas. Toda a população apanhou carne de orelha. Apareceu um administrador, trouxe sacos de plástico, higiênicos, organizou filas, fez uma distribuição racional. E quando todos tinham levado carne para aquele dia e para os outros, começaram a estocar. Encheram silos, frigoríficos, geladeiras. Quando não havia mais onde estocar a carne de orelha, chamaram outras cidades. Vieram novos açougueiros. E a orelha crescia, era cortada e crescia, e os açougueiros trabalhavam. E vinham outros açougueiros. E os outros se cansavam. E a cidade não suportava mais carne de orelha. O povo pediu uma providência ao prefeito. E o prefeito ao governador. E o governador ao presidente. E quando não havia solução, um menino, diante da rua cheia de carne de orelha, disse a um policial: - Por que o senhor não mata o dono da orelha?

252. IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO. OBSCENIDADES PARA UMA DONA-DE-CASA. Três da tarde ainda, ficava ansiosa. Andava para lá, entrava na cozinha, preparava nescafé. Ligava televisão, desligava, abria o livro. Regava a planta já regada, girava a agenda telefônica, à procura de amiga a quem chamar. Apanhava o litro de martini, desistia, é estranho beber sozinha às três e meia da tarde. Podem achar que você é alcoólatra. Abria gavetas, arrumava calcinhas e sutiãs arrumados. Fiscalizava as meias do marido, nenhuma precisando remendo. Jamais havia meias em mau estado, ela se esquecia que ele é neurótico por meias, ao menor sinal de esgarçamento, joga fora. Nem dá aos empregados do prédio, atira no lixo. Quatro horas, vontade de descer, perguntar se o carteiro chegou, às vezes vem mais cedo. Por que há de vir? Melhor esperar, pode despertar desconfiança. Porteiros sempre se metem na vida dos outros, qualquer situação que não pareça normal, ficam de orelha em pé. Então, ele passará a atenção no que o carteiro está trazendo de especial para a mulher do 91 perguntar tanto, com uma cara lambida. Ah, aquela não me engana! Desistiu. Quanto tempo falta para ele chegar? Ela não gostava de coisas fora do normal, instituiu sua vida dentro de um esquema nunca desobedecido, pautara o cotidiano dentro da rotina sem sobressaltos. Senão, seria muito difícil viver. Cada vez que o trem saía da linha, era um sofrimento, ela mergulhava na depressão. Inconsolável, nem pulseiras e brincos, presentes que o marido trazia, atenuavam. Na fossa, rondava como fera enjaulada, querendo se atirar do nono andar. Que desgraça se armaria. O que não diriam a respeito de sua vida. Iam comentar que foi por um amante. Pelo marido infiel. Encontrariam ligações com alguma mulher, o que provocava nela o maior horror. Não disseram que a desquitada do 56 descia para se encontrar com o manobrista, nos carros da garagem? Apenas por isso não se estatelava alegremente lá embaixo, acabando com tudo. Quase cinco. E se o carteiro atrasar? Meu deus, faltam dez minutos. Quem sabe ela possa descer, dar uma olhadela na vitrine da butique da esquina, voltar como quem não quer nada, ver se a carta já chegou. O que dirá hoje? Os bicos dos teus seios saltam desses mamilos marrons procurando a minha boca enlouquecida. Ficava excitada só em pensar. A cada dia as cartas ficam mais abusadas, entronas, era alguém que escrevia bem, sabia colocar as coisas. Dia sim, dia não, o carteiro trazia o envelope amarelo, com tarja marrom, papel fino, de bom gosto. Discreto, contrastava com as frases. Que loucura, ela jamais imaginara situações assim, será que existiam? Se o marido, algum dia, tivesse proposto um décimo daquilo, teria pulado da cama, vestido a roupa e voltado para casa da mãe. Que era o único lugar para onde poderia voltar, saíra de casa para se casar. Bem, para falar a verdade, não teria voltado. Porque a mãe iria perguntar, ela teria que responder com honestidade. A mãe diria ao pai, para se desabafar. O pai, por sua vez, deixaria escapar no bar da esquina, entre amigos. E homem, sabe-se como é, é aproveitador, não deixa escapar ocasião de humilhar a mulher, desprezar, pisar em cima. As amigas da mãe discutiriam o episódio e a condenariam. Aquelas mulheres tinham caras terríveis. Ligou outra vez a tevê, programa feminino ensinando a fazer cerâmica. Lembrou-se que uma das cartas tinha um postal com cenas da vida etrusca, uma sujeira inominável, o homem de pé atrás da mulher, aquela coisa enorme no meio das pernas dela. Como podia ser tão grande? Rasgou em mil pedaços, pôs fogo em cima do cinzeiro, jogou tudo na privada. O que pensavam que ela era? Por que mandavam tais cartas, cheias de palavras que ela não ousava pensar, preferia não conhecer, quanto mais dizer. Uma vez, o marido tinha dito, resfolegante, no seu ouvido, logo depois de casada, minha linda bocetinha. E ela esfriou completamente, ficou dois meses sem gozar. Nem dizia gozar, usava ter prazer, atingir o orgasmo. Ficou louca da vida no chá de cozinha de uma amiga, as meninas brincando, morriam de rir quando ouviam a palavra orgasmo. Gritavam: como pode uma palavra tão feia para uma coisa tão gostosa? Que grosseria tinha sido aquele chá, a amiga nua no meio da sala, porque tinha perdido no jogo de adivinhação dos presentes. E as outras rindo e comentando tamanhos, posições, jeitos, poses, quantas vezes. Mulher, quando quer, sabe ser pior do que homem. Sim, só que conhecia muitas daquelas amigas, diziam mas não faziam, era tudo da boca para fora. A tua boca engolindo inteiro o meu cacete e o meu creme descendo pela tua garganta, para te lubrificar inteira. Que nojenta foi aquela carta, ela nem acreditava, até encontrou uma palavra engraçada, inominável. Ah, as amigas fingiam, sabia que uma delas era fria, o marido corria como louco atrás de outras, gastava todo o salário nas casas de massagens, em motéis. E aquela carta que ele tinha proposto que se encontrassem uma tarde no motel? Num quarto cheio de espelhos, para que você veja como trepo gostoso em você, enfiando meu pau bem no fundo. Perdeu completamente a vergonha, dizer isso na minha cara, que mulher casada não se sentiria pisada, desgostosa com uma linguagem destas, um desconhecido a julgá-la puta, sem nada a fazer em casa, pronta para sair rumo a motéis de beira de estrada. Para que lado ficam? Vai ver, um dos amigos de meu marido, homem não pode ver mulher, fica excitado e é capaz de trair o amigo apenas por uma trepada. Vejam o que estou dizendo, trepada, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Caiu em si raciocinando se não seria alguém a mando do próprio marido, para averiguar se ela era acessível a uma cantada. Meu deus, o que digo? Fico transtornada com estas cartas que chegam religiosamente, é até pecado falar em religião, misturar com um assunto deste, escabroso. E se um dia o marido vier mais cedo para casa, apanhar uma das cartas, querer saber? Qual pode ser a reação de um homem de verdade, que se preze, ao ver que a mulher está recebendo bilhetes de um estranho? Que fala em coxas úmidas como a seiva que sai de você e que eu provoquei com meus beijos e com este pau que você suga furiosamente cada vez que nos encontramos, como ontem à noite, em pleno táxi, nem se importou com o chofer que se masturbava. Sua louca, por que está guardando as cartas no fundo daquela cesta? A cesta foi a firma que mandou num antigo natal, com frutas, vinhos, doces, champanhe. A carta dizia deixo champanhe gelada escorrer nos pêlos da tua bocetinha e tomo em baixo com aquele teu gosto bom. Porcaria, deixar champanhe escorrer pelas partes da gente. Claro, não há mal, sou mulher limpa, de banho diário, dois ou três no calor. Fresquinha, cheia de desodorante, lavanda, colônia. Coisa que sempre gostei foi cheirar bem, estar de banho tomado. Sou mulher limpa. No entanto, me pediu na carta: não se esfregue desse jeito, deixe o cheiro natural, é o teu cheiro que quero sentir, porque ele me deixa louco, pau duro. Repete essa palavra que não uso. Nem pau, nem pinto, cacete, caralho, mandioca, pica, piça, piaba, pincel, pimba, pila, careca, bilola, banana, vara, trouxa, trabuco, traíra, teca, sulapa, sarsarugo, seringa, manjuba. Nenhuma. Expressões baixas. A ele, não se dá nenhuma denominação. Deve ser sentido, não nomeado. Tem gente que adora falar, gritar obscenidades, assim é que se excitam, aposto que procuram nos dicionários, para encontrar o maior número de palavras. Os homens são animais, não sabem curtir o amor gostoso, quieto, tranqüilo, sem gritos, o amor que cai sobre a gente como a lua em noite de junho. Assim eram os versinhos no almanaque que a farmácia deu como brinde, no dia dos namorados. Tirou o disco da Bethânia, comprou um LP só por causa de uma música, Negue. Ouvia até o disco rachar, adorava aquela frase, a boca molhada ainda marcada pelo beijo seu. Boca marcada, corpo manchado com chupadas que deixam marcas pretas na pele. Coisas de amantes. Esse homem da carta deve saber muito. Um atleta sexual. Minha amiga Marjori falou de um artista da televisão. Podia ficar quantas horas quisesse na mulher. Tirava, punha, virava, repunha, revirava, inventava, as mulheres tresloucadas por ele. Onde Marjori achou estas besteiras, ela não conhece ninguém de tevê? Interessa é que a gente assim se diverte. Se bem que se possa divertir, sem precisar se sujeitar a certas coisas. Dessas que a mulher se vê obrigada, para contentar o marido e ele não vá procurar outras. Que diabo, mulher tem que se impor! Que pensam que somos para nos utilizarem? Como se fôssemos aparelhos de barba, com gilete descartável. Um instrumento prático para o dia-a-dia, com hora certa! Como os homens conseguem fazer barba diariamente, na mesma hora? Nunca mudam. Todos os dias raspando, os gestos eternos. É a impressão que tenho quando entro no banheiro e vejo meu marido fazendo a barba. Há quinze anos, ele começa pelo lado direito, o esquerdo, deixa o queixo para o fim, apara o bigode. Rio muito quando olho o bigode. Não posso esquecer um dia que os pelinhos do bigode me rasparam, ele estava com a cabeça entre as minhas pernas, brincando. Vinha subindo, fechei as pernas, não vou deixar fazer porcarias deste tipo. Quem pensa que sou? Os homens experimentam, se a mulher deixa, vão dizer que sou da vida. Puta, dizem puta, mas é palavra que me desagrada. E o bigode faz cócegas, ri, ele achou que eu tinha gostado, quis tentar de novo, tive de ser franca, desagradável. Ele ficou mole, inteirinho, durante mais de duas semanas nada aconteceu. O que é um alívio para a mulher. Quando não acontece é feriado, férias. Por que os homens não tiram férias coletivas? Ia ser tão bom para as mulheres, nenhum incômodo, nada de estar se sujeitando. Na carta de anteontem ele comentava o tamanho de sua língua, que tem ponta afiada e uma velocidade de não sei quantas rotações por segundo. Esse homem tem senso de humor. É importante que uma pessoa brinque, saiba fazer rir. O que ele vai fazer com uma língua a tantas mil rotações? Emprestar ao dentista para obturar dentes? Outra coisa engraçada que a carta falou, só que esta é uma outra carta, chegou no mês passado, num papel azul bonito: queria me ver de meias pretas e ligas. Ridículo, mulher nua de pé no meio do quarto, com meias pretas e ligas. Nem pelada nem vestida. E se eu pedisse a ele que ficasse de meias e ligas? Arranjava uma daquelas ligas antigas, que meu avô usava e deixava o homem pelado com meias. Igual fazer amor de chinelos. Outro dia, estava vendo o programa do Sílvio Santos, no domingo. Acho o domingo muito chato, sem ter o que fazer, as crianças vão patinar, meu marido passa a manhã nos campos de várzeas, depois almoça, cochila, e vai fazer jockeyterapia. Ligo a televisão, porque o programa Sílvio Santos tem quadros muito engraçados. Como o dos casais que respondem perguntas, mostrando que se conhecem. O Sílvio Santos perguntou aos casais se havia alguma coisa que o homem tivesse tentado fazer e a mulher não topou. Dois responderam que elas topavam tudo. Dois disseram que não, que a mulher não aceitava sugestões, nem achava legal novidade. A que não topava era morena, rosto bonito, lábio cheio e dentes brancos, sorridente, tinha cara de quem topava tudo e era exatamente a que não. A mulher franzina, de cabelos escorridos, boca murcha, abriu os olhos desse tamanho e respondeu que não havia nada que ele quisesse que ela não fizesse e a cara dele mostrava que realmente estavam numa boa. Parece que iam sair do programa e se comer. Como se pode ir a público e falar desse jeito, sem constrangimento, com a cara lavada, deixando todo mundo saber como somos, sem nenhum respeito? Há que se ter compostura. Ouvi esta palavra a vida inteira, e por isso levo uma vida decente, não tenho do que me envergonhar, posso me olhar no espelho, sou limpa por dentro e por fora. Talvez por isso me lave tanto, para me igualar, juro que conservo a mesma pureza de menina encantada com a vida. Aliás, a vida não me desiludiu em nada. Tive pequenos aborrecimentos e problemas, nunca grandes desilusões e nenhum fracasso. Posso me considerar realizada, portanto satisfeita, sem invejas, rancores. Sou uma das mulheres que as famílias admiram neste prédio. Uma casa confortável, bem decorada, qualquer uma destas revistas de onde tiro as idéias podia vir aqui e fotografar, não faria vergonha. Nossa, cinco e meia, se não voar, meu marido chega, o carteiro entrega o envelope a ele, vai ser um sururu. Prestem atenção, veja a audácia do sujo, me escrevendo, semana passada. (Disse que faz três meses que recebo as cartas? Se disse, me desculpem, ando transtornada com elas, não sei mais o que fazer de minha vida, penso que numa hora acabo me desquitando, indo embora, não suporto esta casa, o meu marido sempre na casa de massagens e na várzea, esses filhos com patins, skates, enchendo álbuns de figurinhas e comendo como loucos). Semana passada o maluco me escreveu: Queria te ver no sururu, ia te pôr de pé no meio do salão e enfiar minha pica dura como pedra bem no meio da tua racha melada, te fodendo muito, fazendo você gritar quero mais, quero tudo, quero que todo mundo nesta sala me enterre o cacete. Tive vontade de rasgar tal petulância, um pavor. Sem saber o que fazer, fiquei imobilizada, me deu uma paralisia, procurei imaginar que depois de estar em pé no meio da sala recebendo um homem dentro de mim, na frente de todos, não me sobraria muito na vida. Era me atirar no fogão e ligar o gás. Entrei em pânico quando senti que as pessoas poderiam me aplaudir, gritando bravo, bravo, bis, e sairiam dizendo para todo mundo: "sabe quem fode como ninguém? A rainha das fodas?" Eu. Seria a rainha, miss, me chamariam para todas as festas. Simplesmente para me ver fodendo, não pela amizade, carinho que possam ter por mim, mas porque eu satisfaria os caprichos e as fantasias deles. Situações horrendas, humilhantes, desprezíveis para mulher que tem um bom marido, filhos na escola, uma casa num prédio excelente, dois carros. Apanho a carta, como quem não quer nada, olho distraidamente o destinatário, agora mudou o envelope, enfio no bolso, com naturalidade, e caminho até a rua, me dirijo para os lados do supermercado, trêmula, sem poder andar direito, perna toda molhada. Fico tão ansiosa, deve ser uma doença que me molho toda, o suco desce pelas pernas, tenho medo que escorra pelas canelas e vejam. Preciso voltar, desesperada para ler a carta. O que estará dizendo hoje? Comprei puropurê, tenho dezenas de latas de puropurê. Cada vez que desço para apanhar a carta, vou ao supermercado e apanho uma lata de puropurê. O gesto é automático, nem tenho imaginação de ir para outro lado. Por que não compro ervilhas? Todo mundo adora ervilhas em casa. Se meu marido entrar na despensa e enxergar esse carregamento de puropurê vai querer saber o que significa. E quem é que sabe? É dele mesmo, o meu querido correspondente. Confesso, o meu pavor é me sentir apaixonada por este homem que escreve cruamente. Querer sumir, fugir com ele. Se aparecer não vou agüentar, basta ele tocar este telefone e dizer: "Venha, te espero no supermercado, perto da gôndola do puropurê." Desço correndo, nem faço as malas, nem deixo bilhete. Vamos embora, levando uma garrafa de champanhe, vamos para as festas que ele conhece. Fico louca, nem sei o que digo, tudo delírio, por favor não prestem atenção, nem liguem, não quero trepar com ninguém, adoro meu marido e o que ele faz é bom, gostoso, vou usar meias pretas e ligas para ele, vai gostar, penso que vai ficar louco, o pau endurecido querendo me penetrar. Corto o envelope com a tesoura, cuidadosamente. Amo estas cartas, necessito, se elas pararem vou morrer. Não consigo ler direito na primeira vez, perco tudo, as letras embaralham, somem, vejo o papel em branco. Ouça só o que ele me diz: Te virar de costas, abrir sua bundinha dura, o buraquinho rosa, cuspir no meu pau e te enfiar de uma vez só para ouvir você gritar. Não é coisa para mulher ler, não é coisa decente que se possa falar a uma mulher como eu. Vou mostrar as cartas ao meu marido, vamos à polícia, descobrir, ele tem de parar, acabo louca, acabo mentecapta, me atiro deste nono andar. Releio para ver se está realmente escrito isso, ou se imaginei. Escrito, com todas as palavras que não gosto: pau, bundinha. Tento outra vez, as palavras estão ali, queimando. Fico deitada, lendo, relendo, inquieta, ansiosa para que a carta desapareça, ela é uma visão, não existe e, no entanto, está em minhas mãos, escrita por alguém que não me considera, me humilha, me arrasa. Agora, escureceu totalmente, não acendo a luz, cochilo um pouco, acordo assustada. E se meu marido chega e me vê com a carta? Dobro, recoloco no envelope. Vou à despensa, jogo a carta na cesta de natal, quero tomar um banho. Hoje é sexta-feira, meu marido chega mais tarde, passa pelo clube para jogar squash. A casa fica tranqüila, peço à empregada que faça omelete, salada, o tempo inteiro é meu. Adoro as segundas, quartas e sextas, ninguém em casa, nunca sei onde estão as crianças, nem me interessa. Porque assim me deito na cama (adolescente, escrevia o meu diário deitada) e posso escrever outra carta. Colocando amanhã, ela me será entregue segunda. O carteiro das cinco traz. Começo a ficar ansiosa de manhã, esperando o momento dele chegar e imaginando o que vai ser de minha vida se parar de receber estas cartas.

253. IVAN ÂNGELO. MEIO COVARDE. Eu devia ter dezesseis, dezoito anos no máximo. Teresa era uma vizinha nova e falada. Não eram necessários muitos motivos para uma moça ficar falada naqueles anos 50, mas Teresa conseguiu reunir quase todos: decote, vestido justo, batom vermelho, sardas, tempo demais na janela, marido noturno e bissexto, muito bolero no toca-discos e, motivo dos motivos, corpo em forma de violão, como se dizia. Entre a minha casa e a dela havia um muro. Na época da antiga vizinha, velha, feia, engraçada, amiga que eu visitava sempre, costumava pular nosso muro para encurtar caminho. Ela não se importava e eu era quase uma criança. Agora, olhando disfarçadamente a nova vizinha, eu ficava pensando como seria bom pular o muro outra vez. Mas para essas coisas sou meio covarde. O muro ficava na área do tanque de lavar roupa. Do lado de lá, ela cantava com uma voz sensual, inquietante. Meu pai não gostava, sabe-se lá por quê. Minha mãe também não, pode-se imaginar por quê. Talvez os motivos dele e dela convergissem para o mesmo ponto, embora diferentes, ponto que era o meu motivo para gostar tanto daquele canto. A voz ficava equilibrando-se em cima do muro: "Meu bem, esse seu corpo parece, do jeito que ele me aquece, um amendoim torradinho". Dava para ouvir minha mãe murmurar: "Sem-vergonha". O "torradinho" era quase um gemido rouco, talvez ela cantasse de olhos fechados. De vez em quando umas calcinhas de renda eram penduradas no varal. Minha mãe não suportava aquilo. Eu tinha vontade de espiar por cima do muro para ver o que ela estava fazendo, mas para essas coisas sou meio covarde. Não era casada - a suspeita era geral. Mulher casada procura as vizinhas, apresenta o marido, pede uma xícara de arroz emprestado. A independência de Teresa insultava a comunidade solidária de mães, avós e filhas, sempre se socorrendo com um molhozinho de couve, uma olhadinha no bebê, um trocadinho para o ônibus. Os homens tinham pouco que fazer naquele quarteirão: meninos jogando bola na rua, adolescentes trabalhando como office-boys ou balconistas de dia e estudando à noite, maridos trabalhando de dia e relaxando à noite com uma cervejinha — todos desejando Teresa. Quando eu voltava do colégio, perto da meia-noite, via-a no alto do alpendre, esperando o marido, o amante: o homem. Eu olhava, ela fumava, eu passava, ela ficava. Com a repetição Teresa já me sorria, mas eu desconfiava do ar zombeteiro dela e nunca acreditei no sorriso. Tinha vontade de enfrentá-la e perguntar, bem atrevido: está rindo de mim ou pra mim? Em casa, na frente do espelho, ensaiava o tom, mãos na cintura. Quando vinha no bonde, de volta do colégio, planejava: hoje eu falo. Mas nunca consegui. Sou meio covarde para essas coisas. Uma noite ela assoviou. Usava-se naqueles anos um assovio de galanteio, de homem para mulher, um silvo curto logo emendado num mais longo, fui-fuiiiu, que podia ser traduzido em palavras, e até era às vezes, quando a pessoa queria ser mais discreta, ou quando estava contando que assoviaram para ela, e nesse caso a garota falava: fulano fez um fui-fuiu pra mim. As mulheres às vezes usavam o assovio para imitar com certa graça o jeito cafajeste dos homens, e foi o que Teresa fez naquela noite. Tomei coragem, voltei, abri o portão, subi as escadas, parei na sua frente no alpendre. Ela vestia um penhoar azul e sorria da minha ousadia. Eu pretendia parecer desafiador, seguro, dono da situação, mas o sorriso dela não indicava nada disso. Teresa disse com malícia que o marido estava para chegar, não seria bom encontrar-me ali. Concentrei-me no papel tantas vezes ensaiado, respondi que seria ótimo se ele chegasse, que assim eu poderia explicar que ela havia assoviado, que eu havia subido para tomar satisfações, que não sou palhaço... Não creio que a representação tenha sido muito boa: ela continuava sorrindo. Recostou-se na amurada, usando a luz do alpendre como uma atriz num palco, e sua voz quente convidou: "Ele não vem hoje. Quer entrar um pouco?" Deveria ter sido mais prudente e recusado, mas para essas coisas não sou covarde. Entrei, conversamos sobre o meu futuro e o passado dela. Vem cá ver minhas fotos, me disse, e eu a segui até um quarto pequeno onde havia uma grande cama, um guarda-roupa, uma mesinha com um abajur. Senta, ela disse. Apanhou no guarda-roupa uma caixa e mostrou-me fotografias de quando era mocinha, cartas apaixonadas de antigos namorados, retratos deles ou de outros com declarações de amor nas costas e uns versos dedicados a ela pelo namorado atual. "Ele não é meu marido, não." Eram sonetos copiados de Camões, palavra por palavra. Amor é ferida que dói e não se sente. Busque amor, novas artes, novo engenho. Alma minha gentil que te partiste. "Eu não gosto muito dele, mas gosto que ele me ame assim. Os meus namorados sempre me amaram muito. "Tive ciúmes deles e vontade de contar a ela que os sonetos eram de Camões, mas para essas coisas sou meio covarde. A roupa que Teresa vestia nem sempre estava onde deveria estar. Conversar em cima de uma cama, recostar, mudar o braço de apoio, apanhar coisas para mostrar, buscar conforto são movimentos que podem impedir um penhoar azul de cumprir seu papel, mesmo que a pessoa não queira. Quando chegou a hora de falarmos de nós, disse-lhe que seus olhares e sorrisos me pareciam zombaria e me deixavam encabulado. Que tinha vontade de perguntar a ela "o quê que há?", em tom de briga. Que tinha só dezessete (ou dezoito?) anos. Ela falou que me achava muito sério para minha idade, muito bonitinho também, que quando ouvia barulho de bonde depois das onze corna para o alpendre para me ver e que às vezes me olhava por cima do muro. Tive vontade de contar que sonhava muito com ela. Mas para essas coisas sou meio covarde. Quase de manhã, pulei o muro que dava para minha casa. Ela me disse que voltasse outras vezes. Era perigoso e eu deveria ter recusado. Mas para essas coisas não sou covarde.

254. IVAN LESSA. DE PÉ OU SENTADO? Nos Estados Unidos, a moda começa na Califórnia e um mês depois chega a Nova York. No Brasil — dizem —, é no Rio primeiro, depois em São Paulo, embora uma corrente me garanta que, na verdade, a cidade geradora seja Salvador. Aqui na Europa, as coisas que dizem respeito à guerra dos sexos, ou mesmo ao armistício dos sexos, vêm da Suécia. Confesso-me alarmado com as mais recentes notícias vindas da frente do — mudemos de metáfora — interessante e disputado cotejo. Explico: as jovens suecas estão exigindo, friso, exigindo que os homens passem a fazer pipi sentados. A justificativa é feita em duas partes: primeiro, afirmam elas, trata-se de uma questão de higiene. Não há de que discordar, apenas ponderar que, afinal, uma boa pontaria, ou mesmo uma dessas escovinhas que se quedam mudas num canto do banheiro, resolveriam sem maiores problemas a questão. Levantar a taboa, talvez. A segunda parte é mais complicada e, parece-me, é nela que reside o X do problema: para as suecas que fazem parte do movimento que poderíamos, à brasileira, batizar de "Ou Senta ou Dança", os homens na verdade, ao fazerem pipi de pé, estão apenas exibindo um injustificável triunfalismo, alardeando seu machismo, jactando-se de sua condição de porcos chauvinistas irremediáveis. Para não dizer que, no ato da micção, o sexo masculino entretém pensamentos negativos sobre aquele que já foi um dia, há muito, muito tempo, o sexo dito frágil. Entre as suequinhas e sueconas mais progressistas, que constituem a ala mais extremada do movimento, há mesmo a acusação de que o pipi de pé é o máximo da vulgaridade. Mais: chega a beirar a violência física. Quer me parecer que a correção política, na Suécia, atingiu seu ápice e que a moda que ameaça infligir ao resto da Europa, quiçá o mundo, foge a todas as regras do bom senso, beirando mesmo o desmando. Ouço dizer que a Alemanha já começa a — se é esse o verbo — curvar-se diante da intransigência feminina escandinava. Mas lá, parece, é mais o medo da propagação de vírus. Ocorre-me uma coisa: e quando a gente cumprimenta uma mocinha ou senhora sueca? É para ficar sentado ou é para se levantar?

255. IVAN LESSA. MAIORIDADE. Vinte de janeiro é dia de São Sebastião, santo padroeiro do Rio de Janeiro. Um dia, para mim, difícil de esquecer. Nada a ver com o santo, tudo a ver com a cidade. No dia 20 de janeiro de 1978, eu entrei num carro, peguei o rumo do aeroporto que ainda se chamava Galeão e não Tom Jobim, entrei num avião que me deixou no dia seguinte em Londres, onde estou desde então. Quer dizer: meu expatriamento está completando sua maioridade. Vinte e um anos já davam pra ter nascido e morrido de overdose um metaleiro. Minha ausência do Brasil já podia, há algum tempo, dirigir carro, votar (coisa que eu não podia fazer quando saí do país), já podia casar, comprar cigarro e bebida alcoólica, agora pode exercer o livre-arbítrio e até mesmo voltar pro Brasil. Mas ficar fora do país natal não é tão incomum assim, desde que começou nossa diáspora. Ninguém está disputando, que eu saiba, campeonato de ausência. Menos comum, isso sim, e que sempre deixa as outras pessoas espantadas quando conto, é que nesses 21 anos não fui sequer passar umas fériazinhas no Brasil. Aí estranham. Aí me olham meio esquisito. Tenho uma resposta que é dividida em etapas que é o modelo, meu Plano Irreal, digamos, que é a praxe que observo desde que completei, pelo menos, 10 anos fora do Brasil. Primeiro, eu digo que tenho pouco tempo de férias, já conheço o Brasil, prefiro gastar as férias conhecendo um lugar novo. Segundo, explico que não tenho parentes próximos no Brasil, minha mãe mora em Portugal, que fica aqui logo ao lado, meus amigos morreram todos, conseqüentemente não há ninguém para rever, para levar um papo. Terceiro, eu minto horrendamente que não volto por motivos políticos e faço uma cara misteriosa. Em geral, misturo as três respostas, saio de fininho. Mas o mais terrível é precisamente isso: ter que sair de fininho, eu que saí de supetão do Rio, do Brasil. Por que ter que inventar uma história? Por que não dizer a verdade? E aí é que está o X do problema, feito no samba de Noel: eu não tenho a menor idéia do que seja a verdade. Não ter a menor idéia de por que não voltei ao Brasil é apenas começo disso que apenas se iniciou: a maioridade. Ou então é o fim. Fim de quê? Ah, isso não sei não.

256. IVAN LESSA. CERTIFICADO DE VELHICE. Se no Reino Unido você disser CV, todo mundo sabe que está se referindo ao seu "curriculum vitae", ou seja, sua folha corrida em matéria de trabalho. Mas há outro CV, com mais folha e mais corrido. É o CV de Certificado de Velhice. CV que também podem ser as iniciais de Carteira de Velhinho. Completou 60 anos, e a senhora ou senhorita têm direito a passar nos correios e pegar uma. Já os homens, são obrigados a esperar mais 5 anos: só aos 65 é que pegam o documento. A igualdade entre os sexos, ao que parece, ainda não chegou aos sessentões. Está errado. Mas vamos ao senhor, ao cavalheiro — ou mesmo cavaleiro — que completou 65 anos. Ele pega uma conta qualquer que tenha seu nome e endereço, a conta de gás, por exemplo. Pega um documento qualquer que o identifique, carteira de motorista serve, já que no Reino Unido ainda não há carteira de identidade obrigatória. Pega duas fotos 3 por 4 e vai na agência de correios mais próxima do bairro. Entra na fila, é atendido poucos minutos depois, preenche um formulário e, num piscar de olhos (como dizem os mais velhos), pronto, eis aí a carteira de velhinho, o certificado de velhice, válido por ao menos pelos próximos dois anos. A carteirinha é de plástico vermelho, tem uns 5 por 6 centímetros, de um lado fica um cartão com uma fita magnetizada, do outro um com a foto do cidadão. O cartão com a fita magnetizada é do exato tamanho da passagem de metrô. Com ele, o velhinho de 65 anos pode andar de graça de segunda a sexta no metrô e no ônibus depois de nove e meia da manhã. Tem considerável desconto em viagem de trem para qualquer parte do país. Idem nos cinemas, teatros e museus. Acho que, numa confusão, serve como documento de identificação. Frise-se que na carteirinha não está escrito Certificado de Velhice ou de Velhinho. Usam um eufemismo meio pomposo: "Freedom Pass". Passe da liberdade. Parecendo coisa da guerra fria. Quem paga por ele é o distrito eleitoral, ou bairro, onde mora a figura em questão. Por figura em questão, entenda-se: — eu. Peguei meu CV na quinta-feira, dia 11 de maio. Achei que ia ser mais chato. Não é, não. De uma certa forma, é mais uma gentileza deles, os ingleses, para comigo. Espero poder retribuir, espero que não seja a última.

257. IVAN LESSA. A CRÔNICA. Crônica, do grego chrónos, tempo, cronicar, feito Tácito, relatar o tempo ou tempos. Por que nós, brasileiros, fizemos do gênero especialidade da casa — feito muqueca de peixe ou tutu à mineira? Eu, pela parte que me cabe — e é pouquíssima a parte que me cabe —, eu tenho minhas teoriazinhas. Primeiro lugar, porque nós trabalhamos bem com poucas armas, isto é, Euclides da Cunha à parte, nosso fôlego literário é curto. Não há nenhum demérito nisso. Se a América Latina fornece caudalosos escritores, como Vargas Llosa, Roa Bastos e Alejo Carpentier, nós, por outro lado, somos excelentes no pinga-pinga do conto: o próprio Machado de Assis, Lima Barreto, Alcântara Machado, Dalton Trevisan, Clarice Lispector, Rubem Fonseca. Segundo lugar, porque nós temos consciência da extraordinária violência com que o tempo vai levando as coisas e as gentes, daí a necessidade de registrar, de alguma forma, o que se passou e passa no âmbito pessoal e intransferível. Terceiro lugar, em conseqüência disso que acabei de falar: somos muito pessoais, vemos e vivemos muito a nossa vida e a celebramos quase que no próprio instante em que ela se passa. A crônica é a nossa autobustificação, por assim dizer. Ou, em termos da realidade atual: é a nossa autonomeação para assessor disso ou secretário daquilo outro. E em quarto e último lugar: dinheiro. Não há motivo nenhum para se ficar encabulado. Quem não escreve por dinheiro não é digno da profissão. Um romance vende cinco mil exemplares e o autor, com alguma sorte, pega o equivalente a uns tantos salários mínimos. Se dividirmos tempo gasto no trabalho e na vida de estante do livro, vai dar nisso mesmo: salário mínimo. O cronista, por outro lado, mesmo mal pago — e quando é bom não é esse o caso —, tem uns cobres garantidos no fim do mês, se o empregador for bom pagador. Conseqüentemente: aí está, viva e atuante, a crônica do cronista brasileiro. Pouco importa que o cronista ou a cronista limite-se a relatar seu encontro no bar ou sua ida ao cabeleireiro. Tanto faz que seja elitista ou literariamente limitador. E daí que tenha menos profundidade que mergulhadores mais audazes como Milan Kundera e Marion Zimmer Bradley? A crônica vai registrando, o cronista vai falando sozinho diante de todo mundo.

258. IVAN LESSA. ARROBA PONTINHO COM. Neste domingo, como era primavera em Londres, choveu, ventou e fez frio. Por isso, fiquei em casa. Vendo jogo de futebol na televisão, vendo documentário sobre arte na televisão, vendo Arquivos Secretos na televisão. Como puderam notar, eu tenho televisão em casa. Televisão a cabo, vídeo, controle remoto, tudo que a tecnologia pertinente me dá direito. Não tenho — sou obrigado a confessá-lo, com uma certa vergonha —, não tenho computador em casa. Ou micro. Ou PC. Nem sei direito como chamá-lo, tão distante estou da tecnologia que, para mim, não pode ser mais de ponta. Mas tenho a intenção de me informatizar agora mesmo, em maio, e leio tudo que posso sobre o assunto. Na BBC, sei — mal e porcamente, feito se dizia — dar uma chegada aos jornais brasileiros, entrar na parte do correio eletrônico, bater um papo com os amigos distantes, todos eles muito, mas muito mais por dentro do que eu. Na verdade, quem não tem arroba no título vai de pontinho com. Nessa história de cibermilionários, conheço pelo menos duas pessoas que estão — mais uma vez usarei gíria antiga — estão "numa boa". Os dois vão montar, se é esse o verbo, um website. Os dois já me convidaram a participar com minha modesta colaboração. O dinheiro? Também não pode ser mais modesto. É a título especulativo. Deve dar um dinheirão, dizem — mas primeiro a gente tem que investir e encontrar patrocinador. Conheço esse problema. Desde meus tempos de publicitário e jornalista, o problema era esse: o homem do dinheiro, o anunciante, o patrocinador. Agora, em Seattle, estão decidindo algo importantíssimo, garantem-me. Algo a ver com monopólio, Bill Gates, Microsoft. Até sexta-feira, deverá sair uma decisão. Ficarei sabendo pela Net, numa de minhas internatações. Ou não deverei ficar sabendo. Pelo seguinte: um desses meus dois amigos, futuro milionário, precisava falar comigo semana passada. Recebi, aqui, em local de trabalho, um bilhete eletrônico pedindo para eu responder nele mesmo dando o endereço de minha residência em Londres. É que, na revista em que ele trabalha e dirige, os computadores pifaram e, em sua casa, em seu bairro, não havia luz, não havia energia. Ele queria falar comigo urgente sobre minha colaboração eletrônica. Não é que eu seja pessimista, mas, cá entre nós, dá para se desconfiar?

259. IVAN LESSA. A MENOPAUSA MASCULINA. Agora que já se sabe o nome do novo presidente da Rússia e o nome da moça que ganhou o Oscar de coadjuvante feminina, o mundo já pode ir dormir um pouco mais descansado. Parece também que ninguém tinha dúvida que a cobiçada estatueta iria para o — aliás excelente — ator Kevin Spacey, e seu desempenho em Beleza Americana, filme que, este ano, arrebanhou os prêmios principais. Não há mais ninguém civilizado que não tenha visto o filme ou, ao menos, saiba do que se trata. Um americano classe média típico entra em parafuso psicológico bem no meio de sua vida. Ora, uma notícia nos jornais de ontem — uma das poucas notícias que não era ou sobre Oscar ou sobre eleições na Rússia —, uma notícia, dizia eu, informava a quem quisesse saber que dois médicos do Instituto WellMan, em Londres, depois de exaustivas pesquisas chegaram a conclusão de que — atenção! — a menopausa masculina, existe, sim, senhor, e é bom não botarem banca com ela. Aí está a ilação "registro científico, desempenho artístico": a menopausa masculina explica, e eloqüentemente, as ações algo perturbadas do personagem vivido por Spacey em "Beleza Americana". Segundo o estudo, a menopausa masculina não é tão súbita quanto a menopausa feminina. Parece que é mais sinistra. Chega assim como quem não quer nada, de mansinho, e, de repente, cataplum!, acerta o camarada — um quarentão, claro — bem no meio da testa. Num dia ele está lá dando boa noite para os filhos, lavando o carro aos sábados, no outro, de repente, não mais que de repente, começa a sofrer de calores súbitos no rosto, ter depressão, ficar inquieto, começa a — perdoem-me — não funcionar lá muito direito no departamento sexual. A notícia é péssima para os homens, claro. E não pode ser mais irritante para as mulheres. Não só têm elas lá os seus problemas de menopausa quando ainda por cima têm de lidar com o comportamento bizarro dos maridos, que — some-se à lista — começam a querer freqüentar cassino ou boate, comprar carro esporte e, pela primeira vez, examinam seriamente a possibilidade de deixar, de uma vez por todas e para sempre, a mulher e filhos e começar vida nova. Fazendo arte. No sentido elevado da palavra. Escrevendo um romance, poesia, pintando quadro, por aí. De qualquer forma, o estudo, a uma certa altura, deixa bem claro: as mulheres que se cuidem, tudo isso pode não passar de simples pretexto do homenzinho supostamente tomado de menopausa — confiem desconfiando, recomendam. E aí é outra história, outro filme, outro Oscar.

260. IVAN LESSA. SENHOR, TEM PENA DE MIM. As vastas amendoeiras do Passeio Público fornecem aprazível refúgio àqueles que, por alguns minutos, desejam escapar ao alvoroço do Centro, deixando-se ficar sentados, simplesmente a matutar ou ler o jornal. Quando eu discretamente deixei a serrinha e o facão, embrulhados no Jornal dos Sports, ao meu lado no banco, uma boa meia-dúzia de gatos pingados, dentre as dezenas daquele logradouro, veio logo xeretar. Perfume de mulher bonita é sabonete. Sabonete e sangue. Na manga do paletó de brim branco uma gota rubra brotara entre a noite de ontem e a manhã de hoje. Para que nunca te esqueças de mim, ó malvado! Um gato com um olho só me fitava. Distingui no horizonte, cruzando a baía cor de conhaque, a Barca da Cantareira. Retirei o lenço do bolso, assoei o nariz. Atitudes de cais, ares úmidos de adeus. Tentei acertar com um pontapé o olho que sobrara ao bichano errante. Eu também fui um cego. A língua malvada dessa gente. Os falsos amigos. O ciúme corroeu meu peito, uma serpente envolveu meu coração. Sou pássaro sem ninho, perdido nas ilusões da grande metrópole. Tua traição. Ingrata e pérfida. Pra mostrar que braço é braço, nada mais fiz que dar murro em ponta de faca. Espingarda e baioneta, couro mais duro. Teu corpo magistral, escultural. Minha loucura. Perdição. Mendigo de tua esmola. Trapo inútil. Eu te digo adeus. Brááp. Opa. Pelo grito e pelo berro. O som desta buzina. Até o gato zarolho se assustou. Sou homem de enredada digestão. Dia de rabada, na pensão da Vanda, não cheguem perto de mim. Nessas tardes olorosas. Peguei o rumo da Lapa deixando atrás o legado maldito envolto na infausta notícia em cor-de-rosa de que Perácio, para domingo, estava fora de cogitações. Vai graxa sim. Do alto de minha cadeira retiro do prendedor o exemplar de Estrelas em Desfile. Ninon de Vallois figura com destaque no mais recente show do Folies Bergère e, a se julgar pela foto, informa o redator, com tal chassi seguramente essa garota vai... longe! A barca deve ter chegado a Niterói. Pffft. Esse foi de mansinho. O engraxate salpica água em meu sapato direito com a garrafa de Caxambu tapada com rolha, um furinho. Abano disfarçando. Betty Grable vem ao Brasil, Seu marido, o trumpetista Harry James, que mantenha o olho vivo, pois Betty, é sabido em Hollywood, não faz segredo de sua admiração pelos galãs latino-americanos. Cesar Romero que o diga. Poucos sabem que, no início de sua carreira, a explosiva loura foi crooner de orquestra. Ela não só canta mas encanta. Eu entrava no apartamento da Evaristo da Veiga, o dono do negócio, com chave própria, e a ouvia no quarto cantarolando junto com o rádio os sucessos da atualidade. Não importava a hora do dia, frio ou calor, havia sempre uma suave penumbra, propícia aos amantes, perpassando cada aposento — um rumor de asas, nosso ninho, o ventilador Ideal, bule azul de café, gaiola doirada. Mesmo assim, eu checava o bidê e as toalhinhas. O gato negro de meu ciúme. Sob o astro-rei, solar tirano, um barco a vela navega manso. Vestido no manto da ilusão, sombra perdida na tarde, vago em rumo da Conde Laje tendo o firmamento por testemunha. Venho do porto das tristezas, parto para o cais do pecado. Na carne, amarras que são garras. Tempo feliz que jamais há de voltar, passado sepulto, em dor. Um copo de Hidrolitol sempre ajuda a digestão além de refrescar. Brindemos à vida. Vejo a bolha criada por meus sonhos surgir e desaparecer no largo recipiente de vidro. Sorvo lento, peido baixo. Desafio o destino e adquiro, do maneta frente ao Silogeu, o gasparino da fortuna. Faraco me fará rico. Olho a girafa. Na ausência de gato. A uruguaia faz barba, cabelo e bigode e não tem sentido ficar na Conde Lage. Olha, muchacha, façamos um acordo: assim. Seis meses de Santo Amaro, Bento Lisboa e Correia Dutra e, por volta do Grande Prêmio Brasil, te lo juro, apartamento com criada e tudo em Copacabana. Nunca lhe menti, nunca lhe enganei, você sabe que pode confiar em mim. Eu falo com a madama, está tudo arrumado, você não se iluda com as mentiras multicores da cidade. Precisas de um homem com experiência da vida: A cera brilha como espelho; o aroma forte traz evocações deliciosas. Tu tens o mundo a teus pés e não o sabes: A cigana não nos enganou. Buena dicha. Um país encantado nos espera. Ela ri quando eu digo que leio o futuro nas pregas. Aqui eu vejo um estranho em seu destino que lhe fará muito feliz. Cuidado com uma amiga falsa: Notícias de casa. Pfff. Estás viendo? Ué, será o Benedito? Cu cor-de-rosa é sinal de bom coração. Crepúsculo singular. As luzes da cidade se acendem piscando de volta para a lua e as estrelas. Uma baratinha amarela quase me pega na Senador Dantas. Na agitação dos cabarés, os primeiros anjos da noite abrem as asas em exótico bailado. No Amarelinho, começam as primeiras histórias tristes. Máscaras caem, outras se ajustam. Coletivos apinhados transportam vidas sem razão. Ergue-se a cortina revelando o cenário do drama cotidiano vivido à noite entre o néon; o álcool, o riso falso. Anjo, Homem-Pássaro e Ângelus. Brilham os olhos dos gatos do Passeio Público. Um brilha de olho só. Cem mil verdes olhos mágicos dos aparelhos receptores se dilatam e se contraem em busca da sintonia perfeita. Confirmada a ausência de Perácio no clássico das multidões. Funcionário das Barcas revela que teve sua atenção chamada para a mala macabra devido ao mau aroma que de lá se desprendia. As diligencias prosseguem e um perito afirma que os despojos pertencem indubitavelmente a pessoa do sexo feminino. No mictório da Brahma, vertendo, vejo-me ao lado de festejado compositor que conheço ligeiramente de bar. Pergunto se me permite cantarolar um sambinha que eu tenho para o reinado de Momo. Veja você, me diz ele, há dez anos atrás eu rachava ao meio pedra de gelo com o jato do mijo, hoje não empurro nem bola de naftalina. Rio da boa mas não desisto. Ai, ai, Senhor, tem pena de mim, não suporto a dor de viver triste assim, Breque: Ai, ai, Senhor. Ele diz que depois a gente vê isso.

261. IVANA ARRUDA LEITE. RONDÓ. Luísa julgava impossível terminar seu caso com Mário. Um dia, tenra como um pintinho saído da casca, chamou Mário à sua casa e pediu que não a procurasse mais. Ele relutou, mas foi. Ela nem chorou. Abriu a bolsa, apanhou a agenda e anotou o único compromisso para o próximo fim de semana: ser feliz. Luísa julgava impossível terminar seu caso com Mário. Sofria da síndrome do fracasso prévio, já tentara mil vezes e nunca havia conseguido. Um dia, tenra como um pintinho saído da casca, chamou Mário à sua casa e pediu que não a procurasse mais. Ele relutou, mas foi. Ela nem chorou. Abriu a bolsa, apanhou a agenda e anotou o único compromisso para o próximo fim de semana: ser feliz. Luísa julgava impossível terminar seu caso com Mário. Sofria da síndrome do fracasso prévio, já tentara mil vezes e nunca havia conseguido. Aquele amor mais parecia um câncer ou vício que não se cura. Ela esperava que um milagre acontecesse. Um dia, tenra como um pintinho saído da casca, chamou Mário à sua casa e pediu que não a procurasse mais. Antes, porém, sentou no colo e falou que talvez ainda valesse a pena tentar. Mário não disse palavra. Ela fez pé firme e pediu que ele fosse embora de uma vez. Ele relutou, mas foi. Ela nem chorou. Fez um café, sentou-se na sala e acendeu um cigarro. Abriu a bolsa, apanhou a agenda e anotou o único compromisso para o próximo fim de semana: ser feliz. Luísa julgava impossível terminar seu caso com Mário. Sofria da síndrome do fracasso prévio. Já tentara mil vezes e nunca havia conseguido. Estavam juntos há mais de oito anos, mas Mário só prometia casamento quando bebia além da conta. Aquele amor mais parecia um câncer ou vício que não se cura. Ela esperava que um milagre acontecesse. Um dia, tenra como um pintinho saído da casca, chamou Mário à sua casa e pediu que não a procurasse mais. Antes, porém, sentou no colo e falou que talvez ainda valesse a pena tentar. Mário não disse palavra. Nisso tocou o telefone. Era a mulher de Mário dizendo que hoje era o último dia para pagar o Credicard. Mário pediu dinheiro emprestado a Luísa e foi entregar à mulher que estava esperando lá embaixo. Com o talão de cheques aberto sobre a mesa, Luísa disse olhando fundo nos seus olhos: você não tem dó de mim? Mais do que você pensa, ele respondeu. Tava na cara que aquilo era frase feita, ele nunca quis mudar a situação. Ela fez pé fIrme e pediu que ele fosse embora de uma vez. Ele relutou. mas foi. Ela nem chorou. E eu ainda lhe paguei o Credicard. Fez café, sentou-se na sala e acendeu um cigarro. Abriu a bolsa, apanhou a agenda e anotou o único compromisso para o próximo fim de semana: ser feliz. Luísa julgava impossível terminar seu caso com Mário. Sofria da síndrome do fracasso prévio, já tentara mil vezes e nunca havia conseguido. Estavam juntos há mais de oito anos, mas Mário só prometia casamento quando bebia além da conta. No começo foi um romance muito apaixonado. Acreditavam que haviam nascido um para o outro. Hoje, aquele amor mais parecia um câncer ou vício que não se cura. Ela esperava que um milagre acontecesse. Um dia, tenra como um pintinho saído da casca, chamou Mário à sua casa e pediu que não a procurasse mais. Antes, porém, sentou no colo e falou que talvez ainda valesse a pena tentar. Mário não disse palavra. Nisso tocou o telefone. Era a mulher de Mário dizendo que hoje era o último dia para pagar o Credicard. Mário pediu dinheiro emprestado a Luísa e foi entregar à mulher que estava esperando lá embaixo. Com o talão de cheques aberto sobre a mesa, Luísa disse olhando fundo nos seus olhos: você não tem dó de mim? Mais do que você pensa, ele respondeu. Tava na cara que aquilo era frase feita, ele nunca quis mudar a situação. Ela fez pé firme e pediu que ele fosse embora de uma vez. Não sei se se fez de surdo ou de bobo, mas sugeriu que fossem comprar cerveja pra lavar a serpentina. Luísa disse que não estava a fim de cerveja porcaria nenhuma e que não queria prolongar aquele inferno por mais nenhum minuto. Ele relutou, mas foi. Ela nem chorou. E eu ainda lhe paguei o Credicard. Fez café, sentou-se na sala e acendeu um cigarro. Abriu a bolsa, apanhou a agenda e anotou o único compromisso para o próximo fim de semana: ser feliz. Meu nome é Luísa, tenho trinta e sete anos e sempre julguei impossível terminar meu caso com Mário. Passei a sofrer a síndrome do fracasso prévio, já tentara mil vezes e nunca havia conseguido. Estávamos juntos há mais de oito anos, mas Mário só prometia casamento quando bebia além da conta. Sóbrio, tinha sempre um punhado de razões: o filho, os cachorros, a casa, a mulher, o papagaio, a mãe doente, a grana. No começo foi um romance muito apaixonado. Acreditávamos que havíamos nascido um para o outro. Hoje, aquele amor mais parecia um câncer ou vício que não se cura. Sempre esperei que um milagre acontecesse. Um dia, tenra como um pintinho saído da casca, chamei Mário à minha casa e pedi que não me procurasse mais. Antes, porém, sentei no colo e falei que talvez ainda valesse a pena tentar. Mário não disse palavra. Depois riu: você já me falou isto mil vezes. Nisso tocou o telefone. Era a mulher dele dizendo que hoje era o último dia para pagar o Credicard. Pois ele teve a cara de pau de me pedir dinheiro emprestado e levar à mulher que estava esperando lá embaixo. Quando perguntei: e nós? E a nossa situação? Ele me disse: hoje é o último dia pra pagar o Credicard e você quer que eu pense na nossa situação? Ao subir, me encontrou feito estátua na sala de jantar. Olhei fundo nos seus olhos e perguntei: você não tem dó de mim? Mais do que você pensa, ele respondeu. Tava na cara que aquilo era frase feita, Mário nunca quis mudar a situação. Fiz pé firme e pedi que ele fosse embora de uma vez. Não sei se se fez de surdo ou de bobo, mas sugeriu que fôssemos comprar cerveja pra lavar a serpentina. Disse-lhe que não estava a fim de cerveja porcaria nenhuma e que não queria prolongar aquele inferno por mais nenhum minuto. Ele relutou, mas foi. Eu nem chorei. E eu ainda lhe paguei o Credicard. Depois que ele saiu, fiz café, sentei-me na sala e acendi um cigarro. Nunca mais fui feliz.

262. JOÃO ANTÔNIO. CARIOCA DA GEMA. Carioca, carioca da gema seria aquele que sabe rir de si mesmo. Também por isso, aparenta ser o mais desinibido e alegre dos brasileiros. Que, sabendo rir de si e de um tudo, é homem capaz de se sentar ao meio-fio e chorar diante de uma tragédia. O resto é carimbo. Minha memória não me permite esquecer. O tio mais alto, o meu tio-avô Rubens, mulherengo de tope, bigode frajola, carioca, pobre, porém caprichoso nas roupas, empaletozado como na época, impertigado, namorador impenitente e alegre e, pioneiro, me ensinar nos bondes a olhar as pernas nuas das mulheres e, após, lhes oferecer o lugar. Que havia saias e pernas nuas nos meus tempos de menino. Folgado, finório, malandreco, vive de férias. Não pode ver mulher bonita, perdulário, superficial e festivo até as vísceras. Adjetivação vazia... E só idéia genérica, balela, não passa de carimbo. Gosto de lembrar aos sabidos, perdedores de tempo e que jogam conversa fora, que o lugar mais alegre do Rio é a favela. E onde mais se canta no Rio. E, aí, o carioca é desconcertante. Dos favelados nasce e se organiza, como um milagre, um dos maiores espetáculos de festa popular do mundo, o Carnaval. O carimbo pretensioso e generalizador se esquece de que o carioca não é apenas o homem da Zona Sul badalada — de Copacabana ao Leblon. Setenta e cinco por cento da população carioca moram na Zona Centro e Norte, no Rio esquecido. E lá, sim, o Rio fica mais Rio, a partir das caras não cosmopolitas e se o carioca coubesse no carimbo que lhe imputam não se teriam produzido obras pungentes, inovadoras e universais como a de Noel Rosa, a de Geraldo Pereira, a de Nelson Rodrigues, a de Nelson Cavaquinho... Muito do sorriso carioca é picardia fina, modo atilado de se driblarem os percalços. Tenho para mim que no Rio as ruas são faculdades; os botequins, universidade. Algumas frases apanhadas lá nessas bigornas da vida, em situações diversas, como aparentes tipos-a-esmo: "Está ruim pra malandro" - o advérbio até está oculto. "Quem tem olho grande não entra na China". "A galinha come é com o bico no chão". "Negócio é o seguinte: dezenove não é vinte". "Se ginga fosse malandragem, pato não acabava na panela"· "Não leve uma raposa a um galinheiro". "Se a farinha é pouca o meu pirão primeiro". "Há duas coisas em que não se pode confiar. Quando alguém diz "deixe comigo" ou "este cachorro não morde". "Amigo, bebendo cachaça, não faço barulho de uísque". "Da fruta de que você gosta eu como até o caroço". "A vida é do contra: você vai e ela fica". Como filosofia de vida ou não, vivendo numa cidade em que o excesso de beleza é uma orgia, convivendo com grandezas e mazelas, o carioca da gema é um dos poucos tipos nacionais para quem ninguém é gaúcho, paraibano, amazonense ou paulista. Ele entende que está tratando com brasileiros.

263. JOÃO ANTÔNIO. ZICARTOLA. RECORDAÇÕES DE UMA CASA DE SAMBA. Com licença. Vou me valer dos poetas, essa gente rara e bem topada. A filosofia, neste século, já recomendou que a essência da arte é a poesia e a essência da poesia é a instauração da verdade. E se Mário Quintana cantou: “Da vez primeira que me assassinaram, perdi um jeito de sorrir que eu tinha... Depois, de cada vez que me mataram, foram levando qualquer coisa minha...". Também cantou Nélson Cavaquinho: "Mas o sambista vive eternamente no coração da gente".A roda reunida no segundo pavimento do velho casarão da Rua da Carioca boquejava boatos num à-vontade macio, enquanto rolavam cachaça e cerveja gelada nos intervalos dos números musicais. Falou-se, que me lembro, de um patriarca de Madureira, vida de murros e porradas, Natal da Portela. Que teria dito: — Você não canta mais aqui. Você é feio demais, canta feio e espanta os turistas. Claro que era uma suposta intimação de Natal da Portela ao sambista Joãozinho da Pecadora, autor de um partido-alto proibido pela censura que dizia: "Foi mulher de deputado, pouco antes de ser minha, de autores laureados e de um oficial da Marinha”. Natal surpreendia os distraídos e bisonhos, inda mais nas entrevistas. Numa delas, por aquele tempo, lhe perguntaram como é que se sentia como bicheiro. Contraventor do jogo do bicho. Ele bateu: — O samba deve muito à minha profissão e se eu quisesse ser senador da República teria sido. Esse lero assim aceso, sapecado de picardia, catimbado, corria nas noites do Zicartola, casa de samba da Rua da Carioca, chamado "Templo do Samba" nos cinco primeiros anos da década de sessenta. Havia a mulata Vitória que, quando cantava, fazia a cozinha parar. Havia Nilo Bom Cabelo trazendo Chico Alves e os barcos perdidos e os faróis da alegria (1). Inda mais: havia Cartola. Era um alma boa, nascido e criado nas rodinhas, forjado no samba, pelo samba, na pureza, sem maiores embelecos. Pontificava havia já uns trinta anos. Tinha no espírito alguma coisa daquela renúncia rara da música pela música, coisa não aprendida em bancos escolares, e sem objetivos outros — viver na sua reserva de sonhos. Compunha porque gostava. Isso era tudo. Como era da Manga compunha para a Mangueira. A escola saía à avenida, anos e anos, cantando ritmos de Cartola. Muita vez, o crioulo de nariz de couve-flor — a evidenciar um entornador de cachaça — foi premiado nos carnavais. Querido, cortejado, admirado no meio das escolas todas. Bom, lá de dentro, lá no íntimo. Sensível, dolente, harmônico, humano, musical. Tinha uma linha melódica rica e própria, agradava em cheio. Diferente de um talento desnorteante como o de Nélson Cavaquinho, diferente do desvario e do ímpeto de Geraldo das Neves. São exemplos. Cartola sempre fez a sua coisa, independente e, assim, fazia a noite de qualquer um, com suas músicas contando seus casos, no rebolado da conversa jeitosa. Era nobre na sua singeleza. Vamos dizer. Suas peças teriam o fascínio deslizante e o desenho dos movimentos de um mestre-sala, quando em quando, em câmara lenta. E um papo e tanto, na batida calejada e nas implicações da malandragem. Amou Zica, cabrocha lá da Estação Primeira, com ela vivendo já não se sabia mais há quanto tempo. Havia gente que falava, por baixo, baixo, que aquela união tinha uns vinte anos. Zica era cabrocha de molejo, jogo de cintura, cozinheira cutuba. Tempero de rainha. Porreta. Quem comeu um feijão de Zica, no Morro de Mangueira, não esquecerá tão cedo. Havia nele o dom mágico de fazer riqueza da coisa pobre, havia nele mãos de propriedade, sabedoras. Zica pinta na vida de Cartola não como primeira mulher. O mestre de Mangueira teve outros amores e, pelo menos, um grande ("Tive sim"). O samba "Divina dama" (que Zica detestava, enciumada) é anterior a ela. Tudo isso é papo de candinha faladeira. Zica pintou no pedaço e Cartola amou Zica. Pronto. Aquele lero de João e Maria. Bem. Resolveu o sambista Cartola aproveitar comercialmente os dotes seus e de Zica. Abriu uma casa de samba, de comes e bebes. Chamou-a Zicartola. A mulher providenciava os comes. Ele fazia escorregar os bebes, com sua conversa, seus casos, sua música, sua charla. Era bom, era gente, era muito morro. Tinha fricote, não; não tinha quiquiricagem. Ambiente pra lá de gostoso. Cartola foi isso, no começo. E assim era o Zicartola. A ambiência da casa de samba estava disposta na base de proporcionar autênticos contrastes fotogênicos. Aquelas paredes apenas poderiam abrigar cantores e poetas do povo. A iluminação não lembrava nada que parecesse boate. A excelência dos trabalhos de Heitor dos Prazeres — o traço preto sobre fundo branco e amarelo — fazia desfilar pelas paredes do Zicartola um bom bocado. Lindas pastoras, passistas esguios e safos, porta-estandartes rodopiantes. Uma carioquice dosada e bom em termos de samba, africanidade, carnaval. Era o Zicartola ainda do sambista Jorge dos Cabritos que, além de bom, trazia consigo, dando de lambujem, alguns companheiros lá da Portela e da Mangueira. Se Nélson Cavaquinho cantava, excelia. E Manuelzinho da Flauta serelepava no tablado. O regional atacando de "Trem das onze", do admirável e universal Adoniran Barbosa, que o Rio de Janeiro soube prestigiar. Mas baixou fariseu na jogada. Os "cronistas" da noite , os falsos escribas, descobriram o Zicartola. Então, os bem-comportados lambuzaram a casa de samba da Rua da Carioca. E acabou-se. Não mais a onda gostosa do samba pelo samba, conversas maneiras e cabrochas aparecendo sem compromisso, na base do chega pra cá. Desmoronou-se o ritmo calmo, mataram a chegança, emporcalharam o pedaço. Os bem-comportados, os festivos, os "politizantes" e os "participantes", os sabidos da classe média começaram a freqüentar. Invadiram, encheram tudo. O aperto do espaço, que era íntimo e quente, ficou chato e incômodo. Passou a ser bem fazer a noite no Zicartola. Aí, os ares mudaram e ficou ruço. Em lugar do cheirinho gostoso das cocadas suado no repinicado do samba quente, havia perfume francês e uísque. Tudo passou a exibicionismo estereotipado, bestices do tipo pra turista ver. Falso, truncado, comercializado. Vendável e vendido. Cego de um olho, capenga de uma perna, furado, contrafação, joguinho de interesses. Conversa de Cartola, agora, era cheia de dedos, dosada conforme a importância social do freguês. Uma falência. A ratatuia (2) de falsos sabidos levou o seu populismo a ponto extremo. Conseguiram até, olhem só, armar o casamento de Cartola e Zica. Os dois haviam vivido, até ali, por mais de quinze anos e, no caso, foi uma presepada dispensável. Mas os bem-comportados da classe média acharam que não era bem apreciar e relacionar-se com um casal amigado. Então, forçaram a barra e, mais uma vez, cantou-se acima do tom. E o casal, no despreparo para a situação, resolveu dar uma satisfação às rodas de novatos que se meteram no Zicartola. Pegou bem, já que deu reportagem em segundo caderno das folhas da imprensa chamada de grande. Pegou mal e atravessado — camaradinhas decentes entenderam tudo e houve constrangimentos. Afinal, casar para dar satisfação aos outros, a uma corriola mal chegada, de novo... Zica e o sambista Cartola estavam cercados por uma parranda da Zona Sul, uma gente colonizada, entre babaquara e deslumbrada e sem emulação cultural nenhuma. Esses sujeitinhos eternamente na moda e que sequer conhecem a diferença entre um pagode e um gurufim (3). A mesma cambada de bobalhões perniciosos que, hoje em dia, por um nada, vive dizendo: "a nível de".Mais fizeram. Trataram de convencer Cartola a fazer uma operação plástica no nariz couve-flor. Também deu reportagem. Antes de desmoronar, o Zicartola dava saudade prévia. Não era mais o Zicartola de Zica e Cartola, de Nélson Cavaquinho, de Geraldo das Neves, do serelepe Manuelzinho da Flauta, pulando e repulando no tablado com seu requintadíssimo instrumento importado de Paris na mocidade. Também não era mais de Preto Rico, todo vestido de verde, sapatos brancos carregando as quebras de corpo e cujos sambas falavam da Vista Chinesa (4) e de Maria. Especialmente uma. A da Glória. O Zicartola dos últimos anos já não tinha a presença lá atrás do microfone, de um papagaio cuja função era malhar uns gritos roucos quando a turma saía do ritmo ou perdia um pouco o rebolado, cantando ou tocando feio. A gente não o via, que a ave se escondia lá no seu canto. Escondidinho no seu mocó de papagaio. Mas os gritos chegavam até as mesas da gente. — Cartola, Cartola, Cartola! Para encurtar conversa, já em 65, a gente decepcionada saía da casa de samba e ia tomar um conhaque lá na Praça Mauá, num botequim xexelento, cheio de marinheiros estrangeiros, tatambas no falar, se mexendo nas caras vermelhas, mais vermelhas de bebida entre marafonas caxinguentas. Ficávamos lá pelo frege onde, pelo menos, não tinha fricote de perfume francês ou uísque falso e as criaturas eram definidas — mulher era mulher, homem era homem e até os invertidos do amor eram viventes mais respeitáveis. Não havia flosô. Queimava-se o pé (5) na cana, na uca, na cerveja, no chope, no conhaque. Pronto. O povo da nossa terra diz que o que não tem remédio, remediado está. Morreu o Zicartola, das cores de Mangueira e de todas as outras escolas. Puro e bom, não havia mais. Depois, anos depois, Angenor de Oliveira aconteceu à grande, quando versejou que as rosas podem roubar o perfume de uma mulher e entregá-lo todo à sensibilidade de um poeta (6). Cartola soube embalar corações. Sua obra é um hinário, lances sublimes. Em marras de malandragem e em assunto de coração era professor, tinha um quê inexplicável também chamado talento. Ele tinha uma relação de vida com o samba e não uma aflição artística. Uma lástima que o país o tenha reconhecido com quatro décadas de atraso. Mas o Zicartola. Às vezes, hoje em dia, a gente ainda goza de alguns momentos de completa liberdade e a casa de samba nos renasce no coração. Em cada pagode que o Rio ainda sabe fazer nos fundos de seus quintais da Zona Norte, na beleza indizível de cada partido-alto e nessa coisa tão espontânea que é o nó que as mulheres do samba dão nas cadeiras!

264. JOÃO ANTÔNIO. DAMA DO ENCANTADO. ...Que o subúrbio é ambiente de completa liberdade. (Voltaste, Noel Rosa, 1934). Há quem diga que é no Encantado que se come o melhor bacalhau da cidade. E eu não estou aqui para desdizer. A partir do seu nome, esse subúrbio da Central do Brasil, antes de Madureira, capital do samba, e depois do Méier, carrega ares singelos, descansados; são as casas, os sobrados, os gradis. O ritmo ali é pausado. Sua população pobre é típica do Rio mais carioca, a Zona Norte — negros, mulataria, mestiçados que, na pobreza, vivem num ambiente de espontaneidade e pouca correria. Depois, tem que se chama Encantado... Chegou ao noticiário nacional pela força de duas mulheres nascidas ali, Aracy de Almeida, a sambeira de muitos cognomes ditos e repetidos — "O Samba em Pessoa", "A Dama da Central", "A Arquiduquesa do Encantado". Bem. Exagerações à parte ou exageração nenhuma, Aracy era uma fidalga, dessa fidalguia carioca, sestrosa, picarda, encharcada de silenciosa dignidade, alta em si mesma, e a que pertenceram Pixinguinha, Clementina de Jesus, Cartola, Nélson Cavaquinho, Heitor dos Prazeres... e, claro, Paulinho da Viola, hoje em dia. A segunda dama de nomeada, para muitos, é a primeira do nosso teatro de bom nível, Fernanda Montenegro. A fala, o som, o sotaque, o gosto com que carregava as palavras, a alegria de viver, a linguagem carioca de Aracy, debochada na primeira aparência, era em si mesma um depoimento vivo da alma do subúrbio. Mas subúrbio universal. Sua conversa tinha cor e plástica, além da bossa, obliqüidade e ginga. Falava, se quiserem, em diagonal, mas o resultado era uma linha reta. Usava, abusava e deliciava o interlocutor com propriedade tão fina e tal franqueza a aparentar até rusticidade. Os adjetivos perderam um tanto o sentido quando se meteram a situar sua personalidade. Autêntica, genuína, irreverente, desconcertante, livre, impulsiva, afetiva, ética e franca... no caso de Aracy são palavras e nada mais. Ela era voz, uma voz da terra e do povo. E uma sambeira nada simples. No fundo, mulher fina e lida, leitora freqüente da Bíblia e ouvinte de Mozart, vocacionada profissionalmente para indicar caminhos a jovens músicos. Foi certeira nessas previsões: sabia ouvir. Lia bastante sobre medicina e desenvolveu um gosto refinado pela pintura e artes plásticas. Captava o sentido trágico, quase grego da vida, mais de se notar ao cantar Noel Rosa.— Nasci no Encantado, fui criada ali, tenho lá minha casa com minhas flores e meus cachorrinhos de estimação. Ali eu fui menina, fui pobre, dormi em cima de esteira. É uma casa térrea, minha, cheia de azaléias na primavera e de caramanchões; eu lá vou me sujeitar a viver dentro de um apartamento? Não, compadre, não é por nada,.não. Mas esse babado de Zona Sul, apartamento, quarto-e-sala... a sua tia aqui não embarca nessa canoa. Depois, me criei no Encantado. Sabe, a gente sente o calor de tudo isso. Sua casa térrea, à Rua Almeida Bastos, número 294 foi e é a própria Aracy e tanto quanto a sua voz no disco é o seu melhor retrato. Bom gosto por dentro e singeleza suburbana por fora. Araca jamais quis outra casa, embora cortejada pelas ondas da Zona Sul carioca. Não lhe era fácil ou cômodo sair do Encantado e cantar em Copacabana... Cantava, cantava. Mas pousava na casa do Encantado. Lá dentro, muita atmosfera e pintura, quadros de Aldemir Martins (que chegou a retratá-la) e Di Cavalcanti, uma cabeça de Aracy esculpida por Bruno Giorgio, mobília de bom gosto, nada de falso antigo e como Araca adorasse cachorros, havia uma atmosfera humana e movimentada. Não casou. Tinha uma tese: — Solteira, sempre. Acho esse babado de casamento uma onda bastante enrolada. No começo, são flores e mais flores. Depois, pedras e espinhos. É a rotina, não é, filhinho? Todo o dia a mesma toalha, o mesmo sabonete. É fogo. Além de que, esse assunto é maçante. Vamos deixar para o próximo número. A sua afilhada portuguesa, que depois de adulta a secretariou, a quem Araca quis ver médica mas que acabou vendo advogada, ainda hoje vive lá com seu nome fidalgo, Maria Adelaide Serra Bragança. Um dos cachorros de Araca se chamava Feijão. — Sério, compadre, ninguém gosta de cachorro como eu. Além do uso do cigarro importado, americano, a mania de um regime alimentar que não cumpria. Costumava fazer a feira, pessoalmente, à Rua Cruz e Souza, a feira do Encantado. Aparentemente ranzinza, esquiva: — Ih, meu tio, eu estou sem tempo até pra me coçar. Desculpa esfarrapada. Adorava o bate papo, era mestra na arte espontânea de prosear. Tinha carisma e conversa sua surpreendia, maravilhava ou arrepiava os pêlos do braço pela autenticidade e franqueza. De memória invejável, quando sua parolagem remontava ao tempo de Noel, então, mais envolvia, devido aos detalhes e rasgos. Quando moça jogou sinuca, falou palavrão, acompanhou Noel em andanças pelos cantos por onde o poeta circulava e até pelo Mangue: — Apesar da minha pouca idade, achava Noel um fenômeno. Passei a andar atrás dele porque estava interessada em aparecer — quando você tem pouca idade acredita nessas besteiras. Ele pegava da viola e eu cantava, em casas suspeitas, atrás do Mangue, no baixo meretrício. Sua voz era fraca e ele estava a fim daquelas mulatas. Os dias em que convivi com Noel nesta terra foram dias muito engraçados. Sua voz sofreu restrições, devido à característica nasalada. Mas como intérprete ela foi a cantora que mais fundamente captou e transmitiu a essência rítmica do samba — a cadência. Enquanto cantou e gravou, sua vida virou terreno do diz-que-não-diz em que era mais atacada do que atacava. As suas apresentações, de scripts livres, em boates e teatro, acabavam levantando críticas azedas, pois Aracy, em matéria de franqueza, não falava a meia verdade. Depois desabafava, jamais em tom de resposta ou desforra, mas usando inteiramente o seu direito de falar: — Alguém escreveu por aí que eu exagero nas histórias que conto. Exagero coisa nenhuma, é tudo verdade. Conto o que é pra se contar. Tinha mais, é que não me deixam abrir o verbo. E essa coisa de Noel Rosa é preciso deixar claro que, se não fosse ele, eu não estaria aqui cantando. Só ele acreditou em mim, os outros me achavam uma escurinha que queria... Bem. Uma escurinha qualquer. E teve gente que disse até que eu desafinava, coisa que eu nunca consegui fazer em mais de 40 anos de profissão! Uma vez, lhe perguntaram, cara a cara: — Noel roubava música, Aracy? E Araca, pronta: —Ao contrário. Roubavam dele. Vi muito samba ser consertado pelo Noel e, se duvida, tem muito samba mesmo. Você está interessado na relação? Àqueles que achavam que ela foi reduzida, com os anos, a uma cantora que interpretava exclusivamente Noel Rosa: - Eu não me fixei em Noel e a prova disso é que cantei muitos outros grandes compositores, Caymmi, Ari Barroso, Joel e Gaúcho, Antônio Maria. A lista iria longe. Mandei pra o alto uma porção de sucessos carnavalescos que nada tinham a ver com Noel. Canto as músicas mais por sentimentalismo, por gostar do que ele fez, do que para forçar o cartaz, como uns sabidinhos já escreveram e disseram por aí. Acresce, meu tio, a seguinte circunstância: eu estou fazendo um espetáculo, cantando numa boate, num teatro, e logo o público começa pedindo: canta o Feitiço da Vila, canta O X do Problema. Manda os Três Apitos, canta a Conversa de Botequim. Aí, eu vou lá e atendo. Pego o embalo e vou indo, indo, indo de Noel. Não tenho culpa, não, compadre. Como se tem no país a mania das classificações, ela foi considerada uma das maiores, senão a maior, das intérpretes de Noel. E a sambista mais respeitada do país. Aceitava, e não, tudo isso e explicava que Noel foi o seu mestre na arte de cantar sambas. Ninguém poderia, por exemplo, cantar melhor Gago Apaixonado, uma obra-prima, do que ele próprio. Coisas assim. Mas o fato é que desde moça foi famosa nacionalmente. E houve lendas. Cronistas apressados viram em Aracy apenas irreverência. A gana de reportar o pitoresco e até o picaresco esteve mais preocupada com a fofocagem da suposição de que com a obra, a ponto de confundirem nomes e locais. Até se envolveu o nome de Getúlio Vargas, no Palácio do Catete, Rio de Janeiro, a prestar uma homenagem à cantora e a receber uma de suas respostas irônicas. Na verdade, Araca esclareceu que o caso se deu quando ela recebeu um banquete em homenagem aos seus "25 ou 30 anos de rádio, eu nem me lembro". Evidente, no entanto, que a cantora omitia a data exata, para evitar o enfoque direto de um governador paulista. O banquete era oficial e o político, sem a mínima propriedade, lhe teria feito um elogio rasgado, sem nenhuma convicção. Araca recebeu na linguagem oficial e despachou na sua linguagem típica, aberta, convicta: — Ora, deixe isso prá lá. Isso são lantejoulas de sua parte. Mas Getúlio Vargas, na época, nem estava em São Paulo. Falou-se também que, uma vez, Aracy passava pela ex-Galeria Cruzeiro, hoje Edifício Avenida Central, no centro do Rio, e teria sido saudada assim por Ari Barroso: - Olá, Aracy, como vai? Araca retificou. Foi defronte à Livraria Jaraguá, em São Paulo, na Rua Marconi, nos tempos em que havia o famoso chá da tarde, reunindo desocupados, ricaços, esnobes e gente sem emulação cultural alguma, ruminando idéias importadas e despejando frases feitas. A saudação partiu do ator Maurício Barroso, que, estando num grupo de grã-finos, pretendeu esnobar Aracy com a inflexão "olá" de pouco caso. O que mais a ofendeu é que Maurício parecia estar fazendo um favor ao cumprimentar cantores populares, gente de uma profissãozinha qualquer, uns boêmios inconseqüentes. Ah, pra quê! Ela fez meia volta, encarou-o. E a resposta: — Eu não sou mulher de olá! Mas Ari Barroso não teve nada a ver com a história. Um indisfarçável medo de avião: — Pra não dizer que eu sinto medo, vou dizer que tenho receio. Ou, melhor ainda, que eu tenho um distúrbio neurovegetativo que não me deixa viajar de avião. Eu embarco no Rio e chego a São Paulo tontinha. Prefiro o trem, que é na base do antigo e do seguro. Sempre uma mulher do povo. Gostava de futebol, sempre passional: — Amo o Vasco, no Rio, mas adoro o Palmeiras, em São Paulo. Sou vascaína podre. Sou palmeirense podre. Morro. Sou palmeirense doente mesmo. Vai daí, viveu e como. Houve duas passagens legítimas que recordava nos momentos de melhor humor e que havia dado briga. Sustentava: — Uma vez, o Kid Pepe me encostou uma faca deste tamanho na barriga, querendo me obrigar a gravar uma batucada de autoria dele, chamada O Que Tem Iaiá. Eu gravei, compadre, com a faca na barriga e tudo. O famoso Amélia, samba tido e havido como um dos hinos nacionais de nossa música popular, tem uma revelação da parte de Aracy. Já foi motivo de briga entre a cantora e o autor dos versos, Mário Lago: — O Mário fica doido de raiva quando eu digo, mas a idéia de Amélia fui eu quem deu. Um dia, sugeri uma frase, "Amélia é que era mulher de verdade", ao Wilson Batista. Ele disse que andava sem tempo para compor e então o Ataulfo, que estava perto, pediu a frase para o Mário, e o samba foi feito. Tem mais. Dou até o local onde aconteceu: na Leiteria Nevada, ali na Rua Bittencourt da Silva. Na esquina ficava o Café Nice. Sempre saltava do ataque para a defesa. Sobre a velha guarda: — A verdade clarinha, compadre, é que nos tempos antigos, principalmente na minha fase de RCA Victor, havia mais camaradagem e todos os artistas torciam pelo sucesso de um cantor. O Orlando Silva, a Aurora Miranda, o Francisco Alves, todo mundo ajudava no coro. A gente tinha uma dificuldade bárbara para gravar. Então, se dava outro valor, né? Mas com solene serenidade, Aracy, quando aborrecida, costumava declarar ao empresário: — Veja. Eu moro longe, tenho os meus cachorrinhos de estimação e não preciso me aborrecer para trabalhar. Já enjoei de cantar e tem mais: o ambiente não ajuda, e no momento o mingau anda grosso. Já veterana, sua figura continuou desconcertante também em público. Aparecia de minissaia, botinhas e boina na cabeça. Não se definiu até que ponto ela estava na moda ou ridicularizando os costumes. Tocava o telefone. Um empresário, do lado de lá do fio, a convidava para receber uma homenagem. Ela deveria cantar, inclusive. — Homenagem me dá muito trabalho, meu filho. Eu ando cansada. Imagine só: eu passei a manhã inteira cuidando do jardim, tive de tirar tanta terra de lá pra cá e você me vem com essa história de homenagem... Hem, e quanto vocês me pagam para cantar? Vem a resposta. — O quê? Olha aqui, meu filho, quem canta de graça é galo! Desligando o telefone, voltava aos cachorros: — Na outra encarnação, eu devo ter sido cachorro. Porque ainda não conheci no mundo quem gostasse mais de cachorro do que eu. Sério, compadre. Flor e cachorro é comigo. Imagine que eu cuido do Feijão, da Bela Lola (uma homenagem que eu fiz a um filme de Sarita Montiel), da Gorda e da Mundica. A Mundica, não desfazendo das outras, é minha grande considerada. Mas o fato é que eu já criei muito cachorro e pretendo criar muitos ainda. Famosa, disputada, teve seus apaixonados. Um deles, em São Paulo, a apanhou no hotel, colocou-a num táxi, levou-a a passear pela cidade, enquanto a cortejava dizendo-lhe coisas doces. Ao passarem pelo Viaduto do Chá, Aracy saudou a paisagem, com ironia: — Esta é a Ponte dos Suspiros. Araca passou os seus derradeiros trinta anos sem gravar. E pouco cantava. Costumava repetir que o mingau estava grosso.

265. JOÃO CABRAL DE MELO NETO. OS TRÊS MAL-AMADOS. O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome. O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos. O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina. O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos. Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina. O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água. O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome. O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel. O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso. O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala. O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

266. JOÃO GILBERTO NOLL. ALGUMA COISA URGENTEMENTE. Os primeiros anos de vida suscitaram em mim o gosto da aventura. O meu pai dizia não saber bem o porquê da existência e vivia mudando de trabalho, de mulher e de cidade. A característica mais marcante do meu pai era a sua rotatividade. Dizia-se filósofo sem livros, com uma única fortuna: o pensamento. Eu, no começo, achava meu pai tão-só um homem amargurado por ter sido abandonado por minha mãe quando eu era de colo. Morávamos então no alto da Rua Ramiro Barcelos, em Porto Alegre, meu pai me levava a passear todas manhãs na Praça Júlio de Castilhos e me ensinava os nomes das árvores, eu não gostava de ficar só nos nomes, gostava de saber as características de cada vegetal, a região de origem. Ele me dizia que o mundo não era só aquelas plantas, era também as pessoas que passavam e as que ficavam e que cada um tem o seu drama. Eu lhe pedia colo. Ele me dava e assobiava uma canção medieval que afirmava ser a sua preferida. No colo dele eu balbuciava uns pensamentos perigosos: — Quando é que você vai morrer? — Não vou te deixar sozinho, filho! Falava-me com o olhar visivelmente emocionado e contava que antes me ensinaria a ler e escrever. Ele fazia questão de esquecer que eu sabia de tudo o que se passava com ele. Pra que ler? — eu lhe perguntava. Pra descrever a forma desta árvore — respondia-me um pouco irritado com minha pergunta. Mas logo se apaziguava. — Quando você aprender a ler vai possuir de alguma forma todas as coisas, inclusive você mesmo. No final de 1969 meu pai foi preso no interior do Paraná. (Dizem que passava armas a um grupo não sei de que espécie.) Tinha na época uma casa de caça e pesca em Ponta Grossa e já não me levava a passear. No dia em que ele foi preso, eu fui arrastado para fora da loja por uma vizinha de pele muito clara, que me disse que eu ficaria uns dias na casa dela, que o meu pai iria viajar. Não acreditei em nada mas me fiz de crédulo como convinha a uma criança. Pois o que aconteceria se eu lhe dissesse que tudo aquilo era mentira? Como lidar com uma criança que sabe? Puseram-me num colégio interno no interior de São Paulo. O padre-diretor me olhou e afirmou que lá eu seria feliz. — Eu não gosto daqui. — Você vai se acostumar e até gostar. Os colegas me ensinaram a jogar futebol, a me masturbar e a roubar a comida dos padres. Eu ficava de pau duro e mostrava aos colegas. Mostrava as maçãs e os doces do roubo. Contava do meu pai. Um deles me odiava. O meu pai foi assassinado, me dizia ele com ódio nos olhos. O meu pai era bandido, ele contava espumando o coração. Eu me calava. Pois se referir ao meu pai presumia um conhecimento que eu não tinha. Uma carta chegou dele. Mas o padre-diretor não me deixou lê-la, chamou-me no seu gabinete e contou que o meu pai ia bem. — Ele vai bem. Eu agradeci como normalmente fazia em qualquer contato com o padre-diretor e saí dizendo no mais silencioso de mim: — Ele vai bem. O menino que me odiava aproximou-se e falou que o pai dele tinha levado dezessete tiros. Nas aulas de religião o padre Amâncio nos ensinava a rezar o terço e a repetir jaculatórias. — Salve Maria! — ele exclamava a cada início de aula. — Salve Maria! — os meninos respondiam em uníssono. Quando cresci meu pai veio me buscar e ele estava sem um braço. O padre-diretor me perguntou: — Você quer ir? Olhei para meu pai e disse que eu já sabia ler e escrever. — Então você saberá de tudo um dia — ele falou. O menino que me odiava ficou na porta do colégio quando da nossa partida. Ele estava com o seu uniforme bem lavado e passado. Na estrada para São Paulo paramos num restaurante. Eu pedi um conhaque e meu pai não se espantou. Lia um jornal. Em São Paulo fomos para um quarto de pensão onde não recebíamos visitas. — Vamos para o Rio — ele me comunicou sentado na cama e com o braço que lhe restava sobre as pernas. No Rio fomos para um apartamento na Avenida Atlântica. De amigos , ele comentou. Mas embora o apartamento fosse bem mobiliado, ele vivia vazio. — Eu quero saber — eu disse para o meu pai. — Pode ser perigoso — ele respondeu. E desliguei a televisão como se pronto para ouvir. Ele disse não. Ainda é cedo. E eu já tinha perdido a capacidade de chorar. Eu procurei esquecer. Meu pai me pôs num colégio em Copacabana e comecei a crescer como tantos adolescentes do Rio. Comia a empregada do Alfredinho, um amigo do colégio, e, na praia, precisava sentar às vezes rapidamente porque era comum ficar de pau duro à passagem de alguém. Fingia então que observava o mar, a performance de algum surfista. Não gostava de constatar o quanto me atormentavam algumas coisas. Até meu pai desaparecer novamente. Fiquei sozinho no apartamento da Avenida Atlântica sem que ninguém tomasse conhecimento. E eu já tinha me acostumado com o mistério daquele apartamento. Já não queria saber a quem pertencia, porque vivia vazio. O segredo alimentava o meu silêncio. E eu precisava desse silêncio para continuar ali. Ah, me esqueci de dizer que meu pai tinha deixado algum dinheiro no cofre. Esse dinheiro foi o suficiente para sete meses. Gastava pouco e procurava não pensar no que aconteceria quando ele acabasse. Sabia que estava sozinho, com o único dinheiro acabando, mas era preciso preservar aquele ar folgado dos garotos da minha idade, falsificar a assinatura do meu pai sem remorsos a cada exigência do colégio. Eu não dava bola para a limpeza do apartamento. Ele estava bem sujo. Mas eu ficava tão pouco em casa que não dava importância à sujeira, aos lençóis encardidos. Tinha bons amigos no colégio, duas ou três amigas que me deixavam a mão livre para passá-la onde eu bem entendesse. Mas o dinheiro tinha acabado e eu estava caminhando pela Avenida Nossa Senhora de Copacabana tarde da noite, quando notei um grupo de garotões parados na esquina da Barão de Ipanema, encostados num carro e enrolando um baseado. Quando passei, eles me ofereceram. Um tapinha? Eu aceitei. Um deles me disse olha ali, não perde essa, cara! Olhei para onde ele tinha apontado e vi um Mercedes parado na esquina com um homem de uns trinta anos dentro. Vai lá, eles me empurraram. E eu fui. — Quer entrar? — o homem me disse. Eu manjei tudo e pensei que estava sem dinheiro. — Trezentas pratas — falei. Ele abriu a porta e disse entra, o carro subiu a Niemeyer, não havia ninguém no morro em que o homem parou. Uma fita tocava acho que uma música clássica e o homem me disse que era de São Paulo. Me ofereceu cigarro, chiclete e começou a tirar a minha roupa. Eu pedi antes o dinheiro. Ele me deu as três notas de cem abertas, novinhas. E eu nu e o homem começando a pegar em mim, me mordia de ficar marca, quase me tira um pedaço da boca. Eu tinha um bom físico e isso excitava ele, deixava o homem louco. A fita tinha terminado e só se ouvia um grilo. — Vamos — disse o homem ligando o carro. Eu tinha gozado e precisei me limpar com a sunga. No dia seguinte meu pai voltou, apareceu na porta muito magro, sem dois dentes. Resolvi contar: — Eu ontem me prostituí, fui com um homem em troca de trezentas pratas. Meu pai me olhou sem surpresas e disse que eu procurasse fazer outra história da minha vida. Ele então sentou-se e foi incisivo: — Eu vim para morrer. A minha morte vai ser um pouco badalada pelos jornais, a polícia me odeia, há anos me procura. Vão te descobrir mas não dê uma única declaração, diga que não sabe de nada. O que e verdade. — E se me torturarem? — perguntei. — Você é menor e eles estão precisando evitar escândalos. Eu fui para a janela pensando que ia chorar, mas só consegui ficar olhando o mar e sentir que precisava fazer alguma coisa urgentemente. Virei a cabeça e vi que meu pai dormia. Aliás, não foi bem isso o que pensei, pensei que ele já estivesse morto e fui correndo segurar o seu único pulso. O pulso ainda tinha vida. Eu preciso fazer alguma coisa urgentemente, a minha cabeça martelava. É que eu não tinha gostado de ir com aquele homem na noite anterior, meu pai ia morrer e eu não tinha um puto centavo. De onde sairia a minha sobrevivência? Então pensei em denunciar meu pai para a polícia para ser recebido pelos jornais e ganhar casa e comida em algum orfanato, ou na casa de alguma família. Mas não, isso eu não fiz porque gostava do meu pai e não estava interessado em morar em orfanato ou com alguma família, e eu tinha pena do meu pai deitado ali no sofá, dormindo de tão fraco. Mas precisava me comunicar com alguém, contar o que estava acontecendo. Mas quem? Comecei a faltar às aulas e ficava andando pela praia, pensando o que fazer com meu pai que ficava em casa dormindo, feio e velho. E eu não tinha arranjado mais um puto centavo. Ainda bem que tinha um amigo vendedor daquelas carrocinhas da Geneal que me quebrava o galho com um cachorro-quente. Eu dizia bota bastante mostarda, esquenta bem esse pão, mete molho. Ele obedecia como se me quisesse bem. Mas eu não conseguia contar para ele o que estava acontecendo comigo. Eu apenas comentava com ele a bunda das mulheres ou alguma cicatriz numa barriga. É cesariana, ele ensinava. E eu fingia que nunca tinha ouvido falar em cesariana, e aguçava seu prazer de ensinar o que era cesariana. Um dia ele me perguntou: — Você tem quantos irmãos? Eu respondi sete. — O teu pai manda brasa, hein? Fiquei pensando no que responder, talvez fosse a ocasião de contar tudo pra ele, admitir que eu precisava de ajuda. Mas o que um vendedor da Geneal poderia fazer por mim senão contar para a polícia? Então me calei e fui embora. Quando cheguei em casa entendi de vez que meu pai era um moribundo. Ele já não acordava, tinha certos espasmos, engrolava a língua e eu assistia. O apartamento nessa época tinha um cheiro ruim, de coisa estragada. Mas dessa vez eu não fiquei assistindo e procurei ajudar o velho. Levantei a cabeça dele, botei um travesseiro embaixo e tentei conversar com ele. — O que você está sentindo? — perguntei. — Já não sinto nada — ele respondeu com uma dificuldade que metia medo. — Dói? — Já não sinto dor nenhuma. De vez em quando lhe trazia um cachorro-quente que meu amigo da Geneal me dava, mas meu pai repelia qualquer coisa e expulsava os pedaços de pão e salsicha para o canto da boca. Numa dessas ocasiões em que eu limpava os restos de pão e salsicha da sua boca com um pano de prato a campainha tocou. A campainha tocou. Fui abrir a porta com muito medo, com o pano de prato ainda na mão. Era o Alfredinho. — A diretora quer saber por que você nunca mais apareceu no colégio — ele perguntou. Falei pra ele entrar e disse que eu estava doente, com a garganta inflamada, mas que eu voltaria pro colégio no dia seguinte porque já estava quase bom. Alfredinho sentiu o cheiro ruim da casa, tenho certeza, mas fez questão de não demonstrar nada. Quando ele sentou no sofá e que eu notei como o sofá estava puído e que Alfredinho sentava nele com certo cuidado, como se o sofá fosse despencar debaixo da bunda, mas ele disfarçava e fazia que não notava nada de anormal, nem a barata que descia a parede à direita, nem os ruídos do meu pai que às vezes se debatia e gemia no quarto ao lado. Eu sentei na poltrona e fiquei falando tudo que me vinha à cabeça para distraí-lo dos ruídos do meu pai, da barata na parede, do puído do sofá, da sujeira e do cheiro do apartamento, falei que nos dias da doença eu lia na cama o dia inteiro umas revistinhas de sacanagem, eram dinamarquesas as tais revistinhas, e sabe como é que eu consegui essas revistinhas? Roubei no escritório do meu pai, estavam escondidas na gaveta da mesa dele, não te mostro porque emprestei pra um amigo meu, um sacana que trabalha numa carrocinha da Geneal aqui na praia, ele mostrou pra um amigo dele que bateu uma punheta com a revistinha na mão, tem uma mulher com as pernas assim e a câmera pega a foto bem daqui, bem daqui cara, ó como os caras tiraram a foto da mulher, ela assim e a câmera pega bem desse ângulo aqui, não é de bater uma punheta mesmo?, a câmera pertinho assim e a mulher nua e com as pernas desse jeito, não tou mentindo não cara, você vai ver, um dia você vai ver, só que agora a revistinha não tá comigo, por isso que eu digo que ficar doente de vez em quando é uma boa, eu o dia inteiro deitado na cama lendo revistinha de sacanagem, sem ninguém pra me aporrinhar com aula e trabalho de grupo, só eu e as minhas revistinhas, você precisava ver, cara, você também ia curtir ficar doente nessa de revistinha de sacanagem, ninguém pra me encher o saco, ninguém cara, ninguém. Aí eu parei de falar e o Alfredinho me olhava como se eu estivesse falando coisas que assustassem ele, ficou me olhando com uma cara de babaca, meio assim desconfiado, e nem sei bem o que passou pela cabeça dele quando meu pai lá no quarto me chamou, era a primeira vez que meu pai me chamava pelo nome, eu mesmo levei um susto de ouvir meu pai me chamar pelo meu nome, e me levantei meio apavorado porque não queria que ninguém soubesse do meu pai, do meu segredo, da minha vida, eu queria que o Alfredinho fosse embora e que não voltasse nunca mais, então eu me levantei e disse que tinha que fazer uns negócios, e ele foi caminhando de costas em direção à porta, como se estivesse com medo de mim, e eu dizendo que amanhã eu vou aparecer no colégio, pode dizer pra diretora que amanhã eu converso com ela, e o meu pai me chamou de novo com sua voz de agonizante, o meu pai me chamava pela primeira vez pelo meu nome, e eu disse tchau até amanhã, e o Alfredinho disse tchau até amanhã, e eu continuava com o pano de prato na mão e fechei a porta bem ligeiro porque não agüentava mais o Alfredinho ali na minha frente não dizendo nem uma palavra, e fui correndo pro quarto e vi que o meu pai estava com os olhos duros olhando pra mim, e eu fiquei parado na porta do quarto pensando que eu precisava fazer alguma coisa urgentemente.

267. JOÃO PAULO AZEVEDO. DA POUSADA AO BANCO DO CARRO PRETO.  Chego em uma festa. Não conheço quem está lá dentro, mas o lugar me agrada. Talvez porque seja longe do meu lugar, longe das pessoas que eu gosto. Nunca estive naquela cidade. Apesar de apenas uma noite de passagem, precisava dormir e achei uma pensão. Uma senhora muito simpática e desconfiada abriu a porta para mim. - São vinte e cinco reais, se quiser ainda posso te arrumar um ingresso para a festa. Não sabia de festa alguma, queria descansar e no outro dia seguir minha viagem para algum lugar que aquele dinheiro me levaria. Entrei na pensão, não peguei ingresso nenhum, até pedi um desconto, mas a senhorinha não quis saber de conversa. Paguei adiantado somente uma diária. Subi para o quarto. Havia mais dois casais em mais dois quartos que a senhora alugava. O banheiro era coletivo. Tenho medo desses banheiros, nunca se sabe o que o esperará de madrugada. Ao longe, nem tão longe assim, escuto a tal festa que a senhora falou, a música era boa. Tocava a canção de um filme de que não vou me lembrar. Algumas luzes clareavam bem o lugar, algo parecido com fogo, mas com umas mudanças bruscas de iluminação. Desligo-me da tal festa, fecho a cortina para a luz e o barulho não preencherem mais o lugar, mas agora outro barulho me chama a atenção: um dos casais começa a transar num barulho terrível. Ficava só imaginando aquela senhorinha ouvindo aquilo. Não estava podendo mais e então fui bater na porta da senhora para pegar o tal ingresso. - Senhora, senhora! - Camisinha é mais cinco reais. - Não quero camisinha não, quero aquele ingresso que a senhora me ofereceu. - Então são mais dez reais. - Mais não estava incluso na diária? - Estava incluso na hora que você chegou, agora tem que pagar. Acabei pegando um, precisava sair daquela pensão, comprei camisinha e joguei duas por debaixo da porta do casal. Fui em direção da festa, o lugar me agradou, não parecia nada com o lugar que estava vendo da janela, a música estava mais baixa, até achei que a velha havia me enganado, mas o som que tocava era de trilhas de filmes. Entrei, olhei algumas pessoas, fui confundido com outras e acabei conhecendo uma garota. Ficamos conversando sobre o tal lugar, sobre a tal festa, mas não entramos em detalhes sobre nossas vidas. Levantei para pegar algo para beber, quando volto há um rapaz conversando com ela. Aproximei-me, o rapaz ficou sem jeito e logo foi pedindo desculpas. Como não havia nada entre eu e a garota, pedi que ele ficasse e ficamos os três conversando. A conversa era a mesma, mas agora entre três pessoas que não se conheciam. Eles falaram que ficaram sabendo da festa ali na cidade mesmo, o rapaz morava lá e a garota era da cidade seguinte. Quando acabou a bebida da garota ela levantou-se e foi pegar mais, ficando somente eu e o rapaz. - Você já conhecia essa garota? Ele me perguntou com um certo interesse. Logo lhe disse que não, que a conheci ali mesmo, assim como ele. Uma proposta surgiu, ele disse que queria beijá-la, mas só a beijaria se eu fosse junto. Perguntei-lhe se era gay, logo me disse firme e forte que não, mas curtia beijar duas pessoas de uma vez, não importasse o sexo. Quando ela chegou ele saiu, e comentei com ela sobre a proposta. A garota não se animou muito, já foi logo saindo dando qualquer desculpa. Fique sozinho. Logo o rapaz volta. - Falou com ela? Perguntou-me com uma lata de cerveja na mão. Disse que sim, mas ela não curtiu muito a idéia não. - E você, curtiu? Olhando dentro da minha alma ele me perguntou. Logo fiquei sem resposta, não sabia aonde ele queria chegar e, inesperadamente, beijou-me. O beijo durou anos, não acabava mais. Sentia aquela língua áspera raspando em minha língua, não era o rosto que eu estava acostumado a sentir no meu, era um rosto áspero. Depois disso saí dali, fui pegar outra coisa para beber e fumar uns cigarros. O rapaz me observava de longe e ficava dando sorrisinhos para mim. Logo veio para o meu lado. - Quero de novo! Mas me disse que não era gay, como poderia ter gostado? Disse-lhe que não poderia acontecer mais, só aquela vez e bastava. - Estou com tesão por você, podemos ir ao meu carro. Meu deus, o cara acabou de se revelar um gay! Disse-lhe muitas vezes que não queria mais, até tomar raiva daquele cara. Fui ao carro dele; no meio de uma raiva eu o comi; havia sobrado um preservativo em meu bolso. Com minha raiva fi-lo sentir dor, gritar e gozar. Só fiz isso pelo tanto que me encheu. Comia-o com a mais pura raiva dentro de um carro preto com os vidros claros e todo mundo daquela cidade vendo. Comi ele ou ela, não sei mais, ao som de uma trilha de filme, ouvindo a transa de um casal e a senhoria me cobrando a diária.

268. JOÃO DO RIO. O HOMEM DE CABEÇA DE PAPELÃO. No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social. O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso! Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos. Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam. Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade. Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se. — Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro. — Mas não quero ser nada disso. — Então quer ser vagabundo? — Quero trabalhar. — Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo. — Eu não acho. — É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido. Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem! Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez: — É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares... O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor: — A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias. — Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes? Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu. No País do Sol o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto não o tinham explorado. Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda. — É doido, mas bom. Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa. — Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal... — É da tua má cabeça, meu filho. — Qual? — A tua cabeça não regula. — Quem sabe? Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional. — Só caso se o senhor tomar juízo. — Mas que chama você juízo? — Ser como os mais. — Então você gosta de mim? — E por isso é que só caso depois. Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido. Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo. — Traz algum relógio? — Trago a minha cabeça. — Ah! Desarranjada? — Dizem-no, pelo menos. — Em todo o caso, há tempo? — Desde que nasci. — Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem... Antenor atalhou: — E o senhor fica com a minha cabeça? — Se a deixar. — Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça... — Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão. — Regula? — É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua. Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco. Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente. Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória. — Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão! Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira. — Há tempos deixei aqui uma cabeça. — Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça. — Ah! fez Antenor. — Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim... — As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito. — Mas a minha cabeça? — Vou buscá-la. Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado. — Consertou-a? — Não. — Então, desarranjo grande?  O homem recuou. — Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours. Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se. — Faça o obséquio de embrulhá-la. — Não a coloca? — Não. — V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista. Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social. — Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique. — Qual! V. EX. terá a primeira cabeça. Antenor ficou seco.— Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão. E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.

269. JOÃO SALDANHA. A SILHUETA. Toda cidade que se preza tem uma esquina, uma praça, um largo onde se reúnem turmas. Em Porto Alegre o largo do Medeiros, onde desde a revolução entre chimangos e maragatos está o Beregaray, que veio de Uruguaiana para Porto Alegre. É o "prefeito" do largo, onde atende seu expediente. Sempre de chapéu gelot, mas nem sempre de gravata sobre a camisa listrada. Às vezes de sobretudo. Comanda o papo com certa soberba. Deve ser muito amplo aquele papo do largo do Medeiros, pois resistiu a vários governos e a algumas ditaduras gaúchas e federais. Em Florianópolis lá estão os barrigas-verdes, fazendo onda. Aquela com o Figueiredo nasceu ali. Até ovos apareceram não se sabe como. Em Curitiba é a famosa Boca Maldita. Importante organização, muito peculiar. E presidida por uma carismática figura da Lapa, o Anfrísio Siqueira. A Boca ficou célebre quando, só falando mal, derrubou o governo León Peres. Sua sede fica no largo Luís Xavier. Ali fizeram um obelisco de mármore cinzento. E falam mal de todo o Brasil e do mundo. Reúne gente de toda a estirpe: juízes togados e de futebol, médicos e cirurgiões consagrados. O Félix de Almeida já operou quase todos, mas nunca recebeu de nenhum. Esta importante organização de rua faz de escritório uma agência do Bamerindus, onde sem a menor cerimônia entram e saem para usar a mesa do gerente e o telefone local e interurbano. Quem quiser escrever para a Boca basta colocar o endereço: "Boca Maldita, agência Bamerindus da praça Luís Xavier, Curitiba, Paraná, Brasil." Para teste mandei um cartão ao Anfrísio, de Tóquio, com este endereço, e batata: chegou lá. No inverno eles vão para dentro do saguão de um hotel. Lá em Porto Alegre a turma do largo do Medeiros também entra para um local daqueles. Em São Paulo o pessoal é mais civilizado. Ou mais rico. Sentam num bar e fazem despesa. Turma de esquina era a dos cariocas, que se reunia na esquina da São João com Ypiranga. Parece que a barra pesou ali: um assalto em cima do outro, e saíram. No Rio vários e vários pontos ficaram famosos. Mas nenhuma esquina seguiu a fama da esquina da rua Miguel Lemos com avenida Copacabana. O prefeito no começo era o Cristiano Lacorte, já falecido. Cristiano, paraplégico, usava cadeira de rodas mas comparecia a tudo. Futebol, turfe, samba, comícios, tudo. A turma resolveu e Cristiano foi um dos vereadores mais votados do Rio de Janeiro. Depois, aquela esquina elegeu o Paulo Alberto, o Artur da Távola, e o Edson Khair. Nestas últimas eleições, Macaé, o atual "prefeito", apoiou Brizola, depois Saturnino e a Alice Tamborindegui. Todos foram eleitos. Não que a esquina tenha sido decisiva, mas de qualquer forma demonstra sua profunda sabedoria e experiência política. Uma série de fatos e ocorrências fizeram a esquina sempre mais famosa. Ali teve e tem de tudo. Andou sendo proibido o carnaval organizado nos bairros. Menos ali, onde começaram bailes infantis e depois com tablado, orquestra e tudo, bailes de marmanjos. O futebol é um dos grandes assuntos da esquina, mas nunca saiu briga séria por este lado. Uma democracia plena existe lá até hoje. Os mais consagrados craques do futebol, locutores esportivos e outros fazem ponto na esquina. E personalidades de "alto bordo", como juízes, dirigentes de clubes e das principais entidades esportivas do pais. A esquina sempre esteve presente, ora por uns ora por outros, a todos os grandes fatos ou eventos nacionais e internacionais. E quando apareceu no Rio de Janeiro um programa de televisão chamado o "Céu é o limite" vários representantes da esquina foram lá ganhar prêmios grandes. Havia piadas, apelidos sérios, e mesmo quando, após a revolução de 64, mandaram espiões para evitar qualquer propagação de idéias, em pouco tempo os "espiões" estavam integrados ao espírito comunitário e democrático da esquina. Houve um importante delegado especializado em política que dizia, quando o papo esquentava: "Bem, tenho de ir andando porque minha velha está me esperando." E caía fora. De fato não seria conveniente ficar ali. Denunciar quem? E depois ter de sair dali? Um dia, a esquina inteira se mobilizou. Foi quando um edifício ali perto foi apelidado de "edifício Silhueta" . Já era mais de meia-noite quando chegou na roda um garoto, com os olhos maiores do que um pires e disse, gaguejando: "Ali naquele edifício tem um casal... eu acho. Estão lá dentro, mas se vê tudo da rua." Era sábado e a roda estava imensa. Até dividida em duas ou três rodinhas de papo. Um fundador do Botafogo, um dirigente atuante do Fluminense, ex-jogadores do Flamengo, do Botafogo, e do Vasco, médicos, advogados, dentistas — dentistas então sempre estavam uns três ou quatro — estudantes de várias escolas, comerciários e comerciantes, todo mundo. Casa cheia. Todos correram na direção que o tal garoto indicara. A avenida Copacabana encheu. Veio o ônibus e teve de parar. Passar como? O chofer ia entrar na bronca, mas um dos organizadores da pequena multidão, que já estava se acotovelando, com gestos bem significativos, fez ver ao chofer do ôn1bus o que se passava. O chofer entendeu logo e ficou na paquera do lance. Algum passageiro estrilou, mas ele, sem tirar os olhos do lance, mostrou o que se passava. E o casal mandando brasa. A porta estava fechada. Mas a luz do saguão ou hall de entrada estava acesa. Bem acesa e forte. A porta era vidro fosco. Ora, a luz por trás do casal transmitia para a turma da rua a mais perfeita silhueta que se poderia desejar. E foi juntando gente. Um gaiato quis fazer onda, mas um tremendo e severo "psssssiu" lhe tapou a boca. Parecia uma tropa de comandos ou de assalto pretendendo pegar o inimigo desprevenido. Com o ônibus parado e mal parado, os carros iam parando e as indicações sempre diretas apontando para o evento e pedindo silêncio. Todos compreendiam logo e até casais que iam passando paravam para olhar a cena inédita. De repente, o casal lá de dentro parou rapidamente. A mulher, que estava sempre abaixada, meio de quatro, se arrumou depressa. A rua ficou no mais profundo silêncio. Um segurando o outro para ninguém invadir o lugar privilegiado de alguém que chegara primeiro. Mas não era nada de mais. O elevador fora acionado, o casal atuante teve de parar e de dentro do prédio saiu um cidadão. Uma vaia chegou a ser ensaiada, mas o "sinal" de silêncio foi mais forte. O cara saiu, ficou meio atônito de ver a rua tão cheia. E, ante os gestos e vozes surdas de "cai fora... cai fora..." , olhou para trás e entendeu tudo. Procurou se ajeitar ali pela frente, mais foi energicamente barrado. Arrumou um lugar mais atrás e toda aquela pressa da saída do edifício desapareceu. O casal lá dentro engrenou de novo. Do começo. Fizeram tudo e de repente terminou. Um "oh...oh!" se fez ouvir. O cara do casal se arrumou, ela também. Ele deu um beijinho e veio para a rua. Mal a porta se abriu, uma tremenda ovação. Bateram palmas e saudaram o cidadão. Ele, meio aturdido, tomou a rua e se mandou, sumindo na primeira esquina da rua Miguel Lemos em direção à rua Barata Ribeiro. Desapareceu na noite e o papo bem entusiasmado voltou para a esquina. O ônibus foi embora e os carros puderam passar.

270. JOÃO UBALDO RIBEIRO. MESA FARTA PARA TODOS. Leio no Guinness que o francês Michel Lotito, nascido em 1950, come metal e vidro desde os 9 anos de idade. Um quilo por dia, quando está disposto. Informa-se ainda que, de 1966 para cá, ele já comeu dez bicicletas, um carrinho de supermercado, sete aparelhos de televisão, seis candelabros e um avião Cessna leve — este ingerido em Caracas, embora o livro não revele por quê. Sim, e comeu um caixão de defunto, com alça e tudo, a fim de garantir um lugar na História como o primeiro homem a ter um caixão de defunto por dentro, e não por fora. Se é chute, não sei, mas não deve ser, levando em conta o rigor do Guinness. E esse tipo de coisa é menos raro do que se pensa. Nunca participei de comilanças de cacos de telha ou de torrões de barro, mas muitos amigos meus, na infância; às vezes traçavam até um tijolinho. E um outro amigo, poeta etíope que conheci nos Estados Unidos, me contou que, na tribo dele, os Galinas, todas as famílias tinham pelo menos um maluco, de quem se orgulhavam muitíssimo, porque maluco é visto como uma pessoa superior. Na sua própria família, havia diversos, embora um primo fosse favorito, pelo seu alto nível. — Qual é a maluquice dele? — Ah, ele come qualquer coisa. Você bota um troço na frente dele, ele pergunta se é para comer, você diz que é e ele come. Ele come comida normal também, mas se, depois de ele esvaziar o prato, você diz que pode comer o prato, ele come o prato. Come pneu, chifre, couro, madeira, qualquer coisa, nunca decepcionou. Um certo Dr. Buckland, inglês do século XIX, ficou, digamos, famoso por sua determinação em comer amostras de todo o reino animal. Morava perto do zoológico de Londres e, quando um animal adoecia, entrava em prontidão. Se o bicho morria, ele comia e dizem que, certa feita, durante uma ausência dele, um leopardo morreu e ele, ao regressar, não vacilou: desenterrou o leopardo e comeu um filezinho. Afirmava que o pior sabor era o da toupeira, mas depois mudou de idéia, porque achou a mosca-varejeira pior. Em algum lugar do mundo ou outro (geralmente a China não há quem tenha ido à China e não traga uma história culinária provocante), são itens do passadio, ou finas iguarias, lagartas, larvas, sangue fresco, banha derretida, gafanhotos, ovos de cobra com cobrinhas dentro, caça em decomposição, fígado de foca cru, baba de andorinha, ovo podre e assim por diante. Para não falar nos esforços de cientistas mais ou menos renomados, que se bateram seriamente contra os tabus alimentares. Mero preconceito, manter excelentes fontes de proteína escandalosamente ignoradas, a exemplo de ratos, baratas e gente morta de causas não contagiosas, como propôs outro inglês, cujo nome agora esqueci. Na Bahia, não faz muito tempo, apareceu um japonês com amostras de vinho de — como direi? —, é isso mesmo, vinho de cocô. Segundo ele, era coisa da melhor qualidade, da mesma forma que bife de cocô, cuja tecnologia ele já dominava. Depois de higienizado e processado, o bife, garantia ele, era mais nutritivo e gostoso do que muita picanha aí. Besteira desperdiçar tanta comida boa por causa de uma ojeriza sem fundamento científico. Por aí vocês vêem as dificuldades que o povo causa. Se fôssemos um povo de mente mais aberta, não existiria o problema da fome, que tantos embaraços traz aos nossos governantes em conferências internacionais. Temos ratos, baratas, piolhos, capim (outro japonês sugeriu capim, que também dá um bife de truz), temos tudo em abundância, notadamente a matéria-prima daquele vinho. Meu único receio é que, se der certo. tabelem o rato, a barata e o capim, cobrem IPI e ICM de todo mundo que for ao banheiro e regulamentem a captura de moscas com fins alimentícios. Mas vamos ter fé nos homens. Talvez eles livrem a cara do pequeno produtor, o que já é um grande passo e mostra sensibilidade para com os problemas da maioria do bravo povo brasileiro. Agora, sem boa vontade para colaborar e aceitar alguns pequenos sacrifícios, não se resolve nada.

271. JOÃO UBALDO RIBEIRO. BOCUSE OF YOU. A notícia mais comentada aqui na barbearia Tambaú (por sinal, a manicure diplomada no Rio de Janeiro ainda não chegou, mas Raimundo está redecorando completamente o ambiente e renovando o material de leitura) é, evidentemente, a chegada de Paul Bocuse ao Brasil. Poucos assuntos chamam tanto a atenção dos freqüentadores da barbearia quanto comida, principalmente alguns, que comem bastante menos do que estimariam, caso, por exemplo, do gari Júlio Cabeça Reta, o qual, aliás, me revelou outro dia que seu nome completo é Júlio Flávio Batista Conceição - e pode ser até parente me disse ele. Embora eu não vá pedir nada, acrescentou ele, mesmo porque, se for parente, é afastado, e tem a parentela mais chegada para o homem cuidar. Paul Bocuse tinha mesmo que pintar na conversa, porque Raimundo havia acabado de passar no mercadinho ao lado e presenciado uma cena triste, a respeito de um quilo e pouco de filé, que estava embrulhadinho e marcando 264 cruzeiros. — Eu estava procurando uma língua para fazer no forno - disse Raimundo, com os olhos de quem contempla um imediato aumento no preço do cabelo e barba  quando bati os olhos em cima. Duzentos e sessenta e quatro. Não é brincadeira, não, dr. Beto: duzentos e sessenta e quatro. Aí eu fui perguntar no caixa se não era engano e a moça me disse que eu era o quinto ou sexto que perguntava. E que aquele povo todo no balcão de carne não era para comprar carne, era para olhar aquele peso de filé, benza Deus. — Deve ser por causa de Paul Bocuse - disse dr. Beto, que, quando não está fazendo a barba ou enfiando troços na clientela do Inamps, assiste televisão o tempo todo. — É ministro novo? - perguntou Cabeça Reta. — É todo dia uma novidade! — Você não viu na televisão? - falou dr. Beto. — É um cozinheiro francês muito famoso. Veio passar mais uma temporada no Brasil, para divulgar conhecimentos culinários. — É por causa desse francês que estamos aí com esse filé de muitos contos? - perguntou Cabeça Reta. — Esse filé é francês? — Deve ser! - berrou seu Memé, que tinha acabado de chegar do andar de cima, para tomar uma genebra, coisa que só pode fazer sem pedir dinheiro à mulher no dia do pagamento da aposentadoria, porque, antes de entregar o dinheiro a ela, ele fica com a fração. Seu Memé vira outro homem, no dia em que bota a mão na fração. — A gente importa feijão, arroz, carne, cebola, alho, a zorra toda. Agora, escreva aí você, lá no jornal de São Paulo, que em matéria de equipamentos de som já vamos ficar auto-suficientes. Safadagem, safadagem! — Esse Because - perguntou Cabeça Reta - é das discotecas? — Imbecil! - gritou Raimundo. — Não é Because, é Bacuso. Because é inglês. I love because, because, I looove - cantou Raimundo. — Mas Bacusio é francês - falou Cabeça Reta. — Quem disse foi dr. Beto. — Sim - explicou pacientemente Raimundo. — O Bacuse é que é francês, o because é que é inglês. — Um enrola a língua para um lado, outro enrola para o outro disse Cabeça Reta brilhantemente. — E, no meio, quem vai enrolado semos nós. Estamos acordados. — Falou bonito, Júlio - gritou seu Memé, tendo aquele arrepio que dá a primeira talagada de genebra. — Precisamos acabar com a exploração do homem pelo homem. — O homem não explora o homem, oxente - disse Cabeça Reta, que estava ficando cada vez mais ilustrado. — O homem explora nós, que ele também não é besta.— Você gosta de genebra, Júlio? - disse seu Memé, com um fundo olhar de admiração. — Eu só quero saber do seguinte - discursou Cabeça Reta, pegando sonhadoramente no cabo da vassoura e olhando para o alto, igualzinho ao poeta cabeludo lá na estátua da praça Castro Alves - Quem é que pega o filé do povo e entrega ao estrangeiro? — Eu... - disse seu Memé, com lágrimas cívicas genebrinas lhe aflorando aos olhos. — Eu só queria saber - continuou Cabeça Reta, levantando os indicadores como vira os emedebistas fazendo no largo do Tanque - quem é que ganha com o bife, se é o francês ou inglês ou o americano! — Vá varrer, Cabeça Reta - gritou da rua outro gari, que estava passando na hora. Cabeça Reta teve que parar no meio do discurso. Mas somente ficou assim um intervalo curto e então pegou a bagana pendurada na orelha, alisou a bagana, botou a bagana na boca e foi saindo, falando côo se acreditasse e não acreditasse: — Um dia - disse Cabeça Reta - eu ainda como esse filé.

272. JOÃO UBALDO RIBEIRO. O CRIME DO STORKWINKEL. Não sei quanto aos alemães, mas todo brasileiro tem medo da polícia. Muita gente que é furtada não procura a polida. A principal razão é que não adianta, pois a polícia brasileira, de modo geral, não resolve nada. (Ninguém resolve nada no Brasil, pensando bem; antigamente, resolvíamos no futebol, mas nem isso mais). A outra razão é que todo mundo tem medo da policia e suspeita que, se for lá dar queixa, ela pode se aborrecer e, quando ela se aborrece, o melhor é estar a uma distância segura. No meu caso, há razões ainda mais fortes. Quando estudante, andei fazendo protestos e a polícia se sentia ofendida, manifestando sua mágoa por meio de cachorros, gás, cassetetes, cachações e outros meios de diálogo. Quando jornalista militante, a polícia também se chateava com comentários que considerava injustos para com o regime e me dava telefonemas preocupados, sugerindo que talvez fosse melhor para minha saúde que eu, em vez de política, escolhesse como tema a criação de galinhas, ou um campeonato de bridge. Como escritor, tampouco fiz sucesso com a polícia, se bem que hoje vivemos tempos bem mais brandos. Nos tempos não tão brandos, a crítica literária da polícia era severa e sou obrigado a confessar que prefiro a New York Times Book Review. Bem verdade que sempre estive em boa companhia. Recordo um policial que, diante de uma encenação de Antígona, repreendeu a todos com energia, mas benevolentemente. Compreendia que estivessem montando tal porcaria contra o regime, afinal eram jovens desorientados, levados ao pecado pelas ideologias malsãs e pela incúria dos mais velhos, que, em vez de cuidar de nossa educação física e moral, nos expunham àquele lixo mal-escrito. Sim, não tinham culpa os jovens, ele os perdoaria, embora, é claro, não permitisse a encenação. Mas — como é o nome desse sujeito que escreveu a peça? — ah, sim, esse tal Sófocles ele não perdoaria,  esse iria em cana de qualquer jeito. Lembro que, na ocasião, fiquei meio aborrecido porque não fui preso e perdi a chance de ser companheiro de cela de Sófocles. Se essa história parece exagero, lembro que, certa feita, a polícia proibiu que o Balé Bolshoi se apresentasse na tevê brasileira, temendo nossa bolcheviquização, a cada vez que um russo fizesse ha-ha-ha-ha com uma espada entre os dentes e desse um daqueles pulos de pernas abertas. A possibilidade de que os brasileiros passassem a andar com uma espada entre os dentes, fazendo ha-ha-ha-ha e dando pulos de dez metros, era certamente alarmante. O catálogo é infindável e o fato é que eu tenho medo de polícia e costumo atravessar para o outro lado do Ku'damm, quando chego perto da delegacia aqui do bairro. Mas destino é destino e estou eu ainda mal acordado, por volta das oito horas da manhã, aqui em Berlim, quando toca a campainha, vou abrir e quase morro de susto. Dois cavalheiros sisudos me dizem "guten Tag", exibem distintivos e anunciam: "Kriminalpolizei"! Só não morri por razões genéticas — na minha família não há cardíacos e morrer de velho é uma questão de honra entre nós, mas meu primeiro impulso foi correr à sacada, gritar "sou inocente", pular e procurar asilo na embaixada do Gabão. Minha mulher, que estava atrás de mim e também é brasileira, disse "fique calmo, querido, eu vou fazer sua mala, eles aqui não batem, fique calmo". Fiquei calmo e apenas pernas trêmulas, suor frio, gagueira, queixo batucando e outros sinais discretos traíam minha apreensão. Alguém havia me denunciado por jogar um cigarro na calçada? Teria cometido um crime ao olhar com excessivo vagar uma gordinha nua no Hallensee? Comer uma Bratwurst sem mostarda, como fiz outro dia, seria uma grave ofensa? Estaria sendo confundido com um terrorista? (Sou rotineira-mente confundido com qualquer coisa, menos com alemão e brasileiro). "Escritor!" disse eu, no meu alemão oligofrênico. "Uso meus dedos assim!", acrescentei, mostrando com as mãos a diferença entre acionar um gatilho e datilografar. A Polizei não pareceu divertida. Exibiu os distintivos outra vez, pediu algo que eu não entendia e, lá atrás, minha mulher não facilitava as coisas, perguntando quantas cuecas eu queria que ela pusesse na mala. Finalmente, quando eu já ia estender os pulsos para as algemas, descobri que eles falavam inglês e, graças a Deus, entendiam inglês gaguejado. Queriam a chave do sótão. Que chave do sótão, eu nem sabia que aqui havia um sótão. Mostrei todas as minhas chaves, nenhuma chave de sótão. Eles sorriram, despediram-se, foram embora. Nós, contudo, ainda não nos recuperamos, talvez nunca nos recuperemos dessa visita. Passamos a noite em claro, imaginando hipóteses horrendas, cadáveres no sótão, duas toneladas de cocaína no sótão, um vampiro no sótão, as piores coisas no sótão, nunca chegaremos nem perto do sótão durante toda a nossa estada na Alemanha. Mas, no dia seguinte, descobrimos uma carta, pregada no quadro de avisos de nosso prédio. Um vizinho queixava-se de que sua churrasqueira (Lattenroste) tinha desaparecido do sótão e pedia que a devolvessem, ou pusessem 85 marcos em sua caixa postal, para pagá-la. Ah, então era esse o crime do Storkwinkel, o mistério da churrasqueira desaparecida! Ficamos aliviadíssimos, nunca nem vimos uma churrasqueira, aqui na Alemanha. Mas a lembrança da Kriminalpolizei ainda estava muito viva e, como se diz no Brasil, seguro morreu de velho.— Mulher — disse eu, depois de ler a carta — acho que vou comprar uma churrasqueira e deixá-la na porta desse vizinho.— Boa idéia — disse ela. — E, por via das dúvidas, bote também 85 marcos na caixa postal dele.

273. JOÃO UBALDO RIBEIRO. O VAGABUNDO DE LISBOA. Subindo aqui a avenida que dá para os fundos de minha casa, cumprimentando os passantes, parando para ver os meninos jogando bola no parque e assobiando uma musiquinha cujo nome não sei mas que, nesta manhã, não me sai da cabeça, detenho-me na Pastelaria Brasil-América, para comprar uma caixa de fósforos. Não sou muito chegado a essa pastelaria — cuja única qualidade (e, assim mesmo, questionável) é ser perto aqui de casa — porque as iscas que nela servem são de baixa qualidade e há um irmãozinho lusitano que nela trabalha que gosta de me gozar. Mas esqueci o isqueiro em casa, tenho de comprar fósforos. Encontro o mesmo irmãozinho, ele me diz o preço, eu me confundo todo com as moedas, ele me goza outra vez. "Um dia eu ainda lhe pego", penso eu, fingindo que não ligo, mas muito mal-intencionado intimamente. E prossigo avenida Estados Unidos acima, para pegar o metrô, que aqui se chama metro. O dia não está nem quente nem frio, há um belo sol, as sacadas dos apartamentos estão todas floridas e vou ao Rossio em missão de vagabundagem. Acho-me um cidadão lisboeta e me vejo tomado de um certo sentimento de orgulho, ao cruzar com minhas concidadãs, a maioria plenamente imbuída do mesmo espírito primaveril e portanto usando umas blusinhas leves por cima da pele e balançando todos os tipos de simpáticos e risonhos peitinhos, como é — o Senhor seja louvado — do hábito de tantas raparigas aqui. Respiro fundo, paro um pouco na subida, aproveito para prestar atenção na moça que de lá vem, usando um chapeuzinho e uma espécie de colete em cima da tal blusinha, a qual mal esconde os tais peitinhos. Decido que não será necessária uma discrição excessiva, consideradas as circunstancias atmosféricas tão amenas e mais a minha exuberante lusofilia, de forma que, com tanta elegância quanto é possível aos baianos, ponho as mãos nos bolsos do casaco, detenho o passo e espero a moça passar, com interesse. Ela ajeita a mecha do cabelo que lhe sai por um lado do chapéu, sorri vagamente como se estivesse lembrando de repente alguma coisa agradável e passa triunfal a meu lado, reconhecendo tácita e cordialmente o meu silencioso cumprimento e meus encômios à boa forma de seu equipamento, tão afavelmente mostrado. Uma safadeza minúscula e inocente, que não me deixa remorsos e me faz achar o resto do caminho até o metro muito agradável. Safadezazinha, aliás, que, combinada com as milhares de outras safadezazinhas que, nesta manhã ensolarada e irresponsável, haverão de estar sendo cometidas em toda a nossa querida Lisboa, deixam a pessoa que respira fundo e não tem mal na consciência, deixam essa pessoa — como direi? — assim meio peralta. Minha estação é a estação de Roma. O metro é pequeno e não mete medo, como o de Nova Iorque. Nem tem primeira classe, como tinha o de Paris antes de Mitterrand. Na gare, giro rapidamente o corpo para cumprimentar a moça que tripula a lojinha de fazer cópias xerox de que sou freguês. "Como passou?", inquiro na minha melhor forma lusitana. "Olá, como está?", responde ela, rindo com um certo encanto tímido. Por alguma razão, considero esse episódio entusiasmante, resolvo comemorar, apresento cem escudos ao bilheteiro e compro uma caderneta! Uma caderneta é um conjunto de bilhetes de metro que você pode usar a qualquer tempo e que saem a dez escudos, quando o bilhete individual custa quinze. Considero-me um mago das finanças por haver concebido tão fantástica economia. Dentro do metro, a única cautela que cabe observar é, se sentar, ficar atento para senhoras grávidas e outras pessoas a quem a lei e o costume garantem assento. Se a gente não se levantar imediatamente, ao ingresso de uma dessas pessoas, a reação do público feminino, principalmente da parte de senhoras de preto e de bigode agudamente parecidas com uma tia-avó nossa que morreu antes de termos idade para realmente apreciá-la, é das mais sonoras. Há discursos, estabelecem-se debates. Como o meu sotaque, suspeito eu, é considerado primitivo, procuro abster-me e, além disso, não quero envergonhar Ruy Barbosa — o que é, como se sabe, obrigação de todo baiano. Logo no Areeiro entra o cego da ocarina, que, acompanhado por um senhor de boné e aspecto grave, toca seu instrumento com aquele ar destacado e longínquo dos cegos de feira do Nordeste, mas alguma coisa em sua expressão, alguma coisa desamparada e ansiosa, como também há nos cegos de feira do Nordeste, alguma coisa nos dedos que cobrem e descobrem rapidamente os buracos de barro da ocarina, como há nos dedos nordestinos que percutem as cordas das violas, alguma coisa impõe uma reverência instantânea, um ar de contrição, que a gente nota se espalhar como tinta por um mata-borrão, entre os passageiros. E depois há o som que ele tira dessa ocarina, estranhamente entrelaçado com o barulho do trem correndo por aqueles túneis de Lisboa, um som meio árabe, meio sertanejo, meio misturado com tantas memórias absurdas. As mulheres remexem nas bolsas, à espera de que passem o músico cego e seu digno auxiliar, que utiliza o boné pan recolher as moedas. Os homens metem as mãos nos bolsos, esperam disfarçando, como se houvesse alguma paisagem para ver através das janelas. O trem vai chegar a Arroios, chia numa curva e o cego, indiferente ao gemido metálico das rodas, multiplica repentinamente as notas da ocarina, causando emoção visível entre os passageiros, emoção que ele não enxerga mas presume, o que se depreende de um esboço de sorriso orgulhoso, que deixa passar pelos cantos da boca ocupada em soprar. Olha-se assim em torno, não é o metro de Lisboa, são os fantasmas amáveis de nossas infâncias, são sons já ouvidos, momentos já vividos, saudades resgatadas, somos nós. Ali parados, segurando uma alça no metro de Lisboa, coisas ancestrais, nós. Disfarçando também, cato uma moeda, enfio-a no boné meio dobrado do assistente do cego. Cego este que sente a chegada à estação de Arroios, tem mais encantamentos a obrar em outras partes, e então sai acompanhando seu auxiliar e segue pelas escadas da gare acima, deixando uma trilha de sons da ocarina como uma fita espiralada no ar, que, mesmo depois de fechadas; as portas e retomada a nossa marcha, ainda persiste em nossa pequena comunidade. Meu lugar favorito de Lisboa, naturalmente, é o Rossio, onde invariavelmente desemboco pela mesma saída do metro, em cima da Suíça, uma pastelaria de dezenas de mesas na calçada, em que as pessoas passam o dia todo tomando um cafezinho (uma "bica”) mordiscando bolinhos e paquerando as nórdicas que ali vêm fazer a praça. Graves decisões: vou na direção do Café Nicola ou passo antes pela Praça da Figueira? Nós, vagabundos, temos problemas como quaisquer outros mortais. Pela Praça da Figueira, eu pego a rua da Madalena, onde se situa minha ervanária favorita. Julgo de bom alvitre passar pela ervanária,afinal há muito tempo que não vou lá, preciso saber das novidades. E, assim, imerso num incrível rebuliço de gente, cheiros, cores e ruídos, marcho para a Praça da Figueira. Há um camelô muito sério, demonstrando um fantástico cortador de vidro. Pega laminas de vidro de uma caixa e, conversando em alta velocidade, corta fatias de vidro como alguém tiraria rodelas de uma cenoura. "Quanto é o cortador aí?" pergunto eu, subitamente, achando que não posso passar sem um cortador de vidro — não há coisa mais indispensável para um escritor. São 150 escudos, pago sem discutir e vou de cortador em punho para a ervanária, cujo cheiro indescritível já começo a sentir desde a esquina. Lembro os prospectos: há chás e tisanas para tudo, inclusive para duas doenças que pretendo divulgar bastante, quando voltar ao Brasil: a fraqueza nervosa (da qual já padeço, esporadicamente) e o afrontamento de senhoras. Ainda não consegui informações precisas a respeito do que é o afrontamento de senhoras e tive vergonha de perguntar ao caixeiro meu amigo, na ervanária. Mas qualquer um concordará que se trata de uma enfermidade a ser gravemente considerada. Resolvo levar alguns sacos de chá para afrontamento de senhoras, quando voltar ao Brasil, em meio a minha bagagem de ervas milagrosas, com as quais pretendo receitar todo mundo. Na ervanária, não muitas novidades, a não ser umas pílulas de alho de fabricação revolucionária, que o caixeiro me recomenda com ênfase. Mas, as antigas? — pergunto eu, hesitante. Continuam boas, responde ele, mas nestas cá vê-se o óleo através das cápsulas. De fato, vê-se o óleo. É um argumento irresistível. Compro duas caixas, umas certas pílulas de pau d'arco, uma garrafinha de extrato de ginseng, mais umas miudezas e, com meu saquinho, volto pausadamente à Praça da Figueira, parando para olhar as vitrinas (as montras, perdão) de comida, arrumadas das maneiras mais caleidoscópicas pelas ruelas em volta do Castelo de São Jorge: sapatas, amêijoas, santolas, chamuças, carapaus, fiambres, chouriços, ginjinhas. De vez em quando, eu entro num desses estabelecimentos, só para ver a exposição das comilanças. Eles vêm ver o que eu quero e, quando explico que estou ali somente para uma espécie de fruir estético, eles até me oferecem, de vez em quando, uma excursão turística pela despensa e pela cozinha. Marco mentalmente o meu almoço: vou ao restaurante de Mimi, no Parque Meyer, comer na varanda, entre as plantas e alguns velhos atores de teatro de revista, conversando com os gatos e tomando o vinho da casa. Mas isto só depois, porque me emociona estar aqui de volta ao Rossio, na boca da Baixa e do Chiado, esperando o sinal abrir e os ônibus de dois andares pararem de querer me atropelar. Gente que não acaba mais e meus amigos da porta do Café Nicola e do Pic-Nic — os angolanos, moçambicanos cabo-verdeanos e guineenses, todos vestidos de Bob Marley e todos muito loucos, transando haxixe. O comércio não é tão discreto como se esperaria, dada a sua natureza, digamos, delicada. Brazuca, um angolano assim chamado porque morou muito tempo no Brasil (de onde foi, lamentavelmente, expulso devido "a um problemazito de uma maconhazita", me cumprimenta amavelmente. Os negócios devem ir bem, ele está de blusão novo e passado, barba feita e transas com fitinhas impecáveis. "Não quer lá um chuculate, homem?", me pergunta ele, sacudindo na minha cara um pedaço de haxixe deste tamanho. "Que é isso, Brazuca?", digo eu. "Olhe os homens aí”.Aproveita — responde ele como se não me tivesse ouvido — que é coisa finíssima que chegou hoje do Marrocos. "Depois, Brazuca, depois", respondo eu levemente embaraçado, inclusive porque, junto a mim, um senhor que me parece hindu, muito sério e de paletó e gravata, reclama com outro transeiro do tamanho do pedaço de "chuculate" que acaba de lhe ser vendido por mil escudos. "Mas um conto, isto, um conto!", diz o senhor hindu, obviamente achando tudo um absurdo e exibindo aos passantes a prova de sua alegação, diante do sorriso desdentado do seu transeiro. "Um conto, isto!", repete o senhor hindu, mostrando a mim o pedacinho do chuculate. De fato, achei pequeno, mas não considerei apropriado continuar a envolver-me no processo em andamento, de forma que me fiz de desentendido e prossegui na direção da rua do Carmo. Lembrei que tinha compromissos inadiáveis: curtir as livrarias, comprar cigarros na tabacaria de um feroz comunista amigo meu, tomar uma cerveja n'A Brasileira e dedicar algum tempo a apenas me sentir maravilhosamente bem ali mesmo naquele formigueiro da Baixa. Lembrei Dorival Caymmi, uma vez explicando, antes de a Bahia haver sido destruída como Lisboa, felizmente, não foi — e como não foi, em tantos sentidos! —, umas certas cores uns certos ares que era imperativo ficar curtindo, em vez de trabalhar. Não há tempo para trabalhar, dizia ele, a pessoa fica muito ocupada vivendo. Pois então, pois cá tenho vivido muito em Portugal. Não propriamente vendo coisas, embora haja, é claro, coisas para ver, mas sentindo. Não propriamente aprendendo, mas me acrescentando de tantas formas sutis e fortes, por tantas vias antes insuspeitadas. E então, sobraçando minhas ervas, meus livros, meus postais velhos, meu cortador de vidro, desço de novo ao Rossio. Vou caminhar pela avenida da Liberdade, em ponderado passeio para o Parque Meyer. O dia fica cada vez mais luminoso, só consigo pensar em coisas boas. A velha estação dos comboios parece uma catedral, a avenida se abre como se fosse haver uma parada, eu adoro Lisboa. E, se você não aproveitar a primeira chance que tiver para vir curtir esta minha cidade, você é bobo.

274. JOÃO UBALDO RIBEIRO. BRINCANDO DE DOUTOR. Foi minha mãe quem me deu o estojo de médico. Tinha um estetoscópio, um esfignomanômetro, uma seringa de injeção, uma daquelas lâmpadas de amarrar na cabeça que eu nunca usei, um termômetro e mais uns quatro ou cinco aparelhos, para cuja aplicação eu sempre pedia a minhas clientes que tirassem as calças. Interessante que minha mãe nunca tivesse cogitado das possibilidades de um estojo de médico. É claro que ela não sabia que a maior parte de minhas brincadeiras era de safadeza. Quem começou com este negócio não fui nem eu, foi uma vizinha, quando nós resolvemos brincar de esconder. Nós dois estávamos abaixados no socavão e aí ela passou a mão aqui por debaixo. Desse dia em diante, todo brinquedo meu passou a ser de safadeza e a melhor coisa que eu dizia era que todo mundo tinha de ver o negócio de todo mundo, assim: se você me mostrar o seu negócio, eu lhe mostro o meu negócio. Foi nessa época que eu descobri que a melhor coisa é ser especialista. Se você é generalista, pode ficar um pouco chato pedir à cliente que mostre o negócio. Se você é especialista, ela espera isso. Mas eu era muito burro e muito ignorante, nessa ocasião, para perceber essas vantagens. Não sei se você se lembra como eram as coisas em Aracaju, naquela época. Não sei nem se você se lembra que nós dois ficávamos conversando a respeito de meu pai e minha mãe não serem mais nem meu pai nem minha mãe e você dizendo a mesma coisa. Não sei se você se lembra que todos os dois fomos ver o negócio de Suzana e, quando ela foi mostrar à gente, sentada na escada, fungando e usando umas calçolas de cadarço, a gente olhou mas ficou com vergonha de ter olhado e você disse: bem que minha mãe falou, essa coisa suja, essa coisa imunda — você se lembra que eu peguei e ela deu risada se sacudindo toda? Você ficava falando, depois da aula de catecismo: se tem que feder assim, o melhor mesmo é ser padre. O pior das coisas das meninas, segundo Dodô, era quase que eram compostas de pelancas e coisas pendurantes e ainda exalavam, não eram uns buracos, que a gente pudesse ver que era somente um buraco e não ter complicação. Dodô dava explicações: o buraco da mulher fica no meio das pernas, por debaixo, e ela só dá para quem quer, a não ser com porrada e olhe lá. Dodô, aliás, quero que você se lembre da importância de Dodô para toda essa transação. Ia perguntar se você se lembrava das palestras de Dodô, quando ele fazia conferências para nós todos. Foi Dodô quem primeiro explicou — você tem visto Dodô? você acha que ele pode ter melhorado da escoliose? melhorou nada, aquele anão — que o menino é feito por via de o pai enfiar-se pela mãe. Isso tudo era muito chocante. Traz à memória um colega patologista amigo meu, que era patologista porque só gostava de cadáver, que olhou os espermatozóides no microscópio e disse: meu pai nunca vai acreditar nisto, ele pode ver à vontade que não acredita. E minha mãe nem consentiria em olhar no microscópio, quanto mais. Você sabe, disse esse patologista, eu vejo aqui os espermatozóides, vejo tudo o que li nos livros, mas não acredito que foi assim? Não acredito, diz esse patologista, que meu pai e minha mãe tenham ido para a cama dessa maneira. Eu devo ter sido geração espontânea. Era a mesma coisa que no tempo de Dodô, a gente também não acreditava. Inclusive, Dodô explicava que os meninos feios vêm do fato de que, na hora de fazer esses filhos, o pai contorce a cara toda. Para fazer um menino bonito, esclarecia Dodô, é preciso que o sujeito fique com a cara bem ancha e descansada. E ele fazia uma cara dessas, para dar o exemplo. Entretanto, acrescentava que pouca gente resiste ao gozo e então faz caretas as mais medonhas. Eu mesmo, quando trepo, dizia Dodô, faço cada careta que às vezes a mulher tem medo. E a gente ficava acreditando que Dodô trepava mesmo e todos nós queríamos saber como era o gozo. O gozo, mestre, vai repuxando, repuxando — explicava Dodô — e a pessoa faz assim: ssfff, sssfff, inclusive você conhece se a mulher está gozando vendo se ela faz ssfff ou não. Quando meu estojo de médico chegou, eu já dava algumas consultas, mas tudo muito empírico. A maioria das meninas exigia uma certa respeitabilidade, de forma que ficava difícil fazer com que elas tirassem as calças, se tudo o que você tinha era um pedaço de pau e umas folhas para servirem de instrumentos. Além de tudo, de vez em quando eu passava esse pedaço de pau com força nas barrigas das meninas e elas não gostavam. Hoje eu sei que devia ser vontade de fazer uma histerectomia, dessas radicais. Eu tenho um amigo que já fez não sei quantas, estudou comigo na Bahia. Ele diz que não, mas eu tenho certeza de que ele adora fazer uma histerectomia, eu compreendo. Eu não faço, mas compreendo. Você acredita que eu assisti a uma laparoscopia e fiquei excitadíssimo? Eu acho ovário uma coisa linda, parece uma flor, uma espécie de tulipa, você não acha? No começo, o consultório correu ótimo. Instalei tudo num dos dois quartos vazios do quintal e passava lá as tardes inteiras. O primeiro instrumento que eu aplicava era o estetoscópio, mas não havia graça, porque a maioria das meninas não tinha peito. O único peito que a gente via naquela época era naqueles quadros renascentistas que as revistas publicavam no Natal e, assim mesmo, só servia para a gente achar que ia para o inferno, porque a gente pensava que aquelas madonas eram mesmo Nossa Senhora. Só houve uma menina em que os peitos faziam diferença, porque os dela já tinham aquele carocinho. Eu belisquei e ela fez xixi nas calças. Eu brinco com o pessoal lá no Centro, digo que deve ser por isso que até hoje não posso ver um penico que não pense descaração. Brincadeira, brincadeira, mas você sabe que de fato existe alguma coisa num penico... bem, não sei. A maioria das casas, naquela época, tinha penico e uma das coisas mais dantescas, durante a noite, eram os adultos mijando nos penicos, lembro que minha avó mijava muito, eu ficava arrepiado e sentia uns pingos de mijo na cara, uma coisa horrível. Meu pai mijava em pé, fazendo pontaria no penico, e bodosava tudo em redor. Uma vez, ele me pegou mijando abaixado e me esculhambou. Você se lembra que o sujeito que mijava abaixado estava desmoralizado, mesmo que fosse para não regar o quarto todo? Até hoje o velho fala nisso, geralmente quando tem visita de Aracaju. Então meu consultório corria bem. Normalmente, eu só dava consulta às meninas, mas, quando não havia clientes à disposição, nós fazíamos outras coisas. Jofre, por exemplo, que morava na rua do Cedro, trouxe uma vez um gato para nós operarmos. Para ele operar. Na época eu não sabia disso, mas eu era o clínico e ele era o cirurgião. Em matéria de cirurgia, até hoje eu prefiro assistir, principalmente quando há uma extirpação. Não sei se você já fez uma vivissecção de ovos de gatos. Jofre era muito bom nisso. Usava uma gilete e cortou os quibas do gato mais do que rente, um trabalho perfeito. Mas a gente se recusava a simplesmente capar o gato, de forma que havia várias solenidades, nós chamávamos o gato de cliente e tudo mais. Acabamos de cortar os ovos do gato e ficamos excitadíssimos. Perguntei a Jofre se aquilo era o gozo, mas ele disse que não era. De qualquer maneira, não deixou de ser uma lição o fato de que esse gato não ficou aborrecido com a operação e sempre voltava, a gente pegava nele com a maior facilidade. Quando a gente pegava, dava uma lavagem nele, com minha seringa de injeção, que tinha uma agulha rombuda de plástico. Sempre cito isso para esses caras que fazem psicanálise com esquizofrênicos, para mim os malucos são eles. Eu acredito em bolinha, sempre acreditei em bolinha — me dê um maluco, eu lhe dou uma bolinha, é tudo um problema químico. A verdade é que este é um campo que comporta muita besteirada. A maioria das meninas cooperava perfeitamente. Eu sempre receitava uma injeção nas náguinas — eu dizia náguinas e até hoje acho mais bonitinho do que nádegas — e elas deixavam. Lembro perfeitamente que, quando eu descobria certas bundinhas, era uma sensação um pouco desconfortável, porque eu ficava trêmulo e não sabia distinguir entre os não sei quantos impulsos de me mexer que sentia, para a frente, para trás, para os lados, uma coisa horrível. Também ficava sem fôlego. Mas, depois da injeção nas náguinas, eu sempre reunia coragem para fazer uma espécie de exame ginecológico. Você sabe, até hoje eu não entendo como o sujeito pode ser ginecologista. Existe vocação para tudo neste mundo. É por isso que eu acredito na utilidade das perversões. Sem pervertidos, não haveria ginecologistas. Eu fazia mais por obrigação, porque, nessas brincadeiras de médico, o sujeito sempre age na base de tudo ao que tenho direito, parece que é uma espécie de ética da brincadeira. E depois eu não sabia mais o que fazer e ficava grandemente agoniado. Você nesse dia quase vai, mas acabou não indo, porque quebrou a corrente da bicicleta e seu pai não deixou você sair, mas você se lembra que eu contei a Dodô a respeito de meu grande tédio nos exames ginecológicos e aí ele me explicou, com altos ares, que tudo aquilo acontecia porque minhas pacientes eram meninas. Que com gente grande era bastante diferente e, se eu tivesse oportunidade de ver uma verdadeira xoxota, madura, no ponto, eu ficaria deslumbrado, pois não havia homem neste mundo que não se tomasse de tremores, não sentisse as partes palpitarem e não se visse atraído como por um redemoinho para aquela maravilhosa gruta do prazer. Dodô falou "gruta do prazer", eu me lembro perfeitamente disto, você veja, pensando bem, como a nossa geração era mais culta, pela metáfora se conhece a cultura. Era domingo e nós fomos para uma casa grande na rua Duque de Caxias, onde os patrões não estavam porque tinham ido à Atalaia e estava a empregada que Dodô tinha acertado. Ele esclareceu que ela gostava de meninos assim de nossa idade. Ela disse que tem vontade de morder, falou ele. Eu não me esqueço disso, fiquei com vontade de pedir que ela não me mordesse e ao mesmo tempo tive vergonha. E não era pecado isso num domingo, não, heim, rapaz? Antes de chegar em casa, tinha de passar na igreja, lavar as mãos e a boca na água benta, que é para não pegar nem beijar na mãe assim, mãe é sagrada e os dedos caem e os beiços dão lepra e é inferno certo. Bem, se eu já estava nervoso, mais nervoso fiquei quando vi a mulher, porque ela nos levou para um quarto que parecia uma garagem e ficou fungando meu pescoço e passando a mão em mim. Dodô contou a história dos meus exames médicos. Ela aí deu risada e falou meu mediquinho, você é meu doutorzinho, quer fazer zamezinho na sua doentinha. Nessa hora ela rolou na cama, me puxando, mas as mãos dela escorregaram em minha nuca e eu fiquei sentado, de maneira que, quando ela caiu para trás, abriu as pernas e eu vi lá dentro. Lembro perfeitissimamente que era uma calçola meio marrom clarinho e eu não tive certeza de se era marrom claro ou branco encardido e bem no meio, garanto a você, havia uma mancha escura, como se estivesse molhado. Fiquei todo arrepiado, inclusive porque o meio das pernas dela e o jogo de sombras lá dentro me lembraram os desenhos do inferno, de uma edição da Divina Comédia que meu pai tinha. Eu pensei assim: e se, neste domingo, eu estiver indo para o inferno? Mas não disse nem fiz nada, fiquei ali na beira da cama, até que ela, depois de botar todos os balangandãs de Dodô, com tudo, na boca por um instante, se sacudiu para fora do vestido, como se estivesse explodindo. Eu vi Dodô nu, igual a um passarinho pelado, e logo depois só pude olhar a mulher, que ficou com os peitos enormes e de bicos pretos, bicos como lanças para fora balançando. Examine aqui, disse ela, e baixou as calçolas logo depois que desamarrou o cadarço. Você acredita que eu acho que tive febre naquela hora? E nisso está Dodô sem calça, no canto do quarto, tiritando, uma coisa esquisitíssima. Achei que notei uma espécie de língua no meio dos cabelos da mulher, na parte de baixo, e ela então caiu de costas na cama com as pernas abertas e — você sabe o que é um sujeito apavorado? Quer dizer, você tem alguma idéia de um cara em pânico? Quando eu vi aquilo, rapaz, e pareceu que subiu um cheiro, não tinha quem me fizesse chegar perto. Ela foi falando sobre o exame que eu tinha de fazer nela e eu fui ficando com medo, ficando com medo, que só me lembro ter descido correndo a Duque de Caxias, sem olhar para trás. Acho que tive um certo trauma com isso. Até mesmo o consultório eu converti numa espécie de clínica veterinária, embora nunca tivéssemos tido um gato que concordasse tanto em ser capado e tomar lavagens quanto aquele. Por aí você pode ver como realmente os acontecimentos determinam as vocações. Sempre dizem que eu fui ser médico para satisfazer minha mãe, mas não é verdade, ela queria que eu fosse pediatra e acho tanto pediatras quanto geriatras uns anormais, uns cronoinvertidos. Não, não, se eu não fosse psiquiatra, eu seria proctologista. Mas não aqui em Aracaju.

275. JOÃO UBALDO RIBEIRO. JÁ PODEIS DA PÁTRIA FILHOS. Sabe-se que o estrangeiro, ao jogar futebol, ataca o balão de couro como se fosse inimigo. Há quem diga que o joelho empedrado é natural do gringo, variando uma besteirinha de acordo com a espécie. Isto devido à comida que eles comem, que e muito melhor do que a comida que o brasileiro come, com exceção de que o joelho fica empedrado. Porém a comida dá enormes sustanças e além disso eles usam foguetes e o raio leise. Ninguém me diga que a Hungria não usou o raio leise em cinqüenta e quatro, quando eles davam de 11 a 8 e 19 a 15 e 48 a O em quem aparecesse, eles não facilitavam. Disse seu Góes, que não esteve nessa copa, aliás não esteve em copa nenhuma, mas esteve com Pongó que o primo esteve nessa copa, que eles vinham lá de baixo do campo parecendo uns cavalos, tudo falando hurunguês e dando aqueles passes de joelho empedrado, situque-situque. Pela cara de abestalhado que eu vi numa revista, pela cara de abestalhado que ficou um beque, quando esse cabeceador pulou de um jeito que quase amunta nas costas do beque e olhe que o beque tinha subido e era maior do que Chico do Correio, a gente via que o beque só podia estar estontecido pelo leise, eles usam todos os recursos, a copa é uma guerra. No Brasil mesmo enfiaram 4 a 2, se não me engano, assim mesmo porque o comprido cabeceador deles não estava cabeceando bem naquele dia, visto que o americano foi lá e roubou o leise e ficou com a invenção para ele, mas não quero  saber dessas coisas porque não suporto política. Estólei Mattos, o grande ponteiro inglês, enfiou uma bola pelo meio das pernas do Nilton Santos, coisa que só foi possível porque o inglês guarda o segredo do espittfaire, aeroplano que derrotou o alemão na guerra, em razão de que continha o segredo da bomba atômica - em inglês, espeito-faire, bomba atômica. Essas coisas, quem sabe esperanto sabe. Nesse dia de Estólei Mattos, Gilmar pegou dois pênaltis, naturalmente porque a bomba atômica também fez efeito nele, isto devido que ele sempre se vestiu à inglesa e isto influi. O alemão ganhou em cinqüenta e quatro porque primeiro quebraram a canela do grande Purcas e também o cabeceador deles, se não me engano Costas, ainda estava zonzo com o roubo do leise e explicaram a ele que iam mandar o time todo para a Libéria, que é para onde eles mandam time russo que perde na copa. Toda copa tem um time russo na Libéria, só não teve nesta última, porque os russos não foram para a Argentina, menos porque não concordam com o governo da Argentina, que dizem que não pode ver um russo que não meta logo na cadeia por questão de prevenção, do que porque nenhum jogador de lá quer ir para a Libéria. O que mais se joga na Libéria é futebol. No inverno, faz frio que as partes de baixo vão encristalando, encristalando que quebra tudo igual a pedra. Razão por que o russo fugido fala fino, senão repare. No verão, faz um calor péssimo e eles todos andam de camelo. Para conhecer essas coisas todas, é preciso ter viagem. Ou então ler e prestar atenção nas conversas ilustradas. O homem da Hungria não é russo, mas tem bastantes russos no lugar onde eles moram, de forma que, quando eles dizem quero me mudar, vem o russo e diz não muda nada aí. Tudo isso são políticas internacionais. O russo que marcou Garrincha em cinqüenta e oito está na Libéria até hoje e conta o povo que todo mundo que passa cospe na cara dele. Aliás, deles, porque quem marcou Garrincha foram sete e todos os sete estão lá com o povo todo cuspindo na cara deles e dizendo tavares-tavares, que é mais ou menos vá sentar num birro de chuteira na língua deles. Pelo menos dois eu sei que botaram para marcar Garrincha de sacanagem, porque todo mundo sabia que não podia ser, mas os outros cinco o pessoal de lá botou na esperança. Tinha uma medalha de heróis do socialismo para quem marcasse Garrincha e segurasse, mas ninguém ganhou. Essas coisas eu estou falando para mostrar que não desconheço o que estou falando, quando estou falando sobre o futebol ou sobre esse problema ocorrido com os americanos e os japoneses. O time aqui forma no dabliú-mê, o povo aqui ainda não adotou essas viadagens, aqui é um goleiro, dois beques, três ralfes e cinco linhas, como sempre foi. Então nós alinhamos Chupeta, Cremildo e Didi. Poroba, Bertinho e João Baguinha. Geraldo Tuberculoso (conhecido pelo vulgo de Tubério, mas ele não gosta), Pingüim, Delegado, Jonga, Digaí e Honorino, este na reserva de qualquer posição, ou então se resolvessem fazer baba de doze. Tem criticas porque nesse time escalamos dois tuberculosos, que são Geraldo Tuberculoso, como o nome indica, e João Baguinha, que pegou a tuberculose e o apelido pela mania de ficar catando baga de cigarro no chão e fumando. Mas Geraldo é amarelo assim mas é o diabo com a bola e é aporrinhado e ponta-direita necessita ser aporrinhado. E João Baguinha é o tipo do tuberculoso diferente, nem dá sinal, e além do mais eu quero ver esse bom daqui que não tem doença, se fosse assim não jogava ninguém. Tem também um que é avariado da idéia, que é Digaí, que ficou meio abestalhado porque dizem que não comia em pequeno, mas para mim foi alguma pancada que o pai dele deu na moleira dele, o velho só vivia melado. Digaí tem esse apelido porque ele tinha um papagaio que ele vivia querendo ensinar e tanto disse diga aí ao papagaio que o bicho só dizia diga aí. Ele acabou se acostumando com esse apelido de Digaí, mas, quando está jogando, o povo grita "diga aí, louro!" e aí ele se reta e fecha pelo meio igual a um inglês e chuta tudo que estiver na frente. Considero um jogador de valor. Então recebemos aqui a visita de uns homens do governo. No começo, todo mundo pensou que eles tinham vindo para uma dessas eleições modernas, que eles se sentam lá dentro e depois saem dando risada e dizendo: "Fulano tá eleito". Mas não era isso, era uma coisa do ministério. Dá-se mais ou menos que esse ministério vai fazer umas pesquisas para ver se não temos uns metais, na certa a mesma coisa que fizeram a umas dez léguas daqui e agora lá está entupido de americanos e japoneses, não deram emprego a ninguém e ainda botam para fora todo mundo que encostar, está uma novidade. Para não dizer que não fizeram nada, botaram um lugar que você pode ir arrancar o dente, se o dente doer, assim mesmo só nas sextas e sábados, no resto da semana você pode chiar à vontade que ninguém tira seu dente. Estamos acordados para essas pesquisas, mas ninguém pode fazer nada, é tudo povo do sul do país e ainda mais tem os americanos. Naquelas conversas, o prefeito, que vive dizendo que aqui vai entrar dinheiro que nem ladrão acaba, quando acharem os metais, mas todo mundo está sabendo que o prefeito é meio aluado, por isso mesmo que deu para prefeito, disse que ia dar um almoço para a comitiva e ia fazer um jogo de futebol. O nosso time é por nome São Lourenço, mas está sem camisa, desde quando Aurélio alfaiate se mudou daqui e levou as camisas, que eram tudo dele. Também só quem tem chuteira é Digaí, inclusive faz questão de usar sempre e ninguém consegue que ele tire. Ele diz que está dentro da regra. Mas então o prefeito explica que arranja os equipamentos com os gringos da mineração e de fato arranja. Digaí não gostou que todo mundo agora tivesse chuteira, mas foi obrigado a se conformar. Quiseram até mudar o nome do São Lourenço para Brasil, levando em conta que o jogo ia ser contra os estrangeiros, mas ninguém ia envergonhar o santo numa hora dessas, por sinal podendo também envergonhar o Brasil, ficando assim mal com os dois. Então permaneceu São Lourenço mesmo e no dia do jogo Arnaldino atendeu uma grande encomenda de foguetes para o prefeito e mais dois que o time se cotizou, esses dois sendo marcados um para a entrada do time e outro para o caso de vitória. Para o almoço o time não foi convidado, mesmo porque tivemos que almoçar bem antes do jogo, para não dar congestão. Teve arroz e carne, uma festa completa, embora com uma certa preocupação da maior parte do time, visto que a maioria é de capinadores da prefeitura e, se o prefeito já não paga a ninguém desde março, veja-se como vai ser depois dessas despesas de almoço, inclusive ele mandou buscar uns matos especiais para servir ao povo da comitiva e esses matos são tudo os olhos da cara. Também ninguém capina mais, justiça seja feita, mas também contamos com os jegues, que fazem um serviço mais ou menos, só não fazem no meio das pedras. Está uma situação assim - nem ele paga nem ninguém capina, ainda se aqui se comesse capim como o pessoal da cidade até que ia ser melhor. Para quem viu o almoço do prefeito, estava tudo nojentíssimo, até papas brancas tinha misturado com os bifes e a mulher de Antenor da Bodega, que é vereador, ficou com vergonha de comer na frente daquele povo todo, também a mulher de Antenor - cala-te, boca, mas por aí se vê que quem nasce para vintém nunca chega a derréis, não estou dizendo nada. Os gringos chegaram de uniforme vermelho e o São Lourenço entrou de camisa amarela e calção variando um pouco, porque o prefeito esqueceu de pedir calção também, mas é mentira que Poroba jogou de cueca, isto espalham os que não se conformam com a vitória, os entreguistas. Esses calções a maior parte nós conseguimos quando passou uma gente aqui do programa da rua do lazer, mas ninguém ligou para a rua do lazer, que aqui qualquer uma é, e então eles deixaram esses calções aqui, uns dois ou três já tendo virado calçolas, pois o que tem de mulher descalçolada nestas bandas é mais do que abóbora quando a terra baixa molha, e o marido se torna desassossegado se a mulher está desprevenida, não fica bem. De forma que esses calções do lazer umas mulheres pegaram e usaram de calçolas e já estavam acostumadinhas, teve dificuldades na coleta. A situação do time não ficou boa logo na saída, porque, se você já viu japonês fazendo qualquer coisa, você sabe como é. Japonês, você diz uma coisa a ele, ele acredita. Então esses japoneses acreditavam em todas as coisas que diziam a eles e ai saiam todos de bolo, menos o goleiro que também era japonês, e quatro americanos que também estavam jogando. Os americanos davam bicudas. Porém eram bicudas de americanos, cada bicuda da porra. Chupeta dá na direita para Cremildo, com aquela intenção de que ele devolva, que é para execução das piruetas que fazem os profissionais, nisso quando seu Cremildo escorrega, porque não está acostumado com chuteiras e ai chegam uns duzentos mil japoneses, tudo chutando para a frente, tudo zumbindo e dando uns grunhidos de japoneses. Um japonês adentra a grande área, gritando como uma jega deflorada, com outro japonês um de cada lado e prepara a zorra para cima de Chupeta, que essas alturas está xingando a mãe de Cremildo, que é irmã da mãe dele e isso já rende complicação na família, porque Nascimento, marido da irmã da mãe dele, era bandeirinha e passou o resto do jogo dizendo se aquele filhodaputa não fosse goleiro toda vez que ele pegasse na bola eu marcava ofiçáide. Nisso chega seu Didi, que era beque porque tinha as canelas grossas e tinha quebrado a clavícula de Caetano com uma calcanhada e nem conversou: caiu de dois pés no joelho do japonês. O japonês apagou, porque, se você nunca viu um elefante, você nunca viu Didi, e então o japonês deu aquele uai de japonês, cambalhotou três vezes e caiu parado. Nisso seu Cremildo, que ficava desresvalando nas chuteiras, levanta a cara e passa um japonês na carreira e dá um chute na cara de Cremildo, que mais que depressa corre atrás do japonês e, não tendo como pegar, pega o japonês pelas pernas e dá uma dentada nele, no que o japonês se vira e dá um golpe de jojitso em Cremildo e Cremildo quase ficou sem nariz, quando bateu numa jaqueira que está assim do lado do campo, todo mundo conhece. João Baguinha quis puxar as pernas do japonês que Didi tinha acertado, mas chegou um americano e segurou João Baguinha pelo cabelo e parece que ia até dar uma bicuda em João Baguinha, quando entraram no campo o prefeito e a comitiva e então tudo se organizou, mais ou menos com meia hora de trabalho. Teve um americano que ficava dando sorrisos o tempo todo e abrindo os braços, porém foi vaiado. Quando chegou o fim do primeiro tempo, a situação não estava boa para a nossa agremiação, apesar, verdade seja dita, de que não se usou qualquer daquelas armas secretas, que se saiba. O juiz marcou pênalti na jogada de Didi contra o japonês e Chupeta defendeu, nem ele até hoje sabe como. Mas eu sei e Bertinho, chamado Bertinho Pinico, por ter umas manchas na cara escritinho aquelas manchas de ferrugem que dá em pinicos velhos, também sabe, porque foi Bertinho quem encarcou a bola na marca, afundando bastante, de maneira que o americano que cobrou o pênalti deu uma bicuda para o chão. São recursos do jogador de experiência e Bertinho já jogou até em Alagoinhas, quanto mais. Mas assim mesmo os gringos enfiaram dois na gente, um de japonês e outro de americano, sendo que nesse Chupeta quase sai de baixo, porque o americano chutou que parecia que queria lançar um satélio no espaço, só que esse satélio ia na direção de Chupeta, como de fato foi. Se tivesse rede, furava. Tubério, que não estava bem, por causa da marcação homem a homem do beque americano, nós substituímos por Honorino, com a missão de chegar na linha de fundo e centrar para Jonga ou Delegado subirem na cabeçada, visto que a zaga americana não sabia cabecear e sempre metia a cara na bola e relava o nariz todo e a zaga japonesa gostava de meter a mão na bola, quando ela subia demais. O problema era o goleiro japonês. O homem era o cão, o que tinha de pequeno tinha de abusado e só ia na bola fazendo ará-ará e outros gritos, com a cara de quem pretendia esfarelar a bola com os dentes, espantava bastante o atacante. Delegado quis mandar pegar um cachorro dele para a torcida iscar no japonês, mas não foi possível, mesmo porque esse cachorro, que se chama Menezes, em homenagem a um coletor que teve aqui, tinha sido preso por pedido do prefeito, pois esse Menezes não somente se ousa com todas as cachorras como também com qualquer perna que aparece e, quando o dono da perna não deixa, ele morde. Então não ficava bem para o bom nome da cidade soltar Menezes. A tática resolvida foi que Jonga e Delegado somente um subia de cada vez, o outro procurando ficar em cima dos pés do goleiro, para não deixar que ele subisse. Possa ser que o japonês não fosse gostar, mas ninguém estava disposto a tomar lavagem daqueles gringos, o metal é deles, mas o futebol é nosso, é a lei da vida. O time deles entrou também com uma modificação, que foi outro japonês no lugar do que Didi tinha acertado, que estava todo triste junto da comitiva, com o joelho maior do que a cabeça. Eu disse a Didi que não se animasse, que não ficasse quebrando os joelhos todos do adversário, a não ser quando fosse por providência, que aí todo mundo entende. Pois então Honorino começou a correr pela ponta direita. Honorino não tem assim um controle de bola muito bom, mas ele é especialista em dar um chutão para a frente e sair atrás da esfera galopando acelerado e depois centra. Nessa posição, ele só sabe fazer isso, quer dizer é melhor do que Gil. Honorino então deu uma porção de corridas, mas nem Delegado nem Jonga estavam acertando direito a pisar nos pés do goleiro. Jonga chegou na beira do campo e me disse que o desgraçado ficava sapateando e, quando subia, espalhava os joelhos para os lados e que se ele, Jonga, ainda tivesse dentes, já tinha perdido todos das caqueradas do japonês. Nessa hora foi que nós resolvemos que, quando o goleiro fosse subir, Jonga metia o dedo por debaixo dele, tendo para nós que nem japonês, nem americano, nem ninguém - talvez o francês, que é o povo mais descarado - ia tolerar que enfiassem o dedo nas partes traseiras, isso assim de repente dá um sobressalto em qualquer homem. O jogo até que tinha facilitado, porque Pingüim caiu dentro da área quando ia passar pelo americano que abria os braços e o americano pensou que tinha matado Pingüim e aí largou a bola para ver, quando que Pingüim se levanta ligeirinho e marca o São Lourenço! O goleiro ficou retado, porque o americano atrapalhou na hora da defesa, mas esses problemas de brancos eles resolvem lá entre eles mesmos e Pingüim ainda sacudiu a camisa na direção do americano, essa gente miúda gosta muito de pirraçar. Mesmo assim estamos perdendo e Honorino já vai dando sinal de que não agüenta mais correr e na defesa temos grande pressão japonesa, no mesmo jeito, tudo de bolo. Felizmente, Cremildo já tinha tido permissão do juiz para jogar sem chuteira e cada pontapé que ele dava com aqueles cascos que Deus lhe deu espalhava diversos japoneses e descontrolava o ataque estrangeiro. Poroba também aprendeu a escorar as bicudas dos americanos. De vez em quando, o americano acertava a bicuda em cheio e Poroba calçava e subia com bola e tudo. Mas escorava e esse é o heroísmo do atleta brasileiro, porque, depois do jogo, Poroba passou muito tempo com zumbido nos ouvidos, dos solavancos que ele levava, toda vez que escorava uma bicuda. Está se vendo que a situação não era boa, mas podia ser notado que o japonês do gol estava cada vez mais aporrinhado com as dedadas de Jonga, inclusive porque Delegado também tirava suas tasquinhas de vez em quando. O japonês fez diversas caretas e foi piorando depois do gol mais sensacional da tarde, que foi Digaí, que até agora não tinha pegado na bola. Digai pegou a bola solto na ponta esquerda, porque um beque americano foi rebater de primeira e ela espirrou para o lado e o americano ficou carrapeteando sem entender nada. Digai ficou até meio sem graça e começou a dar com o canto do pé na bola, doido para aparecer alguém para receber um passe, mas - é por isso que eu digo, torcida vale muito - todo mundo começou a gritar digai, louro, digai, louro!" e Digaí ficou mais do que emputecido. Até hoje eu fico pensando se Digai, que o nome cristão é Juvenal mas só a mãe dele chama ele de Juvenal, acha que aquela gritaria toda vem do goleiro, porque ele parte para cima do goleiro. Quem já quis segurar um maluco atacado sabe como é para segurar Digaí, precisa um destacamento de homens dobrados e mesmo assim com uns porretes. Então seu Digaí faz uma diagonal pelo bico da área e um japonês que cercou ele tomou uma peitada que até hoje aquele japonês não compreendeu e, quando chega bem no bico da área, seu Digaí me dá um cacete que quase a bola fica encaixada no ánglio superior direito da trave do japonês, mas não ficou: bateu no ánglio, voltou, bateu na cabeça do japonês e entrou e sacudiu o véu da noiva, só que não tinha véu, mas também não tinha noiva e gol do Brasil! Carlito Bofe, que estava tomando conta do foguete da vitória, não agüentou e soltou a pamonha, catapriutabum! Marcador igualado e Digai abraçadíssimo e perguntando cadê meu papagaio, cadê o papagaio, me dê meu papagaio. Esqueci de dizer que o papagaio de Digai é finado, porque ele enchia a boca de água e barrufava o papagaio para ele aprender a falar, de sorte que deve de ter afogado o bicho numa certa feita dessas; ou então matado de defluxo. Mas o empate não serve a quem defende o seu país, mesmo quando ele empata a gente. Honorino já está botando os bofes pela boca, mesmo porque, agora, além do americano está um japonês marcando ele. Não pegam, mas chateiam, inclusive japonês não cansa, todo mundo sabe disso. Mas como ninguém marcava João Baguinha, que até agora não tinha feito nada a não ser reclamar do juiz e correr para abraçar quem fazia gol, a redonda acabou sobrando para ele na intermediária dos gringos e ele aí deu um esticão para dentro da área, uma coisa linda, que só se acredita que foi João Baguinha porque se viu. O goleiro deles sai e arma o bote, mas nisso Delegado vem de lá e enfia o dedo na bunda do japonês e o japonês não quis acordo. Revirou o corpo e deu uma pezada na cara de Delegado que Delegado nem catou ficha. Caiu inteiro no meio da área. Temos aí um pênalti claro, mas o japonês avançou para o juiz e disse ele mete dedo no meu trazezo, ele mete no meu trazezo, isto seu Delegado todo estatelado no gramado, com um lado da cara inchado e fazendo careta com o outro. João Baguinha, que era especialista nisso, veio logo esticar as pernas de Delegado, mas ele só se levantou quando disseram que iam aplicar uma injeção e assim mesmo estava meio bambo. Então o juiz botou Delegado para se perfilar assim com as mãos nas costas e disse seu Delegado, o senhor dá a sua palavra de honra de esportista? Dou sim senhor, disse Delegado. O senhor, disse o juiz, dá sua palavra de honra de esportista como não meteu o dedo no traseiro do goleiro adversário? E Delegado não era besta de dizer que não dava, senão depois do jogo ele ia ver onde a gente socava a honra de esportista dele, honra é a da pátria amada que ali a gente está defendendo, eles levam o metal mas não levam a flâmula. Aí o juiz apontou para a marca do pênalti e o japonês quase vira um baiacu de tanto inchar as bochechas, sabe-se que o japonês e o chinês são os povos de maior capacidade de inchar as bochechas. Eu adentrei o tapete verde, com a finalidade de declarar que o São Lourenço não aprovava o tumulto e que ou respeitavam o juiz ou eu tirava o time do campo e considerava o jogo ganho e aí não me responsabilizava pela conduta dos meus atletas, que era tudo rapazes de sangue quente. Eu sei que acabou Cremildo se dirigindo para a marca penal e a última coisa que o japonês viu foi o pé de Cremildo se levantando, porque se tem uma coisa que Cremildo sabe fazer, essa coisa é dar um porrete fixe, desses que a bola entorta. Tive que dar um esporro em Carlito Bofe, porque ele já tinha gasto nosso foguete no gol de empate e o jogo terminando e o time todo se fechando na defesa. Didi aprendeu que, se batesse os pés na frente do gringo que estava com a bola, o gringo se assustava pensando que Didi ia dar um chute nele esoltava o esférico. Vitória do Brasil, ninguém envergonhou a pátria. Muita gente pergunta se, em vez de ganhar no futebol, não era melhor a gente viver bem, igual aos gringos vivem? Isso demonstra ignorância, porque se sabe que ao gringo interessa mais mostrar que a raça deles é melhor, por isso que Hitler mandou matar todos os alemães que não ganharam nas olimpíadas, para não envergonhar a raça. Daí se vê que, ganhando no futebol, a melhor raça somos nós.

276. JOÃO UBALDO RIBEIRO. Aracaju, a cidade onde nós morávamos no fim da década de 40, começo da de 50, era a orgulhosa capital de Sergipe, o menor Estado brasileiro (mais ou menos do tamanho da Suíça). Essa distinção, contudo, não lhe tirava o caráter de cidade pequena, provinciana e calma, à boca de um rio e a pouca distância de praias muito bonitas. Sabíamos do mundo pelo rádio, pelos cinejornais que acompanhavam todos os filmes e pelas revistas nacionais. A televisão era tida por muitos como mentira de viajantes, só alguns loucos andavam de avião, comprávamos galinhas vivas e verduras trazidas à nossa porta nas costas de mulas, tínhamos grandes quintais e jardins, meninos não discutiam com adultos, mulheres não usavam calças compridas nem dirigiam automóveis e vivívamos tão longe de tudo que se dizia que, quando o mundo acabasse, só íamos saber uns cinco dias depois. Mas vivíamos bem. Morávamos sempre em casarões enormes, de grandes portas, varandas e tetos altíssimos, e meu pai, que sempre gostou das últimas novidades tecnológicas, trazia para casa tudo quanto era tipo de geringonça moderna que aparecia. Fomos a primeira família da vizinhança a ter uma geladeira e recebemos visitas para examinar o impressionante armário branco que esfriava tudo. Quando surgiram os primeiros discos long play, já tínhamos a vitrola apropriada e meu pai comprava montanhas de gravações dos clássicos, que ele próprio se recusava a ouvir, mas nos obrigava a escutar e comentar. Nada, porém, era como os livros. Toda a família sempre foi obsedada por livros e às vezes ainda arma brigas ferozes por causa de livros, entre acusações mútuas de furto ou apropriação indébita. Meu avô furtava livros de meu pai, meu pai furtava livros de meu avô, eu furtava livros de meu pai e minha irmã até hoje furta livros de todos nós.  A maior casa onde moramos, mais ou menos a partir da época em que aprendi a ler, tinha uma sala reservada para a biblioteca e gabinete de meu pai, mas os livros não cabiam nela -- na verdade, mal cabiam na casa. E, embora os interesses básicos dele fossem Direito e História, os livros eram sobre todos os assuntos e de todos os tipos.  Até mesmo ciências ocultas, assunto que fascinava meu pai e fazia com que ele às vezes se trancasse na companhia de uns desenhos esotéricos, para depois sair e dirigir olhares magnéticos aos circunstantes, só que ninguém ligava e ele desistia temporariamente. Havia uns livros sobre hipnotismo e, depois de ler um deles, hipnotizei um peru que nos tinha sido dado para um Natal e, que, como jamais ninguém lembrou de assá-lo, passou a residir no quintal e, não sei por queê, era conhecido como Lúcio.  Minha mãe se impressionou, porque, assim que comecei meus passes hipnóticos, Lúcio estacou, pareceu engolir em seco e ficou paralisado, mas meu pai -- talvez porque ele próprio nunca tenha conseguido hipnotizar nada, apesar de inúmeras tentativas -- declarou que aquilo não tinha nada com hipnotismo, era porque Lúcio era na verdade uma perua e tinha pensado que eu era o peru. Não sei bem dizer como aprendi a ler. A circulação entre os livros era livre (tinha que ser, pensando bem, porque eles estavam pela casa toda, inclusive na cozinha e no banheiro), de maneira que eu convivia com eles todas as horas do dia, a ponto de passar tempos enormes com um deles aberto no colo, fingindo que estava lendo e, na verdade, se não me trai a vã memória, de certa forma lendo, porque quando havia figuras, eu inventava as histórias que elas ilustravam e, ao olhar para as letras, tinha a sensação de que entendia nelas o que inventara. Segundo a crônica familiar, meu pai interpretava aquilo como uma grande sede de saber cruelmente insatisfeita e queria que eu aprendesse a ler já aos quatro anos, sendo demovido a muito custo, por uma pedagoga amiga nossa. Mas, depois que completei seis anos, ele não agüentou, fez um discurso dizendo que eu já conhecia todas as letras e agora era só uma questão de juntá-las e, além de tudo, ele não suportava mais ter um filho analfabeto.  Em seguida, mandou que eu vestisse uma roupa de sair, foi comigo a uma livraria, comprou uma cartilha, uma tabuada e um caderno e me levou à casa de D. Gilete. - D. Gilete - disse ele, apresentando-me a senhora de cabelos presos na nuca, óculos redondos e ar severo -, este rapaz já está um homem e ainda não sabe ler. Aplique as regras. "Aplicar as regras", soube eu muito depois com um susto retardado, significava, entre outras coisas, usar a palmatória para vencer qualquer manifestação de falta de empenho ou burrice por parte do aluno. Felizmente D. Gilete nunca precisou me aplicar as regras, mesmo porque eu de fato já conhecia a maior parte das letras e juntá-las me pareceu facílimo, de maneira que, quando voltei para casa nesse mesmo dia, já estava começando a poder ler. Fui a uma das estantes do corredor para selecionar um daqueles livrões com retratos de homens carrancudos e cenas de batalhas, mas meu pai apareceu subitamente à porta do gabinete, carregando uma pilha de mais de vinte livros infantis. -  Esses daí agora não - disse ele.  - Primeiro estes, para treinar. Estas livrarias daqui são uma porcaria, só achei estes. Mas já encomendei mais, esses daí devem durar uns dias. Duraram bem pouco, sim, porque de repente o mundo mudou e aquelas paredes cobertas de livros começaram a se tornar vivas, freqüentadas por um número estonteante de maravilhas, escritas de todos os jeitos e capazes de me transportar a todos os cantos do mundo e a todos os tipos de vida possíveis. Um pouco febril às vezes, chegava a ler dois ou três livros num só dia, sem querer dormir e sem querer comer porque não me deixavam ler à mesa -- e, pela primeira vez em muitas, minha mãe disse a meu pai que eu estava maluco, preocupação que até hoje volta e meia ela manifesta. - Seu filho está doido -- disse ela, de noite, na varanda, sem saber que eu estava escutando. - Ele não larga os livros. Hoje ele estava abrindo os livros daquela estante que vai cair para cheirar.  - Que é que tem isso? É normal, eu também cheiro muito os livros daquela estante. São livros velhos, alguns têm um cheiro ótimo. - Ontem ele passou a tarde inteira lendo um dicionário. - Normalíssimo. Eu também leio dicionários, distrai muito. Que dicionário ele estava lendo? - O Lello. - Ah, isso é que não pode. Ele tem que ler o Laudelino Freire, que é muito melhor. Eu vou ter uma conversa com esse rapaz, ele não entende nada de dicionários.  Ele está cheirando os livros certos, mas lendo o dicionário errado, precisa de orientação. Sim, tínhamos muitas conversas sobre livros. Durante toda a minha infância, havia dois tipos básicos de leitura lá em casa: a compulsória e a livre, esta última dividida em dois subtipos -- a livre propriamente dita e a incerta. A compulsória variava conforme a disposição de meu pai.  Havia a leitura em voz alta de poemas, trechos de peças de teatro e discursos clássicos, em que nossa dicção e entonação eram invariavelmente descritas como o pior desgosto que ele tinha na vida. Líamos Homero, Camões, Horácio, Jorge de Lima, Sófocles, Shakespeare, Euclides da Cunha, dezenas de outros.  Muitas vezes não entendíamos nada do que líamos, mas gostávamos daquelas palavras sonoras, daqueles conflitos estranhos entre gente de nomes exóticos, e da expressão comovida de minha mãe, com pena de Antígona e torcendo por Heitor na Ilíada. Depois de cada leitura, meu pai fazia sua palestra de rotina sobre nossa ignorância e, andando para cima e para baixo de pijama na varanda, dava uma aula grandiloqüente sobre o assunto da leitura, ou sobre o autor do texto, aula esta a que os vizinhos muitas vezes vinham assistir. Também tínhamos os resumos - escritos ou orais - das leituras, as cópias (começadas quando ele, com grande escândalo, descobriu que eu não entendia direito o ponto-e-vírgula e me obrigou a copiar sermões do Padre Antônio Vieira, para aprender a usar o ponto-e-vírgula) e os trechos a decorar. No que certamente é um mistério para os psicanalistas, até hoje não só os sermões de Vieira como muitos desses autores forçados pela goela abaixo estão entre minhas leituras favoritas. (Em compensação, continuo ruim de ponto-e-vírgula). Mas o bom mesmo era a leitura livre, inclusive porque oferecia seus perigos.  Meu pai usava uma técnica maquiavélica para me convencer a me interessar por certas leituras. A circulação entre os livros permanecia absolutamente livre, mas, de vez em quando, ele brandia um volume no ar e anunciava com veemência: -  Este não pode! Este está proibido! Arranco as orelhas do primeiro que chegar perto deste daqui! O problema era que não só ele deixava o livro proibido bem à vista, no mesmo lugar de onde o tirara subitamente, como às vezes a proibição era para valer. A incerteza era inevitável e então tínhamos momentos de suspense arrasador (meu pai nunca arrancou as orelhas de ninguém, mas todo mundo achava que, se fosse por uma questão de princípios, ele arrancaria), nos quais lemos Nossa vida sexual do Dr. Fritz Kahn, Romeu e Julieta; O Livro de San Michele, Crônica Escandalosa dos Doze Césares, Salambô, O Crime do Padre Amaro -- enfim, dezenas de títulos de uma coleção estapafúrdia, cujo único ponto em comum era o medo de passarmos o resto da vida sem orelhas -- e hoje penso que li tudo o que ele queria disfarçadamente que eu lesse, embora à custa de sobressaltos e suores frios. Na área proibida, não pode deixar de ser feita uma menção aos pais de meu pai, meus avós João e Amália. João era português, leitor anticlerical de Guerra Junqueiro e não levava o filho muito a sério intelectualmente, porque os livros que meu pai escrevia eram finos e não ficavam em pé sozinhos. "Isto é uma merda", dizia ele, sopesando com desdém uma das monografias jurídicas de meu pai. "Estas tripinhas que não se sustentam em pé não são livros, são uns folhetos". Já minha avó tinha mais respeito pela produção de meu pai, mas achava que, de tanto estudar altas ciências, ele havia ficado um pouco abobalhado, não entendia nada da vida. Isto foi muito bom para a expansão dos meus horizontes culturais, porque ela não só lia como deixava que eu lesse tudo o que ele não deixava, inclusive revistas policiais oficialmente proibidas para menores. Nas férias escolares, ela ia me buscar para que eu as passasse com ela, e meu pai ficava preocupado. - D. Amália - dizia ele, tratando-a com cerimônia na esperança de que ela se imbuísse da necessidade de atendê-lo -, o menino vai com a senhora, mas sob uma condição.  A senhora não vai deixar que ele fique o dia inteiro deitado , cercado de bolachinhas e docinhos e lendo essas coisas que a senhora lê. -  Senhor doutor - respondia minha avó -, sou avó deste menino e tua mãe.  Se te criei mal, Deus me perdoe, foi a inexperiência da juventude. Mas este cá ainda pode ser salvo e não vou deixar que tuas maluquices o infelicitem. Levo o menino sem condição nenhuma e, se insistes, digo-te muito bem o que podes fazer com tuas condições e vê lá se não me respondes, que hoje acordei com a ciática e não vejo a hora de deitar a sombrinha ao lombo de um que se atreva a chatear-me. Passar bem, Senhor doutor. E assim eu ia para a casa de minha avó Amália, onde ela comentava mais uma vez com meu avô como o filho estudara demais e ficara abastalhado para a vida, e meu avô, que queria que ela saísse para poder beber em paz a cerveja que o médico proibira, tirava um bolo de dinheiro do bolso e nos mandava comprar umas coisitas de ler -- Amália tinha razão, se o menino queria ler que lesse, não havia mal nas leituras, havia em certos leitores. E então saíamos gloriosamente, minha avó e eu, para a maior banca de revistas da cidade, que ficava num parque perto da casa dela e cujo dono já estava acostumado àquela dupla excêntrica. Nós íamos chegando e ele perguntava: - Uma de cada? - Uma de cada - confirmava minha avó, passando a superintender, com os olhos brilhando, a colheita de um exemplar de cada revista, proibida ou não-proibida, que ia formar uma montanha colorida deslumbrante, num carrinho de mão que talvez o homem tivesse comprado para atender a fregueses como nós. -- Mande levar. E agora aos livros! Depois da banca, naturalmente, vinham os livros. Ela acompanhava certas coleções, histórias de "Raffles, Arsène Lupin",  Ponson du Terrail, Sir Walter Scott, Edgar Wallace, Michel Zevaco, Emilio Salgari, os Dumas e mais uma porção de outros, em edições de sobrecapas extravagantemente coloridas que me deixavam quase sem fôlego. Na livraria, ela não só se servia dos últimos lançamentos de seus favoritos, como se dirigia imperiosamente à seção de literatura para jovens e escolhia livros para mim, geralmente sem ouvir minha opinião -- e foi assim que li Karl May, Edgar Rice Burroughs, Robert Louis Stevenson, Swift e tantos mais, num sofá enorme, soterrado por revistas, livros e latas de docinhos e bolachinhas, sem querer fazer mais nada, absolutamente nada, neste mundo encantado. De vez em quando, minha avó e eu mantínhamos tertúlias literárias na sala, comentando nossos vilões favoritos e nosso herói predileto, o Conde de Monte Cristo - Edmond Dantès! - como dizia ela, fremindo num gesto dramático.    E meu avô, bebendo a cerveja escondido lá dentro, dizia "ai, ai, esses dois se acham letrados, mas nunca leram o Guerra Junqueiro".De volta à casa de meus pais, depois das férias, o problema das leituras compulsórias às vezes se agravava, porque meu pai, na certeza (embora nunca desse ousadia de me perguntar), de que minha avó me tinha dado para ler tudo o que ele proibia, entrava numa programação delirante, destinada a limpar os efeitos deletérios das revistas policiais.  Sei que parece mentira e não me aborreço com quem não acreditar (quem conheceu meu pai acredita), mas a verdade é que, aos doze anos, eu já tinha lido, com efeitos às vezes surpreendentes, a maior parte da obra traduzida de Shakespeare, O elogio da loucura, As décadas de Tito Lívio, D. Quixote (uma das ilustrações de Gustave Doré, mostrando monstros e personagens saindo dos livros de cavalaria do fidalgo me fez mal, porque eu pasei a ver as mesmas coisas saindo dos livros da casa), adaptações especiais do Fausto e da Divina Comédia, a Ilíada, a Odisséia, vários ensaios de Montaigne, Poe, Alexandre Herculano, José de Alencar, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Dickens, Dostoievski, Suetônio, os Exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola e mais não sei quantos outros clássicos, muitos deles resumidos, discutidos ou simplesmente lembrados em conversas inflamadas, dos quais nunca me esqueço e a maior parte dos quais faz parte íntima de minha vida. Fico pensando nisso e me pergunto: não estou imaginando coisas, tudo isso poderia ter realmente acontecido? Acho que sim, também joguei bola, tomei banho nu no rio, subi em árvores e acreditei em Papai Noel. Os livros eram uma brincadeira como outra qualquer, embora certamente a melhor de todas. Quando tenho saudades da infância, as saudades são daquele universo que nunca volta, dos meus olhos de criança vendo tanto que entonteciam, dos cheiros dos livros velhos, da navegação infinita pela palavra, de meu pai, de meus avós, do velho casarão mágico de Aracaju.

277. JOÃO UBALDO RIBEIRO. Prioridade Nacional. Paranóico sendo, suponho que de nascença (recusava-me a nascer e só fui aparecer — a fórceps — depois de dez meses de gestação), de vez em quando me vêm pesadelos, quase certezas, sobre como seremos legislados para a prática de todos os atos de nossa vida, privada ou não. E, o que é pior, submetidos a sistemas de controle aterradores, tais como chips eletrônicos no cérebro, com cuja idéia vocês acham que fiz chiste ainda outro dia, mas não era chiste. Já tem gente pelo menos pensando em desenvolver chips para criminosos condenados, que assim teriam suas ações monitoradas, ou mesmo orientadas. De criminosos para nós, outros, o passo ia ser curto. Posso imaginar até mesmo os futuros (e geneticamente manipulados) bebês, como quem toma uma vacina rotineira, recebendo seus chips de sociabilidade, responsabilidade, bom comportamento, compulsão para pagar impostos, docilidade e o que mais dispuser a lei. Que, aliás, encontraria terreno feraz, em meio à carneirada que já somos. No Brasil, podemos não estar na vanguarda tecnológica. Mas, na legislativa, acho que de vez em quando damos mostras de que temos condição, havendo vontade política, de aspirar a uma posição de destaque. Agora mesmo, leio aqui que se encontra em curso, na Câmara de Deputados, um projeto para a regulamentação da profissão de escritor. Já houve uma tentativa anterior,aliás estranhamente apoiada por alguns escritores profissionais, que não vingou. Mas deve ser uma área atraente demais para ainda não estar regulamentada. Claro, nem todas as atividades, ofícios e profissões estão ainda regulamentadas, mas a dos escritores parece ser importante em excesso, para tão prolongado esquecimento governamental. Não li o projeto, mas é claro que ele não pode ser discriminatório. Para definir o escritor, tem-se que ser o mais abrangente possível. Escreveu, valeu. Valerão, portanto, não só livros como panfletos, discursos, sermões, cartas, bilhetes, diários, memorandos, relatórios, bulas de remédio e — por que não? — um caprichado cardápio de restaurante. Como dizer a um sujeito que escreveu que ele não é escritor? Acusações de preconceito, incorreção política e discriminação se tornarão inevitáveis, se todo aquele que escrever não for classificável como escritor. Bem verdade que, de acordo também com o que li, caberá aos sindicatos de escritores essa árdua tarefa — e também eles terão o mesmo problema para rejeitar pretendentes. Conhecemos o Brasil, não conhecemos? Finjamos que conhecemos, pelo menos. Que tramas logo entrevemos no futuro, se o projeto for transformado em lei? Posso logo conceber os casos tristes dos aposentados que escrevem regularmente para os jornais (mais um golpe nessa velharia desagradável que não serve para nada, pau neles) e serão, cedo ou tarde, flagrados no exercício ilegal da profissão. Claro, o projeto atual não deve prever isto, mas outros para complementá-lo advirão, principalmente porque assim se gerarão mais burocracia e mais empregos de favor, e os escrevedores de cartas aos jornais ou se filiam ao sindicato ou arrumam um amigo filiado, para co-assinar as cartas, na condição de "escritor responsável". Infortúnio que, aliás, deverá abater-se sobre diversos outros, como síndicos de prédios ou inspetores de obras, ou quem quer que seja obrigado a escrever relatórios. Talvez até placas, quem sabe? Será indispensável a chancela de um escritor responsável; do contrário, multa e cana inafiançável. Os sindicatos da categoria, naturalmente, assumirão atribuições formidáveis, com o decorrer do tempo. Ficar contra a maioria, por exemplo, poderá render expulsão e a conseqüente impossibilidade de exercer a profissão. Não está tampouco fora de cogitação que um sindicato muito atuante emita, depois das tradicionais assembléias tumultuadas, palavras de ordem a seus filiados. A política do sindicato, por exemplo, poderia ser não aceitar, sob penas variadas, que se escrevessem romances de amor ou literatura igualmente alienante. Quem escrevesse, além de punido, seria traidor da categoria. Para não falar em greves, obrigando os laboratórios farmacêuticos (pensando bem, talvez eles mereçam) a mandar um representante à casa de cada consumidor, para expor-lhe oralmente o conteúdo da bula e matando de fome heróica os que, como eu, vivem da ingrata pena. E, ça va sans dire, chegará o dia dos cursos. A coisa ficará um pouco fora de controle, haverá escritores de carteirinha em demasia, muitos despreparados para o exercício do mister, o descalabro terá que acabar. Para resolver isso, será criada uma comissão de notáveis (falar nisso, onde andam as comissões de notáveis, outrora tão abundantes e comentadas?), que, após dois anos de jetons e denúncias de interesses escusos, recomendará a criação de cursos superiores para escritores. Talvez como especialização, ou pós-graduação, dos atuais cursos de letras. O que vai interessar é o diploma para tirar a carteirinha. Para os veteranos, como novamente eu, talvez se consiga um provisionamento ou se exija um examezinho de habilitação, mas ainda assim a velha guarda será encarada com desprezo pelos novos, por faltar a ela a verdadeira formação profissional. Sei que outra vez vocês pensam que eu brinco, mas não brinco. O Brasil tem leis interessantíssimas, que vieram com as melhores intenções e rendem situações intrigantes. Por exemplo, como se sabe, se o sujeito for pego matando uma tartaruga protegida, vai preso sem fiança. Em contrapartida, se encher a cara, sair de carro e matar umas quatro pessoas, paga fiança e vai para casa. No caso da tartaruga, alguém raciocinará que é mais negócio matar o fiscal do Ibama, mesmo com testemunhas. Principalmente se estiver um pouco bêbedo, porque aqui é atenuante. É só escapar do flagrante, mostrar ser réu primário, conseguir responder ao processo em liberdade e, com azar, pegar aí seus dois aninhos de cana efetiva (em regime semi-aberto). Portanto, se aqui é mais negócio matar um homem do que uma tartaruga, não brinco. Acredito que nos possam perpetrar qualquer absurdo, inclusive esses de que acabo de falar e outros, que não chegaram a me ocorrer, mas são possíveis. Entretanto, há sempre um lado bom. Por exemplo, se algum dia exigirem carteirinha de escritor para eu escrever, não escrevo mais. Será, quiçá, uma boa notícia para alguns. Ou muitos, talvez, ainda não promulgaram uma Lei de Proteção da Literatura Nacional, obrigando todo mundo a gostar de tudo o que escritor brasileiro escreve. Embora, é claro, eu alimente fundadas esperanças, pois uma boa lei resolve qualquer coisa.

278. JOÃO UBALDO RIBEIRO. Tranquilizemo-nos. Ninguém vai negar que temos fartas razões para um certo nervosismo, uma certa ansiedade, uma certa vontade de que parem o planeta para descermos. Confusão demais, controvérsia demais, pressão demais, informação demais, medo demais, tudo demais. Outro dia li que nós, brasileiros, como em outros terrenos notáveis, nos destacamos pelo consumo de bolinhas para acalmar e dormir. Dispomos de grande acervo de médicos compreensivos, capazes de dar receitas de ansiolíticos e similares qual candidatos distribuindo santinhos, e existem aqui e ali farmácias mais camaradas, onde o pessoal se recusa a participar da palhaçada e vende a bola que sabe que acabará sendo vendida de qualquer forma. Para não falar nas bolinhas paraguaias, que também são consumidas. Tudo pode ser paraguaio e, no boteco, me garantem que o Viagra paraguaio, bem mais barato, vem tendo circulação cada vez mais intensa, até porque não é só coroa que toma, são praticamente todos os homens, tudo morrendo de medo das mulheres e portando o aterrador e traiçoeiríssimo HMLV (sigla em inglês de Human Male Limpness Virus — peça aí a um amigo para traduzir, se você não entendeu; eu tenho vergonha de falar nessas coisas, só falo se for em inglês, que é chique). Contam-me, aliás, com perdão da digressão, que outro dia, num boteco aqui do Leblon, ouviu-se a revoltada voz de um cavalheiro, gritando lá de dentro do banheiro:— Sai, covarde, é só pra fazer xixi! Sim, o clima geral induz ao estresse e a deploráveis incidentes desse tipo. Antigamente, tudo era mais previsível, ou pelo menos parecia ser. Hoje não se tem certeza de nada e, se é verdade que o mundo sempre viveu em transição, a transição agora é tão acelerada que acaba deixando a maioria no meio do caminho, ou permanentemente angustiada porque não consegue acompanhar as mudanças. Diante dessa situação, há reações extremas, como a de um de meus mais ilustres companheiros de mesa, o brigadeiro Bimba, hoje refor-mado e próspero causídico, que, através de uma declaração enfática, proferida para todo o boteco ouvir, fundou o bimbismo (ele está procurando um nome melhor, porque, com certa razão, não acha este muito eufônico). O postulado basilar do bimbismo é “já estou velho demais pra me preocupar com essa merda, vou dormir”. Perdão, senhoras, pela palavra chula, mas trata-se da reprodução de uma declaração histórica, que não pode ser falseada por pudores quiçá ultrapassados. Em suma, o brigadeiro desistiu e agora só conversa sobre comida, futebol europeu e “tornozelos que eu vi”, alusão ao tempo em que as moças não viviam levantando a saia e mostrando as amígdalas a toda a humanidade, como hoje em dia. Encontro-me fortemente propenso a aderir ao bimbismo. Chega de es-tragar minha preciosa qualidade de vida de terceira idade, entre sorvos deleitados de guaraná com gelo (sem laranja, puro mesmo), banquetes de capim e suflê de chuchu e agitadas rodadas de palitinho, com preocupações que acabaram virando vício ao longo de décadas e nunca adiantaram nada. Aliás, o bimbismo, por ser filosofia advinda na ancianidade, levanta a suspeita, nem sempre velada, de demência senil e sugere até mesmo dúvidas gnoseológicas gagás, mas não nos deixaremos abater pelo preconceito. A realidade pode passar a ser mais maleável, ou a ser como a gente queira, ou negada à vontade. Que é a realidade, afinal? Qual delas escolher? O bimbista se sente muito à vontade para questionar os fundamentos epistemológicos de qualquer coisa. E, na sabedoria de seus longos anos, o bimbista mira em torno e vê o quê? Razões para intranqüilidade? Sim, meu Gafanhoto, como dizia o mestre, naquele seriado americano jurássico a que a gente assistia, no qual eram ministradas aulas da Misteriosa Sabedoria Oriental. Mas só na superfície, porque, observe bem, “a flor de lótus brilha no lodo, porém a cabeça da serpente já foi decepada à luz do Oriente e o Homem Sábio se regozija na viagem”— o que não quer, naturalmente, dizer nada, mas se presta a meses de debate exegético sobre mais uma pérola da Misteriosa Sabedoria Oriental. Sim, este simpatizante do bimbismo que lhes fala tampouco entende o aforismo do mestre, mas imagina-o um recurso para vencer as conclusões do senso comum, às que primeiro vêm à mente. Que vemos agora? Vemos o dr. Maluf apoiando o PT (“mas não colo o adesivo”, disse ele, mais ou menos parafraseando o “fumei, mas não traguei” de Clinton, em relação à maconha), o PT fingindo que não é apoiado. Vemos ameaças do tipo “vocês não vão ver mais um tostão federal”, se for eleito o candidato oposto. Vemos casas vendidas a eleitores por um real ao mês. Vemos programas sociais nas mãos de es-truturas corruptas que, pior, são constituídas de gente como nós mesmos, não adianta querer fingir que são marcianos e não como nós, aqui nascidos, criados e formados. Vemos ameaças divinas brandidas contra opositores. Vemos a sensação de que grassa geral e vigorosa esculhambação, que ninguém sabe quem manda e querem até trazer de volta os belos tempos em que generais tinham por ocupação principal fazer advertências à nação. Vemos o dr. Genoíno (não sei se ele é doutor, mas não é gozação, é conhecer o meu lugar, o homem fica importante e a gente chama logo de “doutor”, não sou besta e a imprensa está sob olhos vigilantes) classificar uma candidatura de aventureira, a candidata se dar bem e ele agora ficar de cara mexendo. E com o PT, além do dr. Maluf? Outras figuras inesperadas, o dr. ACM, dr. Roberto Jefferson, dr. Quércia, dr. Newton Cardoso, dr. Jader Barbalho... Intranqüilidade, Gafanhoto? Ao contrário, está tudo a mesma coisa — ou você não notou? Não vamos perder a intranqüilidade tão cedo, quanto a isso pode ficar tranqüilo.

279. JOÃO UBALDO RIBEIRO. Sobrevivendo legal. Hoje eu ia escrever novamente sobre o assunto do momento, o qual, goste-se ou não de política, é a eleição em São Paulo. A prefeitura da maior cidade do país já é importante em si e foi transformada por “eles” em mais importante ainda. A disputa, pelo menos na minha modestíssima opinião, se federalizou, virou queda-de-braço nacional. Tudo obra “deles”. Não sei bem quem são “eles” e, aliás, já falei bem mais do que acabei decidindo falar, que era nada. Preciso resolver certas questões éticas preliminares, tais como conspirações e esquemas nos quais me disseram que estou envolvido, mas, talvez por contar entre meus inumeráveis defeitos a distração excessiva, não tinha notado. No momento, acho que me encontro enredado em tramas cavilosas com o núcleo da novela de não sei bem que horas da Globo. Preciso de mais informações, estão me escondendo alguma coisa, acho que o núcleo da novela está me desprestigiando e não me chamou para qualquer sessão de conspiração ainda. E, o que é pior, ninguém me deu dinheiro nenhum até agora. E, como não moro em São Paulo, está me deixando nervoso a maneira pela qual as diversas conspirações a cuja autoridade estou sujeito ou vendido me enviam as instruções da semana. É como naquela série “Missão impossível”, que passava na tevê, em que a mensagem se autodestruía. “Presta bem atenção aí, ô meu”, recomendam, sempre que começam as instruções. É muito estressante e desconfio até de que posso estar sendo inocente útil outra vez e, depois de uma vida praticamente devotada à inocência útil, a pessoa fica desgastada. Que vença a ou o melhor — é tudo o que posso dizer sem levantar suspeitas, embora não vá deixar de haver quem note que pus o “a” antes do “o”, caso em que retiro a ordem e a submeto à modificação dos leitores: por favor, ponham o “o” ou o “a” onde lhes parecer mais apropriado. Felizmente, não há paucidade — palavra que o saudoso Paulo Francis procurava importar do inglês porque, como de tudo mais, sentia falta dela no Brasil — de assuntos, notadamente para residentes, como por acaso eu, do famoso bairro do Leblon, no Rio de Janeiro. Aqui, como se sabe, somos todos barões e vivemos uma vida à parte, em que não temos nenhum problema. No começo, eu apenas gostava daqui, mas agora compreendo seu valor com cada vez mais intensidade. Certas ocorrências ajudam, como a carta satisfeitíssima de um leitor para não lembro agora qual jornal, comentando o arrastão acontecido na praia aqui do bairro. “Bem-vindos ao inferno!” rejubilava-se ele, cansado de ouvir falar como viver no Leblon é uma tranqüilidade. Senti-me um pouco injustiçado, porque não é bem assim. Agora mesmo está na moda tomar edifícios inteiros aqui. Claro, todo mundo é barão e guarda uma reserva de centenas de milhares de euros em casa para os assaltantes, pois dizem que eles não estão aceitando mais dólares. E, como sempre, desenvolve-se a economia, com o boom dos aparatos de segurança e até mesmo o dos cursos especializados. Mal posso esperar que essa formalidade boba da eleição americana passe, para que o governo crie por medida provisória (permanente) a Escola Nacional de Segurança Participativa, conveniada com o FBI, custeada pela Contribuição Provisória (Permanente) de Segurança e dando cursos para síndicos, porteiros, faxineiras, ascensoristas e, finalmente, moradores. Morar tem que deixar de assumir a postura passiva de antigamente e assumir novo paradigma: morar agressivamente, no ver dos mais radicais; morar proativamente, no dizer dos mais sofisticados. Tenho certeza de que o engenho nacional e a eficiência das autoridades continuarão a possibilitar a sobrevivência aqui no bairro, atualmente ameaçada, apesar das negativas oficiais. E, já que se deve procurar fazer sugestões e não simplesmente espalhar críticas fáceis, por que ninguém, em área tão abastada, ainda não promoveu uma edição (colorida, encadernada, em papel importado, com renda destinada ao Projeto Flores para Bangu I) do Estatuto do Desarmamento, ou que outro nome tenha a lei que torna crime inafiançável a posse de armas? Um exemplar dessa lei em cima da mesa central do tríplex com piscina em que aqui todos residimos é indispensável, para mostrar ao assaltante. É certamente por ignorância que ele entra armado nos edifícios e, como já sugeri uma vez, assim que aparecer em sua frente um assaltante empunhando uma arma, você deve imediatamente pedir licença (um pouco de educação não custa — olha os direitos humanos do assaltante) e exibir a ele o artigo aplicável à situação. Ele pedirá desculpas pela falha (“foi mal”), agradecerá pelo ensinamento (“valeu”) e sairá envergonhado (“fala sério”). No mais, sei que continuaremos a enfrentar a violência com meios eficazes e prontos. Claro que nem todos poderemos aspirar a ter uma filha delegada, mas podemos fazer esforços para nos aproximarmos da polícia, cada qual dentro de suas possibilidades. E vamos prosseguir em nossos esforços comunitários. Que tal a Marcha do Beija-Beija, em que celebridades leblonenses e convidados de toda parte sairiam desfilando pela beira do mar, cada um levando um(a) excluído(a) de sua livre escolha? Em certos momentos, embalados pela música de cantores e bandas de muita popularidade, até mesmo — vamos pensar grande, vamos pensar grande! — os desfilantes pegariam o(a) excluído(a) e lhe tacariam um beijo na boca. E tudo sem distinção de opção sexual nem de coisa nenhuma, liberdade geral. Ou seja, vamos deixar o catastrofismo outra vez e reconhecer que sobreviver legal é fácil e divertido, quer no Rio, quer em São Paulo. O quente agora é uma ponte aérea esperta — uma semana fazendo campanha em São Paulo, outra fazendo passeata, abraçando a lagoa e beijocando excluídos no Rio. Temos tudo e não sabemos ser gratos.

280. JOÃO UBALDO RIBEIRO. Em cidades como o Rio, em que não vai haver segundo turno e os dias têm sido úmidos, frios e quase penumbrosos, é compreensível uma certa melancolia, por parte do famoso cidadão comum. Clima de festa acabada. A campanha já não tinha sido grande coisa, com generalizada broxura eleitoral. Mas não deu praia no dia da eleição e não se proibiu a bebida, de maneira que votar virou um programa. Não se dirá um programaço, mas sempre um programa, com uns chopinhos no boteco em frente à seção, azaração cívica etc. E a participação nessa brincadeira gozativa (o brasileiro é um gozador nato, não sei se já lhes falaram isto), que é dizer que quem manda somos nós, quando nunca mandamos em coisa nenhuma e até o sapo barbudo que a maioria de nós achou que ia fazer com que “eles” engolissem está se revelando um fino escargot . E à moda deles, claro. Mas a gente fica ouvindo que estamos numa democracia, que o poder do voto isso e aquilo e coisa e tal e anima a pasmaceira. Às vezes, é melhor do que jogar palitinho, embora nem sempre. A paulistada está se dando bem melhor, a coisa vai pegar fogo. D. Marta (soube que a palavra “dona”, não entendi por quê, estava sendo usada de forma negativa na campanha; não é o caso aqui, me incluam fora dessa, só estou tratando a prefeita como minha geração trata as senhoras com quem não tem aproximação), que, não faz muito, visitou a Academia e foi muito simpática, parece que, na hora de a onça beber água, a porca torcer o rabo, a vaca tossir ou ocasiões igualmente desafiadoras, não é tão veludosa assim e parte para o combate com feroz belicosidade. Já quanto ao dr. Serra, não sei bem. Nunca tive contato pessoal com ele, mas me dizem que também sabe brigar bem e apresenta uns acessos de mau humor comparáveis aos de uma ariranha dispéptica. Enfim, de fato não sei. O fato é que a briga se me afigura de foice, como imagino que à maior parte de vocês. E não deixa de ser irônico (eu só disse “não deixa de ser irônico”, não disse mais nada, atenção, advogados e entrelinhistas) que agora o dr. Maluf esteja sendo chamado o “fiel” da balança. Ou seja, não importa o que expliquem, tanto d. Marta quanto dr. Serra estão tendo de cantar os votos do dr. Maluf. Não há jeito. Como estarão realizando essa operação, que se afigura tão delicada aos brasileiros em geral e à maior parte dos paulistas e paulistanos em particular, é que não sabemos. Provavelmente nunca vamos ficar sabendo, como, aliás, não costumamos ficar sabendo de nada mesmo. Ensinavam nos cursos de ciência política que os sistemas eleitorais de dois turnos tendiam a favorecer os partidos de centro, pois a possibilidade de vir a necessitar, num segundo turno, dos votos de ex-adversários fazia com que os partidos procurassem não extremar-se em demasia. Não vem ao caso ficar fazendo teoria política de cantina (estamos hoje em São Paulo), mas é claro que alguma coisa vão ter que dar ao dr. Maluf, que não sei se é dotado de instintos político-partidários muito filantrópicos. Dar em forma de quê? Ah, como gostaria eu, verdade mesmo, de poder imaginar pelo menos algumas dessas formas. Vocês imaginam? Eu no máximo tenho fantasias meio bobas, pois sei lá que alto empíreo habitam as pessoas do poder? Sei lá que aspirações medram no fundo d’alma do dr. Maluf? Dirão alguns, acredito que com certeza minoria boba, que não me meta. Não sou paulistano (sou casado com paulista, mas não vale porque ela é de Birigüi — onde, aliás, não sabemos quem ganhou, mas estamos com ele ou ela e não abrimos, temos de aprender alguma coisa na vida), não tenho nada com isso, vá apitar em outra freguesia. Não vou, claro. São Paulo é a maior cidade do nosso Brasil e das maiores do mundo, eu sou brasileiro, outro paulista pode vir a ser meu presidente e não há como deixar de me interessar por São Paulo. E não precisaria de nada *além disso porque, embora também digam o contrário, creio que nem um leso do juízo de minha marca deixa de ver que em São Paulo se prepara a principal atividade do governo nos próximos dois anos, qual seja a reeleição. Esse negócio de reeleição foi realmente a única reforma política que testemunhei na minha existência, as outras eram ou mentirosas, ou parciais, ou efêmeras. Reeleição, não; reeleição é um negócio sério. Pode haver até quem argumente que ganhar o segundo turno em São Paulo terá tanta importância assim. Aliás, há quem sustente isso. Tenho passado os olhos em peças jornalísticas polissilábicas, além, muito além, da compreensão do vulgo, que dizem que a importância é pouca. Pelo menos é o que eu acho que dizem, pois não é tanto o vocabulário, mas a sintaxe, que é meio ET. Não vou discutir com os especialistas, pois, como se sabe, eles provam qualquer coisa. Mas o que se descortina cá de baixo é que já antecipam a briga da reeleição, já agitam as chaves dos cofrinhos e o presidente, que pode não governar, mas está na cara que nasceu para presidir — trabalhar mesmo, não se tem muita certeza, mas uma boa presidida é com ele mesmo — não quer perder em São Paulo. Talvez até seja forçado a desculpar-se de novo, se se deixar outra feita dominar pela emoção (só poder desfrutar do avião novo tão pouquinho, largar o doce fardo do poder só com quatro aninhos?) e voltar a pedir votos para d. Marta, pois, já viu que se trata de pecado venial cuja absolvição requer apenas um pedido de desculpas sem penitência. Apesar da opinião dos especialistas mencionados, tendo a achar que o presidente está certo. Ele, com menos idade que eu, sem as oportunidades que a vida mole de pequeno-burguês me ofereceu e opinando que ler é como andar de esteira, já se arrumou pelo resto da vida. E eu, aqui ralando provavelmente até um dia estuporar, vou ter cara de negar que o burro sou eu, a começar pelo voto?

281. JOÃO UBALDO RIBEIRO. É hoje. Não sei quanto a vocês, mas já cumpri o dever. Acordo cedo, sou ansioso e, possivelmente, terei aparecido em minha seção até antes dos mesários. E espero que ninguém esteja me lendo na fila, não só porque as filas hoje são raras e rápidas como porque ouvi falar que as autoridades estão muito rigorosas e qualquer observação que eu publique aqui poderá ser levada na conta da nefanda prática de boca-de-urna, que, aliás, como vocês devem ter visto ou verão hoje, foi praticamente abolida. Não quero cometer nenhuma irregularidade eleitoral. Sei que isso não tem importância e que basta pedir desculpas depois, mas assim mesmo é mais seguro não facilitar, porque não sou presidente nem tenho filha delegada, de maneira que me apresso em dizer que não estou pedindo que vocês votem em partido ou candidato nenhum, não estou sugerindo que votem em branco ou anulem o voto e, enfim, não estou dando palpite eleitoral. Isto é especialmente importante para o pessoal das entrelinhas. Eles são danados, peguei muita experiência com a elite deles durante os tempos da censura que não volta mais (figas, batidas na madeira etc.). Eles são capazes de ler “saia” onde está escrito “calça”, contanto que achem uma boa entrelinha. Mas não há nenhuma aqui, garanto a vocês. Não vou nem dizer com que corrente me identifiquei, entre as diversas que observei nos dias anteriores a hoje. No máximo, conto que me incluí entre os que decidiram comparecer às urnas. Mas a variedade de categorias e subcategoria desafia qualquer tentativa de classificação mais apressada. Na minha categoria geral, por exemplo, pude arrolar, assim ao aligeirado correr da pena no boteco, pelo menos as que se seguem: os que vão e votam, que às vezes parecem em minoria; os que vão, mas votam em branco; os que vão, mas anulam (não adianta, que eu não ensino como se anula, não me pegam com facilidade); os que vão, mas anulam ou “embranquecem” o voto para vereador ou para prefeito; os que vão reclamando que só vão porque é obrigatório, mas na verdade não querem é admitir que já passaram dos setentinha e não são mais obrigados; e os que garantem, não tenho nada com isso, que arrumaram maneiras para embananar ou incapacitar os circuitos eletrônicos das urnas, que já seriam fajutadas de qualquer forma e é tudo uma farsa etc. etc. Minha sólida formação política, pois a provecta idade já me inclui no seleto e, lamentavelmente, cada vez mais reduzido grupo que votou para presidente antes de 64, me impediu de aceitar os esquemas mais sofisticados. E manda a honestidade confessar que me faleciam recursos para partilhar dos escalões mais altos desses esquemas. Ou seja, não foi só a idade, foi o numerário também, não esqueçam que minha profissão é as letras, sim, mas não de câmbio. O mais sofisticado de que me falaram (e nem chegaram a pensar em me convidar, também não são malucos) foi fretar um jato para passar o fim de semana nos Estados Unidos, onde justificaríamos a falta de voto no consulado mais à mão. Bem menos ambiciosos, outros ainda organizaram caravanas para cidades serranas ou litorâneas, em que, formulários já preenchidos, apenas passaríamos por alguma agência postal. Sairíamos na sexta, coisa e tal, teríamos um belo fim de semana e não seríamos cúmplices dos governos que virão. Claro que seríamos, mas a turma não pensa assim, o que tem de gente “apolítica” neste mundo é um espanto. Quanto aos candidatos a prefeito, aqui no Rio ou, mais honestamente, no Leblon, pois me falta conhecimento para falar de qualquer outra área além da meia dúzia de quarteirões que constitui meu território carioca, a verdade é que não vi ninguém cego de amores por ninguém. Até mesmo amigos que se engajaram nas campanhas de um candidato ou outro não pareciam muito empolgados. Um dos renomados médicos que freqüentam meus ambientes chegou a declarar que, em questão de alcaidaria, o Rio de Janeiro padecia de visível disfunção erétil. “Precisamos de um Viagra cívico!”, concluiu ele sua explanação. “E na veia!” Não sei, não entendo dessa intricada matéria, mas de fato não lembro ter visto ninguém entusiasmado com candidato algum, nem mesmo um bom bate-boca amistoso, era tudo na base do “é, eu vou nesse porque já disse que ia, tudo bem, e tu vai nesse, também tudo bem — o chope hoje está até melhorzinho, tu viu o Botafogo?” Em São Paulo, com toda a certeza, a situação está bastante mais movimentada. Não porque o presidente pediu voto (até porque não pediu, tiraram do discurso e os historiadores futuros bem que poderão discutir o assunto e a confiabilidade das fontes), sério mesmo, mas porque a disputa está muito mais acirrada, boa de assistir. E saiu até movimento sério para um protesto geral, através da anulação do voto. Em Salvador, onde já votei e onde, dizem as más línguas (esse povo é muito maledicente, só fica reparando essas besteiras), a contribuição do presidente para a campanha do candidato do PT, diferentemente da de São Paulo, foi convidar o dr. Antônio Carlos para jantar, não sei se a disputa está pegando e se, no frigir do acarajé, não haverá surpresas. A verdade é que estou arrependido de haver trocado meu domicílio eleitoral. Devia ter continuado a votar em Itaparica, pelo menos era uma desculpa para tirar uns dias de folga, consultando as bases antes de escolher um candidato. Mas troquei, agora dá muito trabalho fazer nova alteração. Não, fico votando aqui pelo Rio mesmo, partilhando da mesma animação que meus atuais concidadãos cariocas. Animação, afinal justificável, não devemos ser céticos ou cínicos quanto às mudanças que trará a posse dos novos eleitos, quem quer que venham a ser eles ou elas. Amanhã, podem ter certeza, será outro dia. Ou seja, segunda-feira, claro — que foi que vocês pensaram?

282. JOÃO UBALDO RIBEIRO. Os alemães não notam. Sei disso porque já tentei conversar com diversos deles sobre o assunto e eles não compreendem o que quero dizer, não vêem nada do que vejo. Em compensação, outros brasileiros notam, logo não devo estar inventando coisas. Refiro-me a dinheiro, mais precisamente a pagamentos. O relacionamento dos alemães com dinheiro é muito diferente do nosso. Claro, dirão os mais bem-informados, na Alemanha existe dinheiro e no Brasil existem apenas uns papeluchos engraçados que mudam toda semana e que o governo insiste em dizer que é dinheiro, mas ninguém acredita. Verdade, verdade, cruel verdade, e certamente isto tem qualquer coisa a ver com o problema, mas há algo mais, porque já estive em muitos outros países onde também há dinheiro e insisto que os alemães são diferentes. No começo, a gente se assustava e eu atribuía tudo a minha aparência de contrabandista paraguaio foragido da Interpol. Mas depois percebi que o fenômeno é genérico e cheguei mesmo a inventar maneiras de me divertir com ele. Repito que isso é imperceptível para os próprios alemães, assim como um peixe deve achar que o mundo é feito de água, mas a primeira coisa que a gente nota, na hora de pagar, é que se estabelece um imediato clima de ansiedade e tensão, que só se dissipa depois que tiramos o dinheiro do bolso, pagamos e recebemos o troco, tudo rigorosissimamente contado. "São dezoito marcos e vinte e dois", diz a mocinha do balcão, e um silêncio carregado se estabelece, enquanto os olhos dela acompanham nervosamente o desenrolar da operação. A impressão que se tem é que, se alguém der um tiro de canhão lá fora, ela só vai perguntar o que houve depois de ter certeza de que tudo foi feito corretamente. Pagamento completado, tudo certo, o ambiente se desanuvia, há sorrisos, quase suspiros de alívio — que barulho foi esse lá fora, alguém deu um tiro de canhão? Num táxi carioca, o passageiro é quem pergunta quanto foi a corrida, enquanto o motorista se queixa dos buracos no asfalto ou indaga se não é nesta rua que mora uma famosa cantora. Na Alemanha, o motorista pára, desliga o taxímetro e, antes que outra palavra seja pronunciada, anuncia o custo. Não me lembro de ter perguntado, na Alemanha, o preço de qualquer coisa ou serviço. Assim que se torna evidente que vou comprar, o atendente me diz quanto devo, sem esperar que eu pergunte (e o tal clima ansioso se instaura instantaneamente). Se eu nunca tivesse ouvido falar na Alemanha e de repente me visse vivendo aqui, ia passar algum tempo achando que uma das coisas mais comuns aqui é o sujeito entrar numa loja, pedir uma coisa e sair sem pagar — daí o nervosismo que envolve os pagamentos. Finalmente, a bandejinha. Agora já sabemos que, quando Deus criou o mundo, criou a bandejinha e que sem ela a civilização é impossível, mas levamos algum tempo para nos habituarmos. A bandejinha me pegou logo nos primeiros dias de minha vida em Berlim, na tabacaria aqui da esquina. Pedi um maço de cigarros, fui imediatamente informado do preço, estendi o dinheiro para a senhora do balcão e ela não o tomou da minha mão, mas apenas me encarou em silêncio, com um ar severo e talvez um pouco impaciente. Não entendi, me atrapalhei, conferi o dinheiro — qual era o problema? Só então observei que o olhar dela ia de meu rosto para a bandejinha ao lado da registradora. Já conhecia a bandejinha de breves estadas anteriores na Alemanha, mas havia esquecido dela. Claro, a bandejinha! Depositei o dinheiro na bandejinha, ela fez a cara satisfeita de quem havia acabado de dar uma lição, agradeceu e pôs o troco na bandejinha. Depois disso, ainda tive alguns problemas por esquecer da bandejinha, como no dia em que entreguei o dinheiro da passagem ao motorista de um ônibus e ele me disse algumas coisas que não entendi, mas que tenho certeza de que não eram para me elogiar. Agora não esqueço mais, cumpro os usos da terra e não discuto. Não sei por que os alemães não gostam de que lhes entreguem o pagamento diretamente nas mãos, não sei nem se é uma exigência do Bundesbank, mas nem esmola eu dou mais na mão, aqui em Berlim. Jogo a moeda no chapéu ou na caixinha do pedinte, não quero ser espinafrado em plena Breidscheidplatz. E, de qualquer forma, como disse antes, a bandejinha às vezes me diverte. Vingo-me todo dia do motorista de ônibus que me disse desaforos por causa da bandejinha. Conto cuidadosamente moedas, fazendo questão de incluir muitas de dez pfennig, junto o preço exato da passagem e ponho uma pilhazinha na bandeja. E — Deus há de perdoar-me — tenho um prazerzinho sádico em ver o sobressalto do motorista e o gesto ansioso com que ele espalha as moedas para contá-las e, dois segundos depois, quase despenca na cadeira, aliviado em ver que a conta está certa e que, no meio das moedas, não há nenhum zloty, ou qualquer coisa assim. Mas vou parar com isso, tenho medo de algum dia matar um de enfarte.

283. JOÃO UBALDO RIBEIRO. Sim, é no próximo domingo e se nota uma vibração intensa na atmosfera, pressente-se um coração palpitante em cada peito, o clima, está, digamos, elétrico. Não está, não? É, receio que não, estragou o começo do que pretendia ser uma esforçada tentativa de crônica sobre nossos brios cívicos, às vésperas da escolha dos nossos governantes mais próximos, dos que vão ser responsáveis por nossas cidades, nossos bairros, nossas ruas. Quer dizer, aqui no Rio, em certos lugares, cada vez mais numerosos, os governantes são escolhidos por métodos menos convencionais, mas nada neste mundo é perfeito e não se vai estragar a festa somente porque quem manda cada vez mais é o tráfico, até porque, segundo ouvimos, quem quer que seja eleito resolverá todos os problemas, não há motivo para preocupação. Mas é verdade mesmo, não há vibração, pelo menos que eu perceba. Estranho, por que será? Nós, o povo, somos muito esquisitos. Está aí a democracia em marcha, com vasta distribuição de cestas básicas, notas de dez reais rasgadas e outras características peculiares a essa popular forma de governo que propagamos adotar e ninguém está fremindo, discutindo, questionando, antecipando a hora de dar sua contribuição para processo tão bonito, que sem o eleitor não significaria coisa alguma. Nós somos — Deus há de perdoar a inocente paráfrase do dito evangélico — o sal das urnas. Sem nós para legitimar o que uma considerável parcela dos futuros eleitos vai roubar, aviltar, vilipendiar, desviar, negligenciar, deturpar, degradar, dilapidar ou destruir às nossas custas, nada ia ter graça. Tanto assim que votar é um direito, mas é obrigatório, um desses achados inestimáveis com que contribuímos para o patrimônio da Humanidade, assim como o empréstimo compulsório, a contribuição provisória permanente e, agora — no terreno farmacêutico, mas de citação indispensável pela deslumbrante originalidade — o genérico de marca! Criaram-se os remédios genéricos para evitar os ônus das marcas, mas já se anunciam “genéricos só da marca Tal ou Qual”, uma maravilha mesmo. Se você vai usar genérico, escolha uma boa marca, qualquer um entende o raciocínio. Mas não devo fazer digressões. Nosso direito é obrigatório porque, se não fosse, pelo menos o ladrão ou vira-casaca ou inepto ou sopeiro ou delinqüente (picareta não, picareta é privativo do Congresso Nacional e de uso do presidente) não poderia dizer que rouba em cima de milhares e milhares de votos. Não são todos, há muitas exceções, não me processem, já basta que eu sou escritor e jornalista, o primeiro ameaçado de extinção pelo acelerado declínio no número de pessoas que sabem distinguir um livro de uma caixa de sapatos, quanto mais ler, e o segundo mais cedo ou mais tarde arrolhado pelo Novo Jornalismo que se quer implantar na República. Mas era capaz de haver vereadores eleitos com uns 500 votos, no Rio e em São Paulo, quem sabe. Admito que, na rua, o que mais me têm perguntado é como se faz para anular o voto (eles sabem e não contam, têm de legitimar, têm de legitimar), mas não vamos negar que há movimentação, é que às vezes a gente não nota. Por exemplo, me comoveu, na semana passada, a cena do querido jeitinho brasileiro que presenciei por acaso no edifício em que estava entrando. Uma senhora falava com o porteiro, dizendo que estava precisando de gente praticamente em todos os bairros da cidade, ele por favor mandasse quem pudesse ao escritório dela. Entrei no elevador e ela ainda me alcançou. Uma moça de ar mais ou menos humilde perguntou se a senhora estava falando sobre serviço, coisa hoje difícil de achar (aparentemente ela não ouviu o noticiário da TV, explicando como agora estamos entrando em regime de pleno emprego, esse pessoal é muito alienado). Sim, respondeu a senhora, mas temporário, só um dia. Garantido, quarenta reais. A moça estava interessada?— Pra mim não — respondeu ela. — É pra minha mãe.— Idosa? — perguntou a senhora, com o ar decidido das que nasceram para os grandes desafios.— Não, não, ela está em muito boa forma.— Ah, então pode.— E qual é o serviço?— Boca-de-urna. Quarenta reais. Manda ela me ligar, tá aqui o cartão, qual é o bairro em que ela vota?— Botafogo.— Excelente, estamos precisando. Telefona, telefona, tchau. Boca-de-urna é prática proibida, mas quem inventou a proibição era uma besta em matéria de realidade nacional e vai ver era até comunista (como eles fazem falta, não tem mais quase ninguém em quem botar a culpa). E, na atual conjuntura, apesar da criação dos dez milhões de empregos e tudo mais, como é que se ia dispensar essa outra grande benesse da democracia, uma graninha extra no dia da eleição? O pessoal que faz essas leis parece que vive no mundo da lua. Quarenta reais pesam no orçamento de muita gente. De fato eu estava num edifício da Zona Sul, onde os preços costumam ser mais altos. Mas não conheço as sutilezas da tabela, o mercado só vive ficando nervoso e quem sabe se, daqui para o próximo domingo, o preço não dispara? É uma chance, o povo tem que ser empreendedor, é o que os homens vivem dizendo. E o esquema das urnas grávidas? Pois é, saiu no jornal, seriam urnas já cheias com os votos certos. Se não é invenção, temos aí uns empreguinhos de emprenhador de urna, lá vem mais estímulo para a economia. Enfim, eleição aqui é um barato. E isto nos lembra: só falta uma semana, precisamos escolher nossos candidatos com o cuidado de sempre, é tempo de unidunitê.

284. JOÃO UBALDO RIBEIRO. Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não agíssemos com o vigor necessário — evidentemente o condizente com a nossa condição provecta —, tudo sairia fora de controle, mais do que já está. O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício). O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho. Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.— Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra — dizia ele ao entanguido vestibulando.— "Catilina, quanta paciência tens?" — retrucava o infeliz. Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a platéia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.— Ai, minha barriga! — exclamava ele. — Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai! Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco. O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:— Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!— As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.— Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?— Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...— Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia! Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.— Esse "for" aí, que verbo é esse? Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.— Verbo for.— Verbo o quê?— Verbo for.— Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.— Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem. Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.

285. JOÃO UBALDO RIBEIRO. Temos várias espécies de peixe neste mundo, havendo o peixe que come lama, o peixe que come baratas do molhado, o peixe que vive tomando sopa fazendo chupações na água, o peixe que, quando vê a fêmea grávida pondo ovos, não pode se conter e com agitações do rabo lava a água de esporras a torto e a direito ficando a água leitosa, temos o peixe que persegue os metais brilhantes, umas cavalas que pulam para fora bem como tainhas, umas corvinas quase que atômicas, temos por exemplo o niquim, conhecido por todas as orlas do Recôncavo, o qual peixe não somente fuma cigarros e cigarrilhas, preferindo a tálvis e o continental sem filtro, hoje em falta, mas também ferreia pior do que uma arraia a pessoa que futuca suas partes, rendendo febre e calafrios, porventura caganeiras, mormente frios e tantas coisas, temos os peixes tiburones e cações, que nunca podem parar de nadar para não morrer afogados. É engraçado que eu entenda tanto de peixe e quase não pegue, mas entendo. Os peixes miúdos de moqueca são: o carapicu, o garapau, o chicharro e a sardinha. Entremeados, podemos ferrar o baiacu e o barrigame-dói, o qual o primeiro é venenoso e o segundo causa bostas soltas e cólicas. De uma ponte igual a essa, que já foi bastante melhor, podemos esperar também peixes de mais de palmo, porém menos de dois, que por aqui passam, dependendo do que diz o rei dos peixes, dependendo de uma coisa e outra. Um budião, um cabeçudo, um frade, um barbeiro. Pode ser um robalo ou uma agulha ou ainda uma moréia, isto dificilmente. O bom da  pesca do peixe miúdo é quando estão mordendo verdadeiramente e sentamos na rampa ou então vamos esfriando as virilhas nestas águas de agosto e ficamos satisfeitos com aquela expedição de pescaria e nada mais desejamos da vida. Ou quando estamos como assim nesta canoa, porém nada mordendo, somente carrapatos. Nesses peixes miúdos de moqueca, esquecia eu de mencionar o carrapato, que não aparece muito a não ser em certas épocas, devendo ter recebido o nome de carrapato justamente por ser uma completa infernação, como os carrapatos do ar. Notadamente porque esse peixe carrapato tem a boca mais do que descomunal para o tamanho, de modo que botamos um anzol para peixes mais fundos, digamos um vermelho, um olho-de-boi, um peixe-tapa, uma coisa decente, quando que me vem lá de baixo, parecendo uma borboletinha pendurada na ponta da linha, um carrapato. Revolta a pessoa. E estou eu colocando uma linha de náilon que me veio de Salvador por intermédio de Luiz Cuiúba, que me traz essa linha verde e grossa, com dois chumbos de cunha e anzóis presos por uma espécie de rosca de arame, linha esta que não me dá confiança, agora se vendo que é especializada em carrapatos. Mas temos uma vazante despreocupada, vem aí setembro com suas arraias no céu e, com esses dois punhados de camarão miúdo que Sete Ratos me deu, eu amarro a canoa nos restos da torre de petróleo e solto a linha pelos bordos, que não vou me dar ao desfrute de rodar essa linha esquisita por cima da cabeça como é o certo, pode ser que alguém me veja. Daqui diviso os fundos da Matriz e uns meninos como formiguinhas escorregando nas areias descarregadas pelos saveiros, mas o barulho deles chega a mim depois da vista e assim os gritos deles parecem uns rabos compridos. Temos uma carteira quase cheia de cigarros; uma moringa, fresca, fresca; meia quartinha de batida de limão; estamos sem cueca, a água, se não fosse a correnteza da vazante, era mesmo um espelho; não falta nada e então botamos o chapéu um pouco em cima do nariz, ajeitamos o corpo na popa, enrolamos a linha no tornozelo e quedamos, pensando na vida. Nisso começa o carrapato, que no princípio tive na conta de baiacus ladrões. Quem está com dois anzóis dos grandes, pegou isca de graça e a mulher já mariscou a comida do meio-dia pode ser imaginado que não vai dar importância a beliscão leve na linha. Nem leve nem pesado. Se quiser ferrar, ferre, se não quiser não ferre. Isso toda vez eu penso, como todo mundo que tem juízo, mas não tem esse santo que consiga ficar com aqueles puxavantes no apeador sem se mexer e tomar uma providência. Estamos sabendo: é um desgraçado de um baiacu. Se for, havendo ele dado todo esse  trabalho, procuremos arrancar o anzol que o miserável engole e estropia e trataremos de coçar a barriga dele e, quando inchar, dar-lhe um pipoco, pisando com o calcanhar. Mas como de fato não é um baiacu, mas um carrapato subdesenvolvido, um carrapatinho de merda, com mais boca do que qualquer outra coisa, boca essa assoberbando um belo anzol preparado pelo menos para um dentão, não se pode fazer nada. Um carrapato desses a pessoa come com uma exclusiva dentada com muito espaço de sobra, se valesse a pena gastar fogo com um infeliz desses. Vai daí, carrapato na poça d'água do fundo da canoa e, dessa hora em diante, um carrapato por segundo mordendo o anzol, uma azucrinarão completa. Foi ficando aquela pilha de carrapatinhos no fundo da canoa e eu pensei que então não era eu quem ia aparecer com eles em casa, porque com certeza iam perguntar se eu tinha catado as costas de um jegue velho e nem gato ia querer comer aquilo. Pode ser que essa linha de Cuiúba tenha especialidade mesmo em carrapato, pode ser qualquer coisa, mas chega a falta de vergonha ficar aqui fisgando esses carrapatos, de maneira que só podemos abrir essa quartinha, retirar o anzol da água, verificar se vale a pena remar até o pesqueiro de Paparrão nesta soalheira, pensar que pressa é essa que o mundo não vai acabar, e ficar mamando na quartinha, viva a fruta limão, que é curativa. Nisto que o silêncio aumenta e, pelo lado, eu sinto que tem alguma coisa em pé pelas biribas da torre velha e eu não tinha visto nada antes, não podendo também ser da aguardente, pois que muito mal tomei dois goles. Ele estava segurando uma biriba coberta de ostras com a mão direita, em pé numa escora, com as calças arregaçadas, um chapéu velho e um suspensório por cima da camisa.—Ai égua! — disse eu. — Veio nadando e está enxuto?—Eu não vim nadando — disse ele. — Muito peixe?— Carrapato miúdo.— Olhe ali — disse ele, mostrando um rebrilho na água mais para o lado da Ilha do Medo. — Peixe. Ora, uma manta de azeiteiras vem vindo bendodela, costeando o perau. É conhecida porque quebra a água numa porção de pedacinhos pela flor e aquilo vai igual a muitas lâminas, bordejando e brilhando. Mas dessas azeiteiras, como as peixas chamadas solteiras, não se pode esperar que mordam anzol, nem mesmo morram de bomba.— Azeiteira — disse eu. — Só mesmo uma bela rede. E mais canoa e mais braço.— Mas eles ficam pulando — disse ele, que tinha um sorriso entusiasmado, possivelmente porque era difícil não perceber que a água em cima como que era o aço de um espelho, só que aço mole como o do termômetro, e então cada peixe que subia era um orador. Aí eu disse, meu compadre, se vosmecê botar um anzol e uma dessas meninas gordurentas morder esse tal anzol, eu dou uma festa para você no hotel — ainda que mal pergunte, como é a sua graça? Assim levamos um certo tempo, porque ele se encabulou, me afirmando que não apreciava mentir, razão por que preferia não se apresentar, mas eu disse que não botava na minha canoa aquele de quem não saiba o nome e então ficasse ele ali o resto da manhã, a tarde e a noite pendurado nas biribas, esperando Deus dar bom tempo. Mas que coisa interessante, disse ele dando um suspiro, isso que você falou.— É o seguinte — disse ele, dando outro suspiro. — É porque eu sou Deus. Ora, ora me veja-me. Mas foi o que ele disse e os carrapatinhos, que já gostam de fazer corrote-corrote com a garganta quando a gente tira a linha da água ficaram muitíssimo assanhados.— É mais o seguinte — continuou ele, com a expressão de quem está um pouco enfadado. — Está vendo aqui? Não tem nada. Está vendo alguma coisa aqui? Nada! Muito bem, daqui eu vou tirar uma porção de linhas e jogar no meio dessas azeiteiras. E dito e feito, mais ligeiro que o trovão, botou os braços para cima e tome tudo quanto foi tipo de linha saindo pelos dedos dele, parecia um arco-íris. Ele aí ficou todo monarca, olhando para mim com a cara de quem eu não sou nem principiante em peixe e pesca. Mas o que aconteceu? Aconteceu que, na mesma hora, cada um dos anzóis que ele botou foi mordido por um carrapato e, quando ele puxou, foi aquela carrapatada no meio da canoa. Eu fiz: quá-quá-quá, não está vendo tu que temos somente carrapatos? Carrapato, carrapato, disse eu, está vendo a cara do besta? Ele, porém, se retou.— Não se abra, não — disse ele — que eu mando o peixe lhe dar porrada.— Porrada dada, porrada respostada — disse eu. Para que eu disse isto, amigo, porque me saiu um mero que não tinha mais medida, saiu esse mero de junto assim da biriba, dando um pulo como somente cavacos dão e me passou uma rabanada na cara que minha cara ficou vermelha dois dias depois disto.— Donde saiu essa, sai mais uma grosa! — disse ele dando risada, e o mero ficou a umas três braças da canoa, mostrando as gengivas com uma cara de puxa-saco.— Não procure presepada, não — disse ele. — Senão eu mando dar um banho na sua cara.— Mande seu banho — disse eu, que às vezes penso que não tenho inteligência. Pois não é que ele mandou esse banho, tendo saído uma onda da parte da Ponta de Nossa Senhora, curvando como uma alface aborrecida a ponta da coroa, a qual onda deu tamanha porrada na canoa que fiquemos flutuando no ar vários momentos.— Então? — disse ele. — Eu sou Deus e estou aqui para tomar um par de providências, sabe vosmecê onde fica a feira de Maragogipe?— Qual é feira de Maragogipe nem feira de Gogiperama — disse eu, muito mais do que emputecido, e fui caindo de pau no elemento, nisso que ele se vira num verdadeiro azougue e me desce mais que quatrocentos sopapos bem medidos, equivalentemente a um catavento endoidado e, cada vez que eu levantava, nessa cada vez eu tomava uma porrada encaixada. Terminou nós caindo das nuvens, não sei qual com mais poeira em torno da garupa. Ele, no meio da queda, me deu uns dois tabefes e me disse: está convertido, convencido, inteirado, percebido, assimilado, esclarecido, explicado, destrinchado, compreendido, filho de uma puta? E eu disse sim senhor, Deus é mais. Pare de falar em mim, sacaneta, disse ele, senão lhe quebro todo de porrada. Reze aí um padre-nosso antes que eu me aborreça, disse ele. Cale essa matraca, disse ele. Então eu fui me convencendo, mesmo porque ele não estava com essas paciências todas, embora se estivesse vendo que ele era boa pessoa. Esclareceu que, se quisesse, podia andar em cima do mar, mas era por demais escandaloso esse comportamento, podendo chamar a atenção. Que qualquer coisa que ele resolvesse fazer ele fazia e que eu não me fizesse de besta e que, se ele quisesse, transformava aqueles carrapatos todos em lindos robalos frescos. No que eu me queixei que dali para Maragogipe era um bom pedaço e que era mais fácil um boto aparecer para puxar a gente do que a gente conseguir chegar lá antes que a feira acabasse e aí ele mete dois dedos dentro da água e a canoa sai parecendo uma lancha da Marinha, ciscando por cima dos rasos e empinando a proa como se fosse coisa, homem ora. Achei falta de educação não oferecer um pouco do da quartinha, mas ele disse que não estava com vontade de beber. Nisso vamos chegando muito rapidamente a Maragogipe e Deus puxa a poita desparramando muitos carrapatos pelos lados e fazendo a alegria dos siris que por ali pastejam e sai como que nem um peixe-voador. No meio do caminho, ele passa bastante desencalmado e salva duas almas com um toque só, uma coisa de relepada como somente quem tem muita prática consegue fazer, vem com a experiência. Porque ele nem estava olhando para essas duas almas, mas na passagem deu um toque na orelha de cada uma e as duas saíram voando ali mesmo, igual aos martins depois do mergulho. Mas aí ele ficou sem saber para onde ia, na beira da feira, e então eu cheguei perto dele.— Tem um rapaz aqui — disse Deus, coçando a gaforinha meio sem jeito — que eu preciso ver.— Mas por que vosmecê não faz um milagre e não acha logo essa pessoa? — perguntei eu, usando o vosmecê, porque não ia chamar Deus de você, mas também não queria passar por besta se ele não fosse.— Não suporto fazer milagre — disse ele. — Não sou mágico. E, em vez de me ajudar, por que é que fica aí falando besteira? Nessa hora eu quase ia me aborrecendo, mas uma coisa fez que eu não mandasse ele para algum lugar, por falar dessa maneira sem educação. É que, sendo ele Deus, a pessoa tem de respeitar. Minto: três coisas, duas além dessa. A segunda é que pensei que ele, sendo carpina por profissão, não estava acostumado a finuras, o carpina no geral não alimenta muita conversa nem gosta de relambórios. A terceira coisa é que, justamente por essa profissão e acho que pela extração dele mesmo, ele era bastante desenvolvidozinho, aliás, bem dizendo, um pau de homem enormíssimo, e quem era que estava esquecendo aquela chuva de sopapos e de repente ele me amaldiçoa feito a figueira e eu saio por aí de perna peca no mínimo, então vamos tratar ele bem, quem se incomoda com essas bobagens? Indaguei com grande gentileza como é que eu ia ajudar que ele achasse essa bendita dessa criatura que ele estava procurando logo na feira de Maragogipe, no meio dos cajus e das rapaduras, que ele me desculpasse, mas que pelo menos me dissesse o nome do homem e a finalidade da procura. Ele me olhou assim na cara, fez até quase que um sorriso e me explicou que ia contar tudo a mim, porque sentia que eu era um homem direito, embora mais cachaceiro do que pescador. Em outro caso, ele podia pedir segredo, mas em meu caso ele sabia que não adiantava e não queria me obrigar a fazer promessa vã. Que então, se eu quisesse, que contasse a todo mundo, que ninguém ia acreditar de qualquer jeito, de forma que tanto faz como tanto fez. E que escutasse tudo direito e entendesse de uma vez logo tudo, para ele não ter de repetir e não se aborrecer. Mas Deus, ah, você não sabe de nada, meu amigo, a situação de Deus não está boa. Você imagine como já é difícil ser santo, imagine ser Deus. Depois que eu fiz tudo isto aqui, todo mundo quer que eu resolva os problemas todos, mas a questão é que eu já ensinei como é que resolve e quem tem de resolver é vocês, senão, se fosse para eu resolver, que graça tinha? É homens ou não são? Se fosse para ser anjo, eu tinha feito todo mundo logo anjo, em vez de procurar tanta chateação com vocês, que eu entrego tudo de mão beijada e vocês aprontam a pior melança. Mas, não: fiz homem, fiz mulher, fiz menino, entreguei o destino: está aqui, vão em frente, tudo com liberdade. Aí fica formada por vocês mesmos a pior das situações, com todo mundo passando fome sem necessidade e cada qual mais ordinário do que o outro, e aí o culpado sou eu? Inclusive, toda hora ainda tenho de suportar ouvir conselhos: se eu fosse Deus, eu fazia isto, se eu fosse Deus eu fazia aquilo. Deus não existe porque essa injustiça e essa outra e eu planejava isso tudo muito melhor e por aí vai. Agora, você veja que quem fala assim é um pessoal que não acerta nem a resolver um problema de uma tabela de campeonato, eu sei porque estou cansado de escutar rezas de futebol, costumo mandar desligar o canal, só em certos casos não. Todo dia eu digo: chega, não me meto mais. Mas fico com pena, vou passando a mão pela cabeça, pai é pai, essas coisas. Agora, milagre só em último caso. Tinha graça eu sair fazendo milagres, aliás tem muitos que me arrependo por causa da propaganda besta que fazem, porque senão eu armava logo um milagre grande e todo mundo virava anjo e ia para o céu, mas eu não vou dar essa moleza, está todo mundo querendo moleza. A dar essa moleza, eu vou e descrio logo tudo e pronto e ninguém fica criado, ninguém tem alma, pensamento nem vontade, fico só eu sozinho por aí no meio das estrelas me distraindo, aliás tenho sentido muita falta. É porque eu não posso me aporrinhar assim, tenho que ter paciência. Senão, disse ele, senão... e fez uma menção que ia dar um murro com uma mão na palma da outra e eu aqui só torcendo para que ele não desse, porque, se ele desse, o mínimo que ia suceder era a refinaria de Mataripe pipocar pelos ares, mas felizmente ele não deu, graças a Deus. Então, explicou Deus, eu vivo procurando um santo aqui, um santo ali, parecendo até que sou eu quem estou precisando de ajuda, mas não sou eu, é vocês, mas tudo bem. Agora, é preciso que você me entenda: o santo é o que faz alguma coisa pelos outros, porque somente fazendo pelos outros é que se faz por si, ao contrário do que se pensa muito por aí. Graças a mim que de vez em quando aparece um santo, porque senão eu ia pensar que tinha errado nos cálculos todos. Fazer por si é o seguinte: é não me envergonhar de ter feito vocês igual a mim, é só o que eu peço, é pouco, é ou não é? Então quem colabora para arrumar essa situação eu tenho em grande apreço. Agora, sem milagre. Esse negócio de milagre é coisa para a providência, é negócio de emergência, uma correçãozinha que a gente dá. Esse pessoal não entende que, toda vez que eu faço um milagre, tem de reajustar tudo, é uma trabalheira que não acaba, a pessoa se afadiga. Buliu aqui, tem de bulir ali, é um inferno, com perdão da má palavra. O santo anda dificílimo. Quando eu acho um, boto as mãos para o céu. Tendo eu perguntado como é que ele botava as mãos para o céu e tendo ele respondido que eu não entendia nada de Santíssima Trindade e calasse minha boca, esclareceu que estava procurando um certo Quinca, conhecido como Das Mulas, que por ali trabalhava. Mas como esse Quinca, perguntei, não pode ser o mesmo Quinca! Pois esse Quinca era chamado Das Mulas justamente por viver entre burros e mulas e antigamente podendo ter sido um rapaz rico, mas havendo dado tudo aos outros e passando o tempo causando perturbação, ensinando besteiras e fazendo questão de dar uma mão a todos que ele dizia que eram boas pessoas, sendo estas boas pessoas dele todas desqualificadas. Porém ninguém fazia nada com ele porque o povo gostava muito dele e, quando ele falava, todo mundo escutava. Além de tudo, gastava tudo com os outros e vivia dando risadas e tomava poucos banhos e era um homem desaforado e bebia bastante cana, se bem que só nas horas que escolhia, nunca em outras. E, para terminar, todo mundo sabia que ele não acreditava em Deus, inclusive brigava bastante com o padre Manuel, que é uma pessoa distintíssima e sempre releva.— Eu sei — respondeu Deus. — Isto é mais uma dificuldade. E, de fato, fomos vendo que a vida de Deus e dos santos é muito dificultosa desde aí, porque tivemos de catar toda a feira atrás desse Quinca e sempre onde a gente passava ele já tinha passado. Ele foi encontrado numa barraca, falando coisas que a mulher de Lóide, aquela outra santa, fingia que achava besteira, mas estava se convencendo e então eu vi que aquilo ia acabar dando problema. Olha aí, mostrei eu, ele ali causando divergência. É isso mesmo, disse Deus com olhar de grande satisfação, certa feita eu também disse que tinha vindo separar homem e mulher. Não quero nem saber, me apresente. E então tivemos um belo dia, porque depois da apresentação parece que Quinca já tinha tomado algumas e fomos comer um sarapatel, tudo na maior camaradagem, porque estava se vendo que Quinca tinha gostado de Deus e Deus tinha gostado dele, de maneira que ficaram logo muitíssimo amigos e foi uma conversa animada que até às vezes eu ficava meio de fora, eles tinham muita coisa a palestrar. Nisso tome sarapatel até as três e todo mundo já de barriga altamente estufada, quando que Quinca me resolve tomar uma saideira com Deus e essa saideira é nada mais nada menos do que na casa de Adalberta, a qual tem mulheres putas. Nessa hora, minha obrigação, porque estou vendo que Deus está muito distraído e possa ser que não esteja acostumado com essas aguardentes de Santo Amaro que ele tomou mais de uma vintena, é alertar. Chamei assim Deus para o canto da barraca enquanto Quinca urinava e disse olhe, você é novo por aqui, pelo menos só conhecíamos de missa, de maneira que essa Adalberta, não sei se você sabe, é cafetina, não deve ficar bem, não tenho nada com isso, mas não custa um amigo avisar. Ora, rapaz, você tem medo de mulher, disse Deus, que estava mais do que felicíssimo e, se não fosse Deus, eu até achava que era um pouco do efeito da bebida. Mas, se é ele que fala assim, não sou eu que fala assado, vá ver que temos lá alguma rapariga chamada Madalena, resolvi seguir e não perguntar mais nada. Pois tomaram mais e fizeram muito grande sucesso com as mulheres e era uma risadaria, uma coisa mesmo desproporcionada, havendo mesmo um serviço de molho pardo depois das seis, que a fome apertou de novo, e bastantes músicas. Cada refrão que Quinca mandava, cada refrão Deus repicava, estava uma farra lindíssima, porém sem maldade, e Deus sabia mais sambas de roda que qualquer pessoa, leu mãos, recitou, contou passagens, imitou passarinho com perfeição, tirou versos, ficou logo estimadíssimo. Eu, que estava de reboque bebendo de graça e já tinha aprendido que era melhor ficar calado, pude ver com o rabo do olho que ele estava fazendo uns milagres disfarçados, a mim ele não engana. As mulheres todas parece que melhoraram de beleza, o ambiente ficou de uma grande leveza, a cerveja parecia que tinha saído do congelador porém sem empedrar e, certeza eu tenho mas não posso provar, pelo menos umas duas blenorragias ele deve de ter curado, só pelo olhar de simpatia que ele dava. E tivemos assim belas trocas de palavras e já era mais do que onze quando Quinca convidou Deus para ver as mulas e foram vendo mulas que parecia que Deus, antes de fazer o mundo, tinha sido tropeiro. E só essa tropica e essa não tropica, essa empaca e essa não empaca, essa tem a andadura rija, essa pisa pesado, essa está velha, um congresso de muleiros, essa é que é a verdade. É assim que vemos a injustiça, porque, a estas alturas, eu já estou sabendo que Deus veio chamar Quinca para santo e que dava um trabalho mais do que lascado, só o que ele teve de estudar sobre mulas e decorar de sambas de roda deve ter sido uma esfrega. Mas eu já estava esperando que, de uma hora para outra, Deus desse o recado para esse Quinca das Mulas. Como de fato, numa hora que a conversa parou e Quinca estava só estalando a língua da cachaça e olhando para o espaço, Deus, como quem não quer nada, puxou a prosa de que era Deus e tal e coisa. Ah, para quê? Para Quinca dizer que não acreditava em Deus. E para Deus, no começo com muita paciência, dizer que era Deus mesmo e que provava. Fez uns dois milagres só de efeito, mas Quinca disse que era truques e que, acima de tudo, o homem era homem e, se precisasse de milagre, não era homem. Deus, por uma questão de honestidade, embora o coração pedisse contra nessa hora, concordou. Então ande logo por cima da água e não me abuse, disse Quinca. E eu só preocupado com a falta de paciência de Deus, porque, se ele se aborrecesse, eu queria pelo menos estar em Valença, não aqui nesta hora. Mas ele só patati-patatá, que porque ser santo era ótimo, que tinha sacrifícios mas também tinha recompensas, que deixasse daquela besteira de Deus não existir, só faltou prometer dez por cento. Mas Quinca negaceava e a coisa foi ficando preta e os dois foram andando para fora, num particular e, de repente, se desentenderam. Eu, que fiquei sentado longe, só ouvia os gritos, meio dispersados pelo vento.— Você tem que ser santo, seu desgraçado! — gritava Deus. — Faz-se de besta! — dizia Quinca. E só quebrando porrada, pelo barulho, e eu achando que, se Deus não ganhasse na conversa, pelo menos ganhava na porrada, eu já conhecia. Mas não era coisa fácil. De volta de meia-noite e meia até umas quatro, só se ouvia aquele cacete: deixe de ser burro, infeliz! cale essa boca, mentiroso! E por aí ia. Eu só sei que, umas cinco horas mais ou menos, com Gerdásia do mercado trazendo um mingau do que ela ia vender na praça e fazendo a caridade de dar um pouco para mim e para Deus, por sinal que ele toma mingau como se fosse acabar amanhã e não tivesse mais tempo, os dois resolveram apertar a mão, porém não resolveram mais nada: nem Deus desistia de chamar Quinca para o cargo de santo, nem Quinca queria aceitar esse cargo.— Muito bem — disse Deus, depois de uma porção de vezes que todo mundo dizia que já ia, mas enganchava num resto de conversa e regressava. — Eu volto aqui outra vez.— Voltar, pode voltar, terá comida e bebida — disse Quinca. — Mas não vai me convencer!— Rapaz, deixe de ser que nem suas mulas!— Posso ser mula, mas não tenho cara de jegue! E aí mais pau, mas, quando o dia já estava moço, aí por umas seis ou sete horas da manhã, estamos Deus e eu navegando de volta para Itaparica, nenhum dos dois falando nada, ele porque fracassou na missão e eu porque não gosto de ver um amigo derrotado. Mas, na hora que nós vamos passando pelas encostas do Forte, quase nos esquecendo da vida pela beleza, ele me olhou com grande simpatia e disse: fracasso nada, rapaz. não falei nada, disse eu. Mas sentiu, disse ele. Se incomode não, disse ele, nem toda pesca rende peixes. E então ficou azul, esvoaçou, subiu nos ares e desapareceu no céu.

286. JOÃO UBALDO RIBEIRO. O problema com essas histórias todas é que é tudo offzirrécorde, como se diz atualmente. Quer dizer, quem diz não escreve e quem escreve não assina. Não tolero isso. Pode estar muito na moda, mas não me convence. Eu, você pode escrever aí: foi eu que disse. O resto de quem sabe, não querendo confirmar, não confirme. Escreva aí, sem o offzirrécorde. O camarada tem medo de dizerem que ele é colhudeiro, a verdade é o sol e ele é a lua, essas coisas. Comigo não, escreva. O diabo Beremoalbo, muitas pessoas estiveram pessoalmente com ele - posso citar diversas, aliás não cito nada, hoje em dia o sujeito cita e, quando está bem do seu, já virou alcagüete, pode deixar - o diabo Beremoalbo era um diabão altamente escroto, dos piores que já apareceram por aqui, inclusive fazia as desgraças dele e dava grandes gaitadas, espécie de curriúque-curriúque, só que com aquele bafo de diabo, absolutamente diferentíssimo. Ele chegava na porta das pessoas explodindo fortemente as letras que movimentam os beiços:— Boa noite. Meu nome é Beremoalbo. E aí podia se resignar, que seguia uma escrotidão em cima da outra, encarreirado. Leite azedando, mulher abortando, menino de caganeira, boi de bicheira, água podre no purrão, panarício no dedão, moça velha desonrada, casa nova destelhada, tudo o que possa lhe ocorrer. O bicho tinha uma voz péssima, mestiça de gruta, uma coisa horrível de se ouvir assim no meio da noite — meu nome é Beremoalbo —, imagine o senhor. Pessoas há que procuram achar qualidades nesse diabo Beremoalbo, mas a verdade precisa ser dita, porque não existe coisa ruim neste mundo que não apareça algum descarado para elogiar: nesse Beremoalbo não tem nada que se salve, não se pode ter a mínima confiança nele. Para não dizer mais nada, recordo o dia em que seu Beremoalbo se nos aparece por meio do serviço de alto-falantes. O que ele diz é o seguinte:— Boa noite. Ao microfone, Beremoalbo. Votem no Medebê. Agora o senhor veja que conselho porreta que ele achou de dar. Interessante. Com certeza é a mãe dele, se diabo tivesse mãe, que vai ficar aqui aguardando quatro anos sem nem o secretário da Justiça, que é o mais esculhambado de todos, aparecer por aqui, mordamos aqui para vermos se sairmos leite, ora me deixe. Acredito ser isto suficiente para saber de quem se trata Beremoalbo. Entretanto, Beremoalbo está longe de ser o único da raça do cão a freqüentar por aqui, aliás, é exatamente de um caso desses que eu quero tratar, mais tarde lhe falo, logo, logo. Tem gente que nega, mas, quando o senhor virar as costas, vão se benzer e espalhar alho pelos cantos da casa, só que Beremoalbo come alho, com ele o negócio é difícil. Tem gente que nega, mas só de fingimento, pois a verdade é que esse pessoal todo vai se lembrar se o senhor chegar para eles e mencionar alguns dos seguintes cães: Balganoel, o espalha-merda; Virifinário, o que conseguiu fazer aparecer mais cornos nesta terra do que se pode contar; o diabão Jugurta, que convencia todo mundo a dizer a verdade e assim causou toda apresentação de fatos maus que a gente seria feliz se não soubesse; Harpagelão, que meteu na cabeça de diversos padres de ir na terra de uns índios mais do que degenerados, os quais comeram Roquiféler - uns índios que comeram Roquiféler, vai se brincar com um povo desses? - e igualmente que os índios comeram os padres e nem pensaram duas vezes, que quando índio pensa meia vez pensa muito; Rolvinésio, o que botava para falar e, botando gente para falar, causou grande número de misérias; Erundino, que peidava nos ambientes e provocava inimizades; Raimundo Humberto, dador de bofetadas estraladas, levantador de saias de mulheres, assoprador de ventos maus de toda conseqüência, causador de dor de ouvidos, mandador de moscas na hora do sono, broxador de amantes, atiçador de crianças insuportáveis e tudo mais que faça nós o Homem que possamos dirigir blasfêmias ao Nosso Criador - mas esse Raimundo Humberto, o senhor tem de concordar que um diabo chamado Raimundo Humberto nunca que pode ser a mesma coisa de um diabo atendendo por Beremoalbo, então seu Raimundo Humberto se fazia passar, a quantos coubesse a desgraça de topar com ele, por Ascaltenor, mas esse já é outro diabo, que não atenta aqui. Pode o senhor assim consultar a nossa praça e perceber o que quiser. Porque cada um percebe o que quer, apesar de todo o offzirrécorde. Embora não perceber certas coisas já pareça descaração, mas manda a caridade que se deixe isso de lado. Nunca me esqueço de que uns americanos estiveram aqui e filmaram o povo todo - sem porém pagar um tostão a ninguém, como eles pagam por exemplo a Tarzan, claro que ninguém aqui é Tarzan, mas também é filhos de Deus - e, quando notaram que a maior parte só trabalha quando está com fome, disseram que todo mundo aqui somos uma sociedade rica. E ainda sustentaram e botaram na rádio. Quer dizer, quanto mais a gente estiver morando no oco dos pés de pau e cagando nos matos, mais eles estão gostando. Americano é mais sabido até do que paulista. Estamos de olho neles todos. O diabo Gildélio, conforme o senhor sabe, do contrário não estava perguntando a respeito dele, era mais especial do que esses outros, isto porque, de acordo com todas as testemunhas, trazia sempre franzido o sobrolho e a cara ensombreada, por isso que não suportava ser diabo. Se bem que nessa eu não creio assim cem por cento, porque cansei de ver ele sair da bodega de Ernestino com cada lasca de jabá deste tamanho na mão, que ele roubava, provocando com isso peixeiradas e tentativas de Ernestino contra qualquer pessoa que apresentasse cara de haver comido jabá naqueles dias, notadamente jabá crua. Eu mesmo estive acusado falsamente. Quer dizer, são umas coisas que fazem a pessoa alimentar certas dúvidas. No entanto, de relação aos assovios, posso muitíssimo bem prestar depoimento, isto porque todos nesta cidade sabem que um certo tipo de assovio, antes muito ouvido por aqui, podia contar como uma espécie de aviso, porque lá vinha miséria. Acúrcio mesmo, depois que ele já tinha metido no juízo de Acúrcio casar com Isabel Rosália e morar com a mãe lá dela, dona Aurora, que só não se podia chamar de jararaca porque a jararaca tem a natureza mais cortês. Por aí o senhor tira a natureza de dona Aurora. Pois Acúrcio garante que, na hora do pedido de casamento, ele ouviu aquele assoviozinho como que de curió, assim no pé do ouvido bem lá dele. A consciência cochichou: atenção nos assobeios, que possa ser Gildélio. Mas aí é que está o particularismo da situação. Na hora, o sujeito não dá importância ao assovio, de forma que a desgraça fica feita. A mesma coisa pode ser dita dúzias e dúzias de vezes, como no caso de Genival, esse mesmo que o senhor está pensando, que vem ouvindo esses assovios toda vez que se candidata, desde vereador aqui até prefeito, deputado, vai a senador — quer dizer, chegando em todas as alturas políticas, não tem quem salve ele do inferno. Como no caso de Totonho, para mim ele continua a ser Totonho, lá fora é que chamam de doutor, doutor para mim é ourinol, não vou chamar de doutor um moleque daquele, que eu vi o pai muitas vezes passando cabresto em jegue alheio nos pastos, ora me deixe. O caso dele é que hoje, de grau em grau, é dono de altos bancos e altíssimas fábricas e é empregador — que ele chama empregador e não gosta que chamem de patrão, por causa do natural acanhamento — de diversas pessoas, porém sempre ele ouvindo o assovio de Gildélio, quanto mais dinheiro ele vai ganhando. Tem uns dinheiros de viúvas que ele também arrecada e escreve numa caderneta e esses incrementam muitíssimo a assoviação. Deixe ele. Fala-se em Gildélio também, quando, por uma razão ou por outra, a pessoa se engana com alguém e pega esse alguém com a boca na botija em alguma desgraceira contra si, isto porque, segundo se diz, seu Gildélio me comete as piores safadezas por entre os disfarces mais descarados e as mais altas finuras. O sujeito pega ele armando uma sacanagem e ele faz o seguinte discurso:— Creia, meu senhor, neste mundo é muito fácil condenar e ainda mais fácil ignorar. O senhor me compreenda, eu sou diabo, é uma fatalidade, o que é que se pode fazer? Alguém tem que ser diabo, havemos de convir. Vamos compreender. Não se condena pela profissão, sem conhecer o caráter. Se eu fosse anjo, está certo. Mas eu não sou. De forma que só posso fazer esse tipo de coisa, o senhor por fineza queira relevar. Posso garantir que, se o senhor fosse diabo, estava na mesma situação, firuri-firuri. Bom consolo, pode o senhor dizer e, de fato, nada disso ia impedir que a desgraceira fosse feita. Pelo contrário, acho que nisso vai a demonstração de que Gildélio pode ser o exemplo de todos os diabos, pois devia ser verdade conhecida que nenhum assovio ou até apito de trem vai desviar o homem de seu mau destino. De maneira que podemos considerar esses assovios na qualidade de deboche, mesmo porque a situação aqui é de molde que, se o urubu de baixo está cagando no de cima, isso se descreve como boas notícias. É assim que vemos as coisas pretas, Deus é grande. Aliás, podia chegar uma banda de assoviadores que nada se alterava, pois desde que este mundo é mundo que existe um assoviador, sem que ninguém devote a ele preocupação, porventura senão um maestro ou outro, para lhe comunicar que o seu dó maior enganchou no si bemol. Não sei de nada, até nem sou daqui e, mesmo que fosse, não estava aqui e, mesmo que estivesse, não falava nada. Estou ficando nos paraxismos, a culpa é sua, que me deu álcool. Estou sabendo apenas que esse diabo tanto atanazou a vida do meu compadre Tito Procópio que esse compadre, ouvindo embora os assovios, fez mais filhos do que devia a consciência consentir, pois afirmava Tito Procópio que o filho era a riqueza do pobre, convencimento este assoprado pelo Gildélio mencionado. Sendo que Gildélio, que tinha se provado amigo da família, tudo bem disfarçadinho, mostrou que não ter filhos ia ser bem pior. Além de ser maldição, exibia aos vizinhos gala fraca ou mulher maninha e, mais do que importante, podia ser - estou dizendo assim: sempre podia ser, às vezes possa ser até que não podia ser, que eu não sou comunista - podia ser que, sem mais gente para ajudar na produção, podia ser que eles não pudessem mais ficar ali, naquelas terras que não eram deles. Considerado isso, lembre que tanto faz nascer como não nascer, que a comida não aumenta, mas a produção pode aumentar. E tal e coisa. E só os assovios. Pois então Tito Procópio foi tendo filhos, juntamente com despesas de enterros diversos, muito embora tenha feito muitos que viviam ali mesmo, comendo o barrinho deles e esfregando as barriguinhas d'água deles e dois ou três quem sabe se não pode vir a ser até peão, se forte? Terminou, naturalmente, que Tito Procópio desmascarou Gildélio e se preparou para envergonhar esse diabo, quando ele então começou com a história de que culpa ele tinha se ele era diabo. Mas logo eu, disse Tito Procópio, logo eu, que sou pobre e nada possuo nesse mundo? Podendo vosmecê ir infernar quem por aí explora e torpedeia? É por isso mesmo, disse o diabo Gildélio, olhando para os meninos amarelos com seus olhos maus e dando um sorriso horrível como só o diabo pode dar, o sorriso mais feio do mundo. E ele sorri porque sabe que não pode obrar coisa pior do que fazer nascer. Pelo menos nascer por aqui.

287. JOÃO UBALDO RIBEIRO. Outro dia, uma revista me descreveu como convicto "tecnófobo", neologismo horrendo inventado para designar os que têm medo ou aversão aos progressos tecnológicos. Acho isso uma injustiça. Em 86, na Copa do México, eu já estava escrevendo (aliás, denúncia pública: este ano não vou à França, ninguém me chamou; acho que fui finalmente desmascarado como colunista esportivo) num computadorzinho arqueológico, movido a querosene, ou coisa semelhante. Era dos mais modernos em existência, no qual me viciei e que o jornal, depois de promessas falsas, me tomou de volta. Tratava-se de coisa finíssima. O modem, por exemplo, era uma espécie de desentupidor de pia, que se fixava no telefone e que fazia aparecer do outro lado os piores bestialógicos imagináveis. Mas éramos felizes com ele. Já no final de 86, era eu orgulhoso proprietário e operador de um possante Apple IIE (enhanced), com devastadores 140 kb de memória, das quais o programa para escrever comia uns 120. Mas eu continuava feliz, com meu monitor de fósforo verde e minha impressora matricial Emilia, os quais se transformaram em atração turística de Itaparica, tanto para nativos quanto para visitantes. Que maravilha, nunca mais ter de botar papel carbono na máquina ou ter de fazer correções a caneta — e eu, que sempre fui catamilhógrafo, apresentava um texto mais sujo do que as ruas da maioria de nossas capitais. Havia finalmente ingressado na Nova Era, estava garantido. Bobagem, como logo se veria. Um ano depois, meu celebrado computador não só me matava de vergonha diante dos visitantes, como quebrava duas vezes por semana e eu, que não dirijo, pedia à minha heróica esposa que o levasse a Salvador, poderosíssima razão para minha conversão pétrea à indissolubilidade do matrimônio. E ai entrei na roda-viva em que hoje, mais ou menos irremediavelmente, me encontro. Já disse aqui que, no meu tempo, tudo o que o sujeito precisava para ser escritor ou jornalista eram um lápis, uma canetinha ou uma máquina de escrever. Hoje não, hoje o sujeito tem de aprender algumas coisas de novo toda semana, sob o risco de se ver desempregado, ou ridicularizado por amigos sem piedade. Olho assim em torno, todos os meus amigos são micreiros. Basta dizer que sou amigo da Cora Rónai e do Gravatá. Todo mundo que conheço é plugado na Internet e conversa em termos incompreensíveis. A turma do Casseta e Planeta é micreira. Millôr Fernandes é micreiro. Todo mundo é micreiro. Só quem não é micreiro, que eu me lembre assim, é o festejado poeta Geraldo Carneiro, que não sabe nem numerar as páginas de seu texto a imprimir (habilidade que eu tenho, embora precariamente). Assim mesmo, em delírios paranóicos, às vezes suspeito que ele, conhecido por saber tudo, finge ignorância informática por caridade comigo. Não se pode confiar em ninguém, hoje em dia. Mas ganhei um computador novo! Fui dormir felicíssimo, pensando em meu lapetope de última geração, cheio de todas as chinfras. Mas tudo durou pouco, porque um certo escritor amigo meu me telefonou.—  Alô! — disse o Zé Rubem do outro lado.—  Você tem tempo para mim? Digo isso porque, com seu equipamento obsoleto, não deve sobrar muito tempo, além do necessário para almoçar apressadamente.—  Ah-ah! — disse eu. — Desta vez, você se deu mal. Estou com um lapetope fantástico aqui.—  É mesmo? — respondeu ele. —  Pentium II?—  Xá ver aqui. Não, Pentium simples, Pentium mesmo. —   Ho-ho-ho-ho! Ha-ha-ha-ha! Hi-hi-hi hi!—  O que foi, desta vez?—Daqui a uns quatro meses, esse equipamento seu estará completamente obsoleto. Isso não se usa mais, rapaz, procure se orientar!—  Como não se usa mais? Todos os micreiros amigos meus têm um Pentium.—   Todos os amigos, não. Eu, por exemplo, tenho um Pentium II. Isso... Ninguém tem Pentium II!—  Eu tenho. Mas não é grande coisa, aconselho você a esperar mais um pouco.—  Como, não é grande coisa? Entre todo mundo que eu conheço é só você tem um e agora vem me dizer que não é grande coisa.—  Você é um bom escritor, pode crer, digo isto com sinceridade. Quantos megahertz você tem nessa sua nova curiosidade?—  132.—   Hah-ha-ha! Ho-ho-hihi!—  Vem aí o Merced, rapaz, o Pentium7, não tem computador no mercado que possa rodar os programas para ele.—  E como você fica ai, dando risada?—  Eu já estou com o meu encomendado, 500 megahertz, por ai, nada que você possa entender.—  Mas, mas…Acordei suando, felizmente era apenas um pesadelo. Meu amigo Zé Rubem, afinal de contas, estaria lá, como sempre, para me socorrer. Fui pressuroso ao telefone, depois de enfrentar mais senhas do que quem quer invadir os computadores do Pentágono.—  Alô, Zé! Estou de computador novo!—  Roda Windows 98? Tem chip Merced?—  Clic—fiz eu do outro lado.

288. JOÃO XIMENES BRAGA. Dia desses, na coluna “Gente boa”, do Joaquim, havia um pai indignado por sua filha não poder jogar bola no Parque Lage. “Uma menina correndo atrás da bola não incomoda ninguém”, dizia. Comando para Terra com uma notícia incrível: incomoda, sim. E muito. Uma menina correndo atrás da bola, em geral, grita. Voz de criança, em geral, é estridente. E ainda que seja uma bola de plástico leve, pode danificar as plantas. Seria precipitado concluir que este é mais um caso de pais que não sabem impor limites aos filhos. Provavelmente é apenas outra evidência da guerra travada no cotidiano da classe média: de um lado, os com-filhos (chamemo-los de CF), de outro, os sem-filhos (SF). Não são necessariamente antagonistas, mas duas espécies de animais de comportamento díspar obrigadas a partilhar o mesmo território. A questão anda na minha cabeça desde que presenciei um raro momento de sinceridade e respeito. Estava num almoço de domingo regado a chope e picanha. Ao lado da minha mesa boêmia, havia uma familiar, cheia de crianças. Elas incomodavam, sim, mas estávamos resignados. Até que, na mesa de cá, uma jornalista, casada, revelou sua intenção de procriar a médio prazo. Outra jornalista, também casada, disse:— Você sabe que quando isso acontecer a gente vai parar de falar com você, né? Ainda não acredita que CF e SF vivem em dimensões paralelas? Vejam a história de outra amiga que foi dormir pela primeira vez com um pai divorciado. Ela acorda na cama dele, ele não está mais lá. Chama pelo nome. Ouve a voz saindo do banheiro, cuja porta está aberta:— Estou fazendo cocô! A moça ficou indignada. Não bastava ele estar de porta aberta? Não bastava dar informação desnecessária sobre o que estava fazendo lá? Ele tinha que usar aquela palavra infantil?!— Ele não era um imbecil — vaticinava essa amiga à frente de um chope, dias depois. — Já tinha reparado o mesmo com amigas que tiveram filhos. Chafurdam em fraldas e acham que merda é a coisa mais natural do mundo. Vivem no limiar da coprofagia. Talvez este seja um caso extremo. O problema mais comum entre os CF e os SF é outro: um estranho mecanismo que é acionado logo após o parto e faz com que todo CF perca um neurônio específico da região do desconfiômetro. Justo aquele que informa ao cérebro que, sim, sua criança é a coisa mais fofa de toda a galáxia, mas isso não significa que o resto do mundo partilhe do seu entusiasmo. Não faria mal distribuir um folheto nas maternidades ensinando os CF a se comportar junto aos SF: Registros fotográficos de batizado, aniversários e, sobretudo, do parto, devem circular apenas entre pais e avós. Para um SF, leite é apenas algo que se pinga no café. Qualquer referência a leite produzido por animais outros que não vacas e cabras é terminantemente proibida. Sobretudo durante as refeições. Ninguém está realmente interessado se você anda dormindo pouco. Sabe aquele sorriso de solidariedade dos amigos SF ao ouvir suas queixas? É falso. Até porque eles também andam dormindo pouco, mas suas razões não são levadas em conta. E por que não um manual ensinando os SF a se portarem frente aos CF? Bem, porque os SF já são o lado mais fraco da corda. Quem admite não ter particular interesse por crianças é logo tachado de desalmado. Nem mesmo a mãe de uma delegada conseguiria reunir três equipes da Polícia se fosse incomodada por uma menina correndo atrás da bola. Pior, os CF são discriminados no trabalho. Outra amiga, que até pensa em ter filhos, mas ainda não tem, queixa-se que o lobby das mamães é mais poderoso que o dos ruralistas em Brasília. Uma festa na escola do filho é suficiente para que todas as mães se mobilizem para rearranjar a escala de plantão da coleguinha. Já as SF são vistas como gente que nunca têm nada de importante para fazer.— Só por que não tenho filho não posso tirar licença-maternidade? Isso é discriminação — reivindica ela. Vamos ver se eu entendi. O líder do Garotinho na Câmara consegue aprovar uma lei exigindo que boates instalem câmeras por conta dos pitboys. Não faz muito sentido, pois todo mundo sabe que, apesar de haver confusões dentro das boates, os casos mais graves de ação de pitboys são os de espancamento nas ruas ao redor delas, pois em seis anos de Garotinho a violência se generalizou na cidade. Então a prefeitura de César Maia vai atrás de 104 boates no fim de semana por causa da lei do líder do partido do Garotinho. Isso eu entendi. A lei passou, precisa ser cumprida. Aí fecham umas tantas boates por tecnicalidades burocráticas. Exemplo: o Fosfobox caiu na diferença entre alvará para bar com música ao vivo e alvará para casa de diversão. Ué? A prefeitura está dizendo que DJ não é músico? Ou que bar com violão não é diversão? É, não entendi. Agora? quem ganha com boates fechadas? O Rio não ganha. Com esse clima de “a noite é o inimigo”, está a transformar-se numa aberração: uma cidade turística onde diversão é mal-vista.

289. JOAQUIM MANUEL DE MACEDO. MAS ACONTECEM COISAS NESTE MUNDO! Mas acontecem coisas neste mundo!... O Tenente João Moreira, o Amotinado, o companheiro ou caudatário do Marquês de Lavradio em seus passeios noturnos, era casado e tinha em sua companhia uma cunhada, Josefa, chamada em família Zezé, viúva há um ano. A esposa do Amotinado era bonita e jovem; mas a Zezé, dois anos mais moça, mais bonita ainda. O Tenente morava à Rua do Padre Homem da Costa, um pouco acima da dos Ouvires, e sua casa de um só pavimento tinha além da porta de entrada uma outra em curto muro contíguo, a qual só se abria para o serviço dos escravos. Ora, no último ano do seu vice-reinado o Marquês, apanhado uma noite na Rua do Padre Homem da Costa por súbita e grossa chuva, aceitou o oferecimento do Tenente, recolheu-se à casa deste, e viu Leonor, ou Lolora, como o marido e parentes a chamavam, e a Zezé, sua irmã. O Marquês ficou encantado, e creio que só em lembrança dos serviços que devia ao Amotinado não pensou em apaixonar-se por ambas. Enamorado da Zezé, e castigando assim e sem idéia de castigo as vis cumplicidades do Tenente, fez chegar seus recados e proposições amorosas à linda viuvinha, conseguindo comovê-la com a ternura prestigiosa e com a sua singular beleza de Vice-Rei. Não sei como o Amotinado descobriu o namoro e os projetos do Marquês, e pôs-se alerta para impedir que o vice-real namorado penetrasse em sua casa. O cem vezes baixo e aviltado cúmplice de entradas noturnas em casas alheias não queria graças pesadas na sua: com outro qualquer teria logo posto fim à história, rompendo em escandaloso conflito do seu costume; como o vice-rei, porém, o caso era outro, e o Tenente sabia que a mais pequena cabeçada leva-lo-ia à forca ou pelo menos ao desterro, ficando não só Zezé mas também Lolora indefesas e à mercê do Marquês, e de outros depois dele. O Amotinado não fez bulha na família, guardou o seu segredo; e esperou, zelando vigilante e desconfiado a casa. O Marquês tinha, no entanto, chegado a sorrir a mais terna esperança: Uma noite o Tenente achou o Vice-Rei de cama em conseqüência de um resfriamento e em uso de sudoríficos. — Tenente, disse o Vice-Rei com voz trêmula, eu hoje não posso sair; vão rodar até à meia-noite, e vigia bem o Jogo da Bola e a cadeia. Amanhã às oito horas vem dar-me parte do que houver. O Amotinado saiu. Às onze horas da noite em ponto, o Marquês, disfarçado em oficial de marinha, parou na Rua do Padre Homem da Costa junto à porta do muro contíguo à casa do Tenente e bateu de leve cinco vezes. Uma voz comprimida e como ansiosa perguntou de dentro. — Quem é?... O Marquês respondeu sorrindo: — Sou o Tenente Amotinado. O portão abriu-se, e o Marquês recuou um passo, vendo o Tenente que trazia na mão uma lanterna, e disse logo: — Perdão, Sr. Vice-Rei! Eu sei que há dois Amotinados na cidade, mas nessa casa só entra sem pedir licença o Amotinado verdadeiro. E trancou a porta. O Marquês quase que se encolerizou, mas faltou-lhe, o quase, porque imediatamente desatando a rir voltou sobre seus passos e foi dormir e sonhar com a linda viuvinha Zezé. No outro dia recebeu às oito horas da manhã o Tenente, tratou-o com a maior bondade, riu-se, lembrando-lhe o desapontamento por que passara no portão, louvou-lhe o zelo pela honra da Zezé, e, a rir ainda mais, recomendou-lhe que tivesse cuidado com o falso Amotinado. Continuaram como dantes em noites determinadas os passeios noturnos do Marquês e do Tenente, este, porém, velava sempre em desconfiança daquele. Algumas semanas depois, em noite de falha de ronda, o Amotinado, ouvindo o toque das dez horas no sino de São Bento, correu para casa, porque era a essa hora que o Marquês costumava sair. Chegou, bateu à porta que Lolora veio abrir-lhe um pouco morosa; quando, porém, ia entrando, o Tenente sentiu leve ruído... voltou a chave, fingindo ter trancado a porta e esperou... Quase logo a porta do muro abriu-se, e por ela saiu um embuçado. O Tenente deu um salto em fúria de tigre, mas estacou, murmurando com os dentes cerrados:— Sr. Vice-Rei! ... — Aqui não há Vice-Rei, disse-lhe em voz baixa o Marquês; há dois homens; mas, se o achas melhor, há o falso Amotinado a sair pela porta do muro, quando o verdadeiro entra pela porta da casa. E vê lá! não ofendas aquela que protejo!... O embuçado afastou-se, deixando o Tenente em convulsão de raiva estéril. Um vice-rei deveras fazia medo. Mas às dez horas da noite ainda havia gente acordada na Rua do Padre Homem da Costa, e no dia seguinte toda a cidade sabia do caso das duas portas e dos dois Amotinados. Apareceram pasquins, compuseram-se cantigas e lundus, que eram as armas da censura popular do tempo, e alguns malévolos propuseram que a rua deixasse o antigo nome pelo do Amotinado. O tenente celebrizou-se por brigas, em que ele só espalhou e espancou grupo de dez ou doze maldizentes. E chegou então o novo Vice-Rei Luís de Vasconcelos. O Marquês, despedindo-se do Amotinado a quem pagara sempre liberalmente a exagerada e servil dedicação, deu-lhe larga bolsa cheia de ouro; este, porém, pediu-lhe com a[dor a patente de capitão. O Marquês respondeu-lhe: — Pobre Amotinado!... os postos do exército são do rei, que os confere a quem presta serviços a seu governo; os teus serviços foram prestados só à minha pessoa, e eu não posso pagá-lo senão com o meu dinheiro. Veio que uma bolsa foi pouco, e dou-te outra. E foi buscá-la, e deu-lhe, e o miserável aceitou-o. O povo chorou, vendo partir para Lisboa o Marquês de Lavradio, a quem todos perdoavam as travessuras amorosas pelo bom, sábio, justo e benemérito governo. A linda viuvinha Zezé ficou com seu dote que lhe aumentou bastante a boniteza para achar, como achou, marido de seu gosto e escolha. Mas a Rua do Padre Homem da Costa não podia mais conservar a denominação envelhecida. Continuava a teima dos zombeteiros e dos inimigos do tenente valentão e espalha brasas em querer chamá-la Rua do Amotinado.

290. JORGE AMADO. NEM A ROSA, NEM O CRAVO... As frases perdem seu sentido, as palavras perdem sua significação costumeira, como dizer das árvores e das flores, dos teus olhos e do mar, das canoas e do cais, das borboletas nas árvores, quando as crianças são assassinadas friamente pelos nazistas? Como falar da gratuita beleza dos campos e das cidades, quando as bestas soltas no mundo ainda destroem os campos e as cidades? Já viste um loiro trigal balançando ao vento? É das coisas mais belas do mundo, mas os hitleristas e seus cães danados destruíram os trigais e os povos morrem de fome. Como falar, então, da beleza, dessa beleza simples e pura da farinha e do pão, da água da fonte, do céu azul, do teu rosto na tarde? Não posso falar dessas coisas de todos os dias, dessas alegrias de todos os instantes. Porque elas estão perigando, todas elas, os trigais e o pão, a farinha e a água, o céu, o mar e teu rosto. Contra tudo que é a beleza cotidiana do homem, o nazifascismo se levantou, monstro medieval de torpe visão, de ávido apetite assassino. Outros que falem, se quiserem, das árvores nas tardes agrestes, das rosas em coloridos variados, das flores simples e dos versos mais belos e mais tristes. Outros que falem as grandes palavras de amor para a bem-amada, outros que digam dos crepúsculos e das noites de estrelas. Não tenho palavras, não tenho frases, vejo as árvores, os pássaros e a tarde, vejo teus olhos, vejo o crepúsculo bordando a cidade. Mas sobre todos esses quadros bóiam cadáveres de crianças que os nazis mataram, ao canto dos pássaros se mesclam os gritos dos velhos torturados nos campos de concentração, nos crepúsculos se fundem madrugadas de reféns fuzilados. E, quando a paisagem lembra o campo, o que eu vejo são os trigais destruídos ao passo das bestas hitleristas, os trigais que alimentavam antes as populações livres. Sobre toda a beleza paira a sombra da escravidão. É como u'a nuvem inesperada num céu azul e límpido. Como então encontrar palavras inocentes, doces palavras cariciosas, versos suaves e tristes? Perdi o sentido destas palavras, destas frases, elas me soam como uma traição neste momento. Mas sei todas as palavras de ódio, do ódio mais profundo e mais mortal. Eles matam crianças e essa é a sua maneira de brincar o mais inocente dos brinquedos. Eles desonram a beleza das mulheres nos leitos imundos e essa é a sua maneira mais romântica de amar. Eles torturam os homens nos campos de concentração e essa é a sua maneira mais simples de construir o mundo. Eles invadiram as pátrias, escravizaram os povos, e esse é o ideal que levam no coração de lama. Como então ficar de olhos fechados para tudo isto e falar, com as palavras de sempre, com as frases de ontem, sobre a paisagem e os pássaros, a tarde e os teus olhos? É impossível porque os monstros estão sobre o mundo soltos e vorazes, a boca escorrendo sangue, os olhos amarelos, na ambição de escravizar. Os monstros pardos, os monstros negros e os monstros verdes. Mas eu sei todas as palavras de ódio e essas, sim, têm um significado neste momento. Houve um dia em que eu falei do amor e encontrei para ele os mais doces vocábulos, as frases mais trabalhadas. Hoje só 0 ódio pode fazer com que o amor perdure sobre o mundo. Só o ódio ao fascismo, mas um ódio mortal, um ódio sem perdão, um ódio que venha do coração e que nos tome todo, que se faça dono de todas as nossas palavras, que nos impeça de ver qualquer espetáculo - desde o crepúsculo aos olhos da amada - sem que junto a ele vejamos o perigo que os cerca. Jamais as tardes seriam doces e jamais as madrugadas seriam de esperança. Jamais os livros diriam coisas belas, nunca mais seria escrito um verso de amor. Sobre toda a beleza do mundo, sobre a farinha e o pão, sobre a pura água da fonte e sobre o mar, sobre teus olhos também, se debruçaria a desonra que é o nazifascismo, se eles tivessem conseguido dominar o mundo. Não restaria nenhuma parcela de beleza, a mais mínima. Amanhã saberei de novo palavras doces e frases cariciosas. Hoje só sei palavras de ódio, palavras de morte. Não encontrarás um cravo ou uma rosa, uma flor na minha literatura. Mas encontrarás um punhal ou um fuzil, encontrarás uma arma contra os inimigos da beleza, contra aqueles que amam as trevas e a desgraça, a lama e os esgotos, contra esses restos de podridão que sonharam esmagar a poesia, o amor e a liberdade!

291. JORGE LUIS BORGES. UMA ORAÇÃO. Minha boca pronunciou e pronunciará, milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir. Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo. Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios. O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão revelados. Quero morrer completamente; quero morrer com este companheiro, meu corpo.

292. JORGE LUIS BORGES. A LOTERIA DA BABILÔNIA. Como todos os homens da Babilônia, fui pro-cônsul; como todos, escravo; também conheci a onipotência, o opróbrio, os cárceres. Olhem: à minha mão direita falta-lhe o indicador. Olhem: por este rasgão da capa vê-se no meu estômago uma tatuagem vermelha: é o segundo símbolo, Beth. Esta letra, nas noites de lua cheia, confere-me poder sobre os homens cuja marca é Ghimel, mas sujeita-me aos de Alep, que nas noites sem lua devem obediência aos de Ghimel. No crepúsculo do amanhecer, num sótão, jugulei ante uma pedra negra touros sagrados. Durante um ano da Lua, fui declarado invisível: gritava e não me respondiam, roubava o pão e não me decapitavam. Conheci o que ignoram os gregos: a incerteza. Numa câmara de bronze, diante do lenço silencioso do estrangulador, a esperança foi-me fiel; no rio dos deleites, o pânico. Heraclides Pôntico conta com admiração que Pitágoras se lembrava de ter sido Pirro e antes Euforbo e antes ainda um outro mortal; para recordar vicissitudes análogas não preciso recorrer à morte, nem mesmo à impostura. Devo essa variedade quase atroz a uma instituição que outras repúblicas desconhecem ou que nelas trabalha de forma imperfeita e secreta: a loteria. Não indaguei a sua história; sei que os magos não conseguem por-se de acordo; sei dos seus poderosos propósitos; o que pode saber da Lua o homem não versado em astrologia. Sou de um país vertiginoso onde a loteria é a parte principal da realidade: até o dia de hoje, pensei tão pouco nela como na conduta dos deuses indecifráveis ou do meu coração. Agora longe da Babilônia e dos seus estimados costumes, penso com certo espanto na loteria e nas conjecturas blasfemas que ao crepúsculo murmuram os homens velados. Meu pai contava que antigamente — questão de séculos, de anos? — a loteria na Babilônia era um jogo de caráter plebeu. Referia (ignoro se com verdade) que os barbeiros trocavam por moedas de cobre, retângulos de osso ou de pergaminho adornados de símbolos. Em pleno dia verificava-se um sorteio: os contemplados recebiam, sem outra confirmação da sorte, moedas cunhadas de prata. O procedimento era elementar, como os senhores vêem. Naturalmente, essas "loterias" fracassaram. A sua virtude moral era nula. Não se dirigiam a todas as faculdades do homem: unicamente à sua esperança. Diante da indiferença pública, os mercadores que fundaram essas loterias venais começaram a perder dinheiro. Alguém esboçou uma reforma: a intercalação de alguns números adversos no censo dos números favoráveis. Mediante essa reforma, os compradores de retângulos numerados expunham-se ao duplo risco de ganhar uma soma e de pagar uma multa, às vezes vultosa. Esse leve perigo (em cada trinta números favoráveis havia um número aziago) despertou, como é natural, o interesse do público. Os babilônios entregaram-se ao jogo. O que não adquiria sortes era considerado um pusilânime, um apoucado. Com o tempo esse desdém justificado duplicou-se. Eram desprezados aqueles que não jogavam, mas também o eram os que perdiam e abonavam a multa. A Companhia (assim começou então a ser chamada) teve que velar pelos ganhadores, que não podiam cobrar os prêmios se nas caixas faltasse a importância quase total das multas. Propôs uma ação judicial contra os perdedores: o juiz condenou-os a pagar a multa original e as custas, ou a uns dias de prisão. Todos optaram pelo cárcere, para defraudar a Companhia. Dessa bravata de uns poucos nasce todo o poder da Companhia: o seu valor eclesiástico, metafísico. Pouco depois, as informações dos sorteios omitiram as referências de multas e limitaram-se a publicar os dias de prisão que designava cada número adverso. Esse laconismo, quase inadvertido a seu tempo, foi de capital importância. Foi o primeiro aparecimento, na loteria, de elementos não pecuniários. O êxito foi grande. Instada pelos jogadores, a Companhia viu-se obrigada a aumentar os números adversos. Ninguém ignora que o povo da Babilônia é devotíssimo à lógica, e ainda à simetria. Era incoerente que se computassem os números ditosos em moedas redondas e os infaustos em dias e noites de cárcere. Alguns moralistas raciocinaram que a posse das moedas não determina sempre a felicidade e que outras formas de ventura são talvez mais diretas. Inquietações diversas propagavam-se nos bairros desfavorecidos. Os membros do colégio sacerdotal multiplicavam as apostas e gozavam de todas as vicissitudes do terror e da esperança; os pobres (com inveja razoável ou inevitável) sabiam-se excluídos desse vaivém, notoriamente delicioso. O justo desejo de que todos, pobres e ricos, participassem por igual na loteria, inspirou uma indignada agitação, cuja memória os anos não apagaram. Alguns obstinados não compreenderam (ou simularam não compreender) que se tratava de uma ordem nova, de uma necessária etapa histórica... Um escravo roubou um bilhete carmesim, que no sorteio lhe deu direito a que lhe queimassem a língua. O código capitulava essa mesma pena para o que roubava um bilhete. Alguns babilônios argumentavam que merecia o ferro candente, na sua qualidade de ladrão; outros, magnânimos, que se devia condená-lo ao carrasco porque assim o havia determinado o azar... Houve distúrbios, houve efusões lamentáveis de sangue; mas a gente babilônica finalmente impôs a sua vontade, contra a oposição dos ricos. O povo conseguiu plenamente os seus generosos fins. Em primeiro lugar, conseguiu que a Companhia aceitasse a soma do poder público. (Essa unificação era indispensável, dada a vastidão e complexidade das novas operações.) Em segunda etapa, conseguiu que a loteria fosse secreta, gratuita e geral. Ficou abolida a venda mercenária de sortes. Iniciado nos mistérios de Bel, todo homem livre participava automaticamente dos sorteios sagrados, que se efetuavam nos labirintos do deus de sessenta em sessenta noites e que demarcavam o seu destino até o próximo exercício. As conseqüências eram incalculáveis. Uma jogada feliz podia motivar-lhe a elevação ao concílio dos magos ou a detenção de um inimigo (conhecido ou íntimo), ou a encontrar, nas pacíficas trevas do quarto, a mulher que começava a inquietá-lo ou que não esperava rever; uma jogada adversa: a mutilação, a infâmia, a morte. Às vezes, um fato apenas — o vil assassinato de C, a apoteose misteriosa de B — era a solução genial de trinta ou quarenta sorteios. Combinar as jogadas era difícil; mas convém lembrar que os indivíduos da Companhia eram ( e são) todo-poderosos e astutos. Em muitos casos, teria diminuído a sua virtude o conhecimento de que certas felicidades eram simples fábrica do acaso; para frustrar esse inconveniente, os agentes da Companhia usavam das sugestões e da magia. Os seus passos e os seus manejos eram secretos. Para indagar as íntimas esperanças e os íntimos terrores de cada um, dispunham de astrólogos e de espiões. Havia certos leões de pedra, havia uma latrina sagrada chamada Qaphqa, havia algumas fendas no poeirento aqueduto que, conforme a opinião geral, levavam à Companhia; as pessoas malignas ou benévolas depositavam delações nesses sítios. Um arquivo alfabético recolhia essas notícias de veracidade variável. Por incrível que pareça, não faltavam murmúrios. A Companhia, com a sua habitual discrição, não replicou diretamente. Preferiu rabiscar nos escombros de uma fábrica de máscaras um argumento breve, que agora figura nas escrituras sagradas. Essa peça doutrinal observava que a loteria é uma interpolação da casualidade na ordem do mundo e que aceitar erros não é contradizer o acaso: é confirmá-lo. Salientava, da mesma maneira, que esses leões e esse recipiente sagrado, ainda que não desautorizados pela Companhia (que não renunciava ao direito de os consultar), funcionavam sem garantia oficial. Essa declaração apaziguou os desassossegos públicos. Também produziu outros efeitos, talvez não previstos pelo autor. Modificou profundamente o espírito e as operações da Companhia. Pouco tempo me resta; avisam-nos que o navio está para zarpar; mas tratarei de os explicar. Por inverossímil que seja, ninguém tentara até então uma teoria geral dos jogos. O babilônio é pouco especulativo. Acata os ditames do acaso, entrega-lhes a vida, a esperança, o terror pânico, mas não lhe ocorre investigar as suas leis labirínticas, nem as esferas giratórias que o revelam. Não obstante, a declaração oficiosa que mencionei instigou muitas discussões de caráter jurídico-matemático. De uma delas nasceu a seguinte conjectura: Se a loteria é uma intensificação do acaso, uma periódica infusão do caos no cosmos, não conviria que a casualidade interviesse em todas as fases do sorteio e não apenas numa? Não é irrisório que o acaso dite a morte de alguém e que as circunstâncias dessa morte — a reserva, a publicidade, o prazo de uma hora ou de um século — não estejam subordinadas ao acaso? Esses escrúpulo tão justos provocaram, por fim, uma reforma considerável, cujas complexidades (agravadas por um exercício de séculos) só as entendem alguns especialistas, mas que intentarei resumir, embora de modo simbólico. Imaginemos um primeiro sorteio que decrete a morte de um homem. Para o seu cumprimento procede-se a um outro sorteio, que propõe (digamos) nove executores possíveis. Desses executores quatro podem iniciar um terceiro sorteio que dirá o nome do carrasco, dois podem substituir a ordem infeliz por uma ordem ditosa (o encontro de um tesouro, digamos), outro exacerbará (isto é, a tornará infame ou a enriquecerá de torturas), outros podem negar-se a cumpri-la... Tal é o esquema simbólico. Na realidade o número de sorteios é infinito. Nenhuma decisão é final, todas se ramificam noutras. Os ignorantes supõem que infinitos sorteios requerem um tempo infinito; em verdade, basta que o tempo seja infinitamente subdivisível, como o ensina a famosa parábola do Certame com a Tartaruga. Essa infinitude condiz admiravelmente com os sinuosos números do Acaso e com o Arquétipo Celestial da Loteria, que os platônicos adoram... Um eco disforme dos nossos ritos parece ter reboado no Tibre: Ello Lampridio, na Vida de Antonino Heliogábalo, refere que este imperador escrevia em conchas as sortes que destinava aos convidados, de forma que um recebia dez libras de ouro, e outro, dez moscas, dez leirões, dez ossos. É lícito lembrar que Heliogábalo foi educado na Ásia Menor, entre os sacerdotes do deus epônimo. Também há sorteios impessoais, de objetivo indefinido; um ordena que se lance às águas do Eufrates uma safira de Taprobana; outro, que do alto de uma torre se solte um pássaro, outro, que secularmente se retire (ou se acrescente) um grão de areia aos inumeráveis que há na praia. As conseqüências são, às vezes, terríveis. Sob o influxo benfeitor da Companhia, os nossos costumes estão saturados de acaso. O comprador de uma dúzia de ânforas de vinho damasceno não estranhará se uma delas contiver um talismã ou uma víbora; o escrivão que redige um contrato não deixa quase nunca de introduzir algum dado errôneo; eu próprio, neste relato apressado, falseei certo esplendor, certa atrocidade. Talvez, também, uma misteriosa monotonia... Os nossos historiadores, que são os mais perspicazes da orbe, inventaram um método para corrigir o acaso; é de notar que as operações desse método são (em geral) fidedignas; embora, naturalmente, não se divulguem sem alguma dose de engano. Além disso, nada tão contaminado de ficção como a história da Companhia... Um documento paleográfico, exumado num templo, pode ser obra de um sorteio de ontem ou de um sorteio secular. Não se publica um livro sem qualquer divergência em cada um dos exemplares. Os escribas prestam juramento secreto de omitir, de intercalar, de alterar. Também se exerce a mentira indireta. A Companhia, com modéstia divina, evita toda publicidade. Os seus agentes, como é óbvio, são secretos; as ordens que distribui continuamente (talvez incessantemente) não diferem das que prodigalizam os impostores. Para mais, quem poderá gabar-se de ser um simples impostor? O bêbado que improvisa um mandato absurdo, o sonhador que desperta de súbito e estrangula a mulher a seu lado, não executam, porventura, uma secreta decisão da Companhia? Esse funcionamento silencioso, comparável ao de Deus, provoca toda espécie de conjecturas. Uma insinua abominavelmente que há séculos não existe a Companhia e que a sacra desordem das nossas vidas é puramente hereditária, tradicional; outra julga-a eterna e ensina que perdurará até a última noite, quando o último deus aniquilar o mundo. Outra afiança que a Companhia é onipotente, mas que influi somente em coisas minúsculas: no grito de um pássaro, nos matizes da ferrugem e do pó, nos entressonhos da madrugada. Outra, por boca de heresiarcas mascarados, que nunca existiu nem existirá. Outra, não menos vil, argumenta que é indiferente afirmar ou negar a realidade da tenebrosa corporação, porque a Babilônia não é outra coisa senão um infinito jogo de acasos.

293. JOSÉ DE ALENCAR. DESCULPAI-ME! Vou contar-vos uma coisa que me sucedeu ontem: é um dos episódios mais interessantes de minha vida de escritor. Aposto que nunca vistes escrever sem tinta! Pois lede estas primeiras páginas, compreendereis como aquele milagre é possível no século atual, no século do progresso. Eis o caso. Foi ontem, por volta das dez horas. Estava em casa de um amigo, e aí mesmo dispunha-me a escrever a minha revista. Sentei-me à mesa, e, com todo o desplante de um homem, que não sabe o que tem a dizer, ia dar começo ao meu folhetim, quando... Talvez não acrediteis. Tomei a pena e levei-a ao tinteiro; mas ela estremeceu toda, coitadinha, e saiu intacta e pura. Não trazia nem uma niilidade de tinta. Fiz nova experiência, e foi debalde. O caso tornava-se grave, e já ia saindo do meu sério, quando a pena deu um passo, creio que temperou a garganta, e pediu a palavra. Estava perdido! Tinha uma pena oradora, tinha discussões parlamentares, discursos de cinco e seis horas. Que elementos para não trabalhar! Nada; era preciso por um termo a semelhante abuso, e tomar uma resolução pronta e imediata. Comecei por bater o pé, e passar uma repreensão severa nos meus dois empregados, que assim se esqueciam dos seus deveres. O meio era bom, e sortiu o desejado efeito como sempre. Entramos em explicações; e no fim de contas soube a causa dessa dissidência. A pena se tinha declarado em oposição aberta; o tinteiro era ministerial quand même. E ambos tão decididos nas suas opiniões, que não havia meio de fazê-los voltar atrás. Era impossível, pois, evitar uma discussão; resignei-me a ouvir os prós e os contras deste meu pequeno parlamento. A pena do meu amigo fez um discurso muito desconchavado, a falar a verdade. Por mais que lho tenha dito, não quer acreditar que a oratória não é o seu forte; tirando-a da mesa e do papel não vale nada. Enquanto, porém, ela falava, o tinteiro voltava-lhe as costas de uma maneira desdenhosa, o que não achei bonito. Estive quase chamando-o à ordem; mas não me animei. Chegou finalmente a vez de falar ele, e defendeu-se dizendo que todas as penas faziam oposição aos tinteiros logo que estes lhes recusavam o elemento para trabalhar, e não lhes davam a tinta necessária para escrever, sem a qual ficavam a seco.— C'est trop fort! gritou a pena do meu amigo, que gosta de falar em francês. Quebro os meus bicos antes do que receber uma só gota de tinta em semelhante tinteiro. E, se o disse, melhor o fez. Não houve forças que a fizessem molhar os bicos no tinteiro e escrever uma só palavra com aquela tinta. Atirei-a de lado, abri a gaveta, e tomei um maço de penas que aí havia de reserva. Mesma coisa: todas elas tinham ouvido, todas se julgavam comprometidas a sustentar a dignidade de sua classe. Por fim, perdi a paciência, zanguei-me, e, como já era mais de meio-dia, larguei-me a toda pressa para a casa, a fim de escrever alguma coisa que pudesse fazer as vezes de um folhetim. Mas uma nova decepção me esperava. A minha pena, de ordinário tão alegre e tão travessa, a minha pena, que é sempre a primeira a lançar-se ao meu encontro, a sorrir-me a dar-me os bons dias, estava toda amuada, e quase escondida entre um maço de papéis. Quanto ao meu tinteiro, o mais pacato e o mais prudente dos tinteiros do mundo, este tinha um certo ar político, um desplante de chefe de maioria, que me gelou de espanto. Alguma coisa se tinha passado na minha ausência, algum fato desconhecido que viera perturbar a harmonia e a feliz inteligência que existia entre amigos de tanto tempo. Ora, é preciso que saibam que há completa disparidade entre esses dois companheiros fiéis das minhas vigílias e dos meus trabalhos. O meu tinteiro é gordo e barrigudo como um capitão-mor de província. A minha pena é esbelta e delicada como uma mocinha de quinze anos. Um é sisudo, merencório e tristonho; a outra é descuidosa, alegre, e às vezes tão travessa que me vejo obrigado a ralhar com ela para fazê-la ter modo. Entretanto, apesar desta diferença de gênios, combinavam-se e viviam perfeitamente. Tinha-os unido o ano passado, e a lua de mel ainda durava. Eram o exemplo dos bem casados. Façam, portanto, idéia do meu desapontamento quando comecei a perceber que havia entre eles o que quer que fosse. Era nada menos do que a repetição da primeira cena. Felizmente não veio acompanhada de discussões parlamentares, mesmo porque na minha mesa de escrever não admito o sistema constitucional. É o governo absoluto puro. Algumas vezes concedo o direito de petição; no mais, é justiça a Salomão, pronta e imediata. A minha pena, como as penas do meu amigo, como todas as penas de brio e pundonor, tinha declarado guerra aos tinteiros do mundo. Não havia, pois, que hesitar. Lembrei-me que ela me tinha sido confiada há coisa de nove meses pura e cândida, e que assim a devia restituir. Lembrei-me de muitas outras coisas, e tomei uma resolução inabalável. Atirei o meu tinteiro pela janela fora. A pena saltou, de tão alegre e contentinha que ficou. Fez-me mil carícias, sorriu, coqueteou, e por fim, fazendo-me um gestozinho de Charton no Barbeiro de Sevilha, um gestozinho que me mandava esperar, lançou-se sobre o papel e começou a correr. Escrevia sem tinta. Quero dizer, desenhava; esgrafiava sobre o papel quadros e cenas que eu me recordava ter visto há pouco tempo; debuxava flores, céus, estrelas, nuvens, sorrisos de mulheres, formas de anjos, tudo de envolta e no meio de uma confusão graciosa. E eu nem me lembrei mais de escrever, e fiquei horas esquecidas a olhar esses quadros, que decerto não conseguirei pintar-vos. Recordo-me de um. Passava-se na segunda-feira, na baía de Botafogo. A uma hora o tempo fez umas caretas, como para meter susto aos medrosos. Daí a alguns momentos o sol brilhou, o azul do céu iluminou-se, e uma brisa ligeira correu com os vapores do temporal que ainda toldavam a atmosfera.

294. JOSÉ CÂNDIDO DE CARVALHO. A VERDADE TAMBÉM APANHA. Quando chegou em Pipeiras o delegado Nonô Pestana foi aquele zunzum, aquele mal-estar. O delegado veio arrastando enorme palmatória. Era com muito orgulho que Nonô dizia mostrando o instrumento de trabalho: — Comigo não tem esse negócio de confissão espontânea coisa nenhuma! Comigo todo mundo entra no instrumental. É o único jeito da autoridade saber se o sujeito é criminoso ou inocente. E bem Nonô não havia arregaçado as mangas apareceu um retinto dizendo ter dado morte por esquartejamento a um tal de Chico Cabeção. Pelo que confessou estar arrependido e pronto a purgar, nas malhas da lei, o crime de sua lavra: — Matei e enterrei Chico Cabeção no quintal de minha casa. De fato, o esquartejado lá estava mortinho da silva de nunca mais voltar a ser Chico Cabeção. Foi quando o delegado, dentro dos seus princípios justiceiros, passou o confessante por uma palmatória braba e esperta. E o sujeitinho tanto apanhou que acabou desconfessando tudo. Jurou de mãos postas que era mentiroso e inventeiro. Que outro tinha esquartejado Chico Cabeção. E Nonô orgulhoso: — É o que eu digo e provo. Não tem como uma palmatória para o suspeito contar a verdade. Se não ministro esse corretivo, o delegado Nonô Pestana, que sou eu, mandava para um cadeia de trinta anos um pobre inocente. E soltou o homem.

295. JOSÉ CÂNDIDO DE CARVALHO. CONTOS CURTOS. ADEUS TARDES FAGUEIRAS À SOMBRA DAS LARANJEIRAS DE CASEMIRO DE ABREU. Alcimaco Azambuja, dono de muito boi e muito voto em Pirapora, tendo de resolver umas coisas e loisas com o governo, rebocou Zizinho Pinto para terras e mares do Rio de Janeiro. E, na porta do Palácio do Catete, que naqueles dias comandava a vida do Brasil, falou para o compadre Zizinho: — Vou ver uns papéis que estão entalados nas gavetas do governo. Venha comigo. Zizinho recusou: — Compadre, careço de competência para pisar chão tão mimoso. Vou quedar do lado de fora, assuntando compadre. O compadre sumiu pela larga porta de entrada enquanto Zizinho, instalado num bom cigarro de palha, ficava vendo aquele entrar e sair de gente em formato de formiga de correição. Alcimaco, depois de desencravar seus papéis, voltou e quis saber a opinião de Zizinho Pinto: — Compadre, gostou do Catete? Coisa assim não tem em Pirapora. E Zizinho de Pirapora: — Eta, compadre, lugarzinho bom de especial para um varejo, para um comercinho de cachaça e rapadura! E  mais não disse nem lhe foi perguntado. Em boca fechada bem-te-vi não faz ninho. Campos de Melo passou todos os anos de sua vereança sem dar uma palavra. Era o boca-de-siri da câmara municipal de Cuité. Até que, uma tarde, ergueu o busto, como quem ia falar. O presidente da Mesa, mais do que depressa, disse: — Tem a palavra o nobre vereador. Então, em meio do grande silêncio, o grande mudo falou. — Peço licença para fechar a janela, pois estou constipado.

296. JOSÉ CÂNDIDO DE CARVALHO. TATÃO, O ESQUARTEJADOR. Era domingo que pita cachimbo e Tatão Chaves aproveitou para pedir Lili Mercedes, mestra de letras, em casamento. A cidadezinha de Monte Alegre, sabedora da novidade, botou a cabeça de fora para presenciar Tatão em cima das botinas de lustro e por baixo dos panos engomados. Para avivar a coragem, Tatão bebeu, no Bar da Ponte, meio dedo de licor, coisinha de aligeirar a língua e aromar a boca. Como achasse o licor educado demais, mandou cruzar a bebidinha com cachaça de fundo de garrafa. E recomendativo: — Daquele parati mimoso que até parece flor de jardim. De talagada em talagada Tatão perdeu a mira da cabeça. Embaralhou o pedido de casamento com negócio de disco-voador, imposto de renda e busto de moça. A essa altura, gravata desabada e camisa fora da calça, Tatão preveniu: — Sou o maior dedilhador dos desabotoados das meninas já aparecido em Monte Alegre. Sou Tatão Chupeta! Gritava que era monarquista, que era a favor da escravidão e que o prefeito de Monte Alegre não passava de uma perfeita e acabada mula-sem-cabeça. E para arrematar, ganhando a porta do Bar da Ponte, garantiu: — Só queria que aparecesse neste justo instante um boi cornudo para Tatão esfarinhar o chifre do sem-vergonha a bofetada! Nisso, um boizinho desgarrado apontou na esquina da Rua do Comércio. Tatão cumprindo a promessa, armou o maior soco do mundo. E atrás do soco saiu Tatão, atravessou a Praça 13 de Maio, entrou no Mercado Municipal, desmontou duas barracas, esfarelou um comício de tomates e só parou no Açougue Primavera. E meio adernado sobre um quarto de boi que sangrava em cima do balcão.

297. JOSÉ CÂNDIDO DE CARVALHO. PORQUE LULU BERGANTIM NÃO ATRAVESSOU O RUBICON. Lulu Bergantim veio de longe, fez dois discursos, explicou por que não atravessou o Rubicon, coisa que ninguém entendeu, expediu dois socos na Tomada da Bastilha, o que também ninguém entendeu, entrou na política e foi eleito na ponta dos votos de Curralzinho Novo. No dia da posse, depois dos dobrados da Banda Carlos Gomes e dos versos atirados no rosto de Lulu Bergantim pela professora Andrelina Tupinambá, o novo prefeito de Curralzinho sacou do paletó na vista de todo mundo, arregaçou as mangas e disse: — Já falaram, já comeram biscoitinhos de araruta e licor de jenipapo. Agora é trabalhar! E sem mais aquela, atravessou a sala da posse, ganhou a porta e caiu de enxada nos matos que infestavam a Rua do Cais. O povo, de boca aberta, não lembrava em cem anos de ter acontecido um prefeito desse porte. Cajuca Viana, presidente da Câmara de Vereadores, para não ficar por baixo, pegou também no instrumento e foi concorrer com Lulu Bergantim nos trabalhos de limpeza. Com pouco mais, toda a cidade de Curralzinho estava no pau da enxada. Era um enxadar de possessos! Até a professora Andrelina Tupinambá, de óculos, entrou no serviço de faxina. E assim, de limpeza em limpeza, as ruas de Curralzinho ficaram novinhas em folha, saltando na ponta das pedras. E uma tarde, de brocha na mão, Lulu caiu em trabalho de caiação. Era assobiando "O teu-cabelo-não-nega, mulata, porque-és-mulata-na-cor" que o ilustre sujeito público comandava as brochas de sua jurisdição. Lambuzada de cal, Curralzinho pulava nos sapatos, branquinha mais que asa de anjo. E de melhoria em melhoria, a cidade foi andando na frente dos safanões de Lulu Bergantim. Às vezes, na sacada do casarão da prefeitura, Lulu ameaçava: — Ou vai ou racha! E uma noite, trepado no coreto da Praça das Acácias, gritou: — Agora a gente vai fazer serviço de tatu! O povo todo, uma picareta só, começou a esburacar ruas e becos de modo a deixar passar encanamento de água. Em um quarto de ano Curralzinho já gozava, como dizia cheio de vírgulas e crases o Sentinela Municipal do "salutar benefício do chamado precioso líquido". Por força de uma proposta de Cazuza Militão, dentista prático e grão-mestre da Loja Maçônica José Bonifácio, fizeram correr o pires da subscrição de modo a montar Lulu Bergantim em forma de estátua, na Praça das Acácias. E andava o bronze no meio do trabalho de fundição quando Lulu Bergantim, de repente, resolveu deixar o ofício de prefeito. Correu todo mundo com pedidos e apelações. O promotor público Belinho Santos fez discurso. E discurso fez, com a faixa de provedor-mor da Santa Casa no peito, o Major Penelão de Aguiar. E Lulu firme: — Não abro mão! Vou embora para Ponte Nova. Já remeti telegrama avisativo de minha chegada. Em verdade Lulu Bergantim não foi por conta própria. Vieram buscar Lulu em viagem especial, uma vez que era fugido do Hospício Santa Isabel de Inhangapi de Lavras. Na despedida de Lulu Bergantim pingava tristeza dos olhos e dos telhados de Curralzinho Novo. E ao dobrar a última rua da cidade, estendeu o braço e afirmou: — Por essas e por outras é que não atravessei o Rubicon! Lulu foi embora embarcado em nunca-mais. Sua estátua ficou no melhor pedestal da Praça das Acácias. Lulu em mangas de camisa, de enxada na mão. Para sempre, Lulu Bergantim.

298. JOSÉ CARLOS OLIVEIRA. AQUELE NATAL. No dia 24 de dezembro, há dez anos (tinha eu dezoito), preparei-me tranqüilamente para passar o Natal em solidão. Chegara ao Rio em setembro. Depois do período natural de dificuldades que todo provinciano atravessa, começara a trabalhar numa revista. E agora estava ali, na redação, terminando de escrever uma reportagem e pensando nas ruas festivas, onde multidões faziam compras e em como seria bela a noite para os que tinham parentes e amigos. O crítico cinematográfico da revista aproximou-se de mim e disse: "Olha eu sei que você não conhece ninguém no Rio, de modo que quero convidá-lo para passar a noite no apartamento de uma amiga minha. Ela vai dar uma festa para gente assim como você." Tomei nota do endereço e ele disse: "Ao chegar, é só dizer que você é o José Carlos, que ela já está avisada." Às nove horas da noite, rumei para lá. Os sonhos mais ardentes me dominavam. A moça dona da casa era linda e passaríamos a noite dançando colados! Coisas assim; eu ia andando cheio de esperança. Diante do apartamento, toquei a campainha e então fluíram segundos de espera ansiosa. Abriu-se a porta: uma jovem linda, de vestido vermelho, surgiu à minha frente. Atrás dela vi um corredor, e depois uma sala onde outras moças estavam sentadas, uma das quais conversava com um rapaz. Da vitrola vinha uma canção tristonha. — Que é que o senhor deseja? — perguntou a moça. — Eu sou o José Carlos. Ao ouvir essas palavras, ela me olhou com expressão indefinível: espanto, ou esquecimento, ou então não ouvira direito, o certo é que ficou olhando fixamente o provinciano durante um minuto bastante penoso. Finalmente, falou: — José Carlos ainda não chegou. Com licença — e bateu a porta na minha cara. Meia hora depois, outra vez na rua, eu ainda não sabia se devia rir ou chorar. Fui andando sem rumo, e afinal entrei no Alcazar, sentei, pedi cuba-libre e comecei a encher a cara.

299. JOSÉ CARLOS OLIVEIRA. PSICOLOGIA DO TORCEDOR. Acompanhei o jogo ao lado de meu primo Robertinho. Encostado num carro, em frente ao Café e Bar Silva Cruz (Posto 6), Robertinho ouvia a partida num rádio de pilha, fazendo comentários que achei quase tão interessantes quanto a dramática luta da seleção brasileira contra a do Peru: — Zero a zero. O negócio não está mole. Meu Deus, o Aimoré insiste em botar o Tostão jogando pelo lado direito: Meu Deus, meu Deus... Sadi, segura o homem, Sadi... Segura o homem, Sadi. Segura esse tal de Bailon, Sadi! Ai meu Deus, é gol. Peru, 1 a zero. — Cláudio não tem tamanho para ser goleiro de seleção. Ele pegou a bola e largou. Pegar a bola e largar, veja só. E Gérson está jogando muito recuado. Estamos fritos. Ai Jesus, lá vão eles. Segura os homens, Joel! Não me faça uma coisa dessas Brito! Pronto... É gol... E agora? Peru 2, Brasil zero. — O Rivelino não está jogando bulhufas. Os homens estão cansados com essa excursão inteiramente maluca. Eles jogam de dia e viajam de noite; jogam de noite e viajam de dia. Assim não vai. Esse negócio de ir fazer festa para os crioulos em Moçambique não tem o menor sentido. Se queremos mostrar o nosso amor pelo Dr. Oliveira Salazar, o certo é a gente jogar lá mesmo em Lisboa. O pessoal aqui dos botequins ficaria feliz da mesma forma. Mas essa de Moçambique, essa não é normal. Não é normal; compreende? Anda, Natal, manda bala! Manda bala, Natal! E gol. Peru 2, Brasil 1. — Pelo menos de zero não vamos perder: Esse Aimoré está completamente por fora, com suas táticas superadas. A derrota até que vai ser boa, em certo sentido, porque a gente poderá exigir que Zagalo seja o técnico da seleção. Olha lá que mulher boa esta vindo para cá. Aquela de mini-saia em frente ao Cinema Caruso. Meu Deus, mini-saia com meias três-quartos eu não agüento. Essa moda não é normal. Palavra de honra que isso não é normal: Ai; Lá vão eles. Segura os homens, Sadi! Não posso crer: é gol. Gol dos peruanos. Peru 3, Brasil 1. — Você viu a pelota que a garota me deu? O papai aqui está agradando mais do que Coca-Cola em festa de criança. O juiz marcou. Gérson vai cobrar. Dá-lhe, Gérson. Ah, não. Essa não: Chuta em gol, meu Deus. Manda bala! Gérson deu a Roberto, essa não... E gol! É gol! Peru 3, Brasil 2. — Jairzinho está combinando bem com Roberto. Tostão já deu no pé. Coitado, um grande jogador tendo que se disciplinar para obedecer à tática do Aimoré. Lá vai Jairzinho. Lá vai e ele. E o Botafogo, o negócio é o Botafogo! É gol! Empatamos! Conseguimos empatar! Brasil 3, Peru 3. — O negócio agora está quente. O que Gérson está jogando não é normal. Palavra de honra que não é normal. Agora nós vamos no no embalo. É só ir no embalo. Lá vamos nós. Todo mundo na área inimiga. Assim é que eu gosto. Carlos Alberto, carimba. Carlos Alberto! E não é que ele carimbou? É gol! É gol! Brasil 4, Peru 3. — Esses peruanos não são de nada. Vencemos na raça. Conosco ninguém podemos. Eu quero ver a gringalhada lá no México. Brasil! Brasil!

300. JOSÉ CARLOS OLIVEIRA. O RECÉM-CASADO. Encontro um velho companheiro de farras: — Estou indo para a Cidade — diz ele. — Agora estou trabalhando no setor imobiliário. Olha o meu dedo. (Mostra-me a aliança no anular esquerdo.) Casei. É, casei. Você lembra como a gente brigava. Pois é, mas acabamos casando. Ninguém sabe como é isso; depois do casamento, não brigamos mais. Casamos porque todo dia a gente brigava, se separava, e na semana seguinte tudo recomeçava. Ela chegou à conclusão de que a única maneira de a gente se separar mesmo era casando... O casamento foi legal. — Nos dois sentidos. Apareceu um juiz togado e ela ficou uma fera. "Ora vejam!" disse ela. "Por que não me avisaram que o negócio seria à fantasia?" O juiz ficou encabulado. Nós estávamos um pouco tontos, esta é que é a verdade. A comemoração começou de manhã cedo. Mas o casamento só ficou chato quando o juiz começou a falar aquelas palavras que todo mundo conhece. Perguntou a ela: "A senhora insiste?" Ela respondeu que sim. E o juiz perguntou: "A senhora persiste?" E ela respondeu: "Bom, persistir... não chego a tanto. Insistir, insisto, mas persistir já acho meio forte." Mas o pior foi quando o juiz nos chamou de nubentes. Ora veja você: nubentes! Eu tive vontade de dizer que nubente era a vovozinha dele. — Ela está descansando na serra. Vou subir no fim da semana. Estamos comprando uma casinha lá na serra. Quando tudo estiver arrumado, vou reunir a turma. Você está convidado. Nós não brigamos mais, porém estou proibido de contar as histórias nossas, da turma. Ela me disse: "Você nunca me contou uma história de bebedeira que terminasse bem. Todas as suas histórias terminam com todo mundo brigando ou todo mundo no distrito." E ela tem toda razão. Fiz um balanço das minhas histórias com a turma e, de fato, todas terminam em pancadaria. Você se lembra quando fomos presos em Magé? Pois é. Até hoje não compreendi como é que fomos parar naquela delegacia. E aquele botequim de Teresópolis? Olha, outro dia estávamos lá e ela quis entrar no boteco para comprar não sei o quê. Eu disse que não entrava e ela perguntou qual a razão. Mudei de assunto, ela insistiu, acabamos entrando. Na hora de entrar, pensei: "Pronto, vai começar tudo de novo." Felizmente, não me reconheceram. Você se lembra do botequim, não é? O tal que o dono veio contar anedota pornográfica para nós. A gente estava com a Lili e eu resolvi interpelar o camarada. Ele veio com o revolver e eu disse: "Vem você com o teu revolver e chama mais dois, pois eu sou mais eu." O cara medrou, lembra? Pois é. Mas essa história eu não posso contar a ela, pois termina em briga... Quer dizer, a história termina em briga, e ela acaba brigando comigo por causa das minhas histórias que sempre terminam em briga... Não, não tenho visto a turma não. Deixei de ir aos botecos. Agora sou um homem direito. Eu agora sou nubente, morou? Nubente... Acontece cada uma! E você? Casou? Ah, não? Quer dizer que continua na farra? Você é que é feliz...

301. JOSÉ CARLOS OLIVEIRA. ADÃO E EVA. Relendo velhos textos, observo que a todo instante me preocupa uma única situação. A solidão do homem, a solidão da mulher. Não a solidão dos homens, do gênero humano: do homem com relação à mulher e vice-versa. Suspeito que o momento supremo da nossa aventura ocorreu quando o Senhor Deus exorbitou de suas funções, por assim dizer. Ele já havia feito tudo e só lhe restava descansar, pois era domingo, e, sábado, toda a Criação tinha passado a noite no Jirau, inclusive Ele. Mas parece que o Homem, Adão, achava aquela festa muito aborrecida, pois não dançou com ninguém, bebeu demais e é possível até que tenha dado um vexame. Suponho que no meio da noite ele tenha decidido apanhar de qualquer maneira a fêmea do Canguru, aliás exímia dançarina de twist, e senhora um tanto leviana, pois mal emergira da argila e já se punha a flertar com o Rei da Criação. Mas não fica bem, a um cavalheiro, estar a julgar a conduta da mulher alheia: esqueçamos isso e voltemos a Adão, ébrio e cafardento, lançado num Paraíso em que todos os bichos estavam acompanhados, menos ele. Todo o mundo reparou que ele não estava feliz. As senhoras, no toalete, não fizeram outro comentário — todas elas dispostas a fazer qualquer coisa para consolá-lo, porque os machos tristonhos sempre gozaram de grande prestígio junta às fêmeas de toda a escala zoológica, e o Senhor Deus, psicólogo de rara penetração, adivinhou que o Paraíso estava resvalando para o perigoso terreno da galhofa — como diria, muitos milhões de anos depois, um cronista particularmente femeeiro... Não apenas estávamos à beira do adultério, como diante de algo muito mais grave — uma degradação. Imaginem se Adão, no auge do pileque, fazendo um papel muito mais feio do que Noé, inaugurasse o cruzamento de homem com, digamos, sapo, ou percevejo, ou jacaré, ou cobra d'água! Felizmente — ou graças a Deus: parece que ele, em sua infinita sabedoria, foi servindo mais e mais uísque à medida que Adão esvaziava o copo, de modo que o velho Adão foi apagando, apagando e — zás! emborcou. ...Foi quando extraímos uma costela, com a qual esculpimos uma forma nova, cheia de graça, com cabelos habilmente manipulados pelo Reinaud e tendo sobre o alvo ventre uma folha de parreira confeccionada por José Ronaldo... Assim nasceu Dona Eva, na intimidade Vivi sem sobrenome, porque não tinha pai nem mãe. E ela chamou Adão para irem ao Bob's, digo, ao bosque, onde estava a afamada Árvore da Sabedoria. E a serpente disse a Eva: "Olha, Eva, a coisa mais bacaninha que há para fazer, hoje em dia é comer daquela maçã que você vê ali naquela árvore. É a coqueluche de Paris — todo mundo comendo maçã no New Jimmys, no Maxim's, no Plaza Athenée Rellays, no Bois de Bologne!" Eva achou a idéia fabulosa e perguntou a Adão que tal lhe parecia. Adão no momento não tinha dinheiro no bolso (estava nu, coitado), mas a Serpente emprestou, Adão comprou a maçã e Eva disse: "Morde aqui". Adão mordeu. Eva também. Foi quando dos grandes Céus os exércitos de anjos desceram céleres sobre o Paraíso, e suas vozes faziam um clamor de tempestade, e eles clamavam: "Nós também queremos! Nós também queremos!". Mas só Adão e Eva tiveram permissão. Na verdade, Eva é que acabou sendo a dona do negócio, tanto que certa ocasião, depois de folhear a revista Playboy, Adão lhe aplicou um beijo no cangote e disse: "Vamos comer maçã? Que dia lindo para comer maçã!" E Eva, bocejante, sob os cabelos enrolados em bob: "Hoje não, Adão. Hoje estou com muita dor de cabeça".

302. JOSÉ EDUARDO AGUALUSA. MANUAL PRÁTICO DE LEVITAÇÃO. Não gosto de festas. Aborrece-me a conversa fiada, o fumo, a alegria fátua dos bêbados. Irritam-me ainda mais os pratos de plástico. Os talheres de plástico. Os copos de plástico. Servem-me coelho assado num prato de plástico, forçam-me a comer com talheres de plástico, o prato nos joelhos, porque não há mais lugares à mesa, e inevitavelmente o garfo quebra-se. A carne salta e cai-me nas calças. Derramo o vinho. Além disso odeio coelho. Faço um esforço enorme para que ninguém repare em mim, mas há sempre uma mulher que, a dada altura, me puxa pelo braço, vamos dançar?, e lá vou eu, de rastos, atordoado pelo estrídulo dissonante dos perfumes e o volume da música. Terminado o número, um tanto humilhado porque, confesso, tenho o pé pesado, sirvo-me de um uísque, com muito gelo, mas logo alguém me sacode, o que foi, meu velho, estás chateado?, e eu, que não, esforçando-me por sorrir, esforçando-me por rir às gargalhadas, como o resto da chusma, chateado? por que havia de estar chateado?, o dever da alegria chama-me, grito, lá vou, lá vou, e regresso à pista, e finjo que danço, finjo que estou feliz, pulando para a direita, pulando para a esquerda, até que se esqueçam de mim. Naquela noite estava quase a ser esquecido quando reparei num sujeito alto, todo vestido de branco, como um lírio, alva cabeleira à solta pelos ombros, a rondar sombriamente os pastéis de bacalhau. O homem parecia estar ali por engano. Achei-o de repente tão desamparado quanto eu. Podia ser eu, excepto pela roupa, pois evito o branco. O branco não é muito apropriado para o meu negócio. Menos ainda as cores garridas. Obedeço ao lugar-comum — visto-me de negro. Aproximei-me do homem, numa solidariedade de náufrago, e estendi-lhe a mão. — Sou Fulano — disse-lhe. — Vendo caixões. A mão do homem (entre a minha) era lassa e pálida. Os olhos tinham um brilho escuro, vago, como um lago, à noite, iluminado pela luz do luar. A maioria das pessoas não consegue disfarçar o choque, ou o riso, depende da circunstância, quando escutam a palavra caixões. Alguns hesitam: paixões? Não, corrijo, caixões. O sujeito, porém, permaneceu imperturbável. — Nenhum nome é verdadeiro —, respondeu-me, com forte sotaque pernambucano. — Mas pode me chamar Emanuel Subtil. — E o que faz o senhor? — Sou professor... — Ah Sim? E de quê? Emanuel Subtil sacudiu a cabeleira num movimento distraído: — Dou aulas de levitação. — Levitação?! — Levitação, sabe?, fenômeno psíquico, anímico, mediúnico, em que uma pessoa ou uma coisa é erguida do solo sem um motivo visível, apenas devido ao esforço mental. A mente movimenta fluidos ectoplasmáticos capazes de vencer a força da gravidade. Eu ensino técnicas de levitação. Sem arames nem outros truques soezes. — Interessante! Muito interessante! —, respondi, tentando ganhar tempo para pensar. — E tem muitos alunos? O homem sorriu-me gravemente. É certo que não, disse, nos dias de hoje são poucas as pessoas interessadas em levitar. Tristes tempos estes. O triunfo do materialismo tem vindo a corromper tudo. Escasseiam as vocações para as obras do espírito. As vocações e a força mental — sugeri timidamente. Sim, confirmou Emanuel Subtil, sacudindo outra vez a magnífica cabeleira branca, e a força mental. As pessoas preferem manter os pés bem assentes na terra. E levitava, ele?, quis eu saber. Isto é, praticava com freqüência essa arte esquecida? Emanuel Subtil sorriu absorto: — Não há dia em que não pratique. Levitar, meu caro senhor, é o mais completo dos exercícios. Cinco minutos em suspensão, logo pela manhã, ao romper da alva, estimula todos os órgãos vitais e regenera a alma. Inclusive acontecia-lhe às vezes levitar por descuido. Contou-me que São José de Copertino, que viveu entre 1603 e 1663, sofria ataques de imponderabilidade sempre que algo o emocionava. Chamava a isso, com terror, "as minhas vertigens". Um domingo, durante a missa, elevou-se no vazio e durante largos minutos pairou numa aflição sobre o altar, em meio à chama aguda das velas, e ao alarido das beatas, ficando gravemente queimado. A igreja afastou-o, durante 35 anos, de todos os rituais públicos, em razão destas práticas extravagantes, mas nem isso impediu que a sua fama se propagasse. Uma tarde, passeando o santo homem pelos jardins do mosteiro, em companhia de um monge beneditino, foi subitamente arrastado até aos ramos mais altos de uma oliveira por um golpe de vento. Infelizmente sucedia com ele o mesmo que com os gatos, ou os balões, toda a sua propensão era para subir, não para descer, de forma que os monges tiveram de o resgatar de lá com o auxílio de uma escada. Murmurei qualquer coisa sobre a vocação mística das oliveiras, a tendência que demonstram, desde há milênios, para acolherem santos e demiurgos. Emanuel Subtil, porém, ignorou a minha observação. O caso de São José de Copertino, explicou, servia-lhe somente para ilustrar os perigos que incorre um leigo, ainda que excepcionalmente talentoso, ao praticar a arte da levitação sem o acompanhamento de um mestre: — Você oferecia um Ferrari a uma criança? Certamente que não! Concordei logo. É claro, por amor de Deus!, não o punha nem nas minhas mãos. — Levitar não é para qualquer um — prosseguiu Emanuel Subtil carregando nas palavras. — Levitar exige fé, perseverança e ainda algo mais: responsabilidade. Quer tentar? E logo ali expôs as suas condições. Trezentos reais por mês. Quatro vezes por semana. Uma hora cada sessão. Naturalmente, acrescentou, seria impossível observar resultados antes de três a quatro meses. — E se não obtiver resultados? Emanuel Subtil sossegou-me. Em três meses, convenientemente orientado, até um elefante consegue levitar. Mas ainda que eu me revelasse tão mau levitador quanto bailarino (só então percebi que passara a noite a observar-me) ele próprio me daria um empurrão. Citou-me o caso de um famoso médium inglês, Daniel Douglas Home, que nos anos trinta desafiava a tradicional fleuma britânica fazendo flutuar pianos e outros objectos pesados. Conta-se que uma noite levou um boi para o salão de um rico industrial, e o ergueu no ar. Ia o boi ao nível dos lustres, bem alto e iluminado, quando, por distracção ou um repentino desfalecimento de fé, lhe falharam as forças (ao médium), romperam-se os fluidos ectoplasmáticos, e o animal precipitou-se, com brutal fragor, sobre duas das acólitas. — Morreram? — O que lhe parece? — Suspirou. — A história da aeronáutica está cheia de tragédias, pequenas e grandes, mas nem por isso deixamos de andar de avião. Declinei o convite. A festa chegara ao fim. Um velho negro dançava sozinho, de lágrimas nos olhos, alheio à música, vamos chamar-lhe música, uma mistura de alarme de carros, já rouco e exausto, e metais em convulsão. Duas raparigas muito loiras, muito lânguidas, dormiam abraçadas num sofá. Eu não conhecia ninguém. Ninguém me conhecia. —Talvez você saiba de alguém que dê aulas de invisibilidade. Nisso estou interessado. Emanuel Subtil olhou-me com desdém. Não respondeu. Já no hall, enquanto escolhia um guarda-chuva discreto, conforme ao meu ofício, entre um denso molhe deles, ainda vi o brasileiro abrir caminho através do fumo espesso e desabar no sofá, junto às duas raparigas loiras. Vi-o fechar os olhos. Cruzar os braços sobre o peito magro. Pareceu-me que sorria. Tenho conhecido gente um pouco estranha nestas festas. Existe de tudo. As ocupações mais bizarras. Eu sei, é claro, que isso depende sempre da perspectiva. Eu, por exemplo, vendo caixões. O meu pai vendia caixões. O meu avô vendia caixões. Cresci nisto. Acho até prosaico. Preferia, reconheço, dar aulas de levitação. Paciência. Consola-me saber que a morte é melhor negócio. Como o meu avô dizia - só uma coisa me aflige: a imortalidade.

303. JOSÉ J. VEIGA. ENTRE IRMÃOS. O menino sentado à minha frente é meu irmão, assim me disseram; e bem pode ser verdade, ele regula pelos dezessete anos, justamente o tempo que estive solto no mundo, sem contato nem notícia. Quanta coisa muda em dezessete anos, até os nossos sentimentos, e quanta coisa acontece — um menino nasce, cresce e fica quase homem e de repente nos olha na cara e temos que abrir lugar para ele em nosso mundo, e com urgência porque ele não pode mais ficar de fora. A princípio quero tratá-lo como intruso, mostrar-lhe a minha hostilidade, não abertamente para não chocá-lo, mas de maneira a não lhe deixar dúvida, como se lhe perguntasse com todas as letras: que direito tem você de estar aqui na intimidade de minha família, entrando nos nossos segredos mais íntimos, dormindo na cama onde eu dormi, lendo meus velhos livros, talvez sorrindo das minhas anotações à margem, tratando meu pai com intimidade, talvez discutindo a minha conduta, talvez até criticando-a? Mas depois vou notando que ele não é totalmente estranho, as orelhas muito afastadas da cabeça não são diferentes das minhas, o seu sorriso tem um traço de sarcasmo que eu conheço muito bem de olhar-me ao espelho, o seu jeito de sentar-se de lado e cruzar as pernas tem impressionante semelhança com o meu pai. De repente fere-me a idéia de que o intruso talvez seja eu, que ele tenha mais direito de hostilizar-me do que eu a ele, que vive nesta casa há dezessete anos, sem a ter pedido ele aceitou e fez dela o seu lar, estabeleceu intimidade com o espaço e com os objetos, amansou o ambiente a seu modo, criou as suas preferências e as suas antipatias, e agora eu caio aí de repente desarticulando tudo com minhas vibrações de onda diferente. O intruso sou eu, não ele. Ao pensar nisso vem-me o desejo urgente de entendê-lo e de ficar amigo, de derrubar todas as barreiras, de abrir-lhe o meu mundo e de entrar no dele. Faço-lhe perguntas e noto a sua avidez em respondê-las, mas logo vejo a inutilidade de prosseguir nesse caminho, as perguntas parecem-me formais e as respostas forçadas e complacentes. Há um silêncio incômodo, eu olho os pés dele, noto os sapatos bastante usados, os solados revirando-se nas beiradas, as rachaduras do couro como mapa de rios em miniatura, a poeira acumulada nas fendas. Se não fosse o receio de parecer fútil eu perguntaria se ele tem outro sapato mais conservado, se gostaria que lhe oferecesse um novo, e uma roupa nova para combinar. Mas seria esse o caminho para chegar a ele? Não seria um caminho simples demais, e por conseguinte inadequado? Tenho tanta coisa a dizer, mas não sei como começar, até a minha voz parece ter perdido a naturalidade, sinto que não a governo, eu mesmo me aborreço ao ouvi-la. Ele me olha, e vejo que está me examinando, procurando decidir se devo ser tratado como irmão ou como estranho, e imagino que as suas dificuldades não devem ser menores do que as minhas. Ele me pergunta se eu moro numa casa grande, com muitos quartos, e antes de responder procuro descobrir o motivo da pergunta. Por que falar em casa? E qual a importância de muitos quartos? Causarei inveja nele se responder que sim? Não, não tenho casa, há muito tempo que tenho morado em hotel. Ele me olha parece que fascinado, diz que deve ser bom viver em hotel, e conta que toda vez que faz reparos à comida mamãe diz que ele deve ir para um hotel, onde pode reclamar e exigir. De repente o fascínio se transforma em alarme, e ele observa que se eu vivo em hotel não posso ter um cão em minha companhia, o jornal disse uma vez que um homem foi processado por ter um cão em um quarto de hotel. Não me sinto atingido pela proibição, se é que existe, nunca pensei em ter um cão, não resistiria me separar dele quando tivesse que arrumar as malas, como estou sempre fazendo; mas devo dizer-lhe isso e provocar nele uma pena que eu mesmo não sinto? Confirmo a proibição e exagero a vigilância nos hotéis. Ele suspira e diz que então não viveria num hotel nem de graça. Ficamos novamente calados e eu procuro imaginar como será ele quando está com seus amigos, quais os seus assuntos favoritos, o timbre de sua risada quando ele está feliz e despreocupado, a fluência de sua voz quando ele pode falar sem ter que vigiar as palavras. O telefone toca lá dentro e eu fico desejando que o chamado seja para um de nós, assim teremos um bom pretexto para interromper a conversa sem ter que inventar uma desculpa; mas passa-se muito tempo e perco a esperança, o telefone já deve até ter sido desligado. Ele também parece interessado no telefone, mas disfarça muito bem a impaciência. Agora ele está olhando pela janela, com certeza desejando que passe algum amigo ou conhecido que o salve do martírio, mas o sol está muito quente e ninguém quer sair à rua a essa hora do dia. Embaixo na esquina um homem afia facas, escuto o gemido fino da lâmina no rebolo e sinto mais calor ainda. Quando eu era menino tive uma faca que troquei por um projetor de cinema feito por mim mesmo — uma caixa de sapato dividida ao meio, um buraquinho quadrado, uma lente de óculos — e passava horas à beira do rego afiando a faca, servia para descascar cana e laranja. Vale a pena dizer-lhe isso ou será muita infantilidade, considerando que ele está com dezessete anos e eu tinha uns dez naquele tempo? É melhor não dizer, só o que é espontâneo interessa, e a simples hesitação já estraga a espontaneidade. Uma mulher entra na sala, reconheço nela uma de nossas vizinhas, entra com o ar de quem vem pedir alguma coisa urgente. Levanto-me de um pulo para me oferecer; ela diz que não sabia que estávamos conversando, promete não nos interromper, pede desculpa e desaparece. Não sei se consegui disfarçar um suspiro, detesto aquela consideração fora de hora, e sou capaz de jurar que meu irmão também pensa assim. Olhamo-nos novamente já em franco desespero, compreendemos que somos prisioneiros um do outro, mas compreendemos também que nada podemos fazer para nos libertar. Ele diz qualquer coisa a respeito do tempo, eu acho a observação tão desnecessária — e idiota — que nem me dou ao trabalho de responder. Francamente já não sei o que fazer, a minha experiência não me socorre , não sei como fugir daquela sala, dos retratos da parede, do velho espelho embaciado que reflete uma estampa do Sagrado Coração, do assoalho de tábuas empenadas formando ondas. Esforço-me com tanta veemência que a consciência do esforço me amarra cada vez mais àquelas quatro paredes. Só uma catástrofe nos salvaria, e eu desejo intensamente um terremoto ou um incêndio, mas infelizmente essas coisas não acontecem por encomenda. Sinto o suor escorrendo frio por dentro da camisa e tenho vontade de sair dali correndo, mas como poderei fazê-lo sem perder para sempre alguma coisa muito importante, e como explicar depois a minha conduta quando eu puder examiná-la de longe e ver o quanto fui inepto? Não, basta de fugas, preciso ficar aqui sentado e purgar o meu erro. A porta abre-se abruptamente e a vizinha entra de novo apertando as mãos no peito, olha alternadamente para um e outro de nós e diz, numa voz que mal escuto: — Sua mãe está pedindo um padre. Levantamos os dois de um pulo, dando graças a Deus — que ele nos perdoe — pela oportunidade de escaparmos daquela câmara de suplício.

304. JOSÉ J. VEIGA. ESPELHO. Quando uma casa desmorona por velhice mais abandono, parece que alguma coisa da essência das pessoas que viveram nela e foram felizes — pelo menos por algum tempo ou alternadamente, já que ninguém é feliz sempre — fica pairando sobre os escombros e sobre utensílios abandonados ou esquecidos pela última família que morou nela; tanto que o poeta Pessoa escreveu num poema: "O que eu sou hoje é terem vendido a casa terem morrido todosDesejo físico da alma de se encontrar ali outra vez...”. Aquela casa deve ter sido vendida várias vezes, depois envelheceu e por fim caiu. O entulho ficou lá enfeando a rua e servindo de abrigo a mendigos e outros desses que têm a mania de pensar que são rebeldes, contestadores, não querem trato com o que chamam de sistema, mas não levam esse pensamento às últimas conseqüências: não abrem mão de um bom churrasco de gato nem do ato mais visceral de descarregar seus detritos quando se sentem pesados por dentro. Em todo caso, uma vez aliviados lembram-se de que fizeram uma concessão aos costumes e pensam que se redimem deixando de se limpar. Cada qual com a sua filosofia, como disse o general de granadeiros Contumácio Coribantes, vencedor da Batalha de Filigranas, que, como se sabe, mudou o rumo da história dos países do lado de baixo do Equador. Então o entulho do desabamento ficou lá poluindo a rua e atraindo moscas, lagartixas, ratos, baratas e outros entes obnóxios, até que saqueadores tomaram conhecimento e começaram seu trabalho sistemático de extrair e carregar tudo em que vissem algum valor. Durante dias, talvez semanas, caminhões, kombis e até burros-sem-rabo, que ainda existem para quem sabe onde achá-los, transportaram ladrilhos, azulejos, grades, pias, torneiras, painéis de vidraças milagrosamente inteiros, portas, portais, caixilhos e esquadrias de janelas, fechaduras antigas ainda perfeitas, algumas sem as chaves; dois ou três armários enormes de madeira maciça para guardar louça ou roupa de cama e mesa e que os últimos moradores não quiseram carregar, certamente devido ao tamanho e ao peso. Esses foram desmontados a duras penas e transportados em um caminhão novo com placa de Vassouras, RJ, que alguém anotou por curiosidade. Havia também um guarda-roupa, esse não tão antigo nem de boa madeira, tanto que não resistiu ao esborôo da casa, ficou todo quebrado e desconjuntado e não interessou a nenhum dos primeiros predadores. Mas quando chegou o segundo escalão, o chamado pente-fino, formado pelos que se contentam com sobras e rebotalhos, alguém deu uma olhada no guarda-roupa arrebentado, talvez esperando ou desejando que em alguma das muitas gavetas, quem sabe, tivesse ficado algum objeto de valor, ou mesmo dinheiro, é impressionante que existe de gente distraída no mundo, e muitas vezes o prejuízo de um distraído acaba sendo o lucro de um porfioso. Dada a vista nas gavetas, quase todas ocadas por cupins, e nada encontrando, a pessoa notou que uma porta estava inteira e sã e poderia ser aproveitada, há sempre colocação para uma boa peça de madeira já curtida pelo tempo e vacinada contra cupins, podia servir para tampo de mesa, para um banco, para prateleiras de estante, era só esperar o encontro dela com quem a estivesse procurando, se esses encontros nunca acontecessem não haveria necessidade de belchiores, que sempre existiram e sempre existirão. Depois de muito esforço, solavancos e engenho porque o puxador, também de madeira, estava quebrado e não dava pega, o pente-fino conseguiu abrir a porta — e teve nova surpresa. Do lado de dentro havia um espelho biselado de metro e meio de altura por sessenta e cinco centímetros de largura em perfeitíssimo estado, só que por cima da grossa camada de poeira podia se escrever nele com um dedo uma frase completa, como "Todo governo é delinqüente".Razoável conhecedor de coisas antigas, o vasculhador de ruínas imaginou ou percebeu que o espelho tinha sido reaproveitado naquele armário: a moldura era diferente da madeira da porta, indicando que o espelho devia ter estado numa parede, talvez num salão, acima de um bufê ou de um sofá; ou num quarto de vestir, ou em uma loja de roupa ou calçado. E era importado, provavelmente da França, cujos artesãos inventaram esse tipo de corte chanfrado para evitar arestas nas margens de placas de vidro ou de madeira. Mas — e o aço? Estaria ainda bom depois de tanta vivência e de tantos sacolejos? Como saber, com tanta poeira encrostada em cima? Olhou em volta, viu umas folhas de jornal jogadas nas ruínas pelo vento. Pegou duas folhas, fez uma pelota, experimentou. A seco não adiantava, apenas espalhava a poeira. Só molhando o papel, mas onde achar água? O homem tinha expediente, não ia empacar por tão pouco. Procurou um lugar protegido da vista de quem passava na rua e urinou na pelota de jornal. Com o papel molhado limpou duas pequenas áreas do espelho e por elas deduziu que o aço devia estar bom de ponta a ponta. Satisfeito com o achado, nosso homem tornou a fechar a porta do armário, esperando encontrá-lo intato quando voltasse com uma kombi de aluguel para levar o espelho; se ninguém o vira antes, certamente ninguém ia vê-lo naquele dia. Mas antes era preciso agradecer ao santo fumando um bom charuto ali mesmo, com calma; para que pressa, se o dia estava ganho? Depois de limpado e exposto no belchior, o espelho não demoraria a encontrar comprador. Não errou na previsão. Logo no primeiro dia um decorador se interessou, indagou o preço. Achou caro, fez uma contraproposta. Experiente, o belchior não quis vender ao primeiro interessado, mas anotou nome e telefone. Horas depois entrou um casal jovem procurando uma mesa de jantar extensível. Não gostaram das únicas duas que havia, ambas precisando de conserto, o que encareceria o preço final. Quando saíam, viram o espelho. Ouviram o preço, confabularam em voz baixa, compraram sem regatear. Depois de muito debate e experimentação concluíram juntos que o espelho ficaria bem na sala de visitas, instalado horizontalmente atrás do sofá de três lugares. Oposto a ele, separando a sala de visitas da de jantar, ficava uma marquesa de jacarandá trabalhado, também comprada em belchior e restaurada por empalhador recomendado pelo próprio vendedor De cada lado do sofá havia uma poltrona Luís XV estofada de veludo caramelo pelo artista Mário Cotas, mas para isso tiveram de esperar seis meses, a lista de encomendas das dele era enorme. Valeu a espera. A sala ficou coisa de revista, diziam os amigos. E o casal ficou feliz com a sala. Quando saíam para algum compromisso social sentiam-se como exilados, e arranjavam pretextos para se retirarem mais cedo e voltarem depressa para a sala acolhedora. Logo perceberam que a alma do ambiente era o espelho, tudo mais eram acessórios que sozinhos não encheriam os olhos de ninguém. Sem o espelho ficaria uma sala plebéia, com móveis de sentar, tapetes, alguns quadros indiferentes, requififes vários — igual a um sem-número de outras. Por causa do espelho, e parece que sem perceber, o casal ficou passando a maior parte do tempo na sala, e às vezes até dormiam nela, um no sofá, outro na marquesa. Por que faziam isso? Se perguntados, possivelmente não saberiam o que responder. Sentiam-se felizes na sala, seria a resposta singela. Mas não precisavam dar essa explicação a ninguém, primeiro porque eram sozinhos e a senhora que cuidava da casa e da cozinha dormia fora; segundo, porque achavam aquilo natural, e o que é natural carece de explicação. Quanto mais olhavam para o espelho e viam a sala e eles mesmos refletidos no vidro impecável mas quase etéreo, mais gostavam dele; e já estavam achando que o encontro deles com o espelho, ou o contrário — o que talvez não fosse a mesma coisa, pensando bem — podia ser alguma arrumação do destino; e se consideravam escolhidos. Imagine se o espelho tivesse ido para um novo-rico qualquer, um capadócio, um bicheiro, um fala-gritado? Mas, como disse um cantador, a felicidade é um trono de nuvem, quem se senta nele deve estar prevenido porque se desmancha à-toa, basta um ventinho, uma palavra impensada. Foi o que aconteceu, ao que parece, porque quando voltaram o filme e o repassaram para ver se entendiam, ficaram achando que a mudança começara numa tarde esplêndida de domingo, o sol iluminando a varanda da frente, crianças brincando, gritando e rindo embaixo na praça, o casal na sala gozando a companhia do espelho. De repente a mulher, serena, alegre, reflexiva, deitada na marquesa, olhando pela porta da varanda e torcendo um chumaço de cabelo com o polegar e o indicador da mão direita, disse em voz calma, mais como se fosse um pensamento que tivesse lhe escapado pela boca: — Não acha que estamos parecendo dois bobocas atrelados a este espelho? O homem, sempre atencioso, deitado no sofá, os pés descalços sobre uma almofada, os joelhos dobrados, lendo o segundo volume do Corpo de Baile de Guimarães Rosa, pousou-o aberto sobre o peito e olhou intrigado para a mulher. — Como é mesmo, filha? — Eu disse alguma coisa? — indagou a mulher, olhando-o intrigada. — Disse que estamos parecendo dois bobocas atrelados a este espelho. Aliás, não disse; perguntou se eu não achava. — Foi, é? Ora essa! — Voltou a torcer a mecha de cabelo por um instante, calada. — Bem, se eu disse, então é porque estava pensando. Ele pegou novamente o livro, mudou de idéia antes de localizar o ponto onde havia parado. Pousou-o de novo no peito. A observação da mulher ficou interessando mais. — Esse pensamento é novo ou já lhe ocorreu antes? — perguntou. Como não tinham segredos um para o outro, ela admitiu que dias antes no trabalho, ao ouvir uma colega falar do fim de. de semana altamente relaxante que passara com o marido e amigos em um hotel-fazenda no Vale do Paraíba, fizera uma comparação e ficara em dúvida se eles dois estariam certos fechando-se tanto em casa e em si mesmos por causa do espelho, como se o mundo lá fora não existisse; e se indagara se isso não acabaria prejudicando-os de alguma maneira. — Bem, já que o assunto pulou a cerca, é porque chegou a hora. Então não vamos continuar fazendo de conta que ele não existe. Eu também tenho me preocupado com o espelho de uns dias para cá. — É mesmo? Como assim? — disse ela, ao mesmo tempo em que passava da posição de semideitada para a de semi-sentada. Um dia, quando você estava na cozinha fazendo café e eu aqui conversando com Emer e Zenaide, os dois sentados no sofá, olhei para eles para dizer qualquer coisa, tive uma sensação esquisita. Emer me perguntara sobre meninos de rua, a matança da Candelária. Quando dei minha opinião, aconteceu. Os que estavam no sofá eram Emer e Zenaide. Os que eu via no espelho, só do ombro para cima, eram outros. Esses aprovavam a matança. Não diziam isso em palavras, as palavras deles eram as de Emer e Zenaide, diziam que tinha sido um horror, uma vergonha, uma desumanidade; mas tudo soava falso. A opinião verdadeira estava nas imagens refletidas. Fiquei horrorizado. Disfarcei, levantei, fui à varanda pretextando ter ouvido qualquer coisa lá fora. Felizmente você apareceu logo com o café. — Me lembro que quando entrei com a bandeja você vinha da varanda. Só isso. — Então eles também não devem ter notado. Ainda bem. Mas fiquei transtornado. Naquele instante o espelho mostrou-me a verdadeira alma deles. Ela olhou demoradamente para o espelho e disse: — Gostaria muito de pensar... pensar não, ter certeza... que você tivesse imaginado isso. — Eu também. Mas não dá para fraudar Foi real. Não falaram mais no assunto, mas pensaram muito, cada um por si. De tardinha fizeram um lanche na sala de jantar, esforçando-se os dois para não falarem no espelho nem olharem para ele. Depois ligaram a televisão, nada de interessante. Que tal um cinema à noite? Consultaram o jornal, optaram por uma comédia inglesa, "O Garçom Venturoso", de Peter Ustinov. Os ingleses são bons em comédia, e Ustinov melhor ainda, lembra-se de "Vice-Versa"? O filme é a história de um garçom de Charlotte Street que encontra a seu lado num banco do metrô uma bolsinha minúscula. Guarda-a no bolso para ver depois se contém algum valor. Quando a abre em casa, vê que tem um diamante do tamanho de ovo de codorna, com nota de venda de uma loja de Amsterdã. O preço, uma fortuna. O filme todo é o desespero do garçom para encontrar um lugar seguro onde esconder o diamante até poder dispor dele sem risco. Não tem experiência em atividades clandestinas e não pode consultar ninguém para não levantar suspeita. Não pode dividir o problema com a mulher porque ela tem coceira na língua. Todo esconderijo que imagina logo lhe parece escancarado. Levanta-se no meio da noite para mudar o diamante de lugar. Pensa engoli-lo para recuperá-lo no dia seguinte, e assim ir fazendo dia após dia, mas na primeira se tentativa quase morre engasgado, o raio do diamante bem podia ser um pouco menor. O homem vive sonolento, cochila no trabalho, o chefe o adverte. Finalmente o pobre garçom conclui que não existe em toda Londres um lugar seguro para quem não tem diamantes esconder um diamante do tamaninho de um ovo de codorna. E resolve entregá-lo à polícia. Em vez de distraí-los, o filme agravou as preocupações inconfessáveis do casal. Na mesma noite retiraram o espelho da parede, o que não foi difícil: bastou retirar com torques as três escápulas do alto, içar o espelho das três escápulas que o sustentavam embaixo, depois virá-lo de frente para a parede e pousá-lo no chão atrás do sofá. No dia seguinte telefonaram para o belchior e fecharam negócio pela primeira proposta, como tinham feito quando da compra. Mas continuaram usando espelhos, ele para fazer a barba, ela para se pintar e pentear.

305. JOSÉ LINS DO REGO. ADEUS, DOCE FRANÇA. Volto hoje às minhas criaturas, aos rudes homens do cangaço, às mulheres, aos sertanejos castigados, às terras tostadas de sol e tintas de sangue, ao mundo fabuloso do meu romance, já no meio do caminho. Os dias de França me deram uma sensação de pausa, de espanto, de novos contactos sonhados desde menino. Vi terras por onde andaram os doze pares de França, os heróis do meu Carlos Magno, lido e relido como história de Trancoso. Vi terras do sul, o mar Mediterrâneo, o mar da história, o mar dos gregos, dos egípcios, dos fenícios, dos romanos. Mas o nordestino tinha que voltar à sua realidade, à realidade maior que a história do mundo, isto é, à história dos seus homens, dos cangaceiros brutais, carregados de vida bárbara, de instintos cruéis de uma força, porém, que não se extingue nunca, porque é a energia de uma raça de homens mais duros do que as pedras dos seus lajedos. Volto aos "Cangaceiros" e desde logo tudo o que vi e senti se refugia no fundo da sensibilidade, para que a narrativa corra, como em leito de rio que a estiagem secara, mas que as águas novas enchem, outra vez, de correntezas. Volto ao terrível Aparício que mata igual a um flagelo de Deus, ao monstruoso Negro Vicente, ao triste Bentinho, ao místico Domício, aos umbuzeiros carregados de frutos, aos mandacarus de floração de sangue, aos cantadores de estrada, às mulheres sofredoras, às noites de lua, aos tiroteios, ao crime e ao amor, à poesia barbaresca e vigorosa de um povo que é maior do que a terra que o criou. Volto contente e disposto a tudo. Adeus, doce França. Agora os espinhos me arranham o corpo e as tristezas me cortam a alma.

306. JOSÉ LINS DO REGO. ONDE ESTÃO AS BORBOLETAS AZUIS? O dia hoje está uma maravilha e, aqui de minha casa, eu olho para a lagoa que tem as águas luminosas pelo sol de maio que há pouco nascera. É uma manhã de glória como dizem os poetas, e para gozá-la, saio a passear. Nada nesta cidade se parece mais com um recanto de romance que esta lagoa mansa, sem rumores de ondas, quieta, sem arrogâncias de águas raivosas. Tudo por aqui é como se fosse domado pela mão do homem, lagoa doméstica que, pela sabedoria sanitária do Saturnino de Brito, se transformara, de foco de mosquitos e de febres, em esplendor de beleza, capaz de em planos de bom urbanista ser o orgulho de uma cidade. Mas, mal o cronista apaixonado pelos recantos idílicos da natureza inicia a sua viagem lírica, começa a sentir que os homens são criaturas sem entranhas, terríveis criaturas sem amor ao que deviam amar, sem cuidado pelo que deviam cuidar. Porque, mal me pus a andar pelas terras que circundam a lagoa, o que vi não é para que se conte. Há quem diga e afirme que o brasileiro não gosta da natureza. Que todos somos inimigos das árvores, dos rios, da terra. E há a teoria de que o pavor da floresta nos transformara em citadinos, em derrubadores de matas, queimadores de terras. Mas esta teoria não corresponde à realidade, se nos voltarmos para os bosques e jardins de outrora que por toda a parte alegravam as nossas cidades. Aqui no Rio de tempos para cá, deu nos homens de Governo uma verdadeira doença que é este desprezo e quase ódio pelos nossos recantos da natureza. Há o caso das matas da Tijuca para uma exceção honrosa. Mas, por outro lado, há este caso da Lagoa Rodrigo de Freitas, como um crime monstruoso. Porque tudo que é erros e mais erros foram cometidos em relação à paisagem deste maravilhoso pedaço de nossa cidade. Isto de se conduzir o lixo do Rio para aterrar trechos e trechos de uma massa líquida que é um regalo para os olhos, não merece nem um comentário, pela estupidez, pela lamentável grosseria de homens que não respeitam nada. E feito isto não há quem possa se aproximar da lagoa Rodrigo de Freitas. Lá estão os bichos podres, uma fedentina horrível a atrair urubus como numa "sapucaia". E o que podia ser uma atração para os que pretendessem repousar, é aquilo que nos envergonha e nos dói. O Sr. Hildebrando de Góis, que saneou a "Baixada Fluminense", se quiser encontrar o que sanear, que faça este passeio a que o modesto cronista se arriscou, por entre lixos, com urubus quase a roçarem-lhe o rosto. Onde estão as borboletas azuis do poeta Casimiro?

307. JOSÉ LINS DO REGO. O RIO. O rio Paraíba corria bem próximo ao cercado. Chamavam-no "o rio". E era tudo. Em tempos antigos fora muito mais estreito. Os marizeiros e as ingazeiras apertavam as duas margens e as águas corriam em leito mais fundo. Agora era largo e, quando descia nas grandes enchentes, fazia medo. Contava-se o tempo pelas eras das cheias. Isto se deu na cheia de 93, aquilo se fez depois da cheia de 68. Para nós meninos, o rio era mesmo a nossa serventia nos tempos de verão, quando as águas partiam e se retinham nos poços. Os moleques saíam para lavar os cavalos e íamos com eles. Havia o Poço das Pedras, lá para as bandas da Paciência. Punham-se os animais dentro d'água e ficávamos nos banhos, nos cangapés. Os aruás cobriam os lajedos, botando gosma pelo casco. Nas grandes secas o povo comia aruá que tinha gosto de lama. O leito do rio cobria-se de junco e faziam-se plantações de batata-doce pelas vazantes. Era o bom rio da seca a pagar o que fizera de mau nas cheias devastadoras. E quando ainda não partia a corrente, o povo grande do engenho armava banheiros de palha para o banho das moças. As minhas tias desciam para a água fria do Paraíba que ainda não cortava sabão. O rio para mim seria um ponto de contato com o mundo. Quando estava ele de barreira a barreira, no marizeiro maior, amarravam a canoa que Zé Guedes manobrava. Vinham cargueiros do outro lado pedindo passagem. Tiravam as cangalhas dos cavalos e, enquanto os canoeiros remavam a toda a força, os animais, com as cabeças agarradas pelo cabresto, seguiam nadando ao lado da embarcação. Ouvia então a conversa dos estranhos. Quase sempre eram aguardenteiros contrabandistas que atravessavam, vindos dos engenhos de Itambé com destino ao sertão. Falavam do outro lado do mundo, de terras que não eram de meu avô. Os grandes do engenho não gostavam de me ver metido com aquela gente. Às vezes o meu avô aparecia para dar gritos. Escondia-me no fundo da canoa até que ele fosse para longe. Uma vez eu e o moleque Ricardo chegamos na beira do rio e não havia ninguém. O Paraíba dava somente um nado e corria no manso, sem correnteza forte. Ricardo desatou a corda, meteu-se na canoa comigo, e quando procurou manobrar era impossível. A canoa foi descendo de rio abaixo aos arrancos da água. Não havia força que pudesse contê-la. Pus-me a chorar alto, senti-me arrastado para o fim da terra. Mas Zé Guedes, vendo a canoa solta, correu pela beira do rio e foi nos pegar quase que no Poço das Pedras. Ricardo nem tomara conhecimento do desastre. Estava sentado na popa. Zé Guedes porém deu-lhe umas lapadas de cinturão e gritou para mim: - Vou dizer ao velho! Não disse nada. Apenas a viagem malograda me deixou alarmado. Fiquei com medo da canoa e apavorado com o rio. Só mais tarde é que voltaria ele a ser para mim mestre de vida.

308. JOSÉ ROBERTO TORERO. ALGUMAS RAZÕES NOBRES E OUTRAS PLEBÉIAS. Dois tipos de razões me levam a escrever: as razões nobres e as plebéias. As plebéias são as tradicionais: fama, dinheiro e mulheres. Pensava que, como um escritor, teria um pouco dessas três coisas, mas a fama de um escritor é irrisória perto da de um razoável centroavante. O dinheiro é ridículo, se comparado ao que ganha qualquer desafinado cantor de pagode. E, quanto ao gemido das mulheres, qualquer ator que tenha feito uma aparição na Globo é mais solicitado do que eu. Na verdade, até hoje só uma leitora sorriu-me de um modo mais insinuante: uma senhora chamada Noemi. Muito simpática, mas octogenária. Há, porém, os motivos nobres. Como tive muitos professores humanistas, prendeu-se em mim essa idéia hoje tida como ridícula de que "devemos lutar por um mundo melhor", hoje trocada por "devemos maximizar os lucros". Acho que escrevendo, posso, de alguma forma, influenciar as pessoas. Posso fazê-las rir dos maus costumes e dos maus personagens, posso fazê-las perceber um vício e exaltar uma atitude, posso falar bem da honestidade e mal de Maluf e Pitta, posso falar bem da coerência e mal da compra de votos pela reeleição, posso falar bem da coragem e mal da aliança com o PFL. Mas, na verdade, acho que nesse quesito eu também apenas vou conseguir virar a cabeça de Dona Noemi. Enfim, apesar do fracasso de minhas motivações nobres e plebéias, não posso me queixar da sorte. O trabalho não me deixa suado como um cantor de pagode, não levo pontapés como um centroavante e, ainda por cima, ando pelas ruas despreocupado, sem temer que fãs puxem meus cabelos ou tentem rasgar minhas roupas. Se bem que, no lançamento do meu último livro, Dona Noemi tenha me dado um beliscão na bunda.

309. LÊDO IVO. A RESPOSTA. Seu nome era Serafim Costa. Mas nome de quem, ou de que? Na cidade pequena, decerto a sua figura deveria ter se cruzado, muitas vezes, com a do menino fardado, de camisa branca e curtas calças azuis extraídas das velhas casimiras paternas. Ele, o comerciante abastado, talvez comendador, não conhecia o garoto. E este jamais poderia ligar o nome à pessoa. Assim, Serafim Costa era apenas um nome — a belíssima sonoridade de um estilhaço de mitologia, uma flor aérea que, em vez de pétalas, possuía sílabas. Ele morava no Farol, exatamente onde o bonde fazia a última curva. Os muros brancos, que cercavam o quarteirão, semi-escondiam a casa, também branca, além do jardim que aparecia entre as grades, e em cujos canteiros florejavam espessuras e certas musguentas flores amarelas, e um imenso besouro zoava. A casa era um palacete de dois andares, crivado de sacadas e cegas janelas, e que parecia desabitada. Possivelmente essa incorrigível falsária, a Memória, a pintou, sem tir-te nem guar-te, com a sua branca tinta adúltera, substituindo a verdade nativa, feita de alvorentes azulejos pintalgados de azul, por alguma caprichosa arquitetura rococó. De qualquer modo, de outro lado do muro reto, sem dúvida encimado por afiados cacos de garrafas para impedir o salto dos ladrões, a gente via as copas das mangueiras, cajueiros, palmeiras e outras árvores sob as quais alguns cães esperavam, impacientes, que a rotina bocejante do dia se esfarelasse para que eles pudessem latir, na noite raiada de estrelas, como que lembrando a Serafim Costa — que interromperia por meio minuto o seu sono tranqüilo e patriarcal — as suas presenças vigilantes. — Aqui mora Serafim Costa devia ter-me dito meu pai, num daqueles crepúsculos em que, de bonde, voltávamos para casa; ele com a sua velha pasta que inexplicavelmente não o acompanhou ao túmulo (o que talvez não o fizesse ser de pronto reconhecido no Paraíso), e nós ainda guardando nos ouvidos o bulício vesperal do instante em que, aberta a porta do grupo escolar, as crianças escoavam para a praça e se perdiam nas escurentas ruas tortuosas. O palacete branco vulgava riqueza, luxo, secreto esplendor. Além das portas fechadas, das presumíveis estatuetas de mármore, do aroma das dálias, do fino palor dos azulejos, das mudas venezianas, havia decerto um universo de opulência, que a nossa fantasia de meninos pobres mal podia imaginar. A tarde transcurecia; o portão fechado validava-se como o brasão de uma existência que, terminados os diálogos inevitáveis de seu ofício de grande comerciante sempre atarefado e vigilante, suspendia qualquer tráfico com as mesquinharias diurnas, igual a um navio que, após todo o baixo ritual da estiva, readquire a sua dignidade perdida sulcando o mar sem amarras. Era o palácio de Serafim Costa. E o nome, a magia desse nome que ocupou toda a minha infância, e era o preâmbulo mágico das encantações, demorava-se em mim, solfejando-se no ar eternamente perfumado pelo Oceano. Meu pai, então guarda-livros de um armazém de tecidos, conhecia Serafim Costa, e nos mostrava a sua residência. "Aqui mora Serafim Costa." Não nos nomeava uma forma definida de casa (sobrado, bangalô, palacete); e certo aquela moradia, uma das mais luxuosas da pequena cidade, refugia às denominações irreversíveis. Ignoro se Serafim Costa era alagoano ou um dos muitos imigrantes portugueses que, estabelecidos em Maceió, enriqueceram em tecidos ou em secos e molhados e terminaram comendadores — mas em seu palacete, na exuberância do jardim equatorial, no chão assombrado de árvores enlanguescidas pelo mormaço, havia algo que era a fusão improfundável dos mais faustosos elementos nativos com uma substância remota e avoengueira, como que a reprodução de antiga planta deixada do outro lado do mar e tacitamente reconstruída pela poupança e ambição do imigrante afortunado. Por isso, meu pai dizia aqui, querendo assim significar tudo o que era o império de Serafim Costa: as grades do jardim, os sinuosos canteiros colmeados de folhas e flores, os calangros e insetos, a água espatifada de uma fonte, os familiares que não apareciam às janelas, talvez para não confundir a visão de todos os que, como eu, o imaginavam reinando solitário em sua mansão, sem quinhoar ostensivamente com ninguém o resultado, de sua vida vitoriosa, feita de zelo e siso. Embora eu não tivesse conhecido Serafim Costa, tornou-se-me familiar aos olhos um dos empregados de seu armazém. Era um velho corcunda, de fiapos brancos na cabeça calva, e devoto. Alguns anos depois, quando já tínhamos deixado de morar no sítio e passáramos a habitar numa rua do centro da cidade, estávamos todos, no sótão, assistindo à passagem de uma procissão que enchia a monotonia da tarde de domingo. Súbito, identifiquei na multidão o corcunda velho e devoto, e exclamei: — Olhe o Serafim Costa! A exclamação fez espécie a meu pai, que se virou para mim, surpreendido com a notícia. Seu ar era mais do que de dúvida — decerto eu dissera uma heresia, que reclamava pronta corrigenda ou a aura de uma prova irretocável. Com o dedo, apontei o velho corcunda que, de casimira preta na tarde de sol fugidiço, vencia, na aglomeração, os paralelepípedos da rua. Meu pai reconheceu o empregado de Serafim Costa e exclamou, de bom rosto: — Não é o Serafim Costa — e achou engraçado que eu confundisse o empregado humilde e devoto com o poderoso e mitológico patrão. E assim ele ficou sendo, para mim, sempre e eternamente, um nome, inatingível figura do ar. Muitas vezes, passeando sozinho pelo sítio ou junto ao mar lampejante, eu repetia esse nome, despetalava-o na brisa como se ele fosse um malmequer, juntava de novo as pétalas das sílabas que cantavam mesmo momentaneamente esquartejadas. Serafim Costa! dizia eu bem alto para que os costados dos navios pudessem devolver-me, em forma de eco, essa primeira lição de poesia, essa infindável soletração do absoluto. Muitos anos depois, desintegrada a infância, e já envolto numa névoa de estrangeiro, voltei à curva do bonde. Era ali que morava Serafim Costa — o portão fechado era sinal de que ele estava lá dentro, movendo-se possivelmente entre frutas maduras, gatos sonolentos e bojudas porcelanas azuis. Trinta anos se tinham passado desde os dias em que o bonde, na volta da escola, nos fazia ver a misteriosa morada, o universo branco e verde estriado de agudas grades negras e manchas róseas. O invisível Serafim Costa já deveria estar morando, e de há muito, em outra alvacenta morada... Mas parei diante do portão cerrado, espiei o jardim silencioso, os vasos de azulejos, as escadarias de mármore, as altas janelas que pareciam sotéias. E chamei: Serafim Costa! Chamei a quem, a que? E ocorreu o milagre. O nome ficou suspenso no jardim onde se ocultava uma cobra papa-ovo, depois voou pelos ares, como um pássaro; chocou-se contra os costados dos cargueiros que, no destempo hirto, desembarcavam em Maceió os caixotes das mercadorias encomendadas, do outro lado do Oceano, pelo valimento comercial de Serafim Costa; e, metamorfoseado em eco, voltou de novo aos meus ouvidos, já agora na soberba hierarquia de um nome que não precisa mais de figura ou de anedota; e se tornou para sempre algo sonoro e puro, deslumbrante e enxuto. E, assim, obtive a resposta.

310. LEON ELIACHAR. Encontraram-se depois de mais de dez anos: - Afonso! - Hermenegildo! Abraçaram-se três vezes seguidas, como  fazem todos os que não se vêem há muito tempo: - Lembra-se do Rogério? - Lembro. - Morreu a semana passada. - Coitado. Conversaram a mesma conversa que conversam os que não se vêem há muito tempo: - Que tens feito? - Lutando.  E você? - Levando a vida. Quando deram por si, estavam tomando cafezinho em pé, como fazem sempre os que não se vêem há muito tempo: - Você está mais gordo. - E você, mais magro. Foram andando, parando, relembrando incidentes pitorescos, como fazem todos os que não se vêem há muito tempo: - E aquele mergulho no rio, atrás do internato, lembra-se? - Se me lembro, quase você morre afogado. - E foi você quem me salvou, nunca esqueci. Pararam num ponto de ônibus pra se despedir, ficaram batendo papo mais de meia-hora, como fazem todos os que não se vêem há muito tempo: - Você casou? - Casei.  E você? - Mais ou menos.  Estou com uma zinha aí mas ela é casada. - Você nunca quis nada com o casamento, hein, malandro? - Com essa até que eu casava. - Como ela é? - Baixotinha, gordota, tem um sinalzinho no rosto, mas eu gosto dela assim mesmo. Afonso ficou apreensivo: - Como é o nome dela? - Cláudia. Afonso ficou mais curioso: - Ela tem filhos? - Dois.  Um menino de quatro e uma menina de três. Afonso só faltou pedir o retrato pra ver, mas não teve coragem.  Apressou a despedida: - Bem, tenho de ir andando, estou atrasadíssimo. Tomou o ônibus, foi direto para casa.  No caminho, foi pensando: "Cláudia... dois filhos... um menino de quatro... uma menina de três... baixotinha... gordota... um sinalzinho no rosto..." era muita coincidência.  Quando entrou em casa, só faltou arrancar a porta.  Lá estava a mulher no meio da sala, com os dois filhos, baixotinha, gordota, com um sorriso na cara deste tamanho: - Chegou cedo hoje, hein, Afonso? Ele estava tremendo de ponta a ponta, quando perguntou: - Diz depressa o nome de um homem. - Como? - Depressa, diz um nome de homem.  Um nome qualquer. Ela nem teve tempo de pensar: - Hermenegildo. Ele chegou a cambalear, foi preciso segurar no vão da porta: - Quem diria, hein? Sua mulher não entendia nada: - Mas o que foi, Afonso?  Está sentindo alguma coisa? Ele foi categórico: - Estou sim. - Está sentindo o quê? Ele arreganhou os dentes: - Estou sentindo ódio de mim mesmo, por ter salvo aquele desgraçado.  Devia ter deixado ele morrer afogado. Cláudia caiu de bruços e como caiu, ficou, inteiramente desacordada. O médico disse que era normal. Estava esperando o terceiro filho.

311. LEON ELIACHAR. Há dois meses que Iracema recebia flores, sem cartão. Colocava tudo nas jarras, vasos, copos; mesas, janelas, banheiro e até na cozinha. Quando o marido lhe perguntava por que tantas flores, todos os dias, ela sorria:— Deixe de brincadeira, Epitácio. Ele não percebia bem o que ela queria dizer, até que um dia:— Epitácio, acho bom você parar de comprar tanta flor, já não tenho mais onde colocar. Foi aí que ele compreendeu tudo:— O quê? Você quer insinuar que não sabia que não sou eu quem manda essas flores? Foi o diabo, ela não sabia explicar quem mandava, ele não conseguia convencê-la de que não era ele.— Um de nós dois está mentindo — gritou, furioso.— Então é você — rebateu ela. No dia seguinte, de manhã, ele decidiu não sair, pra desvendar o mistério. Assim que as flores chegassem, a pessoa que as trouxesse seria interpelada. Mas não veio ninguém:— Já são duas horas da tarde e as flores não chegaram, Epitácio. É muita coincidência. Vai me dizer que não era você. Ele não tinha por onde escapar. Insinuou muito de leve que a mulher devia ter conhecido alguém na sua ausência. Ela chegou a chorar e se trancou no quarto. A discussão entrou pela noite até o dia seguinte. Epitácio saiu cedo, sem mesmo tomar café. Bateu a porta com força e levou o mistério para o trabalho. Meia hora depois, a mulher saiu e foi ao florista.— Como vai, Dona Iracema? A senhora ontem não veio, heim? Aconteceu alguma coisa? À noite, Epitácio viu as flores e não disse uma palavra, mas a mulher não parou:— Seu cínico. Bastou você sair para as flores aparecerem e ainda tem coragem de dizer que não foi você. Nessa noite ele teve insônia.

312. LEON ELIACHAR. Depois de tantos anos vendo televisão diariamente, chego a uma conclusão definitiva: é muito mais divertido e mais prático ver os anúncios. Enquanto as outras pessoas ficam aflitas tentando decorar os horários das novelas, das paradas de sucesso e dos chamados programas humorísticos, eu não tenho problema: ligo a televisão em qualquer canal e vejo os anúncios sem preocupação de horário. Vocês talvez achem que é loucura ver os mesmos anúncios diversas vezes, mas posso garantir que os anúncios variam muito mais que as piadas e as músicas que são servidas todos os dias. Pelo menos os anúncios são bem bolados, alguns até inteligentes. A técnica é chatear tanto até ficarem em nosso subconsciente — se é que alguém consegue ter subconsciente assistindo televisão. Os refrigerantes, por exemplo: quase todos fazem as garrafas dançar na nossa frente e tocam uma musiquinha que chega a dar sede. Aí a gente não resiste: vai à geladeira e bebe um copo de água. Mas bom mesmo é anúncio de sabonete: aparece cada moça bonita que vou te contar. E com uma grande vantagem, as moças não falam, só aparecem, ligam o chuveiro e ficam noivas dentro da espuma. Por mais que a gente saiba que aquilo é anúncio de sabonete, fica sempre aquela dúvida se um dia eles não vão resolver dar o nome daquele chuveiro ou, quem sabe, o telefone da moça. Geniais mesmo são as geladeiras que duram toda a vida. Mas muito mais geniais são os textos garantindo que cabe tudinho dentro delas, mas acho que não têm tanta certeza, pois fazem questão de botar uma moça bem bonita pra mostrar a geladeira — e a gente tem é vontade de comprar a moça, mesmo sem o "certificado de garantia".E as televisões, baratíssimas, cada vez mais vendidas, dentro dos novos planos de venda. Ao invés de bolarem uma televisão mais perfeita, ficam é bolando planos de venda. No dia em que inventarem uma televisão que focalize a cara de um sujeito com menos de três orelhas, não precisam nem fazer anúncio: é só exibir, que esgota no mesmo dia. Existe anúncio de todo tipo: tecidos que não amarrotam, tecidos que dão prêmios, tecidos que dão desconto, tecidos coloridos que são apresentados em preto-e-branco, tecidos brancos que ficam cada vez mais brancos à medida que vai surgindo um novo sabão em pó. Mas é o que eles pensam: o branco deles, lá em casa, todo mundo tá vendo que é cinza. O mais engraçado são os anúncios de inseticidas que matam todos os insetos, menos as moscas do estúdio. Anuncia-se também muita banha, muito pneu, muito perfume, muito sapato, muito automóvel, muita calça, muita bebida e muita pílula pra dor de cabeça. Parece até que um anúncio depende do outro — é como se fosse uma novela, com a vantagem de a gente sempre saber qual o final de cada anúncio. E não pensem que sou o único a achar os anúncios mais interessantes que os programas: os donos das emissoras também acham — senão não ocupavam a maior parte do tempo com anúncios. Nos intervalos é que colocam alguns programinhas — por absoluta falta de mais anúncios. Reparem só: os programas de humor mostram o lado negativo das pessoas, os personagens são quase todos fossilizados, gagos, surdos, cegos, velhos borocochôs ou sem sexo definido. As novelas exploram seres anormais dentro de um mundo de misérias e lágrimas. Já os anúncios apresentam um mundo de otimismo, onde tudo é bom e saudável, não quebra, dura toda a vida e qualquer um pode adquirir quase de graça, pagando como puder, no endereço mais próximo da sua casa. O único detalhe que nos deixa um pouco frustrados é que a moça que dá os endereços fala tão preocupada em não errar que a gente não consegue decorar nenhum endereço. Em compensação, sabe de cor a moça todinha.

313. LIEV TOLSTOI. TRÊS MORTES. Era outono. Pela estrada real duas carruagens seguiam a trote rápido. Na da frente viajavam duas mulheres. Uma, a senhora, magra e pálida. A outra, a criada, gorda e de um corado lustroso. Seus cabelos curtos e ressecados brotavam por baixo do chapéu desbotado, e a mão avermelhada, coberta por uma luva puída, ajeitava-os com gestos bruscos. O busto volumoso, envolto num lenço rústico, transpirava saúde; os olhos negros e vivazes ora espiavam pela janela os campos fugidios, ora observavam timidamente a senhora, ora lançavam olhares inquietos para os cantos da carruagem. A criada tinha bem ao nariz o chapéu da senhora pendurado no bagageiro, um cãozinho deitado nos joelhos, os pés acima dos bauzinhos dispostos no chão, tamborilando sobre eles, em sons quase abafados pelo ruído dos solavancos das molas e do tilintar dos vidros. De mãos cruzadas sobre os joelhos e de olhos fechados, a senhora balouçava levemente nas almofadas que lhe serviam de apoio e, com um leve franzir de cenho, dava tossidelas fundas. Tinha na cabeça uma touquinha branca de dormir e um lencinho azul celeste envolto no pescoço pálido e delicado. Uma risca brotava abaixo da touquinha é repartia os cabelos ruços, excessivamente lisos e empastados; havia qualquer coisa de seco e mortiço na brancura do couro daquela vasta risca. A pele murcha, um tanto amarelada, mal conseguia modelar suas feições belas e esguias, que ganhavam um tom vermelho nas maçãs do rosto. Os lábios secos mexiam-se intranqüilos, as ralas pestanas não se encrespavam, e o sobretudo de viagem formava rugas entre os seios encovados. Mesmo de olhos fechados, o rosto da senhora expressava cansaço, irritação e um sofrimento que lhe era familiar. Recostado em seu banco, o criado cochilava na boléia; o postilhão gritava animado e fustigava a possante quadriga suada; vez por outra espreitava o outro cocheiro, que gritava de trás, da caleça. As marcas paralelas e largas das rodas se estendiam nítidas e iguais pelo calcário lamacento da estrada. O céu estava cinzento e frio; a bruma úmida espalhava-se pelos campos e pela estrada. A carruagem estava abafada e recendia poeira e água-de-colônia. A doente inclinou a cabeça para trás e abriu devagar os olhos, grandes, brilhantes, de uma bela tonalidade escura. "Outra vez!" — disse ela, repelindo nervosamente com a mão bonita e magra a ponta da saia da criada, que lhe roçava de leve a perna, e torceu a boca de dor. Matriocha recolheu a saia com ambas as mãos, soergueu as pernas robustas e sentou-se mais afastada. Um corado vivo cobriu-lhe o rosto viçoso. Os belos olhos escuros da doente fitavam ansiosos os movimentos da criada. A senhora apoiou as mãos no banco e quis também soerguer-se para se sentar mais alto, mas faltaram-lhe forças. A boca se contorceu e todo o rosto ficou desfigurado por uma expressão de ironia impotente e malévola. "Pelo menos você devia me ajudar... Ah, não é preciso! Eu mesma faço, só que não ponha atrás de mim essas suas sacolas, faça o favor!... É melhor mesmo que não me toque, já que não leva jeito." A senhora fechou os olhos e mais uma vez ergueu as pálpebras, observando a criada. Matriocha mordia o lábio inferior avermelhado, olhando para ela. O peito da doente exalou um suspiro fundo que, antes de terminar, transformou-se em tosse. Ela se virou, encolheu-se e agarrou-se ao peito com ambas as mãos. Quando a tosse passou, tornou a fechar os olhos e permaneceu sentada sem se mexer. A carruagem e a caleça chegaram à aldeia. Matriocha tirou a mão roliça do lenço e se benzeu. — O que é isso? — perguntou a senhora. — A estação de posta, senhora. — E por que você está se benzendo? — Tem uma igreja, senhora. A doente voltou-se para a janela e começou a se benzer lentamente, com os olhos bem graúdos fitos numa grande igreja de madeira que a carruagem contornava. Os dois veículos pararam em frente à estação. O marido da doente e o médico desceram da caleça e se aproximaram da carruagem. — Como a senhora se sente? — perguntou o médico, tomando-lhe o pulso. — E então, como está, minha cara, não está cansada? — perguntou o marido em francês. — Não quer descer? Matriocha juntou as trouxas e encolheu-se num canto para não atrapalhar a conversa. — Mais ou menos... na mesma — respondeu a doente. — Não vou descer. O marido foi para a estação, depois de ficar um pouco com a mulher. Matriocha desceu do carro e correu pela lama para a entrada do edifício, nas pontas dos pés. — Se eu estou mal, isto não é razão para o senhor não tomar o seu café — disse a senhora, com um leve sorriso, ao médico postado à janela. — Nenhum deles se importa comigo — disse consigo mesma, mal o médico se afastou devagarzinho e subiu correndo a escada da estação. — Eles estão bem, o resto não tem importância. Oh, meu Deus! — E então, Edvard Ivánovitch? — disse o marido ao encontrar o médico, esfregando as mãos com um sorriso jovial. Ordenei que trouxessem alguma provisão, o que o senhor acha? — Pode ser. — E ela, como está? — perguntou suspiroso o marido, baixando a voz e levantando as sobrancelhas. — Eu disse: ela não vai conseguir chegar, e não só até a Itália: queira Deus que chegue a Moscou. Ainda mais com esse tempo. — E o que é que nós vamos fazer? Ah, meu Deus! Meu Deus! — o marido tapou os olhos com as mãos. —Traga aqui — acrescentou ele para o homem que carregava as provisões. — Ela deveria ter ficado — respondeu o médico, dando de ombros. — Agora me diga, o que é que eu podia fazer? — objetou o marido. — Ora, eu fiz de tudo para detê-la, falei dos recursos, das crianças que nós teríamos de deixar, e dos meus negócios; ela não quer dar ouvidos a nada. Fica fazendo planos de vida no estrangeiro como se estivesse com saúde. E fosse eu falar do seu estado... seria o mesmo que matá-la. — Mas ela já está morta, o senhor precisa saber disso, Vassili Dmítritch. Uma pessoa não pode viver quando não tem pulmões, e os pulmões não tornam a crescer. É triste, duro, mas o que se vai fazer? O meu e o seu problema é fazer com que o fim dela seja o mais tranqüilo possível. Nós precisamos é de um confessor.— Ai meu Deus! Mas o senhor entenda a minha situação na hora de lembrar a ela esta sua última vontade. Aconteça o que acontecer, isso eu não vou dizer a ela. O senhor bem sabe como ela é bondosa...— Mesmo assim tente convencê-la a ficar até o final do inverno, — disse o médico, meneando a cabeça com ar expressivo — senão pode acontecer o pior na viagem... — Aksiucha! Ei, Aksiucha! — grunhiu a filha do chefe da estação, jogando um lenço sobre a cabeça e pisando no alpendre enlameado nos fundos da casa. — Vamos espiar a senhora de Chirkin, dizem que está doente do peito e que estão levando para o estrangeiro. Eu nunca vi como é uma tísica. Aksiucha correu para a soleira da porta e ambas precipitaram-se portão afora de mãos dadas. Encurtando a marcha, passaram diante da carruagem e espiaram através da janela aberta.A doente voltou o rosto para elas mas, percebendo-lhes a curiosidade, franziu o cenho e virou-se para o outro lado. — Mm-ãe-zinha! — disse a filha do chefe da posta, voltando rapidamente a cabeça. — Que encanto de beleza deve ter sido; agora vejam o que sobrou dela! Dá até medo. Viu, viu, Aksiucha? — Sim, como está mal! — Aksiucha fez coro com a moça. — Vamos dar mais uma olhada, a gente faz que está indo para o poço. Você percebeu? Ela deu as costas, mas eu vi. Que dó, Macha. — É, e que lama! — respondeu Macha, e as duas correram para o portão. — Pelo visto, estou com uma aparência horrível — pensou a doente. — Eu só preciso chegar mais rápido, mais rápido ao estrangeiro, lá eu me curo. — E então, minha cara, como está? — disse o marido, ao se aproximar da carruagem mastigando. — A mesma pergunta de sempre. E comendo! — pensou ela. — Mais ou menos... — falou entre dentes. — Sabe de uma coisa, minha cara, receio que, com esse tempo, você piore no caminho; Edvard Ivanitch também acha. Não seria o caso de voltar? Ela calava, emburrada. — Pode ser que o tempo melhore, que a estrada fique boa e que você se recupere; e aí poderíamos ir juntos. — Desculpe, mas se por muito tempo não tivesse lhe dado ouvidos, eu estaria agora em Berlim e totalmente curada. — Mas o que eu podia fazer, meu anjo? Era impossível, você sabe. Mas agora, se ficasse por um mês, ao menos, iria se recuperar prontamente; eu terminaria meus negócios, levaríamos as crianças... — As crianças estão com saúde, eu não. — Veja se entende, minha cara, com um tempo desses, se você piorar na viagem... pelo menos você estaria em casa. — Em casa, o quê? Pra morrer? — respondeu a doente irritada. Mas a palavra "morrer" pelo visto a assustou, e ela olhou para o marido com ar de súplica e interrogação. Ele baixou o olhar e calou. De repente, a doente fez um beicinho infantil, e lágrimas lhe saltaram dos olhos. O marido cobriu o rosto com o lenço e afastou-se da carruagem. "Não, eu vou" — disse a doente, levantando os olhos para o céu, juntando as mãos e murmurando palavras desconexas. "Meu Deus! Por quê?" — dizia ela, e as lágrimas corriam ainda mais intensas. Rezou por muito tempo com ardor, mas no peito, a mesma dor e opressão, no céu, nos campos e na estrada, o mesmo tom cinzento e sombrio, e a mesma bruma de outono, nem mais nem menos rarefeita, derramando-se do mesmo jeito sobre a lama da estrada, os telhados, a carruagem e os tulups dos cocheiros, que discutiam em voz alta, alegres, enquanto lubrificavam e preparavam a carruagem... A carruagem estava atrelada, mas o cocheiro fazia hora. Ele havia passado pela isbá dos cocheiros. A isbá estava quente, abafada, escura, com um ar pesado, um cheiro de lugar habitado, de pão assado, repolho e pele de carneiro. Havia alguns cocheiros no cômodo, uma cozinheira ocupava-se no forno e, em cima deste, um doente estava deitado, coberto por uma pele de carneiro. — Tio Khviédor! Ô, tio Khviédor! — disse o jovem cocheiro vestido de tulup, com um chicote no cinto, entrando no cômodo e dirigindo-se ao doente. — O que é que tu vai querer com o Fiédka, seu vadio? — perguntou um dos cocheiros. — Olha só, tão te esperando na carruagem... — Quero pedir as botas dele; as minhas se acabaram — respondeu o rapaz, jogando os cabelos para trás e ajeitando as luvas no cinto. — Que que é? — do forno ouviu-se uma voz fraca, e um rosto magro, de barba ruiva, espiou. A mão larga, descarnada e branca, coberta de pêlos, enfiava uma samarra nos ombros cobertos por um camisolão sujo. — Me dá alguma coisa pra beber, irmão; o que que é? O rapaz lhe serviu uma caneca de água. — Sabe o que é, Fédia, — disse ele, indeciso — pelo visto tu não vai precisar das botas novas agora; dá pra mim, pelo visto tu não vai andar. O doente tombou a cabeça cansada sobre a caneca reluzente, molhou os bigodes ralos e caídos na água escura e bebeu sem forças. A barba emaranhada estava suja; os olhos fundos, embotados, levantaram-se com dificuldade para o rosto do rapaz. Depois de beber, ele afastou a água e quis levantar as mãos para enxugar os lábios úmidos, mas não conseguiu e enxugou-as na manga da samarra. Calado e respirando com dificuldade pelo nariz, olhava o rapaz direto nos olhos, reunindo forças. — Pode ser que tu já tenha prometido a alguém — disse o rapaz. — O problema é que lá fora está úmido, e como eu tenho que ir pro trabalho, pensei com meus botões: eu pego e peço as botas do Fiédka; pelo jeito ele não vai precisar. Agora, se tu precisar, então tu diz... No peito do doente alguma coisa começou a vibrar e roncar; ele inclinou-se e uma interminável tosse de garganta o sufocou. — Pra que vai precisar? — trovejou de repente por toda a isbá a voz da cozinheira zangada. — Faz uns dois meses que ele não sai do forno. Tá vendo, tá se arrebentando, até as entranhas dele doem, escuta só. Como é que ele vai precisar das botas? Ninguém vai enterrá-lo com botas novas. Já não é sem tempo, Deus que me perdoe.Tá vendo, tá se arrebentando. Ou então que alguém leve ele daqui pra outra isbá ou pra outro lugar! Diz que na cidade tem esse tipo de hospital; isso é coisa que se faça, ocupar o canto todo... chega! Não se tem espaço pra nada. E ainda por cima, ficam me cobrando limpeza. — Ei, Serioga vá para a carruagem, os senhores estão esperando — gritou da porta o chefe da estação. Serioga queria ir sem esperar resposta, mas o doente, tossindo, deu-lhe a entender com os olhos que queria dizer alguma coisa. — Pega as botas, Serioga — disse ele, contendo a tosse e descansando um pouco. — Só que tu me compra uma campa, porque eu tô morrendo... — acrescentou roncando. — Obrigado, tio, então eu levo; e a campa, tá, tá, eu compro! — Bem, meninos, vocês ouviram — ainda conseguiu dizer o doente, e tornou a se curvar sufocado. — Tá bem, ouvimos — respondeu um dos cocheiros. — Vai, Serioga, vai pra carruagem, senão o chefe vem te chamar outra vez. A senhora de Chirkin tá lá doente. Serioga tirou depressa as imensas botas furadas e jogou-as debaixo de um banco. As botas novas do tio Fiódor eram precisamente o seu número, e ele foi para a carruagem, admirando-as. — Êta beleza de botas! Deixa eu engraxar — disse um cocheiro com graxa na mão, enquanto Serioga subia na boléia e tomava as rédeas. — Deu de graça? — Ah, invejoso! — respondeu Serioga, aprumando-se e juntando as pontas do casaco junto aos pés. — Eia, vamos, belezas! — gritou para os cavalos, agitando o chicote; carruagem e caleça, com seus passageiros, malas e bagagens, saíram em disparada pela estrada molhada, sumindo na bruma cinzenta de outono. O cocheiro doente permaneceu sobre o forno da isbá abafada e, sem conseguir escarrar, virou-se a muito custo para o outro lado e ficou quieto. Até o cair da tarde, gente chegava, comia, saía da isbá; e não se ouvia sinal do doente. Ao anoitecer, a cozinheira subiu no forno e puxou a samarra por cima das pernas dele. — Não fica zangada comigo, Nastácia, — disse o doente — logo vou deixar este teu canto. — Tá bem, tá bem, deixa pra lá — murmurou Nastácia. — Onde é que dói, tio? Me diz. — Uma dor insuportável por dentro. Só Deus sabe. — Na certa a garganta também dói, tu tosse tanto! — Dói tudo. Minha hora chegou, é isso. Oh, oh, oh! — gemeu o doente. — Cobre as pernas assim — disse Nastácia, ajeitando a samarra sobre ele, ao descer do forno. À noite, uma lamparina iluminava fracamente a isbá. Nastácia e uns dez cocheiros roncavam alto pelo chão e pelos bancos. Só o doente gemia fraquinho, tossia e revirava-se no forno. Ao amanhecer, aquietou-se de vez. — Estranho o que eu vi esta noite em sonho — disse a cozinheira, espreguiçando-se na penumbra da manhã seguinte. — Vejo como se o tio Khviédor tivesse descendo do forno e saindo pra rachar lenha. "Nástia", diz ele, "deixa eu te ajudar"; e eu pra ele: "Como é que tu vai rachar lenha?", mas ele agarra o machado e tome de rachar lenha com tanta vontade, e era só lasca voando. E eu: "Como é que pode, tu não tava doente?". "Nada", diz ele, "eu estou bem". E sacode o machado de um jeito que me dá medo; aí eu comecei a gritar e acordei. Será que ele já não morreu? —Tio Khviédor! Ô, tio! Fiódor não respondia. — É mesmo, será que ele já não morreu? Vamos ver — disse um dos cocheiros, que havia acordado. Um braço magro, frio e céreo, coberto de pêlos ruivos, pendia do forno. — Vamos falar com o chefe da estação, parece que tá morto — continuou o cocheiro. Fiódor não tinha parentes. Viera de longe. No dia seguinte, foi enterrado no cemitério novo, atrás do bosque, e Nastácia passou vários dias contando a todo mundo o sonho que tivera e como tinha sido a primeira a perceber a morte do tio Fiódor. Chegou a primavera. Nas ruas úmidas da cidade rumorejavam regatos velozes entre o gelo sujo de esterco; as cores dos trajes e o som das vozes dos transeuntes distinguiam-se nitidamente. Nos jardins, atrás das sebes, as árvores inchavam de botões e mal se notava o balançar dos ramos ao sopro da brisa fresca. Por todo lado gotinhas transparentes pingavam... Pardais desajeitados piavam e adejavam com suas asinhas. Nos lados ensolarados, nas sebes, nas casas e nas árvores, tudo se movia e brilhava. Reinava a alegria e o viço tanto no céu e na terra como no coração dos homens. Em uma das ruas principais, palha fresca se estendia no chão diante de uma grande casa senhorial; na casa estava aquela mesma doente moribunda que tinha pressa em chegar ao exterior. À porta fechada do quarto, o marido da doente e uma senhora idosa. Num divã, um sacerdote, vista baixa, segurando alguma coisa enrolada na estola de seus paramentos.A um canto, uma velha, mãe da doente, chorava com amargura numa poltrona Voltaire. A seu lado, uma criada segurava um lenço, esperando que a velha o pedisse; outra lhe friccionava alguma coisa nas têmporas e soprava por baixo da toquinha a cabeça grisalha. — Vá com Cristo, minha amiga, — disse o marido à mulher idosa ao seu lado — ela confia tanto na senhora... a senhora é tão jeitosa com ela, procure convencê-la direitinho, minha querida; vá, vá. — Ele já queria abrir a porta, mas a prima o deteve, passou o lenço algumas vezes nos olhos e sacudiu a cabeça. — Agora não parece mais que chorei — disse ela, e abriu a porta, entrando no quarto. O marido estava agitadíssimo e parecia completamente perdido. Ia caminhando em direção à velha, mal deu alguns passos, voltou-se, andou pela sala e aproximou-se do sacerdote. Este olhou para ele, levantou os olhos para o céu e suspirou. A barba cerrada, tingida de fios grisalhos, também se ergueu e baixou. — Meu Deus, meu Deus! — disse o marido. — O que é que se vai fazer? — retrucou suspiroso o padre, e mais uma vez sobrancelhas e barba se ergueram e baixaram. — E a mãe dela está aqui! — disse o marido quase em desespero. — Ela não vai suportar isso tudo. Porque amar como ela a ama... não sei, não. Reverendo, se pelo menos o senhor tentasse tranqüilizá-la e fazer com que ela saísse daqui... O sacerdote levantou-se e aproximou-se da velha. — É isso, ninguém pode avaliar um coração de mãe, — disse ele — mas Deus é misericordioso. De repente o rosto da velha começou a se contrair cada vez mais e um soluço histérico a sacudiu. — Deus é misericordioso — continuou o sacerdote, quando ela se acalmou um pouco. — Em minha paróquia havia um doente muito mais grave que Mária Dmítrievna; e veja o que aconteceu, foi completamente curado com ervas por um homem simples, em pouco tempo. E além do mais, esse mesmo homem está agora em Moscou. Eu disse a Vassili Dmítrievitch que dava para se tentar. Ao menos serviria de consolo para a doente. A Deus nada é impossível. — Não, ela não tem mais jeito, — pronunciou a velha — em vez de me levar, é a ela que Deus leva. — E os soluços histéricos tornaram-se tão fortes que ela perdeu os sentidos. O marido da enferma cobriu o rosto com as mãos e correu para fora do quarto. No corredor, a primeira pessoa que encontrou foi um menino de seis anos, que tentava alcançar a todo custo uma menina menor. — E as crianças, não permite que eu as leve para perto da mãe? — perguntou a babá. — Não, ela não quer vê-las. Isto a deixaria transtornada. O menino parou um minutinho e examinou atento o rosto do pai; mas, num repente, deu um chute no ar e, com um grito de alegria, continuou a correr. — Faz de conta que ela é o cavalo murzelo, papai! — berrou o garoto, apontando para a irmã. Enquanto isso, no outro quarto, a prima sentava-se ao lado da doente e conduzia habilmente a conversa, tentando prepará-la para a idéia da morte. Na outra janela, o médico mexia a tisana. Metida num roupão branco, cercada de almofadas na cama, a doente olhava calada para a prima. — Ah, minha amiga, — disse, interrompendo-a inesperadamente — não precisa me preparar. Não me trate como criança. Eu sou cristã. Eu sei de tudo. Eu sei que minha vida está por um fio; eu sei que se meu marido tivesse me escutado antes, eu estaria na Itália agora e, quem sabe, podia até ser verdade, eu estaria curada. Todos lhe diziam isso. Mas o que se há de fazer? Pelo visto, foi assim que Deus quis. Todos nós temos muitos pecados, eu sei disso; mas espero a graça de Deus, que a tudo perdoa, a tudo perdoa. Eu me esforço para entender, mas tenho muitos pecados, querida. Por outro lado, já sofri bastante. Esforcei-me para suportar com paciência meu sofrimento... — Chamo então o padre, querida? Você vai se sentir mais leve comungando — disse a prima. A doente baixou a cabeça em sinal de consentimento. — Deus, perdoa essa pecadora! — sussurrou. A prima saiu e fez sinal para o padre. — É um anjo! — disse ela ao marido, com lágrimas nos olhos. O marido começou a chorar; o sacerdote entrou na sala; a velha permanecia desacordada; no quarto principal reinava um silêncio absoluto. Uns cinco minutos depois, o padre saiu do quarto da doente, tirou a estola e ajeitou os cabelos. — Graças a Deus, está mais calma agora — disse ele. — Quer vê-los. A prima e o marido entraram. A doente fitava um ícone e chorava baixinho. — Eu a felicito, minha amiga — disse o marido. — Deus seja louvado! Como me sinto bem, agora; uma doçura inexplicável — disse a doente, e um leve sorriso brincou em seus lábios finos. — Como Deus é misericordioso! Não é verdade que ele é misericordioso e onipotente? — E mais uma vez olhou para o ícone com olhos marejados e ávida súplica. De repente, pareceu lembrar-se de algo. Fez um sinal para que o marido se aproximasse. — Você nunca faz o que eu peço — disse ela com uma voz fraca e descontente. O marido esticava o pescoço e escutava-a submisso. — O que foi, minha querida? — Quantas vezes eu disse que esses médicos não sabem de nada; existem remédios caseiros que curam tudo... Escuta o que o padre disse... o homem simples... Mande buscá-lo. — Pra quê, minha querida? — Meu Deus, ninguém quer entender!... — E a doente franziu o cenho e fechou os olhos. O médico chegou-se a ela e tomou-lhe o pulso. Batia cada vez mais fraco. Ele lançou um olhar para o marido. A senhora percebeu o gesto e olhou à volta assustada.A prima deu-lhe as costas e começou a chorar. — Não chore, não aflija a você e a mim — disse a doente. — Assim você tira este meu último sossego. — Você é um anjo! — disse a prima, beijando-lhe a mão. — Não, beije aqui, só se beija a mão dos mortos. Meu Deus, meu Deus! Na mesma noite, a doente era só corpo, e este corpo jazia no caixão, na sala do casarão. No cômodo espaçoso, a portas fechadas, um sacristão lia salmos de Davi com voz fanhosa e ritmada. A luz viva das velas caía dos altos candelabros de prata sobre a fronte cérea da morta, suas pesadas mãos de cera, sobre as pregas da coberta que delineavam espantosamente os joelhos e os dedos dos pés. Sem entender o que dizia, o sacristão lia de maneira compassada e, no silêncio da sala, as palavras ecoavam estranhas e morriam. De quando em quando, de algum quarto distante chegavam vozes infantis e o barulho do sapateado das crianças. "Se ocultas o rosto, eles se perturbam" — anunciou o livro dos Salmos. "Se lhes cortas a respiração, morrem e voltam ao seu pó. Envias o teu Espírito, eles são criados e, assim, renovas a face da terra. A glória do Senhor seja para sempre!" O rosto da morta estava severo, calmo, majestoso. Nada se movia, nem na fronte limpa e fria, nem nos lábios cerrados e enrijecidos. Ela era toda atenção. E será que ao menos agora ela compreendia essas grandes palavras? Um mês depois erigiu-se um jazigo de pedra sobre a sepultura da morta. Sobre a do cocheiro ainda não havia nenhuma campa, apenas uma relva verde-clara brotava do montículo de terra, único vestígio de um homem que havia passado pela existência. — Serioga, tu vai cometer um pecado se não comprar a campa para o Khviédor — disse a cozinheira da estação de posta. — Tu dizia assim: é inverno, é inverno. Mas agora, por que não mantém a palavra? Foi na minha frente que tu prometeu. Ele já veio pedir uma vez, e se tu não compra, ele volta e dessa vez é pra te estrangular. — Que nada! Por acaso eu estou recusando?! — respondeu Serioga. — Eu vou comprar a campa; já disse que vou comprar; vou comprar por um rublo e meio. Não me esqueci, mas é que precisa trazer. É só ir na cidade que eu compro. — Devia pelo menos colocar uma cruz lá, é isso que você tinha que fazer, — retrucou um velho cocheiro — senão isso vai é acabar mal. As botas tu tá usando, né? — E essa cruz, onde é que se vai arranjar? Não dá pra fazer de lenha, né? — Isso lá é coisa que se diga? Claro que de lenha não dá pra fazer; tu pega o machado e vai mais cedo pro bosque, e então tu faz. Tu pega e corta um freixo. Ou então tu vai ter que dar vodca ao guarda florestal. Pra toda essa canalha não há bebida que chegue. Faz pouco eu quebrei a trave da carruagem e cortei uma senhora tora e ninguém deu um pio. De manhã bem cedo, mal começou a clarear, Serioga pegou o machado e foi para o bosque. Por toda parte estendia-se um manto de orvalho frio e fosco que caía insistente e que o sol não iluminava. O nascente mal começava a clarear, fazendo sua frágil luz refletir no firmamento encoberto por nuvens ralas. Não se mexia um só talo de capim e uma única folha nas copas. Só de quando em quando uns ruídos de asas entre as árvores compactas ou um leve farfalhar pelo chão quebravam o silêncio da mata. De repente, um som estranho, desconhecido da natureza, espalhou-se e congelou na orla do bosque. E de novo ouviu-se o mesmo som que passou a se repetir de forma regular, embaixo, junto ao tronco de uma árvore imóvel. A copa de uma árvore estremeceu de forma incomum; suas folhas viçosas sussurraram algo; uma toutinegra pousada em um galho esvoaçou duas vezes, piando, e pousou em outra árvore, remexendo a caudinha. Embaixo, o machado ressoava cada vez mais e mais surdo; as lascas brancas e molhadas de seiva voavam sobre o capim orvalhado, ouvindo-se um leve rangido após os golpes. A árvore estremeceu por inteiro, inclinou-se e aprumou-se rapidamente, vacilando assustada sobre sua raiz. Por um instante, tudo ficou em silêncio; mas a árvore tornou a se inclinar e ouviu-se mais uma vez o rangido de seu tronco; e ela despencou de copa na terra úmida, quebrando e soltando os ramos. Cessaram os sons do machado e dos passos. A toutinegra piou e voou para mais alto. O ramo em que ela roçou suas asas balançou por algum tempo e estacou, como os outros, com todas as suas folhas. As árvores, ainda mais alegres, pavoneavam seus galhos imóveis no espaço aberto há pouco. Os primeiros raios de sol infiltraram-se por entre as nuvens, brilharam lá no alto e correram a terra e o céu. A neblina derramou-se em ondas pelos vales; o orvalho começou a brincar na relva; nuvenzinhas brancas e transparentes dispersavam-se apressadas pelo firmamento azulado. Os pássaros revoavam sobre a mata espessa e, sem rumo, gorjeavam felizes; folhas viçosas sussurravam radiantes e tranqüilas nas copas, e os ramos das árvores vivas mexeram-se lentos, majestosos, sobre a árvore tombada e morta.

314. LYGIA FAGUNDES TELLES. O MENINO E O VELHO. Quando entrei no pequeno restaurante da praia os dois já estavam sentados, o velho e o menino. Manhã de um azul flamante. Fiquei olhando o mar que não via há algum tempo e era o mesmo mar de antes, um mar que se repetia e era irrepetível. Misterioso e sem mistério nas ondas estourando naquelas espumas flutuantes (bom-dia, Castro Alves!) tão efêmeras e eternas, nascendo e morrendo ali na areia. O garçom, um simpático alemão corado, me reconheceu logo. Franz?, eu perguntei e ele fez uma continência, baixou a bandeja e deixou na minha frente o copo de chope. Pedi um sanduíche. Pão preto?, ele lembrou e foi em seguida até a mesa do velho que pediu outra garrafa de água de Vichy. Fixei o olhar na mesa ocupada pelos dois, agora o velho dizia alguma coisa que fez o menino rir, um avô com o neto. E não era um avô com o neto, tão nítidas as tais diferenças de classe no contraste entre o homem vestido com simplicidade mas num estilo rebuscado e o menino encardido, um moleque de alguma escola pobre, a mochila de livros toda esbagaçada no espaldar da cadeira. Deixei baixar a espuma do chope mas não olhava o copo, com o olhar suplente (sem direção e direcionado) olhava o menino que mostrava ao velho as pontas dos dedos sujas de tinta, treze, catorze anos? O velho espigado alisou a cabeleira branca em desordem (o vento) e mergulhou a ponta do guardanapo de papel no copo d'água. Passou o guardanapo para o menino que limpou impaciente as pontas dos dedos e logo desistiu da limpeza porque o suntuoso sorvete coroado de creme e pedaços de frutas cristalizadas já estava derretendo na taça. Mergulhou a colher no sorvete. A boca pequena tinha o lábio superior curto deixando aparecer os dois dentes da frente mais salientes do que os outros e com isso a expressão adquiria uma graça meio zombeteira. Os olhos oblíquos sorriam acompanhando a boca mas o anguloso rostinho guardava a palidez da fome. O velho apertava os olhos para ver melhor e seu olhar era demorado enquanto ia acendendo o cachimbo com gestos vagarosos, compondo todo um ritual de elegância. Deixou o cachimbo no canto da boca e consertou o colarinho da camisa branca que aparecia sob o decote do suéter verde-claro, devia estar sentindo calor mas não tirou o suéter, apenas desabotoou o colarinho. Na aparência, tudo normal: ainda com os resíduos da antiga beleza o avô foi buscar o neto na saída da escola e agora faziam um lanche, gazeteavam? Mas o avô não era o avô. Achei-o parecido com o artista inglês que vi num filme, um velho assim esguio e bem cuidado, fumando o seu cachimbo. Não era um filme de terror mas o cenário noturno tinha qualquer coisa de sinistro com seu castelo descabelado. A lareira acesa. As tapeçarias. E a longa escada com os retratos dos antepassados subindo (ou descendo) aqueles degraus que rangiam sob o gasto tapete vermelho. Cortei pelo meio o sanduíche grande demais e polvilhei o pão com sal. Não estava olhando mas percebia que os dois agora conversavam em voz baixa, a taça de sorvete esvaziada, o cachimbo apagado e a voz apagada do velho no mesmo tom caviloso dos carunchos cavando (roque-roque) as suas galerias. Acabei de esvaziar o copo e chamei o Franz. Quando passei pela mesa os dois ainda conversavam em voz baixa - foi impressão minha ou o velho evitou o meu olhar? O menino do labiozinho curto (as pontas dos dedos ainda sujas de tinta) olhou-me com essa vaga curiosidade que têm as crianças diante dos adultos, esboçou um sorriso e concentrou-se de novo no velho. O garçom alemão acompanhou-me afável até a porta, o restaurante ainda estava vazio. Quase me lembrei agora, eu disse. Do nome do artista, esse senhor é muito parecido com o artista de um filme que vi na televisão. Franz sacudiu a cabeça com ar grave: Homem muito bom! Cheguei a dizer que não gostava dele ou só pensei em dizer? Atravessei a avenida e fui ao calçadão para ficar junto do mar. Voltei ao restaurante com um amigo (duas ou três semanas depois) e na mesma mesa, o velho e o menino. Entardecia. Ao cruzar com ambos, bastou um rápido olhar para ver a transformação do menino com sua nova roupa e novo corte de cabelo. Comia com voracidade (as mãos limpas) um prato de batatas fritas. E o velho com sua cara atenta e terna, o cachimbo, a garrafa de água e um prato de massa ainda intocado. Vestia um blazer preto e malha de seda branca, gola alta. Puxei a cadeira para assim ficar de costas para os dois, entretida com a conversa sobre cinema, o meu amigo era cineasta. Quando saímos a mesa já estava desocupada. Vi a nova mochila (lona verde-garrafa, alças de couro) dependurada na cadeira. Ele esqueceu, eu disse e apontei a mochila para o Franz que passou por mim afobado, o restaurante encheu de repente. Na porta, enquanto me despedia do meu amigo, vi o menino chegar correndo para pegar a mochila. Reconheceu-me e justificou-se (os olhos oblíquos riam mais do que a boca), Droga! Acho que não esqueço a cabeça porque está grudada. Pressenti o velho esperando um pouco adiante no meio da calçada e tomei a direção oposta. O mar e o céu formavam agora uma única mancha azul-escura na luz turva que ia dissolvendo os contornos. Quase noite. Fui andando e pensando no filme inglês com os grandes candelabros e um certo palor vindo das telas dos retratos ao longo da escadaria. Na cabeceira da mesa, o velho de chambre de cetim escuro com o perfil esfumaçado. Nítido, o menino e sua metamorfose mas persistindo a palidez. E a graça do olhar que ria com o labiozinho curto. No fim do ano, ao passar pelo pequeno restaurante resolvi entrar mas antes olhei através da janela, não queria encontrar o velho e o menino, não me apetecia vê-los, era isso, questão de apetite. A mesa estava com um casal de jovens. Entrei e Franz veio todo contente, estranhou a minha ausência (sempre estranhava) e indicou-me a única mesa desocupada. Hora do almoço. Colocou na minha frente um copo de chope, o cardápio aberto e de repente fechou-se sua cara num sobressalto. Inclinou-se, a voz quase sussurrante, os olhos arregalados. Ficou passando e repassando o guardanapo no mármore limpo da mesa, a senhora se lembra? Aquele senhor com o menino que ficava ali adiante, disse e indicou com a cabeça a mesa agora ocupada pelos jovens. Ich! foi uma coisa horrível! Tão horrível, aquele menininho, lembra? Pois ele enforcou o pobre do velho com uma cordinha de náilon, roubou o que pôde e deu no pé! Um homem tão bom! Foi encontrado pelo motorista na segunda-feira e o crime foi no sábado. Estava nu, o corpo todo judiado e a cordinha no pescoço, a senhora não viu no jornal?! Ele morava num apartamento aqui perto, a policia veio perguntar mas o que a gente sabe? A gente não sabe de nada! O pior é que não vão pegar o garoto, ich! Ele é igual a esses bichinhos que a gente vê na areia e que logo afundam e ninguém encontra mais. Nem com escavadeira a gente não encontra não. Já vou, já vou!, ele avisou em voz alta, acenando com o guardanapo para a mesa perto da porta e que chamava fazendo tilintar os talheres. Ninguém mais tem paciência, já vou!... Olhei para fora. Enquadrado pela janela, o mar pesado, cor de chumbo, rugia rancoroso. Fui examinando o cardápio, não, nem peixe nem carne. Uma salada. Fiquei olhando a espuma branca do chope ir baixando no copo.

315. LYGIA FAGUNDES TELLES. SUICÍDIO NA GRANJA. Alguns se justificam e se despedem através de cartas, telefonemas ou pequenos gestos — avisos que podem ser mascarados pedidos de socorro. Mas há outros que se vão no mais absoluto silêncio. Ele não deixou nem ao menos um bilhete?, fica perguntando a família, a amante, o amigo, o vizinho e principalmente o cachorro que interroga com um olhar ainda mais interrogativo do que o olhar humano, E ele?! Suicídio por justa causa e sem causa alguma e aí estaria o que podemos chamar de vocação, a simples vontade de atender ao chamado que vem lá das profundezas e se instala e prevalece. Pois não existe a vocação para o piano, para o futebol, para o teatro. Ai!... para a política. Com a mesma força (evitei a palavra paixão) a vocação para a morte. Quando justificada pode virar uma conformação, Tinha os seus motivos! diz o próximo bem informado. Mas e aquele suicídio que (aparentemente) não tem nenhuma explicação? A morte obscura, que segue veredas indevassáveis na sua breve ou longa trajetória. Pela primeira vez ouvi a palavra suicídio quando ainda morava naquela antiga chácara que tinha um pequeno pomar e um jardim só de roseiras. Ficava perto de um vilarejo cortado por um rio de águas pardacentas, o nome do vilarejo vai ficar no fundo desse rio. Onde também ficou o Coronel Mota, um fazendeiro velho (todos me pareciam velhos) que andava sempre de terno branco, engomado. Botinas pretas, chapéu de abas largas e aquela bengala grossa com a qual matava cobras. Fui correndo dar a notícia ao meu pai, O Coronel encheu o bolso com pedras e se pinchou com roupa e tudo no rio! Meu pai fez parar a cadeira de balanço, acendeu um charuto e ficou me olhando. Quem disse isso? Tomei o fôlego: Me contaram no recreio. Diz que ele desceu do cavalo, amarrou o cavalo na porteira e foi entrando no rio e enchendo o bolso com pedra, tinha lá um pescador que sabia nadar, nadou e não viu mais nem sinal dele. Meu pai baixou a cabeça e soltou a baforada de fumaça no ladrilho: Que loucura. No ano passado ele já tinha tentado com uma espingarda que falhou, que loucura! Era um cristão e um cristão não se suicida, ele não podia fazer isso, acrescentou com impaciência. Entregou-me o anel vermelho-dourado do charuto. Não podia fazer isso! Enfiei o anel no dedo, mas era tão largo que precisei fechar a mão para retê-lo. Mimoso veio correndo assustado. Tinha uma coisa escura na boca e espirrava, o focinho sujo de terra. Vai saindo, vai saindo!, ordenei fazendo com que voltasse pelo mesmo caminho, a conversa agora era séria. Mas pai, por que ele se matou, por quê?! fiquei perguntando. Meu pai olhou o charuto que tirou da boca. Soprou de leve a brasa: Muitos se matam por amor mesmo. Mas tem outros motivos, tantos motivos, uma doença sem remédio. Ou uma dívida. Ou uma tristeza sem fim, às vezes começa a tristeza lá dentro e a dor na gaiola do peito é maior ainda do que a dor na carne. Se a pessoa é delicada, não agüenta e acaba indo embora! Vai embora, ele repetiu e levantou-se de repente, a cara fechada, era o sinal: quando mudava de posição a gente já sabia que ele queria mudar de assunto. Deu uma larga passada na varanda e apoiou-se na grade de ferro como se quisesse examinar melhor a borboleta voejando em redor de uma rosa. Voltou-se rápido, olhando para os lados. E abriu os braços, o charuto preso entre os dedos: Se matam até sem motivo nenhum, um mistério, nenhum motivo! repetiu e foi saindo da varanda. Entrou na sala. Corri atrás. Quem se mata vai pro inferno, pai? Ele apagou o charuto no cinzeiro e voltou-se para me dar o pirulito que eu tinha esquecido em cima da mesa. O gesto me animou, avancei mais confiante: E bicho, bicho também se mata? Tirando o lenço do bolso ele limpou devagar as pontas dos dedos: Bicho, não, só gente. Só gente? — eu perguntei a mim mesma muitos e muitos anos depois, quando passava as férias de dezembro numa fazenda. Atrás da casa-grande tinha uma granja e nessa granja encontrei dois amigos inseparáveis, um galo branco e um ganso também branco mas com suaves pinceladas cinzentas nas asas. Uma estranha amizade, pensei ao vê-los por ali, sempre juntos. Uma estranhíssima amizade. Mas não é a minha intenção abordar agora problemas de psicologia animal, queria contar apenas o que vi. E o que vi foi isso, dois amigos tão próximos, tão apaixonados, ah! como conversavam em seus longos passeios, como se entendiam na secreta linguagem de perguntas e respostas, o diálogo. Com os intervalos de reflexão. E alguma polêmica mas com humor, não surpreendi naquela tarde o galo rindo? Pois é, o galo. Esse perguntava com maior freqüência, a interrogação acesa nos rápidos movimentos que fazia com a cabeça para baixo, e para os lados, E então? O ganso respondia com certa cautela, parecia mais calmo, mais contido quando abaixava o bico meditativo, quase repetindo os movimentos da cabeça do outro mas numa aura de maior serenidade. Juntos, defendiam-se contra os ataques, não é preciso lembrar que na granja travavam-se as mesmas pequenas guerrilhas da cidade logo adiante, a competição. A intriga. A vaidade e a luta pelo poder, que luta! Essa ânsia voraz que atiçava os grupos, acesa a vontade de ocupar um espaço maior, de excluir o concorrente, época de eleições? E os dois amigos sempre juntos. Atentos. Eu os observava enquanto trocavam pequenos gestos (gestos?) de generosidade nos seus infindáveis passeios pelo terreiro, Hum! olha aqui esta minhoca, sirva-se à vontade, vamos, é sua! — dizia o galo a recuar assim de banda, a crista encrespada quase sangrando no auge da emoção. E o ganso mais tranqüilo (um fidalgo) afastando-se todo cerimonioso, pisando nas titicas como se pisasse em flores, Sirva-se você primeiro, agora é a sua vez! E se punham tão hesitantes que algum frango insolente, arvorado a juiz, acabava se metendo no meio e numa corrida desenfreada levava no bico o manjar. Mas nem o ganso com seus olhinhos redondamente superiores nem o galo flamante — nenhum dos dois parecia dar maior atenção ao furto. Alheios aos bens terreirais, desligados das mesquinharias de uma concorrência desleal, prosseguiam o passeio no mesmo ritmo, nem vagaroso nem apressado, mas digno, ora, minhocas! Grandes amigos, hem?, comentei certa manhã com o granjeiro que concordou tirando o chapéu e rindo, Eles comem aqui na minha mão! Foi quando achei que ambos mereciam um nome assim de acordo com suas nobres figuras, e ao ganso, com aquele andar de pensador, as brancas mãos de penas cruzadas nas costas, dei o nome de Platão. Ao galo, mais questionador e mais exaltado como todo discípulo, eu dei o nome de Aristóteles. Até que um dia (também entre os bichos, um dia) houve o grande jantar na fazenda e do qual não participei. Ainda bem. Quando voltei vi apenas o galo Aristóteles a vagar sozinho e completamente desarvorado, os olhinhos suplicantes na interrogação, o bico entreaberto na ansiedade da busca, Onde, onde?!... Aproximei-me e ele me reconheceu. Cravou em mim um olhar desesperado, Mas onde ele está?! Fiz apenas um aceno ou cheguei a dizer-lhe que esperasse um pouco enquanto ia perguntar ao granjeiro: Mas e aquele ganso, o amigo do galo?! Para que prosseguir, de que valem os detalhes? Chegou um cozinheiro lá de fora, veio ajudar na festa, começou a contar o granjeiro gaguejando de emoção. Eu tinha saído, fui aqui na casa da minha irmã, não demorei muito mas esse tal de cozinheiro ficou apavorado com medo de atrasar o jantar e nem me esperou, escolheu o que quis e na escolha, acabou levando o coitado, cruzes!... Agora esse daí ficou sozinho e procurando o outro feito tonto, só falta falar esse galo, não come nem bebe, só fica andando nessa agonia! Mesmo quando canta de manhãzinha me representa que está rouco de tanto chorar. Foi o banquete de Platão, pensei meio nauseada com o miserável trocadilho. Deixei de ir à granja, era insuportável ver aquele galo definhando na busca obstinada, a crista murcha, o olhar esvaziado. E o bico, aquele bico tão tagarela agora pálido, cerrado. Mais alguns dias e foi encontrado morto ao lado do tanque onde o companheiro costumava se banhar. No livro do poeta Maiakóvski (matou-se com um tiro) há um verso que serve de epitáfio para o galo branco: Comigo viu-se doida a anatomia/sou todo um coração!

316. LYGIA FAGUNDES TELLES. A CAÇADA. A loja de antiguidades tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus anos embolorados e livros comidos de traça. Com as pontas dos dedos, o homem tocou numa pilha de quadros. Uma mariposa levantou vôo e foi chocar-se contra uma imagem de mãos decepadas. — Bonita imagem — disse ele. A velha tirou um grampo do coque, e limpou a unha do polegar. Tornou a enfiar o grampo no cabelo. — É um São Francisco. Ele então voltou-se lentamente para a tapeçaria que tomava toda a parede no fundo da loja. Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também. — Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso... Pena que esteja nesse estado. O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la. — Parece que hoje está mais nítida... — Nítida? — repetiu a velha, pondo os óculos. Deslizou a mão pela superfície puída. — Nítida, como? — As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela? A velha encarou-o. E baixou o olhar para a imagem de mãos decepadas. O homem estava tão pálido e perplexo quanto a imagem. — Não passei nada, imagine... Por que o senhor pergunta? — Notei uma diferença. — Não, não passei nada, essa tapeçaria não agüenta a mais leve escova, o senhor não vê? Acho que é a poeira que está sustentando o tecido acrescentou, tirando novamente o grampo da cabeça. Rodou-o entre os dedos com ar pensativo. Teve um muxoxo: — Foi um desconhecido que trouxe, precisava muito de dinheiro. Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era difícil encontrar um comprador, mas ele insistiu tanto... Preguei aí na parede e aí ficou. Mas já faz anos isso. E o tal moço nunca mais me apareceu. — Extraordinário... A velha não sabia agora se o homem se referia à tapeçaria ou ao caso que acabara de lhe contar. Encolheu os ombros. Voltou a limpar as unhas com o grampo. — Eu poderia vendê-la, mas quero ser franca, acho que não vale mesmo a pena. Na hora que se despregar, é capaz de cair em pedaços. O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu Deus! em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?... Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apontando para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundo caçador espreitava por entre as árvores do bosque, mas esta era apenas uma vaga silhueta, cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era o primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os músculos tensos, à espera de que a caça levantasse para desferir-lhe a seta. O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tapeçaria que tinha a cor esverdeada de um céu de tempestade. Envenenando o tom verde-musgo do tecido, destacavam-se manchas de um negro-violáceo e que pareciam escorrer da folhagem, deslizar pelas botas do caçador e espalhar-se no chão como um líquido maligno. A touceira na qual a caça estava escondida também tinha as mesmas manchas e que tanto podiam fazer parte do desenho como ser simples efeito do tempo devorando o pano. — Parece que hoje tudo está mais próximo — disse o homem em voz baixa. — É como se... Mas não está diferente? A velha firmou mais o olhar. Tirou os óculos e voltou a pô-los. — Não vejo diferença nenhuma. — Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta... — Que seta? O senhor está vendo alguma seta? — Aquele pontinho ali no arco... A velha suspirou. — Mas esse não é um buraco de traça? Olha aí, a parede já está aparecendo, essas traças dão cabo de tudo — lamentou, disfarçando um bocejo. Afastou-se sem ruído, com suas chinelas de lã. Esboçou um gesto distraído: — Fique aí à vontade, vou fazer meu chá. O homem deixou cair o cigarro. Amassou-o devagarinho na sola do sapato. Apertou os maxilares numa contração dolorosa. Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu — conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da madrugada, ah, essa madrugada! Quando? Percorrera aquela mesma vereda aspirara aquele mesmo vapor que baixava denso do céu verde... Ou subia do chão? O caçador de barba encaracolada parecia sorrir perversamente embuçado. Teria sido esse caçador? Ou o companheiro lá adiante, o homem sem cara espiando por entre as árvores? Uma personagem de tapeçaria. Mas qual? Fixou a touceira onde a caça estava escondida. Só folhas, só silêncio e folhas empastadas na sombra. Mas, detrás das folhas, através das manchas pressentia o vulto arquejante da caça. Compadeceu-se daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para prosseguir fugindo. Tão próxima a morte! O mais leve movimento que fizesse, e a seta... A velha não a distinguira, ninguém poderia percebê-la, reduzida como estava a um pontinho carcomido, mais pálido do que um grão de pó em suspensão no arco. Enxugando o suor das mãos, o homem recuou alguns passos. Vinha-lhe agora uma certa paz, agora que sabia ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz sem vida, impregnada dos mesmos coágulos traiçoeiros da folhagem. Cerrou os olhos. E se tivesse sido o pintor que fez o quadro? Quase todas as antigas tapeçarias eram reproduções de quadros, pois não eram? Pintara o quadro original e por isso podia reproduzir, de olhos fechados, toda a cena nas suas minúcias: o contorno das árvores, o céu sombrio, o caçador de barba esgrouvinhada, só músculos e nervos apontando para a touceira... "Mas se detesto caçadas! Por que tenho que estar aí dentro?" Apertou o lenço contra a boca. A náusea. Ah, se pudesse explicar toda essa familiaridade medonha, se pudesse ao menos... E se fosse um simples espectador casual, desses que olham e passam? Não era uma hipótese? Podia ainda ter visto o quadro no original, a caçada não passava de uma ficção. "Antes do aproveitamento da tapeçaria..." — murmurou, enxugando os vãos dos dedos no lenço. Atirou a cabeça para trás como se o puxassem pelos cabelos, não, não ficara do lado de fora, mas lá dentro, encravado no cenário! E por que tudo parecia mais nítido do que na véspera, por que as cores estavam mais fortes apesar da penumbra? Por que o fascínio que se desprendia da paisagem vinha agora assim vigoroso, rejuvenescido?... Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos bolsos. Parou meio ofegante na esquina. Sentiu o corpo moído, as pálpebras pesadas. E se fosse dormir? Mas sabia que não poderia dormir, desde já sentia a insônia a segui-lo na mesma marcação da sua sombra. Levantou a gola do paletó. Era real esse frio? Ou a lembrança do frio da tapeçaria? "Que loucura!... E não estou louco", concluiu num sorriso desamparado. Seria uma solução fácil. "Mas não estou louco.". Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida e quando deu acordo de si, estava diante da loja de antiguidades, o nariz achatado na vitrina, tentando vislumbrar a tapeçaria lá no fundo. Quando chegou em casa, atirou-se de bruços na cama e ficou de olhos escancarados, fundidos na escuridão. A voz tremida da velha parecia vir de dentro do travesseiro, uma voz sem corpo, metida em chinelas de lã: "Que seta? Não estou vendo nenhuma seta..." Misturando-se à voz, veio vindo o murmurejo das traças em meio de risadinhas. O algodão abafava as risadas que se entrelaçaram numa rede esverdinhada, compacta, apertando-se num tecido com manchas que escorreram até o limite da tarja. Viu-se enredado nos fios e quis fugir, mas a tarja o aprisionou nos seus braços. No fundo, lá no fundo do fosso, podia distinguir as serpentes enleadas num nó verde-negro. Apalpou o queixo. "Sou o caçador?" Mas ao invés da barba encontrou a viscosidade do sangue. Acordou com o próprio grito que se estendeu dentro da madrugada. Enxugou o rosto molhado de suor. Ah, aquele calor e aquele frio! Enrolou-se nos lençóis. E se fosse o artesão que trabalhou na tapeçaria? Podia revê-la, tão nítida, tão próxima que, se estendesse a mão, despertaria a, folhagem. Fechou os punhos. Haveria de destruí-la, não era verdade que além daquele trapo detestável havia alguma coisa mais, tudo não passava de um retângulo de pano sustentado pela poeira. Bastava soprá-la, soprá-la! Encontrou a velha na porta da loja. Sorriu irônica: — Hoje o senhor madrugou. — A senhora deve estar estranhando, mas... — Já não estranho mais nada, moço. Pode entrar, pode entrar, o senhor conhece o caminho... "Conheço o caminho" — murmurou, seguindo lívido por entre os móveis. Parou. Dilatou as narinas. E aquele cheiro de folhagem e terra, de onde vinha aquele cheiro? E por que a loja foi ficando embaçada, lá longe? Imensa, real só a tapeçaria a se alastrar sorrateiramente pelo chão, pelo teto, engolindo tudo com suas manchas esverdinhadas. Quis retroceder, agarrou-se a um armário, cambaleou resistindo ainda e estendeu os braços até a coluna. Seus dedos afundaram por entre galhos e resvalaram pelo tronco de uma árvore, não era uma coluna, era uma árvore! Lançou em volta um olhar esgazeado: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque, os pés pesados de lama, os cabelos empastados de orvalho. Em redor, tudo parado. Estático. No silêncio da madrugada, nem o piar de um pássaro, nem o farfalhar de uma folha. Inclinou-se arquejante. Era o caçador? Ou a caça? Não importava, não importava, sabia apenas que tinha que prosseguir correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou sendo caçado. Ou sendo caçado?... Comprimiu as palmas das mãos contra a cara esbraseada, enxugou no punho da camisa o suor que lhe escorria pelo pescoço. Vertia sangue o lábio gretado. Abriu a boca. E lembrou-se. Gritou e mergulhou numa touceira. Ouviu o assobio da seta varando a folhagem, a dor! "Não..." - gemeu, de joelhos. Tentou ainda agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando o coração.

317. LYGIA FAGUNDES TELLES. QUE SE CHAMA SOLIDÃO. Chão da infância. Algumas lembranças me parecem fixadas nesse chão movediço, as minhas pajens. Minha mãe fazendo seus cálculos na ponta do lápis ou mexendo o tacho de goiabada ou ao piano; tocando suas valsas. E tia Laura, a viúva eterna que foi morar na nossa casa e que repetia que meu pai era um homem instável. Eu não sabia o que queria dizer instável mas sabia que ele gostava de fumar charutos e gostava de jogar. A tia um dia explicou, esse tipo de homem não consegue parar muito tempo no mesmo lugar e por isso estava sempre sendo removido de uma cidade para outra como promotor. Ou delegado. Então minha mãe fazia os tais cálculos de futuro, dava aquele suspiro e ia tocar piano. E depois, arrumar as malas. — Escutei que a gente vai se mudar outra vez, vai mesmo? perguntou minha pajem Maricota. Estávamos no quintal chupando os gomos de cana que ela ia descascando. Não respondi e ela fez outra pergunta: Sua tia vive falando que agora é tarde porque a Inês é morta, quem é essa tal de Inês? Sacudi a cabeça, não sabia. Você é burra, Maricota resmungou cuspinhando o bagaço. Fiquei olhando meu pé amarrado com uma tira de pano, tinha sempre um pé machucado (corte, espinho) onde ela pingava tintura de iodo (ai, ai!) e depois amarrava aquele pano. No outro pé, a sandália pesada de lama. Essa pajem era uma órfã que minha mãe recolhera, tive sempre uma pajem que me dava banho, me penteava (papelotes nas festas) e me contava histórias até que chegasse o tempo da escola. Maricota era preta e magra, a carapinha repartida em trancinhas com uma fita amarrada na ponta de cada trancinha. Não sei da Inês mas sei do seu namorado, tive vontade de responder. Ele tem feição de cavalo e é trapezista no circo do leão desdentado. Estava sabendo também que quando ela ia encontrar o trapezista, soltava as trancinhas e escovava o cabelo até vê-lo abrir-se em leque como um sol negro. Fiquei quieta. Tinha procissão no sábado e era bom lembrar que eu ia de anjo com asas de penas brancas (meu primeiro impulso de soberba) enquanto que as asas dos outros anjos eram de papel crepom. — Corta mais cana, pedi e ela levantou-se enfurecida: Pensa que sou sua escrava, pensa? A escravidão já acabou!, ficou resmungando enquanto começou a procurar em redor, estava sempre procurando alguma coisa e eu saía atrás procurando também, a diferença é que ela sabia o que estava procurando, uma manga madura? Jabuticaba? Eu já tinha perguntado ao meu pai o que era isso, escravidão. Mas ele soprou a fumaça para o céu (dessa vez fumava um cigarro de palha) e começou a recitar uma poesia que falava num navio cheio de negros presos em correntes e que ficavam chamando por Deus. Deus, eu repeti quando ele parou de recitar. Fiz que sim com a cabeça e fui saindo, Agora já sei. — Sábado tem procissão, eu lembrei. Vai me fazer papelote? — Vamos ver, ela disse enquanto juntava os bagaços da cana no avental. Foi até a lata de lixo. E de repente riu sacudindo o avental: Depressa, até a casa da Juana Louca, quem chegar por último vira um sapo! Eram as pazes. Levantei-me e saí correndo atrás dela, sabia que ia perder mas ainda assim apostava. Quando não aparecia nada melhor a gente ia até o campo para colher flores que Maricota enfeixava num ramo e, com cara de santa, oferecia à Madrinha, chamava minha mãe de Madrinha. Às vezes, ela desenhava com carvão no muro as partes dos meninos e mostrava, É isto que fica no meio das pernas, está vendo? É isto! Mas logo passava um trapo no muro e fazia a ameaça, se você contar você me paga! Depois do jantar era a hora das histórias fantásticas. Na escada que dava para a horta, instalavam-se as crianças com a cachorrada, eram tantos os cachorros que a gente não sabia que nome dar ao filhote da última ninhada da Keite, acabou sendo chamado de Hominho, era um macho. Foi nessa época que apareceu a Filó, uma gata meio doida que acabou amamentando os cachorrinhos porque a Keite estava com crise e rejeitou todos. Cachorro também tem crise, avisou tia Laura olhando pensativa para a Keite que dava mordidas no filhote que vinha procurar suas tetas. As histórias apavorantes das noites na escada. Eu fechava os olhos-ouvidos nos piores pedaços e o pior de todos era mesmo aquele, quando os ossos da alma penada iam caindo diante do viajante que se abrigou no casarão abandonado. Noite de tempestade, vinha o vento uivante e apagava a vela e a alma penada ameaçando cair, Eu caio! Eu caio! — gemia a Maricota com a voz fanhosa das caveiras. Pode cair! ordenava o valente viajante olhando para o teto. Então caía um pé ou uma perna descarnada, ossos cadentes pulando e se buscando no chão até formar o esqueleto. Em redor, a cachorrada latindo, Quer parar com isso? gritava a Maricota sacudindo e jogando longe o cachorro mais exaltado. Nessas horas sempre aparecia um dos grandes na janela (tia Laura, tio Garibaldi?) para impor o respeito. Quando Maricota fugiu com o trapezista eu chorei tanto que minha mãe ficou preocupada: Menina mais ingrata aquela! Acho cachorro muito melhor do que gente, ela disse ao meu pai enquanto ia arrancando os carrapichos do pêlo do Volpi que já chegava gemendo, ele sofria com antecedência a dor da retirada de carrapichos e bernes. A pajem seguinte também era órfã mas branca. Falava pouco e também não sabia ler mas ouvi minha mãe prometer (como prometeu à outra), eu vou te ensinar. Chamava-se Leocádia. Quando minha mãe tocava piano ela parava de fazer o que estava fazendo e vinha escutar: Madrinha, por favor, toca "O sonho de Lili"!Leocádia não sabia contar histórias mas sabia cantar, aprendi com ela a cantiga de roda que cantarolava enquanto lavava roupa: Nesta rua nesta rua tem um bosque, que se chama que se chama solidão, dentro dele dentro dele mora um anjo, que roubou que roubou meu coração. — Menina afinada, tem voz de soprano, disse tia Laura batendo com o leque na mesa, estava sempre se abanando com o leque. Soprano, soprano! fiquei repetindo e correndo em redor de Leocádia que ria aquele riso de dentes fortes e perguntava o que era soprano e eu também não sabia mas gostava das palavras desconhecidas, Soprano, soprano! — Vem brincar, Leocádia! eu chamava e ela ria e dava um adeusinho, depois eu vou! Fiquei sondando, e o namorado? Da Maricota eu descobri tudo mas dessa não descobri nada. Morávamos agora em Apiaí, depois da mudança tão comprida, com o piano no gemente carro-de-boi. Isso sem falar nos vasos de plantas e na cachorrada que veio no caminhão com a Leocádia e mais a Custódia, uma cozinheira meio velha que mascava fumo e sabia fazer o peru de Natal. Meu pai, a tia e minha mãe comigo no colo, todos amontados no tal fordeco meio escangalhado que meu pai ganhou numa rifa. Com o carcereiro guiando, era o único que sabia guiar. Apiaí e a escola das freirinhas. Quando nessa tarde voltei da escola, encontrei todo mundo de olho arregalado e falando baixo. No quintal, os cachorros se engalfinhando. Por que a Leocádia não foi me buscar? E cadê minha mãe? Tia Laura baixou a cabeça, cruzou o xale no peito, fechou o leque e foi saindo meio de lado, andava desse jeito quando aconteciam coisas. Fechou-se no quarto. Custódia soprou o braseiro do fogão e avisou que ia estourar pipoca. A Leocádia fugiu?, perguntei. Ela começou a debulhar o milho, isso não é conversa de criança. Então entrou minha mãe. Fez um sinal para a Custódia, sinal que eu conhecia (depois a gente se fala), acariciou minha cabeça e foi para o quarto de tia Laura. Disfarcei com o prato de pipoca na mão, banzei um pouco e fui escutar detrás da porta da tia. Contei que meu marido estava viajando (era a voz da minha mãe) e que a gente não sabe lidar com isso. Uma tragédia, Laura, uma tragédia! Então o médico disse (minha mãe parou para se assoar) que ela pode ficar na enfermaria até o fim, vai morrer, Laura! Enfiou a agulha de tricô lá no fundo, meu Deus!... - A voz sumiu e logo voltou mais forte: Grávida de quatro meses e eu sem desconfiar de nada, era gordinha e agora engordou mais, foi o que pensei. Hoje ela me reconheceu e fez aquela carinha alegre, Ô! Madrinha. Era tão inteligente, queria tanto aprender a ler, queria até aprender música. Tia Laura demorou para falar: Agora é tarde!, gemeu. Mas não tocou na Inês. Em dezembro tinha quermesse. Minha mãe e tia Laura foram na frente porque eram as barraqueiras, eu iria mais tarde com a Custódia que ficou preparando o peru. Quando passei pelo jasmineiro no quintal (anoitecia) vi o vulto esbranquiçado por entre os galhos. Parei. A cara úmida de Leocádia abriu-se num sorriso. — A quermesse, Leocádia! Vamos?, eu convidei e ela recuou um pouco. — Não posso ir, eu estou morta. Keite apareceu de repente e começou com aquele latido desesperado. Antes que viessem os outros, tomei-a no colo, Fica quieta, quieta! ordenei baixinho na sua orelha. E o latido virou um gemido de sofrimento. Quieta! Aquela é a Leocádia, você não se lembra da Leocádia? Comecei a tremer. É a Leocádia! repeti e apertei a Keite contra o peito e ela também tremia. Soltei-a: Pode ir mas não chame os outros, escutou isso? Keite saiu correndo e desapareceu no fundo do quintal. Quando olhei na direção do jasmineiro não vi mais nada, só a folhagem com as florinhas brancas no feitio de estrelas. Entrei na cozinha. Que cara é essa? estranhou a Custódia. Encolhi os ombros e ajudei a embrulhar o peru no papel-manteiga. Vamos depressa que a gente está atrasada, ela resmungou me pegando pelo braço. Parou um pouco para me examinar melhor. — Mas o que aconteceu, você está chorando? Enxuguei a cara na barra da saia. — Me deu uma pontada no dente. — Foi naquele que o dentista chumbou? Quer a Cera do Doutor Lustosa? — Deu só uma pontada, já parou de doer. — Pegue o meu lenço, ela disse abrindo a sacola. Ofereceu-me o lenço de algodão branco, bem dobrado. Na calçada deserta ela ainda parou um pouco para prender a fivela no cabelo. O peru era meio velho mas acho que ficou bom. Enxuguei os olhos com raiva e cruzei os braços contra o peito, outra vez o tremor? Fomos andando lado a lado e em silêncio.

318. LYGIA FAGUNDES TELLES. A CHAVE NA PORTA. A chuva fina. E os carros na furiosa descida pela ladeira, nenhum táxi? A noite tão escura. E aquela árvore solitária lá no fim da rua, podia me abrigar debaixo da folhagem mas onde a folhagem? Assim na distância era visível apenas o tronco com os fios das pequeninas luzes acesas, subindo em espiral na decoração natalina. Uma decoração meio sinistra, pensei. E descobri, essa visão lembrava uma chapa radiográfica revelando apenas o esqueleto da árvore, ah! tivesse ela braços e mãos e seria bem capaz de arrancar e atirar longe aqueles fios que deviam dar choques assim molhados. — Quer condução, menina? Recuei depressa quando o carro arrefeceu a marcha e parou na minha frente, ele disse menina? O tom me pareceu familiar. Inclinei-me para ver o motorista, um homem grisalho, de terno e gravata, o cachimbo aceso no canto da boca. Mas espera, esse não era o Sininho? Ah! é claro, o próprio Sininho, um antigo colega da Faculdade, o simpático Sininho! Tinha o apelido de Sino porque estava sempre anunciando alguma novidade. Era burguês mas dizia-se anarquista. — Sininho, é você! Ele abriu a porta e o sorriso branquíssimo, de dentinhos separados. — Um milagre, eu disse enquanto afundava no banco com a bolsa e os pequenos pacotes. Como conseguiu me reconhecer nesta treva? — Estes faróis são poderosos. E olha que já lá vão quarenta anos, menina. Quarenta anos de formatura! Aspirei com prazer a fumaça do cachimbo e que se misturava ao seu próprio perfume, alfazema? E não parecia ter envelhecido muito, os cabelos estavam grisalhos e a face pálida estava vincada mas o sorriso muito claro não era o mesmo? E me chamava de menina, no mesmo tom daqueles tempos. Acendi um cigarro e estendi confortavelmente as pernas, mas espera, esse carrão antiquado não era o famoso Jaguar que gostava de exibir de vez em quando? — O próprio. Fiquei olhando o belo painel com o pequeno relógio verde embutido na madeira clara. — Você era rico e nós éramos pobres. E ainda por cima a gente lia Dostoievski. — Humilhados e ofendidos! Rimos gostosamente, não era mesmo uma coisa extraordinária? Esse encontro inesperado depois de tanto tempo. E em plena noite de Natal. Contei que voltava de uma reunião de amigos, quis sair furtivamente e para não perturbar inventei que tinha condução. Quando começou a chuva. —Acho essas festas tão deprimentes, eu disse. Ele então voltou-se para me ver melhor. Dei-lhe o meu endereço. No farol da esquina ele voltou a me olhar. Passou de leve a mão na minha cabeça mas não disse nada. Guiava como sempre, com cuidado e sem a menor pressa. Contou que voltava também de uma reunião, um pequeno jantar com colegas mas acrescentou logo, eram de outra turma. Tentei vê-lo através do pequeno espelho entortado, mas não era incrível? Eu me sentir assim com a mesma idade daquela estudante da Academia. Outra vez inteira? Inteira. E também ele com o seu eterno carro, meu Deus! na noite escura tudo parecia ainda igual ou quase. Ou quase, pensei ao ouvir sua voz um tanto enfraquecida, rateando como se viesse de alguma pilha gasta. Mas resistindo. — Quarenta anos como se fossem quarenta dias, ele disse. Você usava uma boina. — Sininho, você vai achar isso estranho mas tive há pouco a impressão de ter recuperado a juventude. Sem ansiedade, ô! que difícil e que fácil ficar jovem outra vez. Ele reacendeu o cachimbo, riu baixinho e comentou, ainda bem que não havia testemunhas dessa conversa. A voz ficou mais forte quando recomeçou a falar em meio das pausas, tinha asma? Contou que depois da formatura foi estudar na Inglaterra. Onde acabou se casando com uma colega da universidade e continuaria casado se ela não tivesse inventado de se casar com outro. Então ele matriculou o filho num colégio, tiveram um filho. E em plena depressão ainda passou por aquela estação no inferno, quando teve uma ligação com uma mulher casada. Um amor tão atormentado, tão louco, ele acrescentou. Vivemos juntos algum tempo, ela também me amava mas acabou voltando para o marido que não era marido, descobri mais tarde, era o próprio pai. — O pai?! — Um atroz amor de perdição. Fiquei destrambelhado, desandei a beber e sem outra saída aceitei o que me apareceu, fui lecionar numa pequena cidade afastada de Londres. Um lugar tão modesto mas deslumbrante. Deslumbrante, ele repetiu depois de um breve acesso de tosse. Nos fins de semana viajava para visitar o filho mas logo voltava tão ansioso. Fiquei muito amigo de um abade velhíssimo, Dom Matheus. Foi ele que me deu a mão. Conversávamos tanto nas nossas andanças pelo vasto campo nas redondezas do mosteiro. Recomecei minhas leituras quando fui morar no mosteiro e lecionar numa escola fundada pelos religiosos, meus alunos eram camponeses. — Você não era ateu? — Ateu? Era apenas um ser completamente confuso, enredado em teias que me tapavam os olhos, os ouvidos... Fiquei por demais infeliz com o fim do meu casamento e não me dei conta disso. E logo em seguida aquele amor que foi só atormentação. Sofrimento. Aos poucos, na nova vida tão simples em meio da natureza eu fui encontrando algumas respostas, eram tantas as minhas dúvidas. Mas o que eu estou fazendo aqui?! me perguntava. Que sentido tem tudo isto? Ficava muito em contato com os bichos, bois. Carneiros. Fui então aprendendo um jogo que não conhecia, o da paciência. E nesse aprendizado acabei por descobrir... (fez uma pausa) por descobrir... Saímos de uma rua calma para entrar numa travessa agitada, quase não entendia o que ele estava dizendo, foi o equilíbrio interior que descobriu ou teria falado em Deus? — Depois do enterro de Dom Matheus, despedi-me dos meus amigos, fui buscar meu filho que já estava esquecendo a língua e voltei para o Brasil, a gente sempre volta. Voltei e fui morar sabe onde? Naquela antiga casa da rua São Salvador, você esteve lá numa festa, lembra? — Mas como podia esquecer? Uma casa de tijolinhos vermelhos, a noite estava fria e vocês acenderam a lareira, fiquei tão fascinada olhando as labaredas. Me lembro que quando atravessei o jardim passei por um pé de magnólia todo florido, prendi uma flor no cabelo e foi um sucesso! Ah, Sininho, voltou para a mesma casa e este mesmo carro... Ele inclinou-se para ler a tabuleta da rua. Empertigou-se satisfeito (estava no caminho certo) e disse que os do signo de Virgem eram desse jeito mesmo, conservadores nos hábitos assim no feitio dos gatos que simulam um caráter errante mas são comodistas, voltam sempre aos mesmos lugares. Até os anarquistas, acrescentou zombeteiro em meio de uma baforada. Tinha parado de chover. Apontei-lhe o edifício e nos despedimos rapidamente porque a fila dos carros já engrossava atrás. Quis dizer-lhe como esse encontro me deixou desanuviada mas ele devia estar sabendo, eu não precisava mais falar. Entregou-me os pacotes. Beijei sua face em meio da fumaça azul. Ou azul era a névoa? Quando subia a escada do edifício, dei por falta da bolsa e lembrei que ela tinha caído no chão do carro numa curva mais fechada. Voltei-me. Espera! cheguei a dizer. E o Jaguar já seguia adiante. Deixei os pacotes no degrau e fiquei ali de braços pendidos: dentro da bolsa estava a chave da porta, eu não podia entrar. Através do vidro da sua concha, o porteiro me observava. E me lembrei de repente, rua São Salvador! Apontei para o porteiro os meus pacotes no chão e corri para o táxi que acabava de estacionar. — É aqui! Quase gritei assim que vi o bangalô dos tijolinhos. Antes de apertar a campainha, fiquei olhando a casa ainda iluminada. Não consegui ver a garagem lá no fundo, mergulhada na sombra mas vislumbrei o pé de magnólia, sem as flores mas firme no meio do gramado. Uma velhota de uniforme veio vindo pela alameda e antes mesmo que ela fizesse perguntas, já fui me desculpando, lamentava incomodar assim tarde da noite mas o problema é que tinha esquecido a bolsa no carro do patrão, um carro prateado, devia ter entrado há pouco. Ele me deu carona e nessa bolsa estava a minha chave. Será que ela podia?... A mulher me examinou com o olhar severo. Mas que história era essa se o patrão nem tinha saído e já estava até se recolhendo com a mulher e os gêmeos? Carro prateado? Como esqueci a bolsa num carro prateado se na garagem estavam apenas os carros de sempre, o bege e o preto? — Decerto a senhora errou a casa, dona, ela disse e escondeu a boca irônica na gola do uniforme. Em noite de tanta festa a gente faz mesmo confusão... Tentei aplacar com as mãos os cabelos que o vento desgrenhou. — Espera, como é o nome do seu patrão? — Doutor Glicério, ora. Doutor Glicério Júnior. — Então é o pai dele que estou procurando, estudamos juntos. Mora nesta rua, um senhor grisalho, guiava um Jaguar prateado... A mulher recuou fazendo o sinal-da-cruz: — Mas esse daí morreu faz tempo, meu Deus! É o pai do meu patrão mas ele já morreu, fui até no enterro... Ele já morreu! Fechei o casaco e fiquei ouvindo minha voz meio desafinada a se enrolar nas desculpas, tinha razão, as casas desse bairro eram muito parecidas, Devo ter me enganado, é evidente, fui repetindo enquanto ia recuando até o táxi que me esperava. O motorista tinha o rádio ligado numa música sacra. Pedi-lhe que voltasse para o ponto. Já estava na escada do edifício quando o porteiro veio ao meu encontro para avisar que um senhor tinha vindo devolver a minha bolsa: — Não é esta? Fiz que sim com a cabeça. Quando consegui falar foi para dizer, Ah! que bom. Abri a bolsa e nela afundei a mão mas alguma coisa me picou o dedo. Fiz nova tentativa e dessa vez trouxe um pequeno botão de rosa, um botão vermelho enredado na correntinha do chaveiro. Na extremidade do cabo curto, o espinho. Pedi ao porteiro que depois levasse os pacotes e subi no elevador. Quando abri a porta do apartamento tive o vago sentimento de que estava abrindo uma outra porta, qual? Uma porta que eu não sabia onde ia dar mas isso agora não tinha importância. Nenhuma importância, pensei e fiquei olhando o perfil da chave na palma da minha mão. Deixei-a na fechadura e fui mergulhar o botão no copo d'água. Agora desabrocha! pedi e toquei de leve na corola vermelha. Debrucei-me na janela. Lá embaixo na rua, a pequena árvore (parecida com a outra) tinha a mesma decoração das luzes em espiral pelo tronco enegrecido. Mas não era mais a visão sinistra da radiografia revelando na névoa o esqueleto da árvore, ao contrário, o espiralado fio das pequeninas luzes me fez pensar no sorriso dele, luminoso de tão branco.

319. LYGIA FAGUNDES TELLES. O MOÇO DO SAXOFONE. Eu era chofer de caminhão e ganhava uma nota alta com um cara que fazia contrabando. Até hoje não entendo direito por que fui parar na pensão da tal madame, uma polaca que quando moça fazia a vida e depois que ficou velha inventou de abrir aquele frege-mosca. Foi o que me contou o James, um tipo que engolia giletes e que foi o meu companheiro de mesa nos dias em que trancei por lá. Tinha os pensionistas e tinha os volantes, uma corja que entrava e saía palitando os dentes, coisa que nunca suportei na minha frente. Teve até uma vez uma dona que mandei andar só porque no nosso primeiro encontro, depois de comer um sanduíche, enfiou um palitão entre os dentes e ficou de boca arreganhada de tal jeito que eu podia ver até o que o palito ia cavucando. Bom, mas eu dizia que no tal frege-mosca eu era volante. A comida, uma bela porcaria e como se não bastasse ter que engolir aquelas lavagens, tinha ainda os malditos anões se enroscando nas pernas da gente. E tinha a música do saxofone. Não que não gostasse de música, sempre gostei de ouvir tudo quanto é charanga no meu rádio de pilha de noite na estrada, enquanto vou dando conta do recado. Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava bem, não discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como o diabo, acho que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara tocava. — O que é isso? — eu perguntei ao tipo das giletes. Era o meu primeiro dia de pensão e ainda não sabia de nada. Apontei para o teto que parecia de papelão, tão forte chegava a música até nossa mesa. Quem é que está tocando? — É o moço do saxofone. Mastiguei mais devagar. Já tinha ouvido antes saxofone, mas aquele da pensão eu não podia mesmo reconhecer nem aqui nem na China. — E o quarto dele fica aqui em cima? James meteu uma batata inteira na boca. Sacudiu a cabeça e abriu mais a boca que fumegava como um vulcão com a batata quente lá no fundo. Soprou um bocado de tempo a fumaça antes de responder. — Aqui em cima. Bom camarada esse James. Trabalhava numa feira de diversões, mas como já estivesse ficando velho, queria ver se firmava num negócio de bilhetes. Esperei que ele desse cabo da batata, enquanto ia enchendo meu garfo. — É uma música desgraçada de triste — fui dizendo. — A mulher engana ele até com o periquito — respondeu James, passando o miolo de pão no fundo do prato para aproveitar o molho. — O pobre fica o dia inteiro trancado, ensaiando. Não desce nem para comer. Enquanto isso, a cabra se deita com tudo quanto é cristão que aparece. — Deitou com você? — É meio magricela para o meu gosto, mas é bonita. E novinha. Então entrei com meu jogo, compreende? Mas já vi que não dou sorte com mulher, torcem logo o nariz quando ficam sabendo que engulo gilete, acho que ficam com medo de se cortar... Tive vontade de rir também, mas justo nesse instante o saxofone começou a tocar de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo gritar, mas com uma mão tapando, os sons espremidos saindo por entre os dedos. Então me lembrei da moça que recolhi uma noite no meu caminhão. Saiu para ter o filho na vila, mas não agüentou e caiu ali mesmo na estrada, rolando feito bicho. Arrumei ela na carroceria e corri como um louco para chegar o quanto antes, apavorado com a idéia do filho nascer no caminho e desandar a uivar que nem a mãe. No fim, para não me aporrinhar mais, ela abafava os gritos na lona, mas juro que seria melhor que abrisse a boca no mundo, aquela coisa de sufocar os gritos já estava me endoidando. Pomba, não desejo ao inimigo aquele quarto de hora. — Parece gente pedindo socorro — eu disse, enchendo meu copo de cerveja.  — Será que ele não tem uma música mais alegre? James encolheu o ombro. — Chifre dói. Nesse primeiro dia fiquei sabendo ainda que o moço do saxofone tocava num bar, voltava só de madrugada. Dormia em quarto separado da mulher. — Mas por quê? — perguntei, bebendo mais depressa para acabar logo e me mandar dali. A verdade é que não tinha nada com isso, nunca fui de me meter na vida de ninguém, mas era melhor ouvir o tro-ló-ló do James do que o saxofone. — Uma mulher como ela tem que ter seu quarto — explicou James, tirando um palito do paliteiro. — E depois, vai ver que ela reclama do saxofone. — E os outros não reclamam? — A gente já se acostumou. Perguntei onde era o reservado e levantei-me antes que James começasse a escarafunchar os dentões que lhe restavam. Quando subi a escada de caracol, dei com um anão que vinha descendo. Um anão, pensei. Assim que saí do reservado dei com ele no corredor, mas agora estava com uma roupa diferente. Mudou de roupa, pensei meio espantado, porque tinha sido rápido demais. E já descia a escada quando ele passou de novo na minha frente, mas já com outra roupa. Fiquei meio tonto. Mas que raio de anão é esse que muda de roupa de dois em dois minutos? Entendi depois, não era um só, mas uma trempe deles, milhares de anões louros e de cabelo repartidinho do lado. — Pode me dizer de onde vem tanto anão? — perguntei à madame, e ela riu. — Todos artistas, minha pensão é quase só de artistas... Fiquei vendo com que cuidado o copeiro começou a empilhar almofadas nas cadeiras para que eles se sentassem. Comida ruim, anão e saxofone. Anão me enche e já tinha resolvido pagar e sumir quando ela apareceu. Veio por detrás, palavra que havia espaço para passar um batalhão, mas ela deu um jeito de esbarrar em mim. — Licença? Não precisei perguntar para saber que aquela era a mulher do moço do saxofone. Nessa altura o saxofone já tinha parado. Fiquei olhando. Era magra, sim, mas tinha as ancas redondas e um andar muito bem bolado. O vestido vermelho não podia ser mais curto. Abancou-se sozinha numa mesa e de olhos baixos começou a descascar o pão com a ponta da unha vermelha. De repente riu e apareceu uma covinha no queixo. Pomba, que tive vontade de ir lá, agarrar ela pelo queixo e saber por que estava rindo. Fiquei rindo junto. — A que horas é a janta? — perguntei para a madame, enquanto pagava. — Vai das sete às nove. Meus pensionistas fixos costumam comer às oito — avisou ela, dobrando o dinheiro e olhando com um olhar acostumado para a dona de vermelho. — O senhor gostou da comida? Voltei às oito em ponto. O tal James já mastigava seu bife. Na sala havia ainda um velhote de barbicha, que era professor parece que de mágica e o anão de roupa xadrez. Mas ela não tinha chegado. Animei-me um pouco quando veio um prato de pastéis, tenho loucura por pastéis. James começou a falar então de uma briga no parque de diversões, mas eu estava de olho na porta. Vi quando ela entrou conversando baixinho com um cara de bigode ruivo. Subiram a escada como dois gatos pisando macio. Não demorou nada e o raio do saxofone desandou a tocar. — Sim senhor — eu disse e James pensou que eu estivesse falando na tal briga. — O pior é que eu estava de porre, mal pude me defender! Mordi um pastel que tinha dentro mais fumaça do que outra coisa. Examinei os outros pastéis para descobrir se havia algum com mais recheio. — Toca bem esse condenado. Quer dizer que ele não vem comer nunca? James demorou para entender do que eu estava falando. Fez uma careta. Decerto preferia o assunto do parque. — Come no quarto, vai ver que tem vergonha da gente — resmungou ele, tirando um palito. — Fico com pena, mas às vezes me dá raiva, corno besta. Um outro já tinha acabado com a vida dela! Agora a música alcançava um agudo tão agudo que me doeu o ouvido. De novo pensei na moça ganindo de dor na carroceria, pedindo ajuda não sei mais para quem. — Não topo isso, pomba. — Isso o quê? Cruzei o talher. A música no máximo, os dois no máximo trancados no quarto e eu ali vendo o calhorda do James palitar os dentes. Tive ganas de atirar no teto o prato de goiabada com queijo e me mandar para longe de toda aquela chateação. — O café é fresco? — perguntei ao mulatinho que já limpava o oleado da mesa com um pano encardido como a cara dele. — Feito agora. Pela cara vi que era mentira. — Não é preciso, tomo na esquina. A música parou. Paguei, guardei o troco e olhei reto para aporta, porque tive o pressentimento que ela ia aparecer. E apareceu mesmo com o aninho de gata de telhado, o cabelo solto nas costas e o vestidinho amarelo mais curto ainda do que o vermelho. O tipo de bigode passou em seguida, abotoando o paletó. Cumprimentou a madame, fez ar de quem tinha muito o que fazer e foi para a rua. — Sim senhor! — Sim senhor o quê? — perguntou James. — Quando ela entra no quarto com um tipo, ele começa a tocar, mas assim que ela aparece, ele pára. Já reparou? Basta ela se enfurnar e ele já começa. James pediu outra cerveja. Olhou para o teto. — Mulher é o diabo... Levantei-me e quando passei junto da mesa dela, atrasei o passo. Então ela deixou cair o guardanapo. Quando me abaixei, agradeceu, de olhos baixos. — Ora, não precisava se incomodar... Risquei o fósforo para acender-lhe o cigarro. Senti forte seu perfume. — Amanhã? — perguntei, oferecendo-lhe os fósforos. — Às sete, está bem? — É a porta que fica do lado da escada, à direita de quem sobe. Saí em seguida, fingindo não ver a carinha safada de um dos anões que estava ali por perto e zarpei no meu caminhão antes que a madame viesse me perguntar se eu estava gostando da comida. No dia seguinte cheguei às sete em ponto, chovia potes e eu tinha que viajar a noite inteira. O mulatinho já amontoava nas cadeiras as almofadas para os anões. Subi a escada sem fazer barulho, me preparando para explicar que ia ao reservado, se por acaso aparecesse alguém. Mas ninguém apareceu. Na primeira porta, aquela à direita da escada, bati de leve e fui entrando. Não sei quanto tempo fiquei parado no meio do quarto: ali estava um moço segurando um saxofone. Estava sentado numa cadeira, em mangas de camisa, me olhando sem dizer uma palavra. Não parecia nem espantado nem nada, só me olhava. — Desculpe, me enganei de quarto — eu disse, com uma voz que até hoje não sei onde fui buscar. O moço apertou o saxofone contra o peito cavado. — E na porta adiante — disse ele baixinho, indicando com a cabeça. Procurei os cigarros só para fazer alguma coisa. Que situação, pomba. Se pudesse, agarrava aquela dona pelo cabelo, a estúpida. Ofereci-lhe cigarro. — Está servido? — Obrigado, não posso fumar. Fui recuando de costas. E de repente não agüentei. Se ele tivesse feito qualquer gesto, dito qualquer coisa, eu ainda me segurava, mas aquela bruta calma me fez perder as tramontanas. — E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá uma boa sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba, eu já tinha rachado ela pelo meio! Me desculpe estar me metendo, mas quer dizer que você não faz nada? — Eu toco saxofone. Fiquei olhando primeiro para a cara dele, que parecia feita de gesso de tão branca. Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos compridos pelos botões, de baixo para cima, de cima para baixo, bem devagar, esperando que eu saísse para começar a tocar. Limpou com um lenço o bocal do instrumento, antes de começar com os malditos uivos. Bati a porta. Então a porta do lado se abriu bem de mansinho, cheguei a ver a mão dela segurando a  maçaneta para que o vento não abrisse demais. Fiquei ainda um instante parado, sem saber mesmo o que fazer, juro que não tomei logo a decisão, ela esperando e eu parado feito besta, então, Cristo-Rei!? E então? Foi quando começou bem devagarinho a música do saxofone. Fiquei broxa na hora, pomba. Desci a escada aos pulos. Na rua, tropecei num dos anões metido num impermeável, desviei de outro, que já vinha vindo atrás e me enfurnei no caminhão. Escuridão e chuva. Quando dei a partida, o saxofone já subia num agudo que não chegava nunca ao fim. Minha vontade de fugir era tamanha que o caminhão saiu meio desembestado, num arranco.

320. LYGIA FAGUNDES TELLES. Eu era chofer de caminhão e ganhava uma nota alta com um cara que fazia contrabando. Até hoje não entendo direito por que fui parar na pensão da tal madame, uma polaca que quando moça fazia a vida e depois que ficou velha inventou de abrir aquele frege-mosca. Foi o que me contou o James, um tipo que engolia giletes e que foi o meu companheiro de mesa nos dias em que trancei por lá. Tinha os pensionistas e tinha os volantes, uma corja que entrava e saía palitando os dentes, coisa que nunca suportei na minha frente. Teve até uma vez uma dona que mandei andar só porque no nosso primeiro encontro, depois de comer um sanduíche, enfiou um palitão entre os dentes e ficou de boca arreganhada de tal jeito que eu podia ver até o que o palito ia cavucando. Bom, mas eu dizia que no tal frege-mosca eu era volante. A comida, uma bela porcaria e como se não bastasse ter que engolir aquelas lavagens, tinha ainda os malditos anões se enroscando nas pernas da gente. E tinha a música do saxofone. Não que não gostasse de música, sempre gostei de ouvir tudo quanto é charanga no meu rádio de pilha de noite na estrada, enquanto vou dando conta do recado. Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava bem, não discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como o diabo, acho que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara tocava. — O que é isso? — eu perguntei ao tipo das giletes. Era o meu primeiro dia de pensão e ainda não sabia de nada. Apontei para o teto que parecia de papelão, tão forte chegava a música até nossa mesa. Quem é que está tocando? — É o moço do saxofone. Mastiguei mais devagar. Já tinha ouvido antes saxofone, mas aquele da pensão eu não podia mesmo reconhecer nem aqui nem na China. — E o quarto dele fica aqui em cima? James meteu uma batata inteira na boca. Sacudiu a cabeça e abriu mais a boca que fumegava como um vulcão com a batata quente lá no fundo. Soprou um bocado de tempo a fumaça antes de responder. — Aqui em cima. Bom camarada esse James. Trabalhava numa feira de diversões, mas como já estivesse ficando velho, queria ver se firmava num negócio de bilhetes. Esperei que ele desse cabo da batata, enquanto ia enchendo meu garfo. — É uma música desgraçada de triste — fui dizendo. — A mulher engana ele até com o periquito — respondeu James, passando o miolo de pão no fundo do prato para aproveitar o molho. — O pobre fica o dia inteiro trancado, ensaiando. Não desce nem para comer. Enquanto isso, a cabra se deita com tudo quanto é cristão que aparece. — Deitou com você? — É meio magricela para o meu gosto, mas é bonita. E novinha. Então entrei com meu jogo, compreende? Mas já vi que não dou sorte com mulher, torcem logo o nariz quando ficam sabendo que engulo gilete, acho que ficam com medo de se cortar... Tive vontade de rir também, mas justo nesse instante o saxofone começou a tocar de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo gritar, mas com uma mão tapando, os sons espremidos saindo por entre os dedos. Então me lembrei da moça que recolhi uma noite no meu caminhão. Saiu para ter o filho na vila, mas não agüentou e caiu ali mesmo na estrada, rolando feito bicho. Arrumei ela na carroceria e corri como um louco para chegar o quanto antes, apavorado com a idéia do filho nascer no caminho e desandar a uivar que nem a mãe. No fim, para não me aporrinhar mais, ela abafava os gritos na lona, mas juro que seria melhor que abrisse a boca no mundo, aquela coisa de sufocar os gritos já estava me endoidando. Pomba, não desejo ao inimigo aquele quarto de hora. — Parece gente pedindo socorro — eu disse, enchendo meu copo de cerveja.  — Será que ele não tem uma música mais alegre? James encolheu o ombro. — Chifre dói. Nesse primeiro dia fiquei sabendo ainda que o moço do saxofone tocava num bar, voltava só de madrugada. Dormia em quarto separado da mulher. —- Mas por quê? — perguntei, bebendo mais depressa para acabar logo e me mandar dali. A verdade é que não tinha nada com isso, nunca fui de me meter na vida de ninguém, mas era melhor ouvir o tro-ló-ló do James do que o saxofone. — Uma mulher como ela tem que ter seu quarto — explicou James, tirando um palito do paliteiro. — E depois, vai ver que ela reclama do saxofone. — E os outros não reclamam? — A gente já se acostumou. Perguntei onde era o reservado e levantei-me antes que James começasse a escarafunchar os dentões que lhe restavam. Quando subi a escada de caracol, dei com um anão que vinha descendo. Um anão, pensei. Assim que saí do reservado dei com ele no corredor, mas agora estava com uma roupa diferente. Mudou de roupa, pensei meio espantado, porque tinha sido rápido demais. E já descia a escada quando ele passou de novo na minha frente, mas já com outra roupa. Fiquei meio tonto. Mas que raio de anão é esse que muda de roupa de dois em dois minutos? Entendi depois, não era um só, mas uma trempe deles, milhares de anões louros e de cabelo repartidinho do lado. — Pode me dizer de onde vem tanto anão? — perguntei à madame, e ela riu. — Todos artistas, minha pensão é quase só de artistas... Fiquei vendo com que cuidado o copeiro começou a empilhar almofadas nas cadeiras para que eles se sentassem. Comida ruim, anão e saxofone. Anão me enche e já tinha resolvido pagar e sumir quando ela apareceu. Veio por detrás, palavra que havia espaço para passar um batalhão, mas ela deu um jeito de esbarrar em mim. — Licença? Não precisei perguntar para saber que aquela era a mulher do moço do saxofone. Nessa altura o saxofone já tinha parado. Fiquei olhando. Era magra, sim, mas tinha as ancas redondas e um andar muito bem bolado. O vestido vermelho não podia ser mais curto. Abancou-se sozinha numa mesa e de olhos baixos começou a descascar o pão com a ponta da unha vermelha. De repente riu e apareceu uma covinha no queixo. Pomba, que tive vontade de ir lá, agarrar ela pelo queixo e saber por que estava rindo. Fiquei rindo junto. — A que horas é a janta? — perguntei para a madame, enquanto pagava. — Vai das sete às nove. Meus pensionistas fixos costumam comer às oito — avisou ela, dobrando o dinheiro e olhando com um olhar acostumado para a dona de vermelho. — O senhor gostou da comida? Voltei às oito em ponto. O tal James já mastigava seu bife. Na sala havia ainda um velhote de barbicha, que era professor parece que de mágica e o anão de roupa xadrez. Mas ela não tinha chegado. Animei-me um pouco quando veio um prato de pastéis, tenho loucura por pastéis. James começou a falar então de uma briga no parque de diversões, mas eu estava de olho na porta. Vi quando ela entrou conversando baixinho com um cara de bigode ruivo. Subiram a escada como dois gatos pisando macio. Não demorou nada e o raio do saxofone desandou a tocar. — Sim senhor — eu disse e James pensou que eu estivesse falando na tal briga. — O pior é que eu estava de porre, mal pude me defender! Mordi um pastel que tinha dentro mais fumaça do que outra coisa. Examinei os outros pastéis para descobrir se havia algum com mais recheio. — Toca bem esse condenado. Quer dizer que ele não vem comer nunca? James demorou para entender do que eu estava falando. Fez uma careta. Decerto preferia o assunto do parque. — Come no quarto, vai ver que tem vergonha da gente — resmungou ele, tirando um palito. — Fico com pena, mas às vezes me dá raiva, corno besta. Um outro já tinha acabado com a vida dela! Agora a música alcançava um agudo tão agudo que me doeu o ouvido. De novo pensei na moça ganindo de dor na carroceria, pedindo ajuda não sei mais para quem. — Não topo isso, pomba. — Isso o quê? Cruzei o talher. A música no máximo, os dois no máximo trancados no quarto e eu ali vendo o calhorda do James palitar os dentes. Tive ganas de atirar no teto o prato de goiabada com queijo e me mandar para longe de toda aquela chateação. — O café é fresco? — perguntei ao mulatinho que já limpava o oleado da mesa com um pano encardido como a cara dele. — Feito agora. Pela cara vi que era mentira. — Não é preciso, tomo na esquina. A música parou. Paguei, guardei o troco e olhei reto para aporta, porque tive o pressentimento que ela ia aparecer. E apareceu mesmo com o aninho de gata de telhado, o cabelo solto nas costas e o vestidinho amarelo mais curto ainda do que o vermelho. O tipo de bigode passou em seguida, abotoando o paletó. Cumprimentou a madame, fez ar de quem tinha muito o que fazer e foi para a rua. — Sim senhor! — Sim senhor o quê? — perguntou James. — Quando ela entra no quarto com um tipo, ele começa a tocar, mas assim que ela aparece, ele pára. Já reparou? Basta ela se enfurnar e ele já começa. James pediu outra cerveja. Olhou para o teto. — Mulher é o diabo... Levantei-me e quando passei junto da mesa dela, atrasei o passo. Então ela deixou cair o guardanapo. Quando me abaixei, agradeceu, de olhos baixos. — Ora, não precisava se incomodar... Risquei o fósforo para acender-lhe o cigarro. Senti forte seu perfume. — Amanhã? — perguntei, oferecendo-lhe os fósforos. — Às sete, está bem? — É a porta que fica do lado da escada, à direita de quem sobe. Saí em seguida, fingindo não ver a carinha safada de um dos anões que estava ali por perto e zarpei no meu caminhão antes que a madame viesse me perguntar se eu estava gostando da comida. No dia seguinte cheguei às sete em ponto, chovia potes e eu tinha que viajar a noite inteira. O mulatinho já amontoava nas cadeiras as almofadas para os anões. Subi a escada sem fazer barulho, me preparando para explicar que ia ao reservado, se por acaso aparecesse alguém. Mas ninguém apareceu. Na primeira porta, aquela à direita da escada, bati de leve e fui entrando. Não sei quanto tempo fiquei parado no meio do quarto: ali estava um moço segurando um saxofone. Estava sentado numa cadeira, em mangas de camisa, me olhando sem dizer uma palavra. Não parecia nem espantado nem nada, só me olhava. — Desculpe, me enganei de quarto — eu disse, com uma voz que até hoje não sei onde fui buscar. O moço apertou o saxofone contra o peito cavado. — E na porta adiante — disse ele baixinho, indicando com a cabeça. Procurei os cigarros só para fazer alguma coisa. Que situação, pomba. Se pudesse, agarrava aquela dona pelo cabelo, a estúpida. Ofereci-lhe cigarro. — Está servido? — Obrigado, não posso fumar. Fui recuando de costas. E de repente não agüentei. Se ele tivesse feito qualquer gesto, dito qualquer coisa, eu ainda me segurava, mas aquela bruta calma me fez perder as tramontanas. — E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá uma boa sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba, eu já tinha rachado ela pelo meio! Me desculpe estar me metendo, mas quer dizer que você não faz nada? — Eu toco saxofone. Fiquei olhando primeiro para a cara dele, que parecia feita de gesso de tão branca. Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos compridos pelos botões, de baixo para cima, de cima para baixo, bem devagar, esperando que eu saísse para começar a tocar. Limpou com um lenço o bocal do instrumento, antes de começar com os malditos uivos. Bati a porta. Então a porta do lado se abriu bem de mansinho, cheguei a ver a mão dela segurando a  maçaneta para que o vento não abrisse demais. Fiquei ainda um instante parado, sem saber mesmo o que fazer, juro que não tomei logo a decisão, ela esperando e eu parado feito besta, então, Cristo-Rei!? E então? Foi quando começou bem devagarinho a música do saxofone. Fiquei broxa na hora, pomba. Desci a escada aos pulos. Na rua, tropecei num dos anões metido num impermeável, desviei de outro, que já vinha vindo atrás e me enfurnei no caminhão. Escuridão e chuva. Quando dei a partida, o saxofone já subia num agudo que não chegava nunca ao fim. Minha vontade de fugir era tamanha que o caminhão saiu meio desembestado, num arranco.

321. LYGIA FAGUNDES TELLES. A loja de antiguidades tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus anos embolorados e livros comidos de traça. Com as pontas dos dedos, o homem tocou numa pilha de quadros. Uma mariposa levantou vôo e foi chocar-se contra uma imagem de mãos decepadas.— Bonita imagem — disse ele. A velha tirou um grampo do coque, e limpou a unha do polegar. Tornou a enfiar o grampo no cabelo.— É um São Francisco. Ele então voltou-se lentamente para a tapeçaria que tomava toda a parede no fundo da loja. Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também.— Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso... Pena que esteja nesse estado. O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la.— Parece que hoje está mais nítida...— Nítida? — repetiu a velha, pondo os óculos. Deslizou a mão pela superfície puída. — Nítida, como?— As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela? A velha encarou-o. E baixou o olhar para a imagem de mãos decepadas. O homem estava tão pálido e perplexo quanto a imagem.— Não passei nada, imagine... Por que o senhor pergunta?— Notei uma diferença.— Não, não passei nada, essa tapeçaria não agüenta a mais leve escova, o senhor não vê? Acho que é a poeira que está sustentando o tecido acrescentou, tirando novamente o grampo da cabeça. Rodou-o entre os dedos com ar pensativo. Teve um muxoxo: — Foi um desconhecido que trouxe, precisava muito de dinheiro. Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era difícil encontrar um comprador, mas ele insistiu tanto... Preguei aí na parede e aí ficou. Mas já faz anos isso. E o tal moço nunca mais me apareceu.— Extraordinário... A velha não sabia agora se o homem se referia à tapeçaria ou ao caso que acabara de lhe contar. Encolheu os ombros. Voltou a limpar as unhas com o grampo.— Eu poderia vendê-la, mas quero ser franca, acho que não vale mesmo a pena. Na hora que se despregar, é capaz de cair em pedaços. O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu Deus! em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?... Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apontando para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundo caçador espreitava por entre as árvores do bosque, mas esta era apenas uma vaga silhueta, cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era o primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os músculos tensos, à espera de que a caça levantasse para desferir-lhe a seta. O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tapeçaria que tinha a cor esverdeada de um céu de tempestade. Envenenando o tom verde-musgo do tecido, destacavam-se manchas de um negro-violáceo e que pareciam escorrer da folhagem, deslizar pelas botas do caçador e espalhar-se no chão como um líquido maligno. A touceira na qual a caça estava escondida também tinha as mesmas manchas e que tanto podiam fazer parte do desenho como ser simples efeito do tempo devorando o pano.— Parece que hoje tudo está mais próximo — disse o homem em voz baixa. — É como se... Mas não está diferente? A velha firmou mais o olhar. Tirou os óculos e voltou a pô-los.— Não vejo diferença nenhuma.— Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta...— Que seta? O senhor está vendo alguma seta?— Aquele pontinho ali no arco... A velha suspirou.— Mas esse não é um buraco de traça? Olha aí, a parede já está aparecendo, essas traças dão cabo de tudo — lamentou, disfarçando um bocejo. Afastou-se sem ruído, com suas chinelas de lã. Esboçou um gesto distraído: — Fique aí à vontade, vou fazer meu chá. O homem deixou cair o cigarro. Amassou-o devagarinho na sola do sapato. Apertou os maxilares numa contração dolorosa. Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu — conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da madrugada, ah, essa madrugada! Quando? Percorrera aquela mesma vereda aspirara aquele mesmo vapor que baixava denso do céu verde... Ou subia do chão? O caçador de barba encaracolada parecia sorrir perversamente embuçado. Teria sido esse caçador? Ou o companheiro lá adiante, o homem sem cara espiando por entre as árvores? Uma personagem de tapeçaria. Mas qual? Fixou a touceira onde a caça estava escondida. Só folhas, só silêncio e folhas empastadas na sombra. Mas, detrás das folhas, através das manchas pressentia o vulto arquejante da caça. Compadeceu-se daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para prosseguir fugindo. Tão próxima a morte! O mais leve movimento que fizesse, e a seta... A velha não a distinguira, ninguém poderia percebê-la, reduzida como estava a um pontinho carcomido, mais pálido do que um grão de pó em suspensão no arco. Enxugando o suor das mãos, o homem recuou alguns passos. Vinha-lhe agora uma certa paz, agora que sabia ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz sem vida, impregnada dos mesmos coágulos traiçoeiros da folhagem. Cerrou os olhos. E se tivesse sido o pintor que fez o quadro? Quase todas as antigas tapeçarias eram reproduções de quadros, pois não eram? Pintara o quadro original e por isso podia reproduzir, de olhos fechados, toda a cena nas suas minúcias: o contorno das árvores, o céu sombrio, o caçador de barba esgrouvinhada, só músculos e nervos apontando para a touceira... "Mas se detesto caçadas! Por que tenho que estar aí dentro?" Apertou o lenço contra a boca. A náusea. Ah, se pudesse explicar toda essa familiaridade medonha, se pudesse ao menos... E se fosse um simples espectador casual, desses que olham e passam? Não era uma hipótese? Podia ainda ter visto o quadro no original, a caçada não passava de uma ficção. "Antes do aproveitamento da tapeçaria..." — murmurou, enxugando os vãos dos dedos no lenço. Atirou a cabeça para trás como se o puxassem pelos cabelos, não, não ficara do lado de fora, mas lá dentro, encravado no cenário! E por que tudo parecia mais nítido do que na véspera, por que as cores estavam mais fortes apesar da penumbra? Por que o fascínio que se desprendia da paisagem vinha agora assim vigoroso, rejuvenescido?... Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos bolsos. Parou meio ofegante na esquina. Sentiu o corpo moído, as pálpebras pesadas. E se fosse dormir? Mas sabia que não poderia dormir, desde já sentia a insônia a segui-lo na mesma marcação da sua sombra. Levantou a gola do paletó. Era real esse frio? Ou a lembrança do frio da tapeçaria? "Que loucura!... E não estou louco", concluiu num sorriso desamparado. Seria uma solução fácil. "Mas não estou louco.". Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida e quando deu acordo de si, estava diante da loja de antiguidades, o nariz achatado na vitrina, tentando vislumbrar a tapeçaria lá no fundo. Quando chegou em casa, atirou-se de bruços na cama e ficou de olhos escancarados, fundidos na escuridão. A voz tremida da velha parecia vir de dentro do travesseiro, uma voz sem corpo, metida em chinelas de lã: "Que seta? Não estou vendo nenhuma seta..." Misturando-se à voz, veio vindo o murmurejo das traças em meio de risadinhas. O algodão abafava as risadas que se entrelaçaram numa rede esverdinhada, compacta, apertando-se num tecido com manchas que escorreram até o limite da tarja. Viu-se enredado nos fios e quis fugir, mas a tarja o aprisionou nos seus braços. No fundo, lá no fundo do fosso, podia distinguir as serpentes enleadas num nó verde-negro. Apalpou o queixo. "Sou o caçador?" Mas ao invés da barba encontrou a viscosidade do sangue. Acordou com o próprio grito que se estendeu dentro da madrugada. Enxugou o rosto molhado de suor. Ah, aquele calor e aquele frio! Enrolou-se nos lençóis. E se fosse o artesão que trabalhou na tapeçaria? Podia revê-la, tão nítida, tão próxima que, se estendesse a mão, despertaria a, folhagem. Fechou os punhos. Haveria de destruí-la, não era verdade que além daquele trapo detestável havia alguma coisa mais, tudo não passava de um retângulo de pano sustentado pela poeira. Bastava soprá-la, soprá-la! Encontrou a velha na porta da loja. Sorriu irônica:— Hoje o senhor madrugou.— A senhora deve estar estranhando, mas...— Já não estranho mais nada, moço. Pode entrar, pode entrar, o senhor conhece o caminho... "Conheço o caminho" — murmurou, seguindo lívido por entre os móveis. Parou. Dilatou as narinas. E aquele cheiro de folhagem e terra, de onde vinha aquele cheiro? E por que a loja foi ficando embaçada, lá longe? Imensa, real só a tapeçaria a se alastrar sorrateiramente pelo chão, pelo teto, engolindo tudo com suas manchas esverdinhadas. Quis retroceder, agarrou-se a um armário, cambaleou resistindo ainda e estendeu os braços até a coluna. Seus dedos afundaram por entre galhos e resvalaram pelo tronco de uma árvore, não era uma coluna, era uma árvore! Lançou em volta um olhar esgazeado: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque, os pés pesados de lama, os cabelos empastados de orvalho. Em redor, tudo parado. Estático. No silêncio da madrugada, nem o piar de um pássaro, nem o farfalhar de uma folha. Inclinou-se arquejante. Era o caçador? Ou a caça? Não importava, não importava, sabia apenas que tinha que prosseguir correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou sendo caçado. Ou sendo caçado?... Comprimiu as palmas das mãos contra a cara esbraseada, enxugou no punho da camisa o suor que lhe escorria pelo pescoço. Vertia sangue o lábio gretado. Abriu a boca. E lembrou-se. Gritou e mergulhou numa touceira. Ouviu o assobio da seta varando a folhagem, a dor! "Não..." - gemeu, de joelhos. Tentou ainda agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando o coração.

322. LIMA BARRETO. QUASE ELA DEU O "SIM", MAS... João Cazu era um moço suburbano, forte e saudável, mas pouco ativo e amigo do trabalho. Vivia em casa dos tios, numa estação de subúrbios, onde tinha moradia, comida, roupa, calçado e algum dinheiro que a sua bondosa tia e madrinha lhe dava para os cigarros. Ele, porém, não os comprava; "filava-os" dos outros. "Refundia" os níqueis que lhe dava a tia, para flores a dar às namoradas e comprar bilhetes de tômbolas, nos vários "mafuás", mais ou menos eclesiásticos, que há por aquelas redondezas. O conhecimento do seu hábito de "filar" cigarros aos camaradas e amigos, estava tão espalhado que, mal um deles o via, logo tirava da algibeira um cigarro; e, antes de saudá-lo, dizia: — Toma lá o cigarro, Cazu. Vivia assim muito bem, sem ambições nem tenções. A maior parte do dia, especialmente a tarde, empregava ele, com outros companheiros, em dar loucos pontapés, numa bola, tendo por arena um terreno baldio das vizinhanças da residência dele ou melhor: dos seus tios e padrinhos. Contudo, ainda não estava satisfeito. Restava-lhe a grave preocupação de encontrar quem lhe lavasse e engomasse a roupa, remendasse as calças e outras peças do vestuário, cerzisse as meias, etc. Em resumo: ele queria uma mulher, uma esposa, adaptável ao seu jeito descansado. Tinha visto falar em sujeitos que se casam com moças ricas e não precisam trabalhar; em outros que esposam professoras e adquirem a meritória profissão de "maridos da professora"; ele, porém, não aspirava a tanto. Apesar disso, não desanimou de descobrir uma mulher que lhe servis convenientemente. Continuou a jogar displicentemente, o seu football vagabundo e a viver cheio de segurança e abundância com os seus tios e padrinhos. Certo dia, passando pela porteira da casa de uma sua vizinha mais ou menos conhecida, ela lhe pediu: — "Seu" Cazu, o senhor vai até à estação? — Vou, Dona Ermelinda. — Podia me fazer um favor? — Pois não. — É ver se o "Seu" Gustavo da padaria "Rosa de Ouro", me pode ceder duas estampilhas de seiscentos réis. Tenho que fazer um requerimento ao Tesouro, sobre coisas do meu montepio, com urgência, precisava muito. — Não há dúvida, minha senhora. Cazu, dizendo isto, pensava de si para si: "É um bom partido. Tem montepio, é viúva; o diabo são os filhos!". Dona Ermelinda, à vista da resposta dele, disse: — Está aqui o dinheiro. Conquanto dissesse várias vezes que não precisava daquilo — o dinheiro — o impenitente jogador de football e feliz hóspede dos tios, foi embolsando os nicolaus, por causa das dúvidas. Fez o que tinha a fazer na estação, adquiriu as estampilhas e voltou para entregá-las à viúva. De fato, Dona Ermelinda era viúva de um contínuo ou cousa parecida de uma repartição pública. Viúva e com pouco mais de trinta anos, nada se falava da sua reputação. Tinha uma filha e um filho que educava com grande desvelo e muito sacrifício. Era proprietária do pequeno chalet onde morava, em cujo quintal havia laranjeiras e algumas outras árvores frutíferas. Fora o seu falecido marido que o adquirira com o produto de uma "sorte" na loteria; e, se ela, com a morte do esposo, o salvara das garras de escrivães, escreventes, meirinhos, solicitadores e advogados "mambembes", devia-o à precaução do marido que comprara a casa, em nome dela. Assim mesmo, tinha sido preciso a intervenção do seu compadre, o Capitão Hermenegildo, a fim de remover os obstáculos que certos "águias" começavam a pôr, para impedir que ela entrasse em plena posse do imóvel e abocanhar-lhe afinal o seu chalézito humilde. De volta, Cazu bateu à porta da viúva que trabalhava no interior, com cujo rendimento ela conseguia aumentar de muito o módico, senão irrisório montepio, de modo a conseguir fazer face às despesas mensais com ela e os filhos. Percebendo a pobre viúva que era o Cazu, sem se levantar da máquina, gritou: — Entre, "Seu" Cazu. Estava só, os filhos ainda não tinham vindo do colégio. Cazu entrou. Após entregar as estampilhas, quis o rapaz retirar-se; mas foi obstado por Ermelinda nestes termos: — Espere um pouco, "Seu" Cazu. Vamos tomar café. Ele aceitou e, embora, ambos se serviram da infusão da "preciosa rubiácea" , como se diz no estilo "valorização". A viúva, tomando café, acompanhado com pão e manteiga, pôs-se a olhar o companheiro com certo interesse. Ele notou e fez-se amável e galante, demorando em esvaziar a xícara. A viuvinha sorria interiormente de contentamento. Cazu pensou com os seus botões: "Está aí um bom partido: casa própria, montepio, renda das costuras; e além de tudo, há de lavar-me e consertar a roupa. Se calhou, fico livre das censuras da tia..." Essa vaga tenção ganhou mais corpo, quando a viúva, olhando-lhe a camisa, perguntou: — "Seu " Cazu, se eu lhe disser uma cousa, o senhor fica zangado? — Ora, qual, Dona Ermelinda? — Bem. A sua camisa está rasgada no peito. O senhor traz "ela" amanhã, que eu conserto "ela". Cazu respondeu que era preciso lavá-la primeiro; mas a viúva prontificou-se em fazer isso também. O player dos pontapés, fingindo relutância no começo, aceitou afinal; e doido por isso estava ele, pois era uma " entrada", para obter uma lavadeira em condições favoráveis. Dito e feito: daí em diante, com jeito e manha, ele conseguiu que a viúva se fizesse a sua lavadeira bem em conta. Cazu, após tal conquista, redobrou de atividade no football, abandonou os biscates e não dava um passo, para obter emprego. Que é que ele queria mais? Tinha tudo... Na redondeza, passavam como noivos; mas não eram, nem mesmo namorados declarados. Havia entre ambos, unicamente um "namoro de caboclo", com o que Cazu ganhou uma lavadeira, sem nenhuma exigência monetária e cultivava-o carinhosamente. Um belo dia, após ano e pouco de tal namoro, houve um casamento na casa dos tios do diligente jogador de football. Ele, à vista da cerimônia e da festa, pensou: "Porque também eu não me caso? Porque eu não peço Ermelinda em casamento? Ela aceita, por certo; e eu..." Matutou domingo, pois o casamento tinha sido no sábado; refletiu segunda e, na terça, cheio de coragem, chegou-se à Ermelinda e pediu-a em casamento. — É grave isto, Cazu. Olhe que sou viúva e com dois filhos! — Tratava "eles" bem; eu juro! — Está bem. Sexta-feira, você vem cedo, para almoçar comigo e eu dou a resposta. Assim foi feito. Cazu chegou cedo e os dous estiveram a conversar. Ela, com toda a naturalidade, e ele, cheio de ansiedade e, apreensivo. Num dado momento, Ermelinda foi até à gaveta de um móvel e tirou de lá um papel. — Cazu — disse ela, tendo o papel na mão — você vai à venda e à quitanda e compra o que está aqui nesta "nota". É para o almoço. Cazu agarrou trêmulo o papelucho e pôs-se a ler uma extensa relação de compras. Acabada a leitura, Cazu não se levantou logo da cadeira; e, com a lista na mão, a olhar de um lado a outro, parecia atordoado, estuporado. — Anda Cazu, fez a viúva. Assim, demorando, o almoço fica tarde... — É que... — Que há? — Não tenho dinheiro. — Mas você não quer casar comigo? É mostrar atividade meu filho! Dê os seus passos... Vá! Um chefe de família não se atrapalha... É agir! João Cazu, tendo a lista de gêneros na mão, ergueu-se da cadeira, saiu e não mais voltou...

323. LIMA BARRETO. CARTA DE UM DEFUNTO RICO. “Meus caros amigos e parentes. Cá estou no carneiro n° 7..., da 3ª quadra, à direita, como vocês devem saber, porque me puseram nele. Este Cemitério de São João Batista da Lagoa não é dos piores. Para os vivos, é grave e solene, com o seu severo fundo de escuro e padrasto granítico. A escassa verdura verde-negra das montanhas de roda não diminuiu em nada a imponência da antiguidade da rocha dominante nelas. Há certa grandeza melancólica nisto tudo; mora neste pequeno vale uma tristeza teimosa que nem o sol glorioso espanta... Tenho, apesar do que se possa supor em contrário, uma grande satisfação; não estou mais preso ao meu corpo. Ele está no aludido buraco, unicamente a fim de que vocês tenham um marco, um sinal palpável para as suas recordações; mas anda em toda a parte. Consegui afinal, como desejava o poeta, elevar-me bem longe dos miasmas mórbidos, purificar-me no ar superior — e bebo, como um puro e divino licor, o fogo claro que enche os límpidos espaços. Não tenho as dificultosas tarefas que, por aí, pela superfície da terra, atazanam a inteligência de tanta gente. Não me preocupa, por exemplo, saber se devo ir receber o poderoso imperador do Beluchistã com ou sem colarinho; não consulto autoridades constitucionais para autorizar minha mulher a oferecer ou não lugares do seu automóvel a príncipes herdeiros — coisa, aliás, que é sempre agradável às senhoras de uma democracia; não sou obrigado, para obter um título nobiliárquico, de uma problemática monarquia, a andar pelos adelos, catando suspeitas bugigangas, e pedir a literatos das ante-salas palacianas que as proclamem raridades de beleza, a fim de encherem salões de casas de bailes e emocionarem os ingênuos com recordações de um passado que não devia ser avivado. Afirmando isto, tenho que dizer as razões. Em primeiro lugar, tais bugigangas não têm, por si, em geral, beleza alguma; e, se a tiveram era emprestada pelas almas dos que se serviram delas. Semelhante beleza só pode ser sentida pelos descendentes dos seus primitivos donos. Demais, elas perdem todo o interesse, todo o seu valor, tudo o que nelas possa haver de emocional, desde que percam a sua utilidade e desde que sejam retiradas dos seus lugares próprios. Há senhoras belas, no seu interior, com os seus móveis e as costuras; mas que não o são na rua, nas salas de baile e de teatro. O homem e as suas criações precisam, para refulgir, do seu ambiente próprio, penetrado, saturado das dores, dos anseios, das alegrias de sua alma; é com as emanações de sua vitalidade, é com as vibrações misteriosas de sua existência que as coisas se enchem de beleza. É o sumo de sua vida que empresta beleza às coisas mortais; é a alma do personagem que faz a grandeza do drama, não são os versos, as metáforas, a linguagem em si, etc. Estando ela ausente, por incapacidade do ator, o drama não vale nada. Por isso, sinto-me bem contente de não ser obrigado a caçar, nos belchiores e cafundós domésticos, bugigangas, para agradar futuros e problemáticos imperantes, porque teria que dar a elas alma, tentativa em projeto que, além de inatingível, é supremamente sacrílego. De resto, para ser completa essa reconstrução do passado ou essa visão dele, não se podia prescindir de certos utensílios de uso secreto e discreto, nem tampouco esquecer determinados instrumentos de tortura e suplício, empregados pelas autoridades e grão-senhores no castigo dos seus escravos. Há, no passado, muitas coisas que devem ser desprezadas e inteiramente eliminadas, com o correr do tempo, para a felicidade da espécie, a exemplo do que a digestão faz, para a do indivíduo, com certas substâncias dos alimentos que ingerimos. Mas... estou na cova e não devo relembrar aos viventes coisas dolorosas. Os mortos não perseguem ninguém e só podem gozar da beatitude da superexistência aqueles que se purificam pelo arrependimento e destroem na sua alma todo o ódio, todo o despeito, todo o rancor. Os que não conseguem isso — ai deles! Alonguei-me nessas considerações intempestivas, quando a minha tenção era outra. O meu propósito era dizer a vocês que o enterro esteve lindo. Eu posso dizer isto sem vaidade, porque o prazer dele, da sua magnificência, do seu luxo, não é propriamente meu, mas de vocês, e não há mal algum que um vivente tenha um naco de vaidade, mesmo quando é presidente de alguma coisa ou imortal da Academia de Letras. Enterro e demais cerimônias fúnebres não interessam ao defunto; elas são feitas por vivos para vivos. É uma tolice de certos senhores disporem nos seus testamentos como devem ser enterrados. Cada um enterra seu pai como pode — é uma sentença popular, cujo ensinamento deve ser tomado no sentido mais amplo possível, dando aos sobreviventes a responsabilidade total do enterro dos seus parentes e amigos, tanto na forma como no fundo. O meu, feito por vocês, foi de truz. O carro estava soberbamente agaloado; os cavalos bem paramentados e empenachados; as riquíssimas coroas, além de ricas, eram lindas. Da Haddock Lobo, daquele casarão que ganhei com auxílio das ordens terceiras, das leis, do câmbio e outras fatalidades econômicas e sociais que fazem pobres a maior parte dos sujeitos e a mim me fizeram rico; da porta dele até o portão de São João Batista, o meu enterro foi um deslumbramento. Não havia, na rua, quem não perguntasse quem ia ali. Triste destino o meu, esse de, nos instantes do meu enterramento, toda uma população de uma vasta cidade querer saber o meu nome e dali a minutos, com a última pá de terra deitada na minha sepultura, vir a ser esquecido, até pelos meus próprios parentes. Faço esta reflexão somente por fazer, porque, desde muito, havia encontrado, no fundo das coisas humanas, um vazio absoluto. Essa convicção me veio com as meditações seguidas que me foram provocadas pelo fato de meu filho Carlos, com quem gastei uma fortuna em mestres, a quem formei, a quem coloquei altamente, não saber nada desta vida, até menos do que eu. Adivinhei isto e fiquei a matutar como que é que ele gozava de tanta consideração fácil e eu apenas merecia uma contrariedade? Eu, que... Carlos, meu filho, se leres isto, dá o teu ordenado àquele pobre rapaz que te fez as sabatinas por "tuta-e-meia"; e contenta-te com o que herdaste do teu pai e com o que tem tua mulher! Se não fizeres... ai de ti! Nem o Carlos nem vocês outros, espero, encontrarão nesta última observação matéria para ter queixa de mim. Eu não tenho mais amizade, nem inimizade. Os vivos me merecem unicamente piedade; e o que me deu esta situação deliciosa em que estou, foi ter sido, às vezes, profundamente bom. Atualmente, sou sempre... Não seria, portanto, agora que, perto da terra, estou, entretanto, longe dela, que havia de fazer recriminações a meu filho ou tentar desmoralizá-lo. Minha missão, quando me consentem, é fazer bem e aconselhar o arrependimento. Agradeço a vocês o cuidado que tiveram com o meu enterro; mas, seja-me permitido, caros parentes e amigos, dizer a vocês uma coisa. Tudo estava lindo e rico; mas um cuidado vocês não tiveram. Por que vocês não forneceram librés novas aos cocheiros das caleças, sobretudo, ao do coche, que estava vestido de tal maneira andrajosa que causava dó? Se vocês tiverem que fazer outro enterro, não se esqueçam de vestir bem os pobres cocheiros, com o que o defunto, caso seja como eu, ficará muito satisfeito. O brilho do cortejo será maior e vocês terão prestado uma obra de caridade. Era o que eu tinha a dizer a vocês. Não me despeço, pelo simples motivo de que estou sempre junto de vocês.

324. LIMA BARRETO. O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS. Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro contava eu as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades, para poder viver. Houve mesmo uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel, para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho. Contava eu isso. O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, até que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo: — Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo! — Só assim se pode viver... Isto de uma ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, não achas? Não sei como me tenho agüentado lá, no consulado! — Cansa-se; mas não é isso que me admiro. O que me admira é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrático. — Qual! Aqui mesmo, meu Castro, se podem arranjar belas páginas de vida. Imagina tu que eu já fui professor de javanês? — Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado? — Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso. — Conta lá como foi. Bebes mais cerveja? — Bebo. Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos, e continuei: — Eu tinha chegado havia pouco ao Rio e estava literalmente na miséria. Vivia fugido de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do Comércio o anúncio seguinte: "Precisa-se de um professor de língua javanesa. Cartas etc". Ora, disse cá comigo, está ali uma colocação que não terá muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me. Saí do café e andei pelas ruas, sempre imaginar-me professor de javanês, ganhando dinheiro, andando de bonde e sem encontros desagradáveis com os "cadáveres". Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir, mas entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, acudiu-me pedir a Grande Encyclopédie, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e à língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago de Sonda, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo malaio-polinésio, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu. A Enciclopédia dava-me indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia e não tive dúvidas em consultar um deles. Copiei o alfabeto, a sua pronunciação figurada e saí. Andei pelas ruas, perambulando e mastigando letras. Na minha cabeça dançavam hieróglifos; de quando em quando consultava as minhas notas; entrava nos jardins e escrevia estes calungas na areia para guardá-los bem na memória e habituar a mão a escrevê-los. À noite, quando pude entrar em casa sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei no quarto a engolir o meu "a-b-c" malaio, e, com tanto afinco levei o propósito que, de manhã, o sabia perfeitamente. Convenci-me de que aquela era a língua mais fácil do mundo e saí; mas não tão cedo que não me encontrasse com o encarregado dos aluguéis dos cômodos: — Senhor Castelo, quando salda a sua conta? Respondi-lhe então eu, com a mais encantadora esperança: — Breve... Espere um pouco... Tenha paciência... Vou ser nomeado professor de javanês, e... Por aí o homem interrompeu-me: — Que diabo vem a ser isso, Senhor Castelo? Gostei da diversão e ataquei o patriotismo do homem. — É uma língua que se fala lá pelas bandas do Timor. Sabe onde é? Oh! alma ingênua! O homem esqueceu-se da minha dívida e disse-me com aquele falar forte dos portugueses: — Eu cá por mim, não sei bem; mas ouvi dizer que são umas terras que temos lá para os lados de Macau. E o senhor sabe disso, Senhor Castelo? Animado com esta saída feliz que me deu o javanês, voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi animosamente propor-me ao professorado do idioma oceânico. Redigi a resposta, passei pelo Jornal e lá deixei a carta. Em seguida, voltei à biblioteca e continuei os meus estudos de javanês. Não fiz grandes progressos nesse dia, não sei se por julgar o alfabeto javanês o único saber necessário a um professor de língua malaia ou se por ter me empenhado mais na bibliografia e história literária do idioma que ia ensinar. Ao cabo de dois dias, recebia eu uma carta para ir falar ao Doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz, Barão de Jacuecanga, na rua Conde de Bonfim, não me recordo bem que número. É preciso não te esqueceres de que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, também perguntar responder "como está o senhor"? e duas ou três regras de gramática, lastrado todo esse saber com vinte palavras do léxico. Não imaginas as grandes dificuldades com que lutei para arranjar os quatrocentos réis da viagem! É mais fácil — pode ficar certo — aprender o javanês... Fui a pé. Cheguei suadíssimo; e, com maternal carinho, as anosas mangueiras, que se perfilavam em alameda diante da casa do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda minha vida, foi o único momento em que cheguei a sentir simpatia pela natureza... Era uma casa enorme que parecia estar deserta; estava maltratada, mas não sei por que me veio pensar que nesse mau tratamento havia mais desleixo e cansaço de viver que mesmo pobreza. Devia haver anos que não era pintada. As paredes descascavam e os beirais do telhado, daquelas telhas vidradas de outros tempos, estavam desguarnecidos aqui e ali, como dentaduras decadentes ou malcuidadas. Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vingativa com que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinhorões e as begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver com a sua folhagem de cores mortiças. Bati. Custaram-me a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas e cabelos de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento. Na sala, havia uma galeria de retratos: arrogantes senhores de barba em colar se perfilavam enquadrados em imensas molduras douradas, e doces perfis de senhoras, em bandós, com grandes leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos à balão; mas, daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antigüidade e respeito, a que gostei mais de ver foi um belo jarrão de porcelana da China ou da Índia, como se diz. Aquela pureza da louça, a sua fragilidade, a ingenuidade do desenho e aquele fosco brilho de luar, diziam-me a mim que aquele objeto tinha sido feito por mãos de criança, a sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos desiludidos... Esperei um instante o dono da casa.Tardou um pouco. Um tanto trôpego, com o lenço de alcobaça na mão, tomando veneravelmente o simonte de antanho, foi cheio de respeito que o vi chegar. Tive vontade de ir-me embora. Mesmo se não fosse ele o discípulo, era sempre um crime mistificar aquele ancião, cuja velhice trazia à tona do meu pensamento alguma coisa de augusto, de sagrado. Hesitei, mas fiquei. — Eu sou — avancei — o professor de javanês, de que o senhor disse precisar. — Sente-se — respondeu-me o velho. — O senhor é daqui, do Rio? — Não, sou de Canavieiras. — Como? — fez ele. — Fale um pouco alto, que sou surdo. — Sou de Canavieiras, na Bahia — insisti eu. — Onde fez os seus estudos? — Em São Salvador. — Em onde aprendeu o javanês? — indagou ele, com aquela teimosia peculiar aos velhos. Não contava com essa pergunta, mas imediatamente arquitetei uma mentira. Contei-lhe que meu pai era javanês. Tripulante de uma navio mercante, viera ter à Bahia, estabelecera-se nas proximidades de Canavieiras como pescador, casara, prosperara e fora com ele que aprendi javanês. — E ele acreditou? E o físico? — perguntou meu amigo, que até então me ouvira calado. — Não sou — objetei — lá muito diferente de um javanês. Estes meu cabelos corridos, duros e grossos e a minha pele basané podem dar-me muito bem o aspecto de um mestiço malaio... Tu sabes bem que, entre nós, há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaches, guanches, até godos. É uma comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro. — Bem — fez o meu amigo —, continua. — O velho — emendei eu — ouviu-me atentamente, considerou demoradamente o meu físico, e pareceu que me julgava de fato filho de malaio, e perguntou-me com doçura: — Então está disposto a ensinar-me javanês? — A resposta saiu-me sem querer. Pois não. — O senhor há de ficar admirado — aduziu o Barão de Jacuecanga — que eu, nesta idade, ainda queira aprender qualquer coisa, mas... — Não tenho que admirar. Têm-se visto exemplos e exemplos muito fecundos... — O que eu quero, meu caro senhor...? — Castelo — adiantei eu. — O que eu quero, meu caro Senhor Castelo, é cumprir um juramento de família. Não sei se o senhor sabe que eu sou neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, a que tinha grande estimação. Fora um hindu ou siamês que lho dera em Londres, em agradecimento a não sei que serviço prestado por meu avô. Ao morrer meu avô, chamou meu pai e lhe disse: "Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês. Disse-me que mo deu que ele evita desgraças e traz felicidades para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo caso, guarda-o; mas, se queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz." Meu pai — continuou o velho barão — não acreditou muito na história; contudo guardou o livro. Às portas da morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro. Deitei-o a um canto e fabriquei minha vida. Cheguei até esquecer-me dele; mas, de uns tempos a esta parte, tenho passado por tanto desgosto, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice que me lembrei do talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, e não quero que os meus últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê-lo, é claro que preciso entender o javanês. Eis aí. Calou-se e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado. Enxugou discretamente os olhos e perguntou-me se queria ver o livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o criado, deu-lhe as instruções e explicou-me que perdera todos os filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha casada, cuja prole, porém, estava reduzida a um filho, débil de corpo e de saúde frágil e oscilante. Veio o livro. Era um velho calhamaço, um inquarto antigo, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito. Logo informei disso o velho barão que, não percebendo que eu tinha chegado aí pelo inglês, ficou tendo em alta consideração o meu saber malaio. Estive ainda folheando o cartapácio, à laia de quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até que afinal contratamos as condições de preço e de hora, comprometendo-me a fazer com que ele lesse o tal alfarrábio antes de um ano. Dentro em pouco, dava a minha primeira lição, mas o velho não foi tão diligente quanto eu. Não conseguia aprender a distinguir e a escrever nem sequer quatro letras. Enfim, com metade do alfabeto levamos um mês e o Senhor Barão de Jacuecanga não ficou lá muito senhor da matéria: aprendia e desaprendia. A filha e o genro (penso que até aí nada sabiam da história do livro) vieram a ter notícias do estudo do velho; não se incomodaram. Acharam graça e julgaram coisa boa para distraí-lo. Mas com que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que o genro ficou tendo pelo professor de javanês. Que coisa única! Ele não se cansava de repetir: "É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah! onde estava!" O marido de Dona Maria da Glória (assim se chamava a filha do barão), era desembargador, homem relacionado e poderoso; mas não se pejava em mostrar diante de todo o mundo a sua admiração pelo meu javanês. Por outro lado, o barão estava contentíssimo. Ao fim de dois meses, desistira da aprendizagem e pedira-me que lhe traduzisse, um dia sim outro não, um trecho do livro encantado. Bastava entendê-lo, disse-me ele; nada se opunha que outrem o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e cumpria o encargo. Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens!... Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras de um anjo. E eu crescia a seus olhos! Fez-me morar em sua casa, enchia-me de presentes, aumentava-me o ordenado. Passava, enfim, uma vida regalada. Contribuiu muito para isso o fato de vir ele a receber uma herança de um seu parente esquecido que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a coisa ao meu javanês; e eu estive quase a crê-lo também. Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sempre tive medo de que me aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal patuá malaio. E esse meu temor foi grande, quando o doce barão me mandou com uma carta ao Visconde de Caruru, para que me fizesse entrar na diplomacia. Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo. — "Qual! retrucava ele. Vá, menino; você sabe javanês!" Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas recomendações. Foi um sucesso. O diretor chamou os chefes de seção: "Vejam só, um homem que sabe javanês — que portento!" Os chefes da seção levaram-me aos oficiais e amanuenses e houve um destes que me olhou mais com ódio do que com inveja ou admiração. E todos diziam: "Então sabe javanês? É difícil? Não há quem o saiba aqui!" O tal amanuense, que me olhou com ódio, acudiu então: "É verdade, mas eu sei canaque. O senhor sabe?" Disse-lhe que não e fui à presença do ministro. A alta autoridade levantou-se, pôs as mãos às cadeiras, consertou o pince-nez no nariz e perguntou: " Então, sabe javanês?" Respondi-lhe que sim; e, à sua pergunta onde o tinha aprendido, contei-lhe a história do tal pai javanês. "Bem, disse-me o ministro o senhor não deve ir para a diplomacia; o seu físico não se presta... O bom seria um consulado na Àsia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao meu ministério e quero que, para o ano, parta para Bâle, onde vai representar o Brasil no congresso de Lingüística. Estude, leia o Hove-Iacque, o Max Müller, e outros!" Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria representar o Brasil em um congresso de sábios. O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro para que o fizesse chegar ao neto, quando tivesse a idade conveniente e fez-me uma deixa no testamento. Pus-me com afã no estudo das línguas malaio-polinésias; mas não havia meio! Bem jantado, bem vestido, bem dormido, não tinha energia necessária para fazer entrar na cachola aquelas coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Revue Anthropologique et Linguistique, Proceedings of the English-Oceanic Association, Archivo Glottologico Italiano, o diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os informados apontavam-me, dizendo aos outros: "Lá vai o sujeito que sabe javanês." Nas livrarias, os gramáticos consultavam-me sobre a colocação dos pronomes no tal jargão das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do interior, os jornais citavam o meu saber e recusei aceitar uma turma de alunos sequiosos de entender o tal javanês. A convite da redação, escrevi, no Jornal do Commércio, um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna... — Como, se tu nada sabias? — interrompeu-me o atento Castro. — Muito simplesmente: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de dicionários e umas poucas de geografia, e depois citei a mais não poder. — E nunca duvidaram? — perguntou-me ainda o meu amigo. — Nunca. Isto é, uma vez quase fico perdido. A polícia prendeu um sujeito, um marujo, um tipo bronzeado que só falava em língua esquisita. Chamaram diversos intérpretes, ninguém o entendia. Fui também chamado, com todos os respeitos que a minha sabedoria merecia, naturalmente. Demorei-me em ir, mas fui afinal. O homem já estava solto, graças à intervenção do cônsul holandês, a quem ele se fez compreender com meia dúzia de palavras holandesas. E o tal marujo era javanês — uf! Chegou, enfim, a época do congresso, e lá fui para a Europa. Que delícia! Assisti à inauguração e às sessões preparatórias. Inscreveram-me na seção do tupi-guarani e eu abalei para Paris. Antes, porém, fiz publicar no Mensageiro de Bâle o meu retrato, notas biográficas e bibliográficas. Quando voltei, o presidente pediu-me desculpas por me ter dado aquela seção; não conhecia os meus trabalhos e julgara que, por ser eu americano-brasileiro, me estava naturalmente indicada a seção do tupi-guarani. Aceitei as explicações e até hoje ainda não pude escrever as minhas obras sobre o javanês, para lhe mandar, conforme prometi. Acabado o congresso, fiz publicar extratos do artigo do Mensageiro de Bâle, em Berlim, em Turim e em Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um banquete, presidido pelo Senador Gorot. Custou-me toda essa brincadeira, inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos, quase toda a herança do crédulo e bom Barão de Jacuecanga. Não perdi meu tempo nem meu dinheiro. Passei a ser uma glória nacional e, ao saltar no cais Pharoux, recebi uma ovação de todas as classes sociais e o presidente da República, dias depois, convidava-me para almoçar em sua companhia. Dentro de seis meses fui despachado cônsul em Havana, onde estive seis anos e para onde voltarei, a fim de aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia e Polinésia. — É fantástico — observou Castro, agarrando o copo de cerveja. — Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser? — Quê? — Bacteriologista eminente. Vamos? — Vamos.

325. LÍVIA GARCIA ROZA. MINHA FLOR. Que agitação é essa, Heloísa? Cantando, afinada... Já passou por aqui várias vezes. É por gosto que está atrapalhando a leitura do meu jornal? Hein? Que roupa é essa? Por que está vestida desse jeito? Para ir à casa de sua mãe? Isso é coisa que se vista? Vai trocar. Por quê? Porque eu disse que é o que você vai fazer, Heloísa. O que você está pretendendo? Diz, Heloisa... Alguma coisa brotou no vazio dos seus miolos, o que terá sido? Namorou o vestido. Sim. Tem certeza de que foi ele mesmo quem você namorou? Agora conseguiu comprar, sem fazer prestação, como eu gosto... Bem, bem... Bem porra nenhuma! Ainda me chama igual ao cachorro! Que aliás, está uma fera, já falei, qualquer dia come alguém aqui dentro. Vai trocar de roupa, Heloísa! Você ia à casa de sua mãe almoçar com ela e com a sua titica. Ia, Heloísa, porque agora você não vai nem vestida de freira. Como se chama mesmo a roupa dos urubus? Hábito! Você podia contrair esse hábito, de vestir coisas decentes, mas o sangue fala mais alto, não é mesmo? A rota da depravação familiar. E não vou parar de sacudir o seu braço! Não estou te machucando porra nenhuma! Além do mais, o material é meu, ou não é? Lágrima de filhote de jacaré não comove; caladinha, Heloísa. Responde pra mim: você acha que eu sou otário? Olha bem pra minha cara e vê se eu sou um panaca. Tenho feições de corno? Aparência de veado? Perfil de trouxa? Pois saiba que você tem ao seu lado um macho da mais alta estirpe da zona da praia e da periferia! Grande Rio, Heloísa! Sou seu Redentor, minha flor. Vai trocar de roupa! Não quero mulher nenhuma parada no meio da sala. Aliás, Heloísa, gosto de te ver trabalhando. Me dá tesão. Ouviu bem? O garotão desperta instantaneamente. Falando sério, sabe o que eu acho que aconteceu? Sua cabeça caiu em completo desuso, se é que algum dia teve utilidade. Mas agora faz um esforço, Heloísa, raciocina: caso eu concordasse em que você fosse à casa da puta pioneira, como você passaria pelas ruas? Voando? Já pensou nos porteiros, nos garagistas, nos ambulantes, seus colegas de trabalho se aglomerando para te verem passar? Já? Um quitute para o povo, Heloísa! Babel gastronômica! Tira esse vestido de merda!! O que disse? Vestida desse jeito você se sente mulher? Pois é, Heloísa, é isso: sua cabeça é um deserto onde rolam pulseiras, colares, vestidos... Não estou batendo na sua cabeça, só dei uns cascudos. E pára de reclamar, que eu estou tentando te ajudar. E também não estou dando esporro! Esclareço certas coisas que você não alcança. Estou te fazendo um bem. Cumprindo corretamente o meu papel. Como poucos. O pessoal aí fora diz não e não explica. Por falar nisso, tenta me explicar: o que você pensa que é? Sou todo ouvidos, Heloísa. Você acha que é uma samambaia? Uma hortaliça? Uma esponja? Até que de vez em quando você lembra uma, não é mesmo? Você bebe bem, minha flor. Está esperando o que pra mudar de roupa?? Grito sim, pra ver se derreto a cera do seu ouvido! Escuta bem, Heloisa, enquanto você estiver casada com o campeão — sabe ao que eu me refiro, não sabe? Ou precisa de explicação? — do seu marido, você jamais vai sair de aperitivo, está entendendo? Jamais! Não vai esbandalhar o nosso lar, porra! E acho bom dar esse paninho de puta pra sua irmã! Pra piranhinha. Falo assim da sua irmã, sim. É o que ela é! Está se esforçando na carreira, tem de ser incentivada. E não estou xingando ninguém, apenas reconheço um talento. Uma aptidão rara. Arranca esse vestido de bosta, Heloísa!! Estou perdendo a paciência... O que vou fazer com você?... Santa Maria, o cacete! Não tiro a mão, não! Já disse que o material é meu, não vou largar, e não adianta gritar porque sua mãe não dá conta do cardume, quatro já dá pra falar assim, não é mesmo?... Que ninguém nos ouça, Heloísa, mas você tem um certo complexo pela sua família de origem, não tem? Porque na minha família, não nasceu nenhum veado. Não, não estou dizendo que todos os homens são veados... Heloísa!! Acabei de citar uma linhagem de machos! Entende tudo errado... Continua surda, Heloísa? A cera ainda não derreteu? Na minha família não nasceu nenhum menino mole. Homens, todos, sem exceção. Uma estirpe de machos. Dá gosto ver os garotos engrossando a voz, encorpando os músculos, estufando as veias; o cacete a quatro. Porque hoje em dia a coisa se alastrou de tal maneira... grassou uma verdadeira epidemia de tobeiros; não acha? É só olhar ao redor. Lá fora, não é, Heloísa!? Mas isso não diz respeito ao campeão. Venha cumprimentá-lo. Tomar a bênção. Está saudoso. É um sentimental, você sabe. Vem cá, Heloísa... deixa eu sentir o seu cheiro, assim, se ajeitando, com calma, devagar, sem pressa, perfeito; observe o ritmo, isso, saboreando, é papa fina, minha flor... Que entendimento, hein? Conjugação total! Dinamizando, Heloísa! Puta que a pariiiuuu!! Agora põe o vestido, vamos pra rua, comemorar!

326. LOURENÇO DIAFÉRIA. NUNCA DEIXE SEU FILHO MAIS CONFUSO QUE VOCÊ. De manhã, na copa. O pai mexe o café na xícara. O filho caçula vem da sala, dispara: — Pai, o que é genitália? O homem volta-se: — Ge... o quê? — Genitália. — Onde é que você tirou isso, da sua cabeça? — Tá no jornal, pai. — Genitália, no jornal? Bem, esse assunto não é comigo agora. Já estou atrasado pro trabalho. Cadê sua mãe? Rita! Ritinhaaaaa! Onde é que essa mulher se enfiou? Rita, venha ouvir aqui o que seu filho está aprontando. Dona Rita desce esbaforida: — Algum problema, Gervásio? — Problema nenhum. O garoto está apenas querendo saber o que é genitália. Explique pra ele. Estou de saída. — Genitália? Eu? Isso é conversa de homem pra homem. Vai dizer que você não sabe? — Saber eu sei, lógico. Mas há coisas que a gente sabe o que é na teoria, mas fica difícil de explicar na prática. — Deixa de bobagem. — Tá bom. Depois, se eu pegar trânsito, quero só ver. — Pode deixar, pai. Não precisa ficar discutindo você e a mamãe por causa de uma palavra. Eu pergunto pra tia da escola. — Tá louco? A tia pode pensar mal da gente. Deixa comigo. Presta atenção: genitália é o mesmo que partes pudendas. Genitália é uma coisa muito antiga. Já existia no tempo do seu bisavô. No século passado, quando seu bisavô estava vivo, as pessoas tinham pudor. Elas ocultavam do público certas partes do corpo. Chegavam até ao exagero. As partes que ficavam mais resguardadas formavam, exatamente, a genitália. A genitália eram as partes pudendas. — O umbigo era genitália, pai? — Não. Na verdade, não era. Vou tentar explicar melhor. As pessoas tinham vergonha de mostrar o corpo. E uma certa parte do corpo era reservada ao extremo. Não aparecia nem em filme francês. As pessoas chamavam esse território misterioso de vergonhas. Isso é que é a genitália moderna. — Bumbum é genitália, pai? — Não. Acho que não estou sendo muito claro. Ritinha, você não quer dar uma mão? — Não. Assuma. — Bom, vou pras cabeças. Ahnnn. Hummmm. Abaixe as calças. Mais. Até os tornozelos. Isso. Pronto, tá aí a genitália. — O umbigo? — No térreo do umbigo. Que é que você vê embaixo do umbiguinho? — Pô, pai. Vai dizer que o senhor não sabe o que é isso? É meu bingolim, pai. — Ta aí. O bingolim é a genitália do homem. — Puxa, o senhor podia ter falado antes. — Na vida, às vezes é preciso usar eufemismos. Por exemplo, a genitália da mulher tem um nome delicado, leve, ágil. Sabe o que estou querendo dizer, não sabe? Começa com b. — Barata da vizinha? — Não, filho. Borboleta.

327. LÚCIO CARDOSO. CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA. PRIMEIRA NARRATIVA DO FARMACÊUTICO. Meu nome é Aurélio dos Santos, e há muito tempo que estou estabelecido em nossa pequena cidade com um negócio drogas e produtos farmacêuticos. Minha loja pode mesmo ser considerada a única do lugar, pois não oferece concorrência um pequeno varejo de produtos homeopáticos situado na Praça Matriz. Assim, quase todo o mundo vem fazer suas compras em minha casa, e mesmo para a família Meneses tenho aviado muitas receitas. Lembro-me muito bem da noite em que ele veio me procurar. Achava-me sentado sob uma lâmpada baixa, a fim aproveitar a claridade o mais que pudesse, já que a eletricidade em nossa vila é deficiente, e eu consultava um dicionário de pós medicinais impresso em letras exageradamente miúdas. A noite mal começara a baixar, e a loja se achava cheia de mariposas que giravam num círculo cada vez mais fechado em torno da lâmpada. Isto me enervava e eu sacudia a cabeça para afugentá-las, pois tinha as duas mãos ocupadas em sustentar o grosso volume. Não fechara inteiramente a porta, cuidando que apareceria algum freguês retardatário. Como ouvisse um leve rangido, ergui a cabeça e percebi a mão que empurrava a porta — depois o rosto surgiu devagar, sem procurar produzir efeito, apenas como se evitasse uma intervenção repentina.Avançou dois passos e eu reconheci então de quem se tratava. Pareceu-me mais pálido do que habitualmente, de modos hesitantes, olhos desconfiados. — Boa noite, Sr. Demétrio — disse eu, naturalmente estranhando a visita. Talvez seja necessário explicar aqui por que aquela chegada não me pareceu um fato banal — é que eles, os Meneses, por orgulho ou por suficiência, eram os únicos fregueses que jamais pisavam em minha casa. Mandavam recados, aviavam receitas, pagavam as contas por intermédio dos empregados. Eu os via passar com certa freqüência, quase sempre de preto, distantes e numa atitude desdenhosa. Dizia comigo mesmo: "São os da Chácara" — e contentava-me em inclinar a cabeça num hábito que já se perdia longe através do tempo. Aliás, devo acrescentar ainda que caminhavam quase sempre juntos, o Sr. Valdo e o Sr. Demétrio. Podiam não ser muito unidos lá dentro de casa, tal como corria de boca em boca, mas nas ruas eu os encontrava sempre ao lado um do outro, como se neste mundo não houvesse melhores irmãos. Uma única vez vi o Sr. Demétrio em companhia de sua esposa, Dona Ana, que a voz corrente dizia encerrada obstinadamente em casa, e sempre em prantos pelo erro que cometera contraindo aquele matrimônio. Não era uma Meneses, pertencia a uma família que antigamente morara nos arredores de Vila Velha, e fora aos poucos triturada pela vida sem viço e sem claridade que os da Chácara levavam. Lamentava-se muito a sua sorte, e alguns chegavam mesmo a dizer que não era de todo destituída de beleza, se bem que um tanto sem vida. — Boa noite — respondeu-me o Sr. Demétrio, e ficou diante de mim, parado, esperando sem dúvida que eu iniciasse a conversa. Não sei que esquisita maldade se apoderou naquele instante do meu coração — ah, aqueles Meneses! — e por puro capricho continuei em silêncio, o dicionário aberto entre as mãos e contemplando sem pestanejar a face que se achava diante de mim. Devo esclarecer desde já que se tratava de um homem mais baixo do que alto, extraordinariamente pálido. Nada em sua fisionomia parecia ter importância, a natureza se encarregara de moldar uma série de traços sem relevo, tudo batido um tanto a esmo, circundando o ponto central, o único que se via desde o início e que atraía imediatamente a atenção: o nariz, grande, quase agressivo, um autêntico nariz da família Meneses. O que mais impressionava nele, repito, era o aspecto doentio, próprio dos seres que vivem à sombra, segregados do mundo. Talvez essa impressão viesse exclusivamente de sua tez macerada, mas a verdade é que se adivinhava imediatamente a criatura de paragens estranhas, o pássaro noturno, que o sol ofusca e revela. — Queria um conselho do senhor — disse ele afinal, com um suspiro. Inclinei a cabeça e, depositando o livro sobre a mesa, voltei-me, manifestando assim que me achava à sua disposição. Ele não ousava esclarecer o que o trouxera, talvez preferisse ser inquirido, e fitava-me sempre, os olhos miúdos rolando de um o para outro. — No que for possível... — adiantei. Essas simples palavras como que tiveram o dom de arrancar-lhe um peso do espírito. Qualquer coisa se iluminou escassamente em sua fisionomia e ele se inclinou sobre o balcão, num gesto de maior intimidade. Não digo que sua voz fosse totalmente segura, mas foi vencendo aos poucos as dificuldades, até que conseguiu falar com relativa calma. Confessou-me que sua mulher andava naqueles últimos tempos preocupada com um fato estranho que ocorria na Chácara. Disse isto e, depois de um ligeiro devaneio sobre os perigos da vida na roça, deteve-se e examinou-me para ver se eu acreditava no que dizia — e não sei por quê, neste inesperado silêncio que se formou entre nós, tive a intuição de que mentia, e que desejava que eu acreditasse na sua mentira. Ora, para um Meneses vir a minha casa .era necessário que realmente um fato importante ocorresse, e tão mais importante ainda, já que devia ser apresentado aos meus olhos com todas as roupagens de uma rebuscada mentira. Levantei-me, com a atenção agora inteiramente desperta, e debrucei-me ao seu lado sobre o balcão. Deste modo via seu rosto quase junto ao meu, e não poderia me escapar a menor emoção que o alterasse. Essa atenção pareceu desagradá-lo, e ele insistiu novamente, olhando-me pelo canto dos olhos, sobre as ocorrências que deveriam estar preocupando Dona Ana. Ora, todo o mundo em nossa pacata cidade sabia muito bem que a ela não interessavam as coisas da Chácara, e que seu tempo era pouco para lamentar e chorar as desditas de sua vida. Assim, era inadmissível que ela viesse a se interessar por qualquer "fato estranho" que estivesse ocorrendo na casa dos Meneses. No entanto guardei silêncio, e ele devia se ter contentado com este silêncio. De cabeça baixa, folheando à toa as folhas amareladas do meu .dicionário, ouvi a curiosa informação de que um animal desconhecido andava preocupando os moradores da Chácara. Aparentemente não existia nada de sensacional em semelhante notícia, mas a insistência na palavra "desconhecido" e o modo particular como explicou os ruídos e as pegadas que surgiam, trouxeram-me insensivelmente um sorriso aos lábios. Ele percebeu este riso e insistiu na frase com certa veemência. — Animal desconhecido? — repeti, procurando encontrar-lhe a expressão do olhar. Então ele fixou-me como se entregasse toda a sua alma: — Sim, um cão selvagem; um lobo. Novamente se estabeleceu um pequeno silêncio entre nós; fechei definitivamente o livro e indaguei: — Neste caso, em que posso lhe ser útil? Ele estendeu a mão, pousou-a no meu braço — e pelo tremor que a sacudia, compreendi que havíamos atingido o ponto nevrálgico da questão. — Que me aconselha o senhor? — disse. — Foi para isto, exclusivamente para isto, que.vim aqui. Devia ser verdade, nada me induzia a suspeitar de uma mentira oculta por trás daquela afirmativa, mas mesmo assim não pude deixar de soltar um riso breve: — Mas, Sr. Demétrio, eu nada entendo de caçadas! Talvez fosse melhor ter procurado... Ele balançou a cabeça com energia: — Não! Não! Existem razões para ter vindo à sua procura. Por exemplo, poderia sugerir-me um veneno, ou qualquer coisa violenta que pudesse ser colocada numa armadilha. — Não se liquidam lobos com venenos — disse, e fiz menção de colocar o dicionário no seu lugar, sobre a caixa registradora. Ele devia ter apreendido o significado exato do meu gesto, o desinteresse que comportava. Fitou-me, e com olhos tão duros, tão cheios de súbito e agressivo rancor, que não pude deixar de sentir um estremecimento íntimo. Sem dúvida viera ali por outra causa, isto era mais do que certo, e, receando ir direto ao assunto, tergiversava, dava voltas ao problema, esperando que eu o auxiliasse. Via agora que eu não tinha a menor intenção de vir em seu socorro (por que viria? Desde há muito, desde tempos imemoriais, que entre mim e a família Meneses não existia o menor vislumbre de simpatia...) e fora esta minha atitude que lhe arrancara aquele olhar eloqüente e cheio de cólera. Ao contrário, em vez de facilitar-lhe a confissão (ou o que quer que fosse...) mudei completamente de assunto, como se a história do lobo jamais houvesse sido pronunciada. Havia um lado da parede da farmácia que se achava em péssimo estado, devido a uma pequena explosão, provocada por um prático sem experiência. Mostrei-lhe a cal arruinada, os tijolos à mostra, acrescentando com um sorriso: — Tempos duros os que vivemos, Sr. Demétrio! Veja esta parede que carece tanto de reparos! Há dois meses espero conseguir o dinheiro necessário, e até agora não fiz nem sequer encomendar um tijolo! Diante de mim, imóvel, ele seguia com extrema atenção aquela fingida volubilidade. Provavelmente estaria procurando adivinhar em minhas palavras um sentido oculto, uma insinuação qualquer — e eu confesso que nada mais queriam dizer além do sentido nu que exprimiam, nada, senão que o muro necessitava de conserto, e que eu não possuía o dinheiro necessário para fazê-lo. No entanto, uma inspiração pareceu tocá-lo de repente, vi uma pequena luz se acender em seus olhos, enquanto mais uma vez estendia a mão e tocava-me o braço: — Talvez possa ajudá-lo, quem sabe? Um tijolo a mais ou a menos, sempre estamos aqui para ajudar os amigos. Ao ouvir estas palavras, eu me achava de costas: voltei-me devagar e fitei-o bem no fundo dos olhos. Imaginei ver então agitar-se naquelas profundezas alguma coisa brilhante como a esperança — de quê, meu Deus, nem eu próprio o poderia dizer jamais, tão recôndita cintilava diante de mim, tão secreta, tão acrisolada no fundo triste daquela alma. Ele não desviou a vista, ao contrário, ofereceu-se inteiro como quem abre um livro diante de mim, e assim ficamos durante alguns segundos, transitando de um para o outro, invisíveis e rápidos, pensamentos sem nexo, restos de idéias e sentimentos, coisas que o inconsciente apenas trazia à tona, mas que nos faziam atingir uma importante fase de compreensão. — Uns tijolos... — murmurei É exatamente do que eu preciso. — Digamos... um carro deles? — sugeriu, debruçando-se familiarmente sobre o balcão. Oh, decerto ele arfava um pouco, e já seus olhos, inteiramente acesos, sondavam-me a face com avidez, buscavam-me a palavra de pronta aquiescência, numa falta de pudor, numa pressa que me escandalizava quase. Ainda assim, balancei a cabeça com ar penalizado: — Um carro! Digamos três, Sr. Demétrio, não consigo tapar aquele rombo com menos de três carros de tijolos! Qualquer coisa como um sorriso — um diminuto, um insignificante sorriso de vitória — esboçou-se em sua face pálida. Como eu aguardasse, ele aquiesceu com um movimento de cabeça. Havíamos atingido um terreno de onde não me seria possível recuar, e foi portanto com a mais serena das vozes que voltei ao assunto inicial: — Um lobo numa chácara é sempre perigoso. Contudo... Repetiu sufocado, como se lhe custasse um esforço imenso aquela palavra: — Contudo... Dei alguns passos pela loja, procurando mostrar-me o mais natural possível: — Contudo existem meios práticos de liquidá-los, sem que seja necessário recorrer ao veneno. — Por exemplo... — sugeriu ele. Abandonei-o um instante sem resposta, dirigindo-me ao interior da casa. Devo esclarecer que ocupava um modesto aposento dos fundos, mal iluminado e de assoalho periclitante, cuja única vantagem era me oferecer guarida durante a noite, próximo à loja, podendo assim atender algum freguês que surgisse em horas avançadas. Corria no entanto a notícia de que alguns ladrões andavam operando em nossa pequena cidade, e este, sem dúvida, foi o motivo que me levou a guardar na gaveta da cômoda, entre peças de roupa passada, um pequeno revólver. "Não me apanharão desprevenido" — dizia comigo mesmo. Assim, abri a gaveta e tateei entre a roupa, não tardando muito a encontrar o que procurava. Silencioso como me afastara, voltei à farmácia e depositei a arma sobre o balcão. — Que é isto? — indagou o Sr. Demétrio sem ousar tocar no objeto. — Oh — exclamei — apenas uma brincadeira. É de manejo fácil, mas liquida qualquer lobo. Ele pareceu hesitar, fixando sempre a arma, sem coragem para tocá-la. Não sei que confusos pensamentos se digladiavam no seu íntimo — sei apenas que em certo momento, estendendo devagar a mão, tomou o revólver e examinou-o erguido quase à altura dos olhos. — É uma arma feminina — disse, fazendo cintilar as incrustações de madrepérola que bordavam o seu cabo. — Pertenceu à minha mãe — esclareci. Ele rodava a arma, e já agora eu podia perceber que a satisfação brilhava claramente em seus olhos. — Funciona bem? — indagou, apontando o cano para o fundo da loja. — Perfeitamente. E tentando desvanecer seus últimos escrúpulos, acrescentei: - É uma arma como hoje não se fabrica mais. A partir desse ponto, podia se dizer que ele estava definitivamente conquistado. Vendo-o, eu indagava de mim mesmo se aquele Meneses não teria vindo à minha casa precisamente para obter a arma — eles, que eram tão ricos em recursos e estratagemas acaso poderiam deixar de ter em casa um revólver idêntico àquele? Em que circunstâncias o utilizariam, sob que pretexto comprometeriam um outro na ação que provavelmente estariam prestes a executar? E se se tratasse na verdade de um lobo — a idéia era quase ingênua... — por que não liquidá-lo de um modo mais simples, com uma armadilha, por exemplo? De qualquer modo, ergui os ombros — o negócio me convinha. O Sr. Demétrio experimentou ainda o gatilho, retirou o tambor, chegou a esfregar o cano na manga do paletó — e era mais do que evidente que tudo aquilo lhe causava um secreto, um intenso prazer, como se desde já, da obscuridade da farmácia, sentisse seus inimigos trucidados. Parou afinal o exame e fitou-me — e posso jurar que só um sentimento muito fundo, talvez antigo, mas imoral e cheio de impiedade, desenhou o sorriso que aflorou à sua face — ah, um sorriso de entendimento, de alguém que se sente perfeitamente seguro do valor da transação que acaba de realizar. Ao mesmo tempo colocou a mão sobre o meu braço: — Obrigado, amigo. Creio que não existe mesmo melhor meio para liquidar lobos... Sorri também, despedimo-nos. O Sr. Demétrio encaminhou-se para a rua, apertando o revólver no fundo do bolso; eu balançando a cabeça — os mistérios da natureza humana — voltei ao meu dicionário.

328. LUIZ ALBERTO PY. Hoje vamos escolher os prefeitos e vereadores de nossas cidades. O resultado de nossa escolha vai determinar os destinos de cada município durante quatro anos. Trata-se de uma grave responsabilidade a ser encarada com a maior seriedade. O grupo BASTA! formado por cidadãos interessados em influir na vida pública sem concorrer a cargos, mas fazendo sugestões e cobranças aos políticos, principalmente no sentido de combater a absurda violência que tomou conta do Estado do Rio e de suas principais cidades, elaborou um panfleto com informações úteis para quem vai votar hoje. Aqui vai um resumo. “Você sabia que existem 1144 candidatos a vereador no Rio de Janeiro e que destes 143 estão respondendo a processos criminais? Se alguns desses candidatos forem eleitos não poderão ser julgados como um cidadão comum. Cada vereador carioca recebe de salário R$ 7.155,00 e uma verba mensal de R$ 71.776,00 para contratar até 20 pessoas de sua escolha, além de outras verbas para correio, combustível para o carro etc.” O grupo BASTA! enviou uma carta-questionário aos 42 vereadores cariocas pedindo informações e só 12 responderam. No site do movimento (www.basta-ja.com.br) estão as informações sobre quem respondeu, quem deixou de responder e o que disseram. Vale a pena ver para tirar conclusões e escolher bem os que vão dirigir os destinos da cidade. Deveríamos preferir eleger pessoas íntegras em vez de espertas Adaptado de um comentário do filósofo americano Ralph Waldo Emerson (1803-1882). Ciúme. Meu namorado terminou comigo há dois meses por eu ser muito ciumenta, mas ainda não consegui esquecê-lo. Segundo ele, não temos volta. Acho que nunca mais conseguirei gostar de outra pessoa. Estou sofrendo muito. F. S., por e-mail. Neste primeiro momento, é difícil acreditar na possibilidade de gostar de mais alguém. Com o tempo, a emoção arrefece, a vida recomeça, você deixa de pensar tanto em seu ex-namorado e novos interessados vão surgir. Seu grande problema é aprender a administrar seus ciúmes, para não pôr a perder um novo relacionamento. Apesar de ser um sentimento natural e comum, o ciúme é muito negativo e uma das maiores causas de separação entre casais. Manifestar ciúme mostra ao parceiro sua insegurança pessoal, causando mal estar na relação. Esforce-se para confiar na pessoa com quem você pretende viver. Namorado.Sou gay. Tenho um namorado que morre de ciúmes de um amigo meu, não pode nem ouvir falar no nome dele que muda de humor. Ele tem 24 anos e sou seu primeiro caso homossexual. Não entendo sua cabeça, mas o amo. C. (28 anos), por e-mail. Acho importante você ter uma conversa séria com ele sobre essa questão. É possível que ele ache positivo manifestar ciúmes dessa forma. Nesse caso, convém você mostrar a ele como é desagradável e infantil do jeito de ele se comportar. Ele precisa ser informado da possibilidade de seu comportamento vir a acabar com o relacionamento de vocês. E também precisa saber que ciúme é manifestação de possessividade e não de amor. Então, ele terá as informações necessárias para decidir se prefere cultivar e demonstrar seus ciúmes, ou reprimi-los e neutralizá-los para que vocês possam ter uma relação calma.

329. LUÍS ALBERTO PY. A busca pela postura correta na vida. É bastante comum um grande número de pessoas assumir uma atitude rígida e um comportamento sempre previsível.Muitas pessoas se preocupam em saber qual a maneira correta de se comportar, como se só houvesse uma. Indagam-se que tipo de postura devem ter na vida, como se tivessem que encontrar a única correta. Pior ainda, assumem atitudes rígidas como forma de procedimento. Se porventura se indagarem se devemos ser humildes ou orgulhosos, risonhos ou severos, podem pensar nessa sugestão: “Por que não devemos ter um repertório de diferentes formas de comportamento para utilizá-las em diferentes circunstâncias? Humildes quando necessário, sem perder a capacidade de sermos orgulhosos quando for adequado. Não seria uma tolice abrir mão de alternativas de comportamento somente para manter uma coerência que se mostra pouco própria para as diferentes ocasiões?” É bastante comum um grande número de pessoas assumir uma atitude rígida, um comportamento sempre previsível. Nossa cultura cria uma armadilha na qual as pessoas ficam presas à idéia de que rigidez de comportamento equivale a seriedade e a qualidades de caráter firme e sólido, como se a grandeza de uma pessoa dependesse de sua falta de flexibilidade e de sua incapacidade para mudar, evoluir e progredir. Quando me perguntam sobre que partido tomar, respondo com uma provocação: “Por que tomar partido e não tomar inteiro?” Desânimo. Estou cursando o 5º período de Direito, mas quando chego em casa me vem um desânimo. Não sei se é a minha família que me desanima. Também preciso de ajuda para largar o vício de tomar quatro canecas de café por dia. G. (25 anos), por e-mail. Se o desânimo só acontece em casa, deve haver alguma coisa desanimadora na sua casa, que pode até ser a cobrança de um bom resultado de seus estudos por sua família. Procure ser disciplinado em relação aos seus compromissos. Se você cumpri-los, vai se sentir melhor e mais animado, criando um círculo virtuoso onde um sucesso estimula o sucesso seguinte. Quanto ao café, experimente usar a disciplina de ir diminuindo aos poucos a ingestão até conseguir parar. Outra alternativa é usar café descafeinado, que tem excelente sabor e está quase isento da cafeína que, quando usada em excesso, é nociva. Casado. Namoro um homem casado. Ele diz que não ama sua mulher, mas não pode deixá-la, que ela é um fardo que ele tem que carregar. Me sinto sozinha, usada. Tento ficar na minha, mas não consigo. Eu o amo. L. (23 anos), por e-mail. Você é mais uma de muitas que caem na conversa de indivíduos egoístas e sem escrúpulos. No futuro, você vai perceber que foi uma idiota completa. Tente se imaginar em 2014, olhe para trás e veja que jogou sua vida fora por uma ilusão e pela lábia de um malandro. Pensando assim talvez você consiga ganhar esses dez anos e se livrar dessa armadilha de uma vez por todas. Minha orientação, conforme seu pedido: arrume um namorado que goste de verdade de você e que, ao contrário deste atual, lhe tenha respeito e consideração. Deixe-se apaixonar, goste dele e seja feliz.

330. LUIZ ALBERTO PY. A Dra. Laura Schlessinger é uma personalidade do rádio americano que distribui conselhos para pessoas que ligam para seu programa. Recentemente, ela disse que a homossexualidade é uma abominação de acordo com Levíticos 18:22 e não pode ser perdoada. Um ouvinte escreveu para ela fazendo alguns interessantes comentários. Ele pediu explicações para como proceder no caso de querer vender a filha como escrava, como é permitido em Êxodo 21:7, e perguntou: “Na época atual, qual você acha que seria um preço justo por ela?” Acrescentou que Levíticos 25:44 afirma que se pode possuir escravos, tanto homens quanto mulheres, se eles forem comprados de nações vizinhas. E perguntou: “Um amigo meu diz que isso se aplica a mexicanos, mas não a canadenses. Você pode esclarecer isso?” Continuou com a seguinte questão: Tenho um vizinho que insiste em trabalhar aos sábados. Êxodo 35:2 afirma que ele deve ser morto. Devo matá-lo eu mesmo?” E conclui: “Meu tio tem uma fazenda. Ele viola Levíticos 19:19 plantando dois tipos diferentes de vegetais no mesmo campo. Devo chamar toda a cidade para apedrejá-lo (Levíticos 24:10-16)? Conclusão: devemos tomar cuidado com as pessoas que citam a Bíblia, principalmente os que disso se beneficiam pessoalmente. Diz-se que o Diabo sabe muito bem tirar proveito dessas citações. "Uma citação pode ser preciosa quando feita honestamente ou venenosa quando usada com má intenção".Angustiada. Terminei um namoro de dois anos porque peguei ele com outra, mas sofro muito desde então. Não estou conseguindo me recuperar. A esperança de que ele volte é muito grande, mas sei que ele não virá. O que fazer? M., por e-mail. Você está vivendo um conflito entre sua emoção, que deseja o namorado de volta e sua razão que lhe diz que ele não vai voltar. A probabilidade de que ele volte é mesmo muito reduzida, portanto concordo com seu lado racional, que não acredita nesta volta. Você está sofrendo a perda do namoro, mas dentro de pouco tempo seu sofrimento terá passado e você estará em condições de encontrar um namorado. Se você for aproveitando as experiências que está vivendo, cada vez mais saberá lidar com os novos namoros que forem aparecendo em sua vida. Não se desespere, a dor passa, pode demorar um pouco, mas passará. Dividido. Há dois meses, meu namoro acabou. Tentei reatar com ela, sem sucesso. Resolvi, então, seguir minha vida e me envolvi com uma garota. Sabendo disso, minha ex ligou querendo voltar. E agora? R., por e-mail. O comportamento de sua namorada é bastante freqüente. Ela havia perdido o interesse por você, mas lhe ver acompanhado por outra fez renascer a atração. Existe uma importante diferença quanto à questão da atração entre homens e mulheres. Os homens, em princípio, são atraídos por quase todas as mulheres, enquanto que estas dependem de fatores diversos para se sentirem atraídas. Um dos elementos que mais tornam um homem desinteressante para as mulheres é o excesso de disponibilidade. Enquanto tentou reatar, você ficou muito disponível e, quando se afastou, deu a ela a chance de voltar a ter atração.

331. LUIZ CARLOS MACIEL. OS PRAZERES DA PSICANÁLISE. (Cenário: bar movimentado, da moda, de preferência em Ipanema. Garçons lentos e displicentes. Os dois personagens, ELE e ELA, depois das dificuldades presumíveis que podem ser inventadas pelo diretor, conseguem uma mesa. Esperam duas horas por um garçom que já passou por eles no mínimo duzentas vezes e o diálogo se inicia). ELE — O que é que você quer? Chope? ELA — Por quê deveria querer chope? Pedir chope aqui é um tanto compulsivo. Você não pede chope por uma escolha livre: é uma compulsão. Coisa típica da neurose obsessiva. Você sabe muito bem que não é meu caso, querido. ELE — Está bem. Você já passou duas horas com seu psicanalista, hoje. Será que não pode mudar de assunto? ELA — Fique sabendo que o auto-conhecimento é o começo da cura. Depois, não tenho pressa em beber nada. Não sofro de nenhuma regressão à fase oral, como você. ELE — Regressão a quê? Que diabo é isso? Não estou sentindo nada! ELA — Está, sim. Está. ELE — Claro que não. ELA — Claro que está. Você é que não sabe. ELE — Ué, não estou sentindo nada! ELA — Pior. Muito pior. Não sente por causa de seus mecanismos de defesa. Você nunca ouviu falar de couraça caracterológica? ELE — Nunca. O que é isso? ELA — É uma pena. ELE — Por quê? ELA — Você está doente, meu amor. Muito doente. ELE — (um tanto alarmado) Não! ELA — (com firmeza) Doente, sim. Muito doente. Por que você não vai ao Dr. Hauser? Posso marcar hora para você, amanhã. ELE — E quem é o Dr. Hauser? ELA — Você está cansado de saber quem é o Dr. Hauser. Pergunta por causa de outro mecanismo de defesa. Seu caso está me parecendo mais grave do que eu pensava. ELE — Está bem. Mas quem é ele. ELA — Meu analista, é claro. Você vai gostar muito dele, querido. É um homem maravilhoso. Bonito, inteligente, culto, atlético, divino. Se eu já não estivesse no meu quinto ano de análise, poderia pensar até que é um semideus. Mas não. Já sei que é um ser humano como qualquer outro, sujeito aos mesmos erros e defeitos. Ele mesmo fez questão de deixar isso bem claro. Não é genial? ELE — O que é genial? ELA — Ora, o próprio Dr. Hauser dizer que é um ser humano. Só um homem divino diria isso. ELE — Eu também reconheço que sou apenas um ser humano. ELA — Mas você não é o Dr. Hauser. Não desanime nas primeiras sessões. suas resistências serão muito fortes, entende? Isso também aconteceu comigo, no começo. Mas o Dr. Hauser é um mestre no manejo da transferência e, depois de algum tempo, você vai sentir—se outra pessoa. ELE — Mas eu não quero me sentir outra pessoa. ELA — Coitadinho de você, meu bem. Num instante o Dr. Hauser vai convencer você de que você quer ser outra pessoa. Claro que quer. ELE — Mas que outra pessoa, meu Deus? ELA — Uma pessoa mais livre, mais independente. Sem essa dependência neurótica que você tem de mim, por exemplo. ELE — (esmagado) E eu tenho dependência neurótica de você? ELA — Claro. Qualquer pessoa com experiência de análise percebe isso logo de cara. ELE — Você está quase me convencendo. ELA — Tem uma fixação oral, também. E é um obsessivo-compulsivo típico. Já reparou essa mania por ordem e limpeza que você tem? Já? Aposto que não. Você não repara nada porque seu mecanismo repressivo tomou a forma da inversão. Você se acredita sadio quando está horrivelmente, miseravelmente, talvez até irrecuperavelmente doente. ELE — (totalmente aterrado) Puxa! Acho que preciso beber alguma coisa. Posso pedir um chope? ELA — Claro. Peça um para mim, também.

332. LUIZ CAVERSAN. Por uma sociedade mais pacífica. Na manhã de sexta-feira, naquele pedaço nobre de São Paulo, na avenida famosa, perto do shopping mais chique da cidade, três centenas de homens e mulheres deixaram negócios, notícias, corporações e gestões momentaneamente de lado para falar de paz. Era uma modesta mas emblemática passeata, que saiu da avenida Faria Lima em direção à praça Morungaba, cantinho simpático do coração dos jardins, para lembrar que um colega jornalista, sócio de uma das boas empresas que prestam assessoria de comunicação no país, marido e pai de família, estava desaparecido havia exatos 365 dias. Não houve discursos inflamados, nem indignações raivosas, mas sim a firme e pontual manifestação de inconformismo com uma situação absurda --Ivandel Godinho, 55 anos, foi sequestrado ali mesmo na Faria Lima, nunca mais apareceu e sobre ele a polícia nunca obteve nenhuma informação, nem sobre ele nem sobre os criminosos. Não se sabe, portanto, se está morto, se ainda permanece em cativeiro, se perdeu a memória e vaga sem rumo em algum canto do Brasil. A família, numa demonstrção inequívoca de força e união, mantém-se irredutível na cobrança às autoridades. E numa comovente demonstração de fé e esperança, aguarda sua volta para casa. Conheci Ivandel Godinho logo nos primeiros tempos em que fui trabalhar no Rio de Janeiro, em 1991. Ele e a mulher Kiki formavam a mais simpática e eficiente dupla de ação para intermediar jornalistas e produtores culturais, o que nos aproximou muito. Sempre foi um homem cordial, do bem. E sumiu em meio à onda de violência que ameaça a todos nós... Daí a importância de todos aqueles jornalistas, executivos, secretárias, produtores, publicitários, enfim, gente ligada a esse meio deixar seus afazeres para caminhar até a pracinha, cantar a música "A Paz", de Gilberto Gil e elevar seus corações no sentido de esperar que se consiga mudar alguma coisa com a força da vontade das pessoas de bem. Um dos momentos mais comoventes da curta mas significativa homenagem a Ivandel foi a leitura de uma mesangem pelo seu filho, Hugo. Em nome da amizade de Ivandel, em homenagem à força exemplar da Kiki e ainda para tentar, de alguma forma, ajudar a solucionar esse caso e, sobretudo, em nome da paz, reproduzo a carta do rapaz. Um ano de sofrimento, de grandes expectativas, frustrações e de muita...muita saudade. Um ano de fortalecimento da fé. De espera, e quanta espera... Costumamos dizer aos mais próximos que a vida está em suspenso desde outubro do ano passado. 365 dias de duração do seqüestro do meu pai, Ivandel Godinho Júnior. 365 dias, ainda sem resposta. A paz é hoje o nosso símbolo aqui. A serenidade que precisamos ter durante todo o tempo para encarar esta dura realidade é a representação concreta da paz. Paz de espírito para podermos estar neste movimento hoje, firmes, dividindo com todos que nos ouvem um pouco do absurdo que estamos vivendo. Quando o desânimo procurou nos visitar, com todo o peso do tempo que já passou, procuramos enxergar além da situação que nos cerca. Enxergamos, ainda que de longe, a PAZ. A paz não é fácil de ser alcançada, e nós sabemos bem disso. Em muitas horas, a revolta surge. Revolta diante da total falta de respostas da polícia sobre o paradeiro do meu pai. Revolta diante da covardia extrema dos criminosos que nos telefonavam com ameaças, nos privando da vida com nosso pai por um bocado de dinheiro. Revolta também diante do descaso das autoridades. Com tantos obstáculos, a paz por muitas vezes se sentiu ameaçada. Mas felizmente sempre era resguardada. A revolta deu lugar à ação. Ações para se alcançar a paz. No nosso caso, divulgando sempre que possível o seqüestro e buscando respostas por meios alternativos. No caso da ação pela paz de todos, pedindo ações concretas para atingirmos uma sociedade mais bonita para as gerações futuras. Uma sociedade mais pacífica. A paz não pode ser apenas um conceito subjetivo. A paz da qual falamos é real, e pode ser buscada por diversos caminhos. Selecionamos 12 caminhos. Eles representam o número de meses que já dura o seqüestro. São pedidos simples, e que provavelmente todos aqui conhecem. Mas que não estão sendo usados. Se estivessem, certamente meu pai poderia estar junto a nós neste momento. Portanto, pedimos: 1- Sociedade mais justa. 2- Fim da violência. 3- Não às armas. 4- Educação para todos. 5- Segurança. 6- Justiça ágil. 7- Amor. 8- Polícia qualificada. 9- Respeito ao próximo. 10- Liberdade de ir e vir. 11- Justiça social. 12- Paz. Paz que atinja a nós todos. Nós precisamos de paz.

333. LUÍS CAVERSAN. Uma das coisas que mais incomodam o ser humano, hoje e sempre, é a presença de alguém que seja diferente. Diferente no agir, no pensar, no se comportar, no desejar, no ostentar, neste caso física ou mentalmente. O ostentar, no sentido de exibir aquilo de que se tem a posse, já foi e ainda é motivo de muita guerra e muita morte. O ser diferente por opção, desejo ou orientação diversa daquela da maioria permanece como motivo de segregação, às vezes humilhação, muitas vezes violência. O que poderia ser apenas fruto da ignorância não o é: reflete em geral uma incapacidade atávica do ser humano de conviver com alguma coisa que exponha, na verdade, o que ele considera uma fragilidade da sua espécie ou aquilo que provoca o desentendimento dentro de uma suposta ordem preestabelecida "necessária" e comumente atribuída ao desejo de algo maior, superior a todos. A Deus, por exemplo, perante o qual, aliás, nada é diferente e tudo é ou deveria ser possível, único e necessário. Essa introdução toda é para louvar a iniciativa de um grupo de pessoas que criaram o Dia do Orgulho Autista. São pais, amigos e parentes do portadores desse transtorno de comportamento ainda tão misterioso quanto difícil de se relacionar. Afinal, o portador é aquele indivíduo que vive num mundo só seu, em que tudo o que o cerca --objetos, situações e sobretudo pessoas-- nem sequer parecem existir. Por definição técnica, o autismo seria o "desenvolvimento acentuadamente anormal ou prejudicado na interação social e comunicação e um repertório marcantemente restrito de atividades e interesses". O que torna seus portadores indivíduos isolados, como que vivendo num mundo à parte e indiferentes a grande parte das convenções que a eles são apresentadas --para não dizer impostas. E é aí que o grupo do Orgulho Autista argumenta, numa página da internet (http://www.parallax.com.br/anjosdebarro/orgulho): "Os defensores do Orgulho Autista acreditam que a noção de pureza racial, em termos de raça humana como um todo, permeia a ciência médica, que parece refletir uma crença de que todo cérebro humano seria idêntico. Os defensores do orgulho autista alegam que a noção de que haveria uma estrutura ideal e, por isso, desejável para o cérebro humano leva muitos praticantes da psiquiatria a assumir que qualquer desvio requer uma "cura" para conformar à norma neurotípica. Acreditam que, no mínimo, deveria haver maior respeito para com os membros da comunidade autista como indivíduos únicos." E vão além: lembram que a homossexualidade já foi classificada como uma forma de doença mental que poderia ser tratada clinicamente e que esse preconceito foi superado --infelizmente outros ainda persistem-- por intermédio de ações como as dos movimentos pelos direitos gays em defesa tolerância social com a diversidade de orientação sexual, dentro de uma postura de orgulho em relação à sua própria condição. Daí a proposta dos amigos dos autistas ao propor o Dia do Orgulho Autista (18 de junho) como uma forma de contrapor estima e respeito ao descaso, ao preconceito, à hostilidade ou o desprezo que a sociedade moderna reserva para o que é diferente, diverso e, assim, do seu ponto de vista, incômodo. Autistas junto aos perfeitamente "interados", deprimidos com os contentes, negros mais brancos, homos ao lado de heteros, altos, baixos, gordos demais e magros na medida; ricos e pobres com os remediados no meio; espinhentos, dentuços, lindos, feios, apenas bonitos, normais, louros, acajus, punks, clubbers, engravatados; fêmeas, machos, velhos, jovens e os na "flor da idade"; mancos, atletas, para ou tetraplégicos; gagos, mudos, cegos, surdos; obsessivos, compulsivos, tímidos ou medrosos, sensíveis e tudo o mais que possa tornar um ser desigual de um outro ou, melhor ainda, da maioria, só demonstram como a tolerância é a palavra chave para a sobrevivência dentro de uma cultura de paz. Aceitar essas supostas divergências, esses "desvios", tolerá-los, é, sim, um desafio inadiável. O que não se deve é confundir com a aquiescência aos desvios de caráter, tão presentes entre nós, esses impossíveis de serem engolidos. Mas essa é uma outra história que fica para uma outra vez.

334. LUIZ CAVERSAN. Outro dia o caderno Equilíbrio da Folha trouxe um material sensacional em sua singeleza e simplicidade. Eram depoimentos de crianças explicando, com suas próprias palavras, por qual razão elas gostavam daquilo que eram, ou seja, crianças. Eis aqui, resumidas, algumas das respostas: Porque tomo sorvete e brinco de teclado e a gente corre atrás da pombinha. (Henrique, 4). Porque eu posso brincar de moto de dia e de noite (Guilherme, 3). Porque eu posso comer coisas mais gostosas que os adultos (Manuela, 8). Porque posso brincar de boneca, de pega-pega, de desenhar e de pintar (Ianca, 8). Porque quando a gente é adulto tem que pagar aluguel e não tem dinheiro (Débora, 6). Que atire o primeiro pirulito aquele marmanjo que nunca morreu de vontade de correr atrás de pombas, jamais quis pilotar uma moto imaginária ou voltar à delícia do pega-pega e comer todas as coisas gostosas que a "boa educação" nos vetam. E quem é que nunca pensou, na hora de morrer com o dinheiro do aluguel, do condomínio, do imposto, do porteiro etc.etc., como era bom quando, para se viver bem, bastava ter um a cabaninha e muita imaginação? Na minha infância na Vila Esperança, anos 60, então farta de terrenos e quintais, as cabaninhas eram nossos castelos e casamatas, de onde partíamos para batalhas inomináveis contra os selvagens que ousavam invadir nosso território.Os mocinhos e índios eram a mesma turma dividida em duas. E eu adorava ser índio. E adorava mais ainda ser abatido no alto de um barranco, de onde rolava dramaticamente até me espatifar no chão de terra batida. Ainda bem que era meio úmido o nosso "Grand Cannyon", o que ocasionava raladuras apenas superficiais. Ao ler os depoimentos crianças no jornal fiquei aqui matutando sobre este passado, e a sensação não poderia ter sido melhor. Por mais que a vida nos embruteça, por maiores que sejam as dificuldades do dia-a-dia, é no escaninho da memória que ainda se escondem nossa capacidade de fantasiar, de voar atrás de pombas, de comer todas as guloseimas do mundo, de pintar um céu cheio de arco-íris. É ali, enfim, que se encontra a essência de nossa felicidade. Da verdadeira felicidade, digo. Aquela que só é permitida às crianças, que conseguem enxergar todo o universo numa bola de gude. Uma leitora chamou minha atenção para o fato de, no artigo da semana passada, eu ter corrido o risco de generalizar a tristeza e a solidão como indicativos únicos de depressão. Se passei essa idéia, peço desculpas. Porque, como já disse aqui muitas vezes, depressão é uma doença multicausal e tem diversos sintomas e sujeita o portador a várias reações físicas e psicológicas. Tanto que o manual da Associação Americana de Psiquiatria lista uma série de sintomas para que se possa aferir se uma pessoa está deprimida. Claro que sempre e sempre a opinião do médico é indispensável, a avaliação clínica ou psiquiátrica, fundamental. Mas os dados do manual são públicos e dizem o seguinte: Pode-se concluir que uma pessoa está vivendo um episódio de depressão se apresentar pelo menos cinco (5) dos nove sintomas relacionados abaixo, sendo que os dois primeiros são obrigatórios: 1 - Humor deprimido na maior parte do dia, quase todos os dias. A ausência de alegria pode ser indicada por relato do paciente (diz que se sente triste ou vazio) ou pela observação de pessoas de sua convivência (observa que ele chora muito). Em crianças e adolescentes, a tristeza pode dar lugar à irritação. 2 - Diminuição acentuada do interesse ou do prazer em relação a todas ou quase todas as atividades, na maior parte do dia, quase todos os dias. 3 - Aumento ou diminuição do apetite todos os dias, perda ou ganho expressivo de peso sem que ocorra mudança na dieta. O aumento ou diminuição do peso deverá ser de 5% em um mês. Nas crianças, deve-se observar mudanças fora dos padrões normais do processo de crescimento. 4 - Insônia ou excesso de sono quase todas as noites. 5 - Agitação psicomotora ou retardo nos movimentos. 6 - Cansaço ou perda de energia quase todos os dias. 7 - Sentimento de inutilidade ou culpa exagerada. 8 - Diminuição da capacidade de pensamento, de concentração e de tomar decisões quase todos os dias. 9 - Pensar em morte com freqüência (não apenas ter "medo de morrer"), imaginar o suicídio sem um plano específico, fazer planos específicos para se matar ou efetivamente tentar o suicídio. Os dois primeiros itens são obrigatórios no diagnóstico da depressão porque a característica fundamental do transtorno é essa mesmo: a ocorrência, durante pelo menos duas semanas, do humor deprimido e da perda de qualquer tipo de interesse ou prazer mesmo diante de coisas ou situações que normalmente seriam motivadoras. A apatia predomina. Quanto aos demais sintomas, pode-se "escolher" mais três. Do aumento ou diminuição do peso à perda da auto-estima e ao permanente sentimento de culpa, passando pelo cansaço persistente e pela ruminação de pensamentos recorrentes, em geral negativos, o que impede ou diminui drasticamente a capacidade de concentração. Mas, antes de chegar a qualquer conclusão, fale com um médico.

335. LUIZ CAVERSAN. Cabeças nas nuvens. Ela me deu um beijo na boca e quase disse que a vida é oca como a touca de um bebê sem cabeça. Essa é a música do Caetano, sim, é. Porque ela me deu um beijo na boca e disse que gostava do jeito que eu falava certas coisas. Charutinho, por exemplo. Gostei tanto que fui referencialmente, como tantas outras vezes, a Caetano. Na falta de coisa melhor pra dizer, e ainda à espera do beijo que eu sabia que viria, mas não tão rápido, olhei bem para os cabelos meio ruivos e para a boca rasgada e um pouco, só um pouco, mas suficientemente carnuda, para dizer: sim, é assim que eu gosto desde sempre. Ela me deu um beijo na boca e tirou todos os cuidados e preconceitos e salamaleques da minha mente, deixou que eu ficasse quase tão bem quanto imaginava que um dia ainda pudesse voltar a estar. Ela me deu um beijo na boca e pediu desculpas pelo atrevimento. Ora, ora que atrevimento bom de lembrar para sempre; mas deu vontade de mais. E mais e mais e mais. Mas sem falsas nem verdadeiras expectativas, pensei, afinal, porque ela quer tudo, uma grande, nova e arrebatadora paixão, e eu só sei que nada sei. Mas eu tive mais. E como tive, ah, como tive... Só não mais do que aquilo que dei, e isso de fato criou a grande parceria, a cumplicidade. Tanto tempo depois, essas emoções ficaram vívidas e presentes como se ontem fosse. Agora, acho que sei muito bem o que sei, e isso, bem ao contrário, não equaciona a questão. Não. Tampouco a paixão arrebatadora que certamente surgiu resolve o que quer que seja. Apenas constato que essa troca cúmplice e parceira, lado a lado, resultou no que sempre devem redundar os bons e grandes amores: subiram, desceram, sacolejaram, arrancaram outros tantos beijos e arroubos, e deixaram, de fato, cabeças ocas. Como que a pairar suavemente numa nuvem branca. E é essa, apenas essa, é a recordação que vale a pena ter.

336. LUIZ CAVERSAN. Uma das principais características da depressão, esse mal que aflige cada vez mais pessoas, é a sensação que o indivíduo tem de que está absolutamente sozinho no mundo. Que o abismo sem fundo em que se encontra é único, e que ninguém é capaz de compreender a dimensão de seu desespero. Isso é parcialmente correto, uma vez que em grande parte aquele universo tenebroso e sombrio existe apenas na cabeça do portador do transtorno afetivo. Por isso constitui um certo alívio para o depressivo ver-se um pouco no outro. É no mínimo um alento para que siga em frente com seu tratamento, busque força e coragem para enfrentar e superar as pequenas e grandes. Durante as pesquisas que realizei sobre o tema, me defrontei com diversos textos que tratam de depressivos famosos. Os dois mais importantes são "Famous Depressives - Tem Historical Sketches", de M.J. Lieburg (Erasmus Publishing) e "Touched with Fire", de Kay Jamison.

337. LUIZ CAVERSAN. O preço da insegurança pode ser a eterna infelicidade? Essa pergunta, à qual respondo em seguida, veio a propósito do artigo aqui publicado, "O Amor é Lindo", e que suscitou diversas manifestações de leitores sobre as maneiras e maneiras de relacionamentos íntimos nos tempos que seguem. Uma dessas indagações dizia respeito, justamente, à insegurança que pode atrelar o "amante" ao "amado" de maneira tão brutal que a condição básica do relacionamento (ora, o amor...) simplesmente deixa de existir como tal. Passa a ser perversão ou apenas dominação, mas nada que chegue perto da generosidade e isonomia que são condições sine qua non do mais belos dos sentimentos. Imagine aquele que ama com condições. Sim, condições! Amo-te muito, mas você precisa corresponder a uma série de pré-requisitos, manter tais e tais atitudes, desempenhar quais e tantos papéis, senão estará fadado ao esquecimento que cruelmente vou dedicar a você. O outro pode não aceitar, claro, mas quantos aceitam? Aquele que é "amado", na insegurança de perder este suposto benefício, em tempos de tantas e tão massacrantes solidões, aceita o jogo. Anula-se, submete-se, molda-se. Pode parecer inconcebível, mas a tirania dessa concepção de amor tem características que só o incomensurável mistério da alma humana pode permitir supor. Ou seja, tudo é possível. Até deixar de ser feliz com medo da...infelicidade... Qual não foi minha surpresa ao ler recentemente que a Câmara dos Deputados aprovou resolução que retira do Código Civil a expressão "mulher honesta". Gente, pleno século 21, em meio à fabulosa revolução cibernética, ainda há esse tipo de coisa! Vale a pena ler a notícia, veiculada pela Folha: "A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou anteontem mudanças no Código Penal acabando com a punição por adultério, com os crimes de sedução e rapto consensual e tirando a expressão 'mulher honesta'. O projeto de lei, aprovado por unanimidade, extingue a possibilidade de um réu acusado de estupro ser perdoado pela Justiça caso a vítima se case com outra pessoa. O projeto segue agora para votação em plenário. De lá, vai para o Senado. Se for aprovado nas duas Casas, vira lei após sanção da Presidência da República. O projeto tenta modernizar o Código Penal, de 1940, dando-lhe um tom mais politicamente e juridicamente corretos. Um dos exemplos é a retirada da expressão 'mulher honesta' do código. O conceito não é definido em lei, mas interpretado pela Justiça a cada caso. A maior dificuldade é que a definição imaginada para a sociedade brasileira em 1940 dificilmente é aplicada nos dias de hoje. Na época, honesta era a mulher virgem ou casada e de conduta considerada correta. Segundo o Código Penal, apenas a mulher que se enquadrasse nesse conceito de honestidade poderia ser considerada vítima de alguns crimes, como rapto, que é o seqüestro de mulher com fins libidinosos. O projeto acaba com o crime de adultério, punido hoje com reclusão de 15 dias a seis meses. O objetivo do crime era punir as mulheres. 'Os casos eram raros, mas ainda se viam condenações. Era má utilização do aparelho policial, que era usado para fazer flagrantes de adultério com o objetivo de se conseguir pensões melhores nas separações. O direito penal não pode ser usado para isso', disse o relator".Bem, finalmente parece que, em termos legais, as mulheres brasileiras começam a sair da Idade Média. Menos mal.

338. LUÍS FERNANDO VERISSIMO. 36 HOMENS JUSTOS. Li que no Talmude existe a história dos 36 homens justos que salvam o mundo da destruição. Segundo a tradição mosaica, a cada momento determinado da História vivem na Terra 36 homens cuja retidão de caráter impede Deus de fechar a mão e nos aniquilar. Os 36 podem estar espalhados pelo planeta, não se conhecerem entre si e não conhecerem o seu próprio poder, mas sua existência e o seu comportamento decidem o nosso destino. Se não fosse pelos 36, Deus desistiria de nós. Por que 36? Não sei. Também não sei se há algum tipo de flexibilidade divina. Se Deus aceita, por exemplo, 35 éticos e um que, vá lá, passou a mão na empregada ou na caixa da firma, mas hoje está arrependido, ou se o Talmude esclarece esse ponto. O fato é que a simples sobrevivência da Humanidade, apesar de tudo que ela já aprontou, é prova de que há pelo menos 36 homens justos no mundo, neste momento. Deus os conhece. Deus os conta todos os dias. Mesmo quem não segue o Talmude só pode torcer para que esta conjunção mágica não se desfaça, que nunca faltem homens justos no mundo em número suficiente para evitar nossa destruição. O mesmo vale para o Congresso brasileiro: só a existência presumida de um mínimo de 36 exceções à mediocridade, à venalidade ou à canastrice explicaria que um raio ainda não tenha destruído as duas casas. Os presumidos 36 preservam a instituição e, mais importante, preservam nosso amor-próprio, pois maus congressos significam maus eleitores. Nenhum congressista brotou da sua cadeira, foram todos postos lá por um de nós, o povo. Os presumidos 36 nos redimem. Quem são eles? Deus os conhece. Deus os conta todos os dias.

339. LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO. — Você pensou bem no que vai fazer, Paulo? — Pensei. Já estou decidido. Agora não volto atrás. — Olhe lá, hein, rapaz... Paulo está ao mesmo tempo comovido e surpreso com os três amigos. Assim que souberam do seu divórcio iminente, correram para visitá-lo no hotel. A solidariedade lhe faz bem. Mas não entende aquela insistência deles em dissuadi-lo. Afinal, todos sabiam que ele não se acertava com a mulher. — Pense um pouco mais, Paulo. Reflita. Essas decisões súbitas... — Mas que súbitas? Estamos praticamente separados há um ano! — Dê outra chance ao seu casamento, Paulo. — A Margarida é uma ótima mulher. — Espera um pouquinho. Você mesmo deixou de freqüentar nossa casa por causa da Margarida. Depois que ela chamou vocês de bêbados e expulsou todo mundo. — E fez muito bem. Nós estávamos bêbados e tínhamos que ser expulsos. — Outra coisa, Paulo. O divórcio. Sei lá. — Eu não entendo mais nada. Você sempre defendeu o divórcio! — É. Mas quando acontece com um amigo... — Olha, Paulo. Eu não sou moralista. Mas acho a família uma coisa importantíssima. Acho que a família merece qualquer sacrifício. — Pense nas crianças, Paulo. No trauma. — Mas nós não temos filhos! — Nos filhos dos outros, então. No mau exemplo. — Mas isto é um absurdo! Vocês estão falando como se fosse o fim do mundo. Hoje, o divórcio é uma coisa comum. Não vai mudar nada. — Como, não muda nada? — Muda tudo! — Você não sabe o que está dizendo, Paulo! Muda tudo. — Muda o quê? — Bom, pra começar, você não vai poder mais freqüentar as nossas casas. — As mulheres não vão tolerar. — Você se transformará num pária social, Paulo. — O quê?! — Fora de brincadeira. Um reprobo. — Puxa. Eu nunca pensei que vocês... — Pense bem, Paulo. Dê tempo ao tempo. — Deixe pra decidir depois. Passado o verão. — Reflita, Paulo. É uma decisão seriíssima. Deixe para mais tarde. — Está bem. Se vocês insistem... Na saída, os três amigos conversam: — Será que ele se convenceu? — Acho que sim. Pelo menos vai adiar. — E no solteiros contra casados da praia, este ano, ainda teremos ele no gol. — Também, a idéia dele. Largar o gol dos casados logo agora. Em cima da hora. Quando não dava mais para arranjar substituto. — Os casados nunca terão um goleiro como ele. — Se insistirmos bastante, ele desiste definitivamente do divórcio. — Vai agüentar a Margarida pelo resto da vida. — Pelo time dos casados, qualquer sacrifício serve. — Me diz uma coisa. Como divorciado, ele podia jogar no time dos solteiros? — Podia. — Impensável. — É. — Outra coisa. — O quê? — Não é reprobo. É réprobo. Acento no "e". — Mas funcionou, não funcionou?

340. LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO. Crânio e ossos. Bush e Kerry têm mais em comum do que as gravatas iguais. Os dois pertenceram à sociedade estudantil “Skull and Bones”, na Universidade de Yale. Apesar do nome, “Crânio e ossos”, e dos seus rituais secretos, a sociedade não é uma sinistra irmandade satânica que se reúne para tramar maldades — pelo menos que se saiba. Mas é uma irmandade fechadíssima, de poucos membros que, como o pai e o avô de Bush — este, Prescott Bush, um banqueiro que durante a Segunda Guerra foi denunciado pelas suas ligações financeiras com nazistas — tradicionalmente se destacam, e se ajudam mutuamente, nos meios concêntricos das altas finanças, negócios de petróleo, comunidade da informação e política. Você não é aceito na “Skull and Bones” sem as credenciais certas e sem expectativas presumíveis do que vai ser no esquemão do poder aristocrático americano. Bush e Kerry têm passados e antecedentes familiares parecidos mas, dos dois, foi Bush quem descumpriu as expectativas. Usou suas ligações e as do pai na “Skull and Bones” para fazer seus negócios malsucedidos mas preferiu fazer carreira política em outro esquema, distanciando-se dos patifes cavalheiros do Leste e aderindo ao conservadorismo truculento e o fundamentalismo religioso da América profunda. Dos dois, foi Kerry quem se manteve mais fiel ao espirito da “Skull and Bones”. O resultado é que o candidato da esquerda à Presidência dos Estados Unidos é um típico produto do exclusivismo da costa Leste, como já tinha sido o Kennedy, e o candidato dos ricos e poderosos passa por um renegado da elite que o pariu. Seja como for, teóricos de conspirações têm com que trabalhar nas coincidências dos dois candidatos serem da mesma sociedade misteriosa. Dizem até que, antes dos debates, Bush e Kerry se encontravam nos bastidores e trocavam o cumprimento secreto da “Skull and Bones” — “Uga uga” segurando um calcanhar, ou coisa parecida. Mas parece que nenhum dos dois gosta muito de falar na sua passagem pela sociedade, que não só não aceitava mulheres como membros, o que é comum em irmandades deste tipo, mas tinha uma reputação de misoginia ativa. Hmmmm. Duplo hmmmm.  Outra tese conspiratória: Osama bin Laden está preso. Foi encontrado há meses e levado para uma instalação militar americana, em lugar ignorado, no Afeganistâo. Dois dias antes da eleição nos Estados Unidos, sua captura por tropas americanas será anunciada. O próprio Bush irá ao Afeganistão para um encontro cara a cara com o terrorista. A conversa dos dois será a sós, ninguém a registrará. Osama dirá:— Pensei que você tivesse combinado com a minha família. Eu ficaria livre e você atacaria o Iraque e prenderia o Saddam Hussein, para desviar a atenção de todo o mundo.— Pois é, meu velho — dirá Bush. — A idéia era essa. Mas a eleição está muito parelha. Minha reeleição está a perigo. Sabe como é...

341. LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO. Sumido. Do baú. Me disseram “Você anda sumido” e me dei conta de que era verdade. Eu também, fazia tempo que não me via. O que teria acontecido comigo? Não me encontrava nos lugares em que costumava ir. Perguntava por mim e as pessoas diziam “é verdade, você anda sumido”. E “Que fim levou você?”. Eu não tinha a menor idéia que fim tinha me levado. A última vez em que me vira fora, deixa ver... Eu não me lembrava! Eu teria morrido? Impossível, na última vez em que me vira eu estava bem. Não tinha, que eu soubesse, nenhum problema grave de saúde. E, mesmo, eu teria visto o convite para o meu enterro no jornal. O nome fatalmente me chamaria a atenção. Eu podia ter mudado de cidade. Era isso. Podia ter ido para outro lugar, podia estar em outro lugar naquele momento. Mas por que iria embora assim, sem dizer nada para ninguém, sem me despedir nem de mim? Sempre fomos tão ligados. No outro dia fui a um lugar que eu costumava freqüentar muito e perguntei se tinham me visto. Não era gente conhecida, precisei me descrever. Não foi difícil porque me usei como modelo. “Eu sou um cara, assim, como eu. Mesma altura, tudo.” Não tinham me visto. Que coisa. Pensei: como é que alguém pode simplesmente desaparecer desse jeito? Foi então que comecei, confesso, a pensar nas vantagens de estar sumido. Não me encontrar em lugar algum me dava uma espécie de liberdade. Podia fazer o que bem entendesse, sem o risco de dar comigo e eu dizer “Você, hein?”. Mudei por completo de comportamento. Me tornei — outro! Que maravilha. Agora, mesmo que me encontrasse, eu não me reconheceria. Comecei a fazer coisas que até eu duvidaria, se fosse eu. O que mais gostava de ouvir das pessoas espantadas com a minha mudança era: “Nem parece você.” Claro que não parecia eu. Eu não era eu. Eu era outro! Passei a me exceder, embriagado pela minha nova liberdade. A verdade é que estar longe dos meus olhos me deixou fora de mim. Ou fora do outro. E um dia ouvi uma mulher indignada com o meu assédio gritar “Você não se enxerga, não?”. E, então, tive a revelação. Claro, era isso. Eu não estava sumido. Eu simplesmente não me enxergava. Como podia me encontrar nos lugares onde me procurava se não me enxergava? Todo aquele tempo eu estivera lá, presente, embaixo, por assim dizer, do meu nariz, e não me vira. Por um lado, fiquei aliviado. Eu estava vivo e bem, não precisava me preocupar. Por outro lado, foi uma decepção. Concluí que não tem jeito, estamos sempre, irremediavelmente, conosco, mesmo quando pensamos ter nos livrado de nós. A gente não desaparece. A gente às vezes só não se enxerga. A decisão. A moça suspirou fundo, pensou em todas as maneiras como podia mudar a sua vida — casar com um analista de sistemas ou um contrabaixista, entrar para uma ordem religiosa, cortar a carne vermelha e os derivados do leite ou até voltar para Faxinal do Soturno — e finalmente decidiu mudar de nome.— Vou me chamar Gwyneth. Não era nada, não era nada, já era um começo.

342. LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO. Do baú. “Não vos esqueçais da hospitalidade, porque por ela alguns, não o sabendo, hospedaram anjos.” Epístola aos Hebreus, 13:2. Bons tempos, os bíblicos. Tempos simples. Imagine hospedar um anjo hoje. Um desconhecido sem referências, sem documentos. Confiando apenas na palavra dele de que não vai nem matar nem assaltar você. Que ele só quer sua hospitalidade. Tá doido. Um deles já pode ter se aproximado de você. Ele queria apenas aparecer para você e lhe dar a mensagem. Você só precisava ouvir. Mas você não soube que era ele. Você se afastou, achou que era um chato, que era um louco. Pode ter sido há anos. Aquele que caminhou ao seu lado brevemente e começou a dizer coisas estranhas, e você apressou o passo, lembra? Aquele (ou aquela, eles vêm em várias formas) que se sentou ao seu lado e falou no tempo. Era um preâmbulo para a Revelação, mas você fechou a cara. Ele pode ter batido na sua porta, antes de você mandar botar as grades, e você foi logo dando uma esmola, ou dizendo hoje não tem nada, ou ameaçando chamar a polícia. Hoje ele apertaria a campainha, você espiaria e não abriria o portão, ou diria “Quié” no interfone e o mandaria embora. Se ele se aproximar de você na rua você correrá apavorado ou anunciará que está armado e que é melhor ele se afastar. Se ele se sentar ao seu lado você fugirá do contato, se ele segurar o seu braço você gritará. Se ele telefonar você não deixará ele falar, ou a secretária eletrônica dirá que é para ele deixar a mensagem depois do bip e ele não dirá nada, pois a Revelação é para você, não para as secretárias eletrônicas. E se ele conseguir alcançar você, e desprezar as suas ameaças de chamar a polícia ou lhe dar um tiro ou um pontapé, e manter sua atenção durante alguns minutos apesar do barulho do trânsito e da TV e de todas as outras distrações que nos tempos bíblicos não tinha, e lhe der a mensagem — você não a compreenderá. Dirá “O quê?” Dirá “Em que sentido?” Dirá: “É uma metáfora? É um código? É propaganda? Interpreta, traduz, decifra, contextualiza!” E ele olhará você nos olhos e verá que é tarde. E você dirá “Olha, hoje estou sem tempo, precisamos conversar com mais calma, me liga, me liga, olha o meu imail”, mas o anjo verá que não adianta mais.

343. LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO. Paris — Há uma lição moral, em algum lugar, na história do fracasso do Real Madrid, aquela seleção de futebol do mundo que não ganha de ninguém. Quer dizer, ganhar ganha, tanto que o clube não está tão mal assim na classificação do campeonato espanhol. Mas não é o campeão nem da Espanha, nem da Europa, nem do mundo, como seria lógico que fosse, com aquele time, e seus jogadores “galáticos” hoje só enchem o seu estádio para serem vaiados. Há quem diga que o destino dos times de sonho é não darem certo e que o maior exemplo disso é a seleção de basquete dos Estados Unidos, que pela lógica não deveria perder para ninguém, nunca. Mas aí a questão moral escondida passa a ser por que os times de sonho jamais correspondem ao sonho. Seria porque competem não com os outros times mas com a própria expectativa que criam, uma expectativa da perfeição impossível. Ou porque se autodeslumbram ao ponto de pensar que o outro time só não entrega a partida ao vê-los entrar em campo por uma inexplicável falta de respeito. Ou simplesmente porque se rebelam contra a idéia de que são uma coleção de super-homens e, inconscientemente, querem proteger sua humanidade normal. Teorias psicológicas a gosto. No caso do Real Madrid a explicação estaria não na psicologia rarefeita, mas num conceito empresarial equivocado. Era tamanha a volúpia pelo espetáculo e a renda que ele proporciona que não cuidaram da defesa, onde são raros os jogadores espetaculares. E o resultado é um meio time de virtuosos com um vazio lá atrás — a fachada do Taj Mahal sustentada por dois palitos. Faltam no time os que não aparecem e não dão espetáculo, os zagueiros bandidos e os estivadores do meio-campo. A lição do Real Madrid seria, afinal, a mais velha lição do futebol: para você poder brilhar com a bola é preciso que alguém a tire do adversário. Não ajuda, claro, o fato de cada um dos galáticos saber exatamente quanto valem suas pernas e estudar a conveniência de dividir uma bola com os mesmos critérios que usa para avaliar um investimento.

344. LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO. Do baú. Certa vez fiz uma trova entre Deus e o Diabo para o Kleiton e o Kledir em que, respondendo a uma provocação do Diabo, que duvidava do seu poder de estar em todas as partes ao mesmo tempo, Deus cantava: “Vá ver se Eu não estou lá na esquina.” Na verdade, mandar alguém ver se estamos na esquina é uma das maneiras mais brandas de mandá-lo longe, comparável a mandar plantar batata ou procurar a sua turma. Mas existem exortações mais radicais, algumas imprecisas e de difícil execução. Mandar o outro encontrar uma banheira ou um chuveiro e se lavar, ou ir à presença da prostituta que lhe deu à luz, não exige maior empenho ou engenhosidade. Afinal, todos deveriam estar sempre dispostos a tomar um banho, e todos têm a obrigação elementar de saber onde está a sua mãe, ou pelo menos onde ela faz ponto. Mas e quando se manda alguém ao (para usar o nome científico) excremento? Que excremento? Onde? De que ou de quem? Como a referência é sempre “ao” excremento, genericamente, e não a uma determinada porção, subentende-se que em algum lugar existe uma quantidade de excremento aguardando a chegada do outro, que só depois de atirar-se nele, como mandamos, deve ir tomar banho. E aproveitar para lamber o sabão. Algumas tarefas são irrealizáveis. Catar capim no mato, tudo bem. Mas como uma pessoa pode “se” catar, por exemplo? E de que imaginável jeito alguém pode praticar a autofornicação, mesmo sendo um contorcionista? A pessoa nunca passaria das preliminares, e assim mesmo limitada pelo alcance dos seus lábios e das suas mãos. Onde, como e quando encontraríamos o tal raio que nos partisse, sem receber maiores instruções? Quando se manda alguém para o Inferno, ao menos é para um lugar específico. (Na trova que eu inventei para o Kleiton e o Kledir, o Diabo mandava Deus para o Inferno de uma forma sutil: “Apareça la em casa!”) Mas a exata localização do Inferno é uma velha questão teológica. Como encontrá-lo? E depois de encontrá-lo, como saber onde ficam os seus quintos? Ir para o Inferno pressupõe morrer antes ou o Inferno, no caso, é metafórico e inclui qualquer lugar desconfortável do momento, como Faluja ou uma fila do SUS? Sejamos claros. Nos nossos insultos, mesmo que em nada mais na vida.

345. LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO. Paris — Pouca gente sabe que, nos cursos para piloto comercial, um dos primeiros testes que fazem com o candidato nada tem a ver com suas condições físicas ou emocionais ou sua vocação para a carreira. É um teste de voz. O aspirante deve dizer num microfone: “Senhores passageiros, sua atenção por favor. Fala o comandante.” E só passa no teste se tiver voz de comandante. Uma voz firme, máscula, que inspire confiança. Ele pode ter todas as condições para ser comandante, pode ser um comandante nato, mas se não tiver voz de comandante nem começa o curso. Ou você alguma vez ouviu um comandante de voz fina? Às vezes, quando se enxerga o comandante, pode-se desconfiar que a voz no alto falante não era a dele. Que sua comunicação com os passageiros foi dublada, que tem alguém na cabine cuja única função é falar por ele com voz de comandante. Mas mesmo que a figura não corresponda à voz, é melhor se certificar antes de reclamar da companhia aérea pelo risco de voar com alguém tão despreparado, vocalmente, para o cargo. A voz pode ser dele mesmo, apesar da sua aparência. E na grande maioria dos casos as pessoas preferem alguém sem pinta de comandante mas com voz de comandante do que alguém com a pinta e sem a voz. Deve até haver casos de candidatos que se saem tão bem no teste de voz, que tem uma voz de comandante tão boa e convincente, que são dispensados de fazer o curso e recebem o diploma na hora. Ao contrário do que muita gente pensa, o italiano não é o espanhol com mais gestos. Nem acentuar a última sílaba transforma, automaticamente, qualquer língua em francês. A certeza de que é só substituir o “o” pelo “ue” leva muitos brasileiros a pensar que qualquer um de nós fala um “pueco” de espanhol. Agora, a convicção que os brasileiros mais custam a abandonar é a de que para ser entendido por qualquer estrangeiro, basta falar português bem alto e bem explicado. Onde fica, exatamente, o colo? Não é a questão mais premente do momento, eu concordo, mas é uma coisa que sempre me intrigou. Quando se fala no “colo” de uma mulher está-se referindo ao seu, para usar outro eufemismo, busto, certo? Ou toda a área geral do seu peito. Mas quando se senta no colo de alguém, se a memória não me falha, senta-se nas pernas dobradas de alguém sentado. A questão não é apenas etimológica, envolve, afinal, uma definição de onde andamos nos depositando e depositando os outros, nesta vida.

346. LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO. Já deve ter acontecido com você.— Não está se lembrando de mim? Você não está se lembrando dele. Procura, freneticamente, em todas as fichas armazenadas na memória o rosto dele e o nome correspondente, e não encontra. E não há tempo para procurar no arquivo desativado. Ele esta ali, na sua frente, sorrindo, os olhos iluminados, antecipando sua resposta. Lembra ou não lembra? Neste ponto, você tem uma escolha. Há três caminhos a seguir. Um, curto, grosso e sincero.— Não. Você não está se lembrando dele e não tem por que esconder isso. O "Não" seco pode até insinuar uma reprimenda à pergunta. Não se faz uma pergunta assim, potencialmente embaraçosa, a ninguém, meu caro. Pelo menos entre pessoas educadas. Você deveria ter vergonha. Passe bem. Não me lembro de você e mesmo que lembrasse não diria. Passe bem. Outro caminho, menos honesto mas igualmente razoável, é o da dissimulação.— Não me diga. Você é o... o... "Não me diga", no caso, quer dizer "Me diga, me diga". Você conta com a piedade dele e sabe que cedo ou tarde ele se identificará, para acabar com sua agonia. Ou você pode dizer algo como:— Desculpe, deve ser a velhice, mas... Este também é um apelo à piedade. Significa "não tortura um pobre desmemoriado, diga logo quem você é!". É uma maneira simpática de você dizer que não tem a menor idéia de quem ele é, mas que isso não se deve a insignificância dele e sim a uma deficiência de neurônios sua. E há um terceiro caminho. O menos racional e recomendável. O que leva à tragédia e à ruína. E o que, naturalmente, você escolhe.— Claro que estou me lembrando de você! Você não quer magoá-lo, é isso! Há provas estatísticas de que o desejo de não magoar os outros está na origem da maioria dos desastres sociais, mas você não quer que ele pense que passou pela sua vida sem deixar um vestígio sequer. E, mesmo, depois de dizer a frase não há como recuar. Você pulou no abismo. Seja o que Deus quiser. Você ainda arremata:— Há quanto tempo! Agora tudo dependerá da reação dele. Se for um calhorda, ele o desafiará.— Então me diga quem sou. Neste caso você não tem outra saída senão simular um ataque cardíaco e esperar, e falsamente desacordado, que a ambulância venha salvá-lo. Mas ele pode ser misericordioso e dizer apenas:— Pois é. Ou:— Bota tempo nisso. Você ganhou tempo para pesquisar melhor a memória. Quem será esse cara meu Deus? Enquanto resgata caixotes com fichas antigas no meio da poeira e das teias de aranha do fundo do cérebro, o mantém à distância com frases neutras como jabs verbais.— Como cê tem passado?— Bem, bem.— Parece mentira.— Puxa. (Um colega da escola. Do serviço militar. Será um parente? Quem é esse cara, meu Deus?) Ele esta falando:—Pensei que você não fosse me reconhecer...—O que é isso?!—Não, porque a gente às vezes se decepciona com as pessoas.—E eu ia esquecer de você? Logo você?—As pessoas mudam. Sei lá.— Que idéia. (é o Ademar! Não, o Ademar já morreu. Você foi ao enterro dele. O... o... como era o nome dele? Tinha uma perna mecânica. Rezende! Mas como saber se ele tem uma perna mecânica? Você pode chutá-lo amigavelmente. E se chutar a perna boa? Chuta as duas. "Que bom encontrar você!" e paf, chuta uma perna. "Que saudade!" e paf, chuta a outra. Quem é esse cara?)— É incrível como a gente perde contato.— É mesmo. Uma tentativa. É um lance arriscado, mas nesses momentos deve-se ser audacioso.— Cê tem visto alguém da velha turma?— Só o Pontes.— Velho Pontes! (Pontes. Você conhece algum Pontes? Pelo menos agora tem um nome com o qual trabalhar. Uma segunda ficha para localizar no sótão. Pontes, Pontes...)— Lembra do Croarê?— Claro!— Esse eu também encontro, às vezes, no tiro ao alvo.— Velho Croarê. (Croarê. Tiro ao alvo. Você não conhece nenhum Croarê e nunca fez tiro ao alvo. É inútil. As pistas não estão ajudando. Você decide esquecer toda cautela e partir para um lance decisivo. Um lance de desespero. O último, antes de apelar para o enfarte.)— Rezende...— Quem? Não é ele. Pelo menos isto esta esclarecido.— Não tinha um Rezende na turma?— Não me lembro.— Devo esta confundindo. Silêncio. Você sente que esta prestes a ser desmascarado. Ele fala:— Sabe que a Ritinha casou?— Não!— Casou.— Com quem?— Acho que você não conheceu. O Bituca. (Você abandonou todos os escrúpulos. Ao diabo com a cautela. Já que o vexame é inevitável, que ele seja total, arrasador . Você esta tomado por uma espécie de euforia terminal. De delírio do abismo. Como que não conhece o Bituca?)— Claro que conheci! Velho Bituca...— Pois casaram. É a sua chance. É a saída. Você passou ao ataque.— E não avisou nada?— Bem...— Não. Espera um pouquinho. Todas essas acontecendo, a Ritinha casando com o Bituca, O Croarê dando tiro, e ninguém me avisa nada?— É que a gente perdeu contato e...— Mas meu nome tá na lista meu querido. Era só dar um telefonema. Mandar um convite.— É...— E você acha que eu ainda não vou reconhecer você. Vocês é que se esqueceram de mim.— Desculpe, Edgar. É que...— Não desculpo não. Você tem razão. As pessoas mudam. ( Edgar. Ele chamou você de Edgar. Você não se chama Edgar. Ele confundiu você com outro. Ele também não tem a mínima idéia de quem você é. O melhor é acabar logo com isso. Aproveitar que ele esta na defensiva. Olhar o relógio e fazer cara de "Já?!".)— Tenho que ir. Olha, foi bom ver você, viu?— Certo, Edgar. E desculpe, hein?— O que é isso? Precisamos nos ver mais seguido.— Isso.— Reunir a velha turma.— Certo.— E olha, quando falar com a Ritinha e o Manuca...— Bituca.— E o Bituca, diz que eu mandei um beijo. Tchau, hein?— Tchau, Edgar! Ao se afastar, você ainda ouve, satisfeito, ele dizer "Grande Edgar". Mas jura que é a última vez que fará isso. Na próxima vez que alguém lhe perguntar "Você está me reconhecendo?" não dirá nem não. Sairá correndo.

347. LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO. Cidadão se descuidou e roubaram seu celular. Como era um executivo e não sabia mais viver sem celular, ficou furioso. Deu parte do roubo, depois teve uma idéia. Ligou para o número do telefone. Atendeu uma mulher.— Aloa.— Quem fala?— Com quem quer falar?— O dono desse telefone.— Ele não pode atender.— Quer chamá-lo, por favor?— Ele esta no banheiro. Eu posso anotar o recado?— Bate na porta e chama esse vagabundo agora. Clic. A mulher desligou. O cidadão controlou-se. Ligou de novo.— Aloa.— Escute. Desculpe o jeito que eu falei antes. Eu preciso falar com ele, viu? É urgente.— Ele já vai sair do banheiro.— Você é a...— Uma amiga.— Como é seu nome?— Quem quer saber? O cidadão inventou um nome.— Taborda. (Por que Taborda, meu Deus?) Sou primo dele.— Primo do Amleto? Amleto. O safado já tinha um nome.— É. De Quaraí.— Eu não sabia que o Amleto tinha um primo de Quaraí.— Pois é.— Carol.— Hein?— Meu nome. É Carol.— Ah. Vocês são...— Não, não. Nos conhecemos há pouco.— Escute Carol. Eu trouxe uma encomenda para o Amleto. De Quaraí. Uma pessegada, mas não me lembro do endereço.— Eu também não sei o endereço dele.— Mas vocês...— Nós estamos num motel. Este telefone é celular.— Ah.— Vem cá. Como você sabia o número do telefone dele? Ele recém-comprou.— Ele disse que comprou?— Por que? O cidadão não se conteve.— Porque ele não comprou, não. Ele roubou. Está entendendo? Roubou. De mim!— Não acredito.— Ah, não acredita? Então pergunta pra ele. Bate na porta do banheiro e pergunta.— O Amleto não roubaria um telefone do próprio primo. E Carol desligou de novo. O cidadão deixou passar um tempo, enquanto se recuperava. Depois ligou.— Aloa.— Carol, é o Tobias.— Quem?— O Taborda. Por favor, chame o Amleto.— Ele continua no banheiro.— Em que motel vocês estão?— Por que?— Carol, você parece ser uma boa moça. Eu sei que você gosta do Amleto...— Recém nos conhecemos.— Mas você simpatizou. Estou certo? Você não quer acreditar que ele seja um ladrão. Mas ele é, Carol. Enfrente a realidade. O Amleto pode Ter muitas qualidades, sei lá. Há quanto tempo vocês saem juntos?— Esta é a primeira vez.— Vocês nunca tinham se visto antes?— Já, já. Mas, assim, só conversa.— E você nem sabe o endereço dele, Carol. Na verdade você não sabe nada sobre ele. Não sabia que ele é de Quaraí.— Pensei que fosse goiano.— Ai esta, Carol. Isso diz tudo. Um cara que se faz passar por goiano...— Não, não. Eu é que pensei.— Carol, ele ainda está no banheiro?— Está.— Então sai daí, Carol. Pegue as suas coisas e saia. Esse negocio pode acabar mal. Você pode ser envolvida. — Saia daí enquanto é tempo, Carol!— Mas...— Eu sei. Você não precisa dizer. Eu sei. Você não quer acabar a amizade. Vocês se dão bem, ele é muito legal. Mas ele é um ladrão, Carol. Um bandido. Quem rouba celular é capaz de tudo. Sua vida corre perigo.— Ele esta saindo do banheiro.— Corra, Carol! Leve o telefone e corra! Daqui a pouco eu ligo para saber onde você está. Clic. Dez minutos depois, o cidadão liga de novo.— Aloa.— Carol, onde você está?— O Amleto está aqui do meu lado e pediu para lhe dizer uma coisa.— Carol, eu...— Nós conversamos e ele quer pedir desculpas a você. Diz que vai devolver o telefone, que foi só brincadeira. Jurou que não vai fazer mais isso. O cidadão engoliu a raiva. Depois de alguns segundos falou:— Como ele vai devolver o telefone?— Domingo, no almoço da tia Eloá. Diz que encontra você lá.— Carol, não... Mas Carol já tinha desligado. O cidadão precisou de mais cinco minutos para se recompor. Depois ligou outra vez.—Aloa. Pelo ruído o cidadão deduziu que ela estava dentro de um carro em movimento.— Carol, é o Torquatro.— Quem?— Não interessa! Escute aqui. Você está sendo cúmplice de um crime. Esse telefone que você tem na mão, esta me entendendo? Esse telefone que agora tem suas impressões digitais. É meu! Esse salafrário roubou meu celular!— Mas ele disse que vai devolver na...— Não existe Tia Eloá nenhuma! Eu não sou primo dele. Nem conheço esse cafajeste. Ele esta mentindo para você, Carol.— Então você também mentiu!— Carol... Clic. Cinco minutos depois, quando o cidadão se ergueu do chão, onde estivera mordendo o carpete, e ligou de novo, ouviu um "Alô" de homem.— Amleto?— Primo! Muito bem. Você conseguiu, viu? A Carol acaba de descer do carro.— Olha aqui, seu...— Você já tinha liquidado com o nosso programa no motel, o maior clima e você estragou, e agora acabou com tudo. Ela está desiludida com todos os homens, para sempre. Mandou parar o carro e desceu. Em plena Cavalhada. Parabéns primo. Você venceu. Quer saber como ela era?— Só quero meu telefone.— Morena clara. Olhos verdes. Não resistiu ao meu celular. Se não fosse o celular, ela não teria topado o programa. E se não fosse o celular, nós ainda estaríamos no motel. Como é que chama isso mesmo? Ironia do destino?— Quero meu celular de volta!— Certo, certo. Seu celular. Você tem que fechar negócios, impressionar clientes, enganar trouxas. Só o que eu queria era a Carol...— Ladrão.— Executivo.— Devolve meu... Clic. Cinco minutos mais tarde. Cidadão liga de novo. Telefone toca várias vezes. Atende uma voz diferente.— Ahn?— Quem fala?— É o Trola.— Como você conseguiu esse telefone?— Sei lá. Alguém jogou pela janela de um carro. Quase me acertou.— Onde você está?— Como eu estou? Bem, bem. Catando meus papéis, sabe como é. Mas eu já fui de circo. É. Capitão Trovar. Andei até pelo Paraguai.— Não quero saber de sua vida. Estou pagando uma recompensa por este telefone. Me diga onde você está que eu vou buscar.— Bem. Fora a Dalvinha, tudo bem. Sabe como é mulher. Quando nos vê por baixo, aproveita. Ontem mesmo...— Onde você está? Eu quero saber onde!— Aqui mesmo, embaixo do viaduto. De noitinha. Ela chegou com o índio e o Marvão, os três com a cara cheia, e...

348. LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO. Certas cidades não conseguem se livrar da reputação injusta que, por alguma razão, possuem. Algumas das pessoas mais sensíveis e menos grossas que eu conheço vem de Bagé, assim como algumas das menos afetadas são de Pelotas. Mas não adianta. Estas histórias do psicanalista de Bagé são provavelmente apócrifas (como diria o próprio analista de Bagé, história apócrifa é mentira bem educada) mas, pensando bem, ele não poderia vir de outro lugar. Pues, diz que o divã no consultório do analista de Bagé é forrado com um pelego. Ele recebe os pacientes de bombacha e pé no chão.— Buenas. Vá entrando e se abanque, índio velho.— O senhor quer que eu deite logo no divã?— Bom, se o amigo quiser dançar uma marca, antes, esteja a gosto. Mas eu prefiro ver o vivente estendido e charlando que nem china da fronteira, pra não perder tempo nem dinheiro.— Certo, certo. Eu...— Aceita um mate?— Um quê? Ah, não. Obrigado. — Pos desembucha.— Antes, eu queria saber. O senhor é freudiano?— Sou e sustento. Mais ortodoxo que reclame de xarope.— Certo. Bem. Acho que o meu problema é com a minha mãe— Outro.— Outro?— Complexo de Édipo. Dá mais que pereba em moleque.— E o senhor acha...— Eu acho uma pôca vergonha.— Mas...— Vai te metê na zona e deixa a velha em paz, tchê! Contam que outra vez um casal pediu para consultar, juntos, o analista de Bagé. Ele, a princípio, não achou muito ortodoxo.— Quem gosta de aglomeramento é mosca em bicheira... Mas acabou concordando.— Se abanquem, se abanquem no más. Mas que parelha buenacha, tchê! . Qual é o causo?— Bem — disse o home — é que nós tivemos um desentendimento...— Mas tu também é um bagual. Tu não sabe que em mulher e cavalo novo não se mete a espora?— Eu não meti a espora. Não é, meu bem?— Não fala comigo!— Mas essa aí tá mais nervosa que gato em dia de faxina.— Ela tem um problema de carência afetiva...— Eu não sou de muita frescura. Lá de onde eu venho, carência afetiva é falta de homem.— Nós estamos justamente atravessando uma crise de relacionamento porque ela tem procurado experiências extraconjugais e...— Epa. Opa. Quer dizer que a negra velha é que nem luva de maquinista? Tão folgada que qualquer um bota a mão?— Nós somos pessoas modernas. Ela está tentando encontrar o verdadeiro eu, entende?— Ela tá procurando o verdadeiro tu nos outros?— O verdadeiro eu, não. O verdadeiro eu dela.— Mas isto tá ficando mais enrolado que lingüiça de venda. Te deita no pelego.— Eu?— Ela. Tu espera na salinha.

349. LUIZ GUERRA. UMA QUESTÃO OCIOSA. Já começamos a ouvir, um pouco em toda a parte, a expressão ou rótulo literatura de internet. Como nunca gostei de ver a palavra literatura acompanhada do que seja, limito-me a esboçar o meu famoso sorriso de mico-dourado e declaro que estou fora. Literatura só pode ser literatura, e todo mundo sabe o que é. Que ao longo do processo vão surgindo peculiaridades formais em função das próprias peculiaridades do meio é apenas mais um detalhe, que em nada vai influir na excelência literária deste ou daquele autor. Já disse por aí que Stendhal faria miséria num blogue — imaginem só esse exemplo maior dos escritores com um blogue na internet traduzido entre nós como A CARTUXA DE PARMA. Quem escreve bem escreve até em pedaço de papel de pão e manda entregar em casa. Estão fazendo muita turbulência em torno desta questão, mas é turbulência ociosa, como dizia Euclides da Cunha a respeito de Dom Quixote.

350. LUIZ GUERRA. DECLARAÇÃO DE AMOR À CRÔNICA LITERÁRIA. Tenho uma relação de amor com a crônica literária. Além de todas as definições que se podem encontrar a seu respeito, gosto também de pensar nela como um ensaio de bermuda, camiseta e sandálias, um miniensaio sem compromisso com nada mas sem nada desprezar; compromisso com a vida, com o que pensamos ser a nossa verdade e com os semelhantes não é coisa de cronista, é coisa de gente com vergonha na cara, o que, naturalmente, pode incluir o cronista de boa vontade e bem-intencionado. Hoje me defino politicamente como um anarquista mitigado (mas só para o gasto social), o que pode parecer um horror para qualquer escravo de ideologias que se preze. Como estou me lixando para esse tipo de trogloditas, toco o meu barco. Espero não estar ofendendo a memória dos verdadeiros trogloditas, toda essa boa gente do nosso passado, mas, como a cartilha de palavras politicamente corretas que o governo queria nos impingir já é letra morta, os trogloditas que vão para o diabo.

351. LUIZ GUERRA. UM RASCUNHADOR DE CRÔNICAS. O rascunhador de crônicas só está preocupado com uma coisa: aprender a escrever bem. Quando achar que um extraordinário número de opiniões abalizadas lhe garante a longínqua suspeita de que escreve bem, deve insistir com isso e procurar saber, de alguma forma, a quantas anda em relação a escritores como Stendhal, Lúcio Cardoso, Machado de Assis e outros desse naipe. Se der para encarar, ganha automaticamente o direito não de opinar sobre literatura (esse direito todos têm, mesmo quando dizem tolices), mas o de apresentar-se como um cara que sabe mais ou menos das coisas, e já é muito. E esqueçam teorias, esse negócio de que escrever na internet é isto ou aquilo, que escritor não escreve em blogue porque blogueiro não está com nada — uma lousa tão bonita nos blogues, e os caras não sabem aproveitar. Não sabem porque no fundo não escrevem bem. Quem escreve bem, ou pelo menos está correndo atrás disso, escreve até em papel de pão ou em guardanapo de boteco. Só chiei porque fiquei um pouco invocado; um rascunhador de crônicas não tem nada a ver com isso.

352. LUIZ GUERRA. UM CASO DE POSTERIDADE AVANÇADA. Já sabem que eu gosto dessa coisa de definir os meus termos. Sempre que uma palavra me parece muito promíscua no mundo dos autores tenho o cuidado de não deixá-la demasiadamente solta, para evitar incompreensões. Um dia desses uma amiga, de cuja boa intenção não posso duvidar, disse-me que não tinha um blogue porque já era escritora. Eu já estava nessa de só me chamar de autor, mas ela não sabia. Mas sabia que eu tinha um blogue. De todo modo, não é uma escritora. Eu passaria um mês inteiro lendo e relendo Cecília Meireles, e não passaria dois dias lendo minha amiga. Se continuam reparando, percebam que não estou me desfazendo do que ela escreve, limito-me a estabelecer os níveis de excelência literária em que uma e outra se encontram, pelo menos até o momento. Uma outra coisa: sou da geração de 1948, ela nasceu em 1970. Digo-lhe, por exemplo, que estou cansado de escrever só para mim e que gostaria de ganhar um dinheirinho como autor de crônicas; já o discurso dela é a posteridade e saber quem vai ficar na literatura. Como não sei muito bem que sensação estranha é essa de ficar na literatura, deixei correr. Mas, posteridade...

353. LUIZ GUERRA. PRESENÇA DE MULHER. Minha mulher, ou ex-mulher, que ainda não se decidiu inteiramente se vai ficar comigo ou com a mãe, veio dar uma espiada no que eu estava escrevendo. Torceu o nariz. Disse que sempre me teve na conta de escritor, e que se soubesse que eu não passava de um autor de crônicas já teria me deixado há muito mais tempo. Agora compreendem o meu cuidado e a minha coragem. Para muita gente, autor de crônicas é expressão pejorativa, e escritor é o máximo; é o máximo se o cara for um Stendhal. Se ficar provado que não chego nem nos chinelos de Stendhal, não sou escritor. Mas se gosto de escrever, sem dar muita bola para comparações desse tipo, então ser chamado de autor de crônicas não pode me causar nenhum problema. Tenho verdadeira paixão pelo ofício de escrever crônicas. Não há absolutamente nada que não possa ser tratado numa crônica, e vocês precisam ver como fico excitado escrevendo uma. Se considerarmos o que já postei aqui, só falta gozar. Não sei se foi por isso que minha mulher, ou ex-mulher, acabou me deixando, mas pode ter mesmo pintado um pouco de ciúme. Sei lá, mulher tem ciúme de tudo. Se ela pensasse só um pouquinho, veria que autor de crônicas trepa como qualquer outro homem.

354. LUIZ GUERRA. A MULHER FEIA-1. Nunca soube perceber muito bem o que é uma mulher feia. Se me acompanham com atenção, já repararam que gosto de dizer, nos raríssimos casos em que preciso disso, "homem convencionalmente feio", "mulher convencionalmente feia", ou seja, feio ou feia segundo certos padrões consagrados nesta ou naquela sociedade, ou seja, feio ou feia para os outros. Para mim, ninguém é feio, nem eu. Logo verão minha foto por aqui (é até possível que esta crônica esteja limpando o terreno para isso), e poderão julgar por si mesmas. Sim, já me disseram que sou feio, já me disseram que não sou feio nem bonito, já me disseram que sou feioso bonito ou bonito feioso, sei lá, e já me disseram que não dá pra dizer, porque tenho um ar diferente, meio estranho, mas que chama a atenção na rua. (Porra, disso sei eu. Nariz grande, orelhas grandes, cabelo entre ruivo e acaju, e um par de telescópios na cara, se não chamasse a atenção eu dava um tiro nos miolos.) Bonito, bonito mesmo, só minha mãe, mas já peguei-a piscando um olho para as minhas irmãs. E no entanto, vejam só como são as coisas, nenhum dos meus amigos de juventude teve namoradas mais bonitas, algumas lindíssimas, do que eu. Não resta dúvida de que eles gastavam pouca saliva para conquistarem as suas; eu gastava a minha saliva toda, mas pelo menos, nesse particular, era o cara mais invejado da minha rua. Só que o meu assunto era a mulher feia. Fica para a próxima.

355. LUIZ GUERRA. PALAVRAS, PALAVRAS, PALAVRAS. Conhecemos de cor e salteado a resposta de Hamlet a Polônio, que queria saber o que o outro estava lendo: "Palavras, palavras, palavras." Era efetivamente o que o famoso príncipe da Dinamarca, esse reino cheio de podres, estava lendo, e só um louco varrido, na economia psicológica do teatro shakespeariano, diria uma platitude eloqüente como essa. No contexto do drama, Hamlet já está simulando sua demência, pois seu intento é vingar a morte do pai e, para isso, precisa da dissimulação. "Quanto à loucura de Hamlet e à sacanagem que ele fez com Ofélia, tudo bem", diz um leitor, "mas por que você disse que conhecemos as palavras do príncipe de cor e salteado? Por que não disse apenas de cor, já que salteado não faz a menor diferença neste caso?" Vejam que o leitor não está preocupado com Hamlet, está preocupado comigo; todo mundo sabe que me limitei a usar aquilo que chamamos de linguagem expressiva. Concordo que um autor de crônicas mais experimentado teria percebido uma certa armadilha na expressão, justamente num exemplo em que poderia ocorrer uma curiosa discrepância de sentido. Mas eu até me pergunto se, exceto esse pentelho, alguém mais reparou no detalhe. Isso, sem falar que eu poderia ter feito de propósito, apostando tudo em que ninguém repararia, conseguindo assunto para esta crônica. Deixemos em suspenso essa grave questão de ser ou não ser, minha janta está na mesa.

356. LUIZ GUERRA. UMA SIMPLES SUGESTÃO DE LEITURA. Nunca podemos realmente saber que tipo de relação se estabelece entre um leitor e o texto que ele tem diante dos olhos. É uma experiência única, intransferível e peculiar. Se não chegou ao texto viciado pela apreciação antecipada de um crítico ou de um teórico da literatura, tem todas as chances de chamar esse momento de aventura espiritual e, se o texto guarda as características universais de um grande texto, de internalizá-lo como um referencial para a sua própria vida. Gosto quando um bom cronista me sugere a leitura de um livro que o encantou. E o aprecio também quando, numa crônica bem escrita, espinafra uma determinada obra literária, mesmo que esta seja de minha especial predileção. Nelson Rodrigues, cujas colunas jornalísticas eu acompanhava com uma grande fome, cansou de meter o pau em livros de que eu gostava. Em termos de opiniões políticas dissonantes entre mim e ele, então nem se fala. Mas era um craque da palavra, da frase certeira, das metáforas alucinantes, da criação conscientemente arbitrária de chavões eternos. Esses dois parágrafos giram um pouco em torno de "Pedra Bonita", romance de José Lins do Rego. Ao sugerir sua leitura numa de minhas crônicas de ontem, lembrei-me que se trata de um livro quase incólume à sanha dos falsos hermeneutas do fazer literário. Só rebuscando muito é que o leitor vai encontrar algum teórico obtuso estragando o prazer que a leitura de "Pedra Bonita" pode proporcionar. Se é assim, outra sugestão: não leiam nada sobre esse livro antes de se deliciarem com suas páginas.

357. LUIZ GUERRA. JOSÉ LINS DO REGO. Depois de "Menino de engenho" e "Fogo morto", ambos romances de José Lins do Rego, poucos leitores — considerando o universo ledor em termos nacionais — aventuraram-se a conhecer outras obras desse grande escritor. E digo poucos até comparativamente, em número de exemplares vendidos, à imensa recepção que os dois primeiros tiveram. Como estou pensando nos jovens, eu diria que a escola tem grande responsabilidade nisso, porque os professores até hoje entoam a mesma ladainha. Ariano Suassuna, por exemplo, lamenta acertadamente que "Cangaceiros" não houvesse conquistado o mesmo estatuto de "Fogo morto" nem vendido tanto. Mas Suassuna, grande escritor, de minha especial predileção, puxa um pouco o boi para o seu lado quando reclama primazia literária para "Cangaceiros", e numa entrevista para a televisão quase pareceu condenar, o que evidentemente não era o caso, os livros de Zé Lins do Ciclo da Cana-de-Açúcar. Sertão à parte, "Fogo morto" é realmente o seu melhor livro. Mas a grande verdade é que muito poucos professores recomendam a seus alunos uma leitura mais abrangente do nosso autor. Ao contrário de Suassuna, eu colocaria junto a "Fogo morto" dois livros: "Moleque Ricardo" e, meu livro de cabeceira, "Pedra Bonita", este, sim, tão pouco lido, mesmo entre pessoas diretamente ligadas à produção literária, que chega a assustar. Eu, na verdade, li toda a obra do grande mestre, e acho que assim deveriam fazer todos os brasileiros que gostam de ler. Mas "Pedra Bonita" é sem dúvida uma aula magna de composição literária. Sugiro.

358. LUIZ GUERRA. LEMBREI-ME DE PROUST. "Tout comme l'avenir, ce n'est pas tout à la fois, mais grain par grain qu'on goûte le passé." Já que minhas amigas (e amigos, naturalmente) me permitiram a citação proustiana, vamos tentar traduzi-la com algum molho para que faça jus ao grande estilista francês, infelizmente tão abandonado em nossos dias: "Saboreemos o passado como o futuro: não de uma só vez, mas pouco a pouco." Por que pensei nessa bela frase? Confesso humildemente, com aquela humildade meio dissimulada tão comum entre nós autores: não pensei nela, para dizer a verdade não pensava em Proust há muito tempo. Buscava dentro de um livro um pedaço de papel com o telefone de uma amiga, e topei com a frase; se não estivesse tomado de furor literário nesses últimos dias, talvez até sorrisse diante dela, um mero sorriso de compreensão, pois efetivamente Proust escreveu sua grande obra, "Em busca do tempo perdido", saboreando o passado grão a grão, como ele diz, ou pouco a pouco, como traduzimos. Uma boa edição brasileira dessa obra cabe bem em uns nove ou dez volumes e, para quem considera a literatura necessidade básica, é leitura obrigatória. Fiz esse rodeio todo só para dizer que é assim, como se acha na frase, que encaro minha atividade de cronista (ou de candidato a cronista); julgo realmente que o passado de todos nós está repleto de acontecimentos essenciais que podem ser trazidos para o papel ou para a telinha do computador na forma de crônicas, poemas, contos, ou o que seja, ganhando outra vez a chance de nos revelar seus significados ocultos, reganhando outros, e chegando aos leitores como exemplo, recado e prazer compartilhados. Grão a grão, como disse Proust, e ele entendia disso.

359. LUIZ GUERRA. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. Do espólio de Luca Albuquerque. Tenho um amigo que completa meio século de vida amanhã. Não o vejo desde a época do governo Geisel, quando participávamos de um grupo de estudos marxistas no subúrbio carioca de Marechal Hermes, onde o vento já até deixou de fazer a curva. Eu já me considerava um anarquista mitigado, mas dava uma força à rapaziada, mesmo porque o inimigo era comum. Nesse sentido, bons tempos, pois não está no gibi a quantidade de livros que mandávamos para dentro, como se diz na gíria dos pinguços. Ele era um cara muito forte, alto, quase valentão, e estava sempre com raiva de tudo. Como gostasse de escrever seus panfletos incendiários, abominava qualquer tipo de censura e não abria a boca sem mencionar umas quinhentas vezes a expressão liberdade de expressão. Se fosse mais fraco, teria fatalmente ganhado o apelido de liberdade de expressão. Discutíamos uma tarde o papel da imprensa alternativa naqueles tempos duros, e a certa altura, interrompendo a fala de um membro menos radical, ele deu um soco na mesa e vociferou: "Sem liberdade de expressão não adianta nada. Liberdade de expressão, e assunto encerrado!" Comecei a rir (por dentro, claro), mas éramos assim mesmo. Como assunto encerrado? A dobradinha liberdade de expressão/assunto encerrado revelava-se a melhor ilustração desses sinais trocados que permeiam tanto a seara dos resistentes, sem que eles mesmos, prefiro acreditar, se dêem conta disso. Eu ia até aproveitar o mote da liberdade de expressão para expressar alguma coisa, dizer, quem sabe, que ele fora infeliz na sua própria expressão, mas pela cara que ele fez quando ameacei abrir a boca deu para perceber que o assunto estava mesmo encerrado. Boas novas, velho amigo.

360. LUIZ GUERRA. BOI NO ASFALTO. Por volta de 1968, impressionado com a quantidade de bois que Guimarães Rosa conduzia do pasto ao sonho, julguei que o bom mineiro não ficaria chateado comigo se usasse um deles num poema cabuloso que estava precisando de um boi, só um boi. Mas por que diabos um poema panfletário de um cara de vinte anos de idade, que morava num bairro inteiramente urbanizado, iria precisar de um boi? Não podia então ter pensado naqueles bois que puxavam as grandes carroças de lixo que chegara a ver em sua infância? O fato é que na época eu estava lendo toda a obra publicada de Guimarães Rosa, e isso influiu direto na minha escolha. Tudo bem, mas onde o boi ia entrar no poema? Digo mal; um bom poeta é de fato capaz de colocar o que bem entenda dentro dos seus versos. Mas você disse que era um poema panfletário; o que é que um boi pode fazer num poema panfletário? Vamos, confesse. Confesso. Eu queria um boi perdido no asfalto; sei que era exatamente isso o que eu queria; queria que a minha namorada visse que eu seria capaz de pegar um boi de Guimarães Rosa e desfilar sua solidão bovina num mundo completamente estranho para ele, sangrando a língua sem encontrar senão o chão duro e escaldante, perplexo diante dos homens de cabeça baixa, desviando-se dos bêbados e dos carros, sem saber muito bem onde ele entrava nessa história toda de opressores e oprimidos; no fundo, dentro do meu egoísmo libertador, eu queria um boi poema concreto no asfalto, para que minha impotência diante dos donos do poder se configurasse no berro imenso desse boi de literatura, e o meu coração, ou minha índole, ficasse para sempre marcado por esse poderoso símbolo de resistência. Fez muito sucesso, entre os colegas, o meu boi no asfalto; sei até onde está o velho caderno com o velho poema. Mas não vou pegá-lo — o poema já foi reescrito várias vezes em outros poemas; e o meu boi no asfalto ainda me enche de luz, transformado em minha própria estrela.

361. LUIZ GUERRA. UMA MULHER DE OUTROS TEMPOS. Nunca tive carro. Por opção. Ando de ônibus, de táxi, de metrô, e vou aonde bem entenda, só preocupado comigo. Mas há desvantagens. Um dia desses conheci uma mulher magnífica numa livraria, saímos juntos da loja, fomos a um restaurante, um papo espetacular sobre livros e artes em geral. De repente ela cismou que estava tão gostoso o encontro comigo que resolveu não voltar mais para o trabalho naquela tarde e me propôs: "Vamos comer um camarão na Barra?" Eu tinha entendido "na brasa", e calei meu espanto, pois não fazia uma hora que deixáramos o tal restaurante. "Onde deixou o carro?", indagou, com um sorriso tão prestativo que me correu um frio de desejo pelo estômago. "Que carro?", perguntei, constrangido. "Não tem carro?" Lembrei-me rapidamente de um amigo cujo carro estava sempre no conserto nessas horas, mas não conseguiria mentir. Bolei uma saída mais infeliz, sorrindo amarelo: "Não tenho carro e tenho raiva de quem tem." Não colou. A mulher não achou nenhuma graça, teve um gesto de impaciência, viu que eu notei e tentou recuperar-se: "Que pena! O meu está no conserto." Era mentira, percebi — aquele lance infalível da comissura dos lábios —, mas voltei à carga: "Por que não pegamos um táxi?" Ela ia dizer qualquer coisa, o celular tocou. De esguelha, deu pra ver que a ligação tinha sido encerrada, mas ela continuava falando, dando a entender, a ninguém do outro lado, que dentro de cinco minutos estaria lá e que botaria tudo em pratos limpos. Decidida. "Sinto muito. Preciso ir. Um pepino lá na firma. Até." E se arrancou mesmo. Confesso que fiquei com pena dela. Essa fissura por homem que tivesse carro era coisa dos anos 1980 para trás, a menos que tenha me tornado tão recluso e isso ainda role por aí. Mas acho que não, porque tenho amigas que adoram sair comigo sem carro. Algumas trazem o seu, outras não têm, e nunca me propõem comer camarão na Barra. E olhe que a gente acaba mesmo comendo muito camarão na Barra, sem sentir.

362. LUIZ GUERRA. UM ÍNDIO INVEJOSO. Quantos por aqui se lembrarão do Carnaval de 1956? Eu ia para os meus sete anos de idade, e a grana andava bastante curta lá em casa. Como íamos para a casa de minha avó, em Irajá, subúrbio carioca da estrada de ferro Rio d'Ouro, minha mãe arranjou às pressas uns pedaços de estopa e fez para mim um índio sem tribo, com duas borradas de ruge em minhas faces, algumas pinceladas de rolha queimada no resto da cara, uma pena de peteca amarrada com uma fita qualquer, e chamou aquilo tudo de fantasia de carnaval. Não me sentia bem, mas segurei firme, possivelmente já entendendo a necessidade que o pobre tem de superar as dificuldades com um pouco de imaginação, mesmo porque mamãe sabia que em Irajá eu iria juntar-me aos meus primos, todos devidamente fantasiados, e acabou tendo essa brilhante idéia. Só não havia percebido, e nisso não tinha culpa alguma, claro, que as idéias brilhantes podem se deparar com outras idéias igualmente brilhantes, e às vezes até muito mais brilhantes. Chegamos à casa de minha avó no meio de uma farra total entre os adultos, todos elogiavam o meu índio, imitavam gritos de guerra, me deram um apito, e eu, nada, murcho como um passarinho na chuva — mas era um índio esculachado mesmo, não tinha nem arco e flecha. Súbito, a casa inteira parou, extasiada, diante um garoto que chegava: um primo da minha idade, trazido para a sala com todas as pompas de uma corrida de touros em Madri, dentro de uma fantasia de toureiro espetacular, toda em cetim de várias cores, alinhadíssima, e uma espada que aos meus olhos atônitos só podia ser de verdade. Conduzido pela mãe, o cara-pálida fazia evoluções pela sala e recebia os beijos encantados de uma platéia delirante. A cada homenagem, ele se inclinava em mesuras perfeitas de um matador, jogando beijos e acenando com um lenço de seda. Nunca senti tanta inveja na minha vida. Ainda se passaram muitas horas até que descobrissem minhas estopas de índio boiando no valão que passava ali perto, e eu só de short, sem camisa, e toda a pintura da minha cara borrada de lágrimas.

363. LUIZ GUERRA. QUEM LIGA PARA ISSO? Segundo pesquisas recentes, a imensa maioria das pessoas com mais de 50 anos não dão bola para a idade. Bom sinal. Mas não dão bola para a idade de quem? O morenaço que veio me mostrar o despacho — essa saudosa "dépêche" das redações de jornal francesas — antes de lançá-lo no mundo sem dono da internet tentava parecer simpática, mas era visível que, embora eu não desse a menor bola para a idade dela (uns vinte e três, por aí), ela dava bola demais para a minha, duas vezes a dela... mais dez. De qualquer forma, acho que não me entrevistaram, e acho também que andaram entrevistando um bando de mentirosos. Como é que uma pessoa com mais de cinqüenta anos não vai dar bola para a idade? Se eu fosse o criador da pesquisa, nunca perguntaria ao entrevistado se ele dá bola ou não para a idade. Pela minha experiência, já estaria implícita, antes que eu saísse no encalço dessa turma do auto-engano, a idéia de que todo mundo depois dos cinqüenta tem que dar bola para a idade. Nem ia perder meu tempo aturando essa conversa mole. Minha pergunta básica seria: "Como a senhora ou o senhor convive com o fato de ter mais de cinqüenta anos?" Claro que minha indagação também permitiria a ambos a resposta marota: "Não dou bola para a idade." A coisa é tão insidiosa que os dois usariam a mesma frase, com sujeito oculto e tudo. Aí entraria em cena aquele detetive à Hitchcock, que ouve com uma credulidade infinita tudo o que o verdadeiro suspeito lhe está contando, e dispara à queima-roupa: "A senhora ou o senhor não dá bola para a idade de quem?" Risos, risos e mais risos, tapinhas nas costas, cumprimentos pela piada, descontração, e pronto. Vão logo confessando que ter mais de cinqüenta é mesmo uma merda, com toda essa expectativa de coisa nenhuma pela frente, o governo fodendo o aposentado, os planos de saúde taxando até espirro, o amor ocasional tornando-se cada vez mais ocasional, e por aí afora... Tiro por mim, que tenho só cinqüenta e seis. A filha da minha vizinha de porta tem lá os seus vinte e oito, e já mandou me avisar que com mais de quarenta eu não arrumo nada. Há realmente coisas em que não se pode confiar em ninguém, e os criadores de pesquisa deveriam ser os primeiros a saber disso.

364. LUIZ GUERRA. CONVERSA DE BOI. Se já era de uma tristeza infinita o olho fatalista do boi, imaginem agora quando vê suas pastagens ganharem o estatuto de terra ociosa, ele que só sabe comer capim e que só abandona essa dieta frugal se o forçarem a isso. Até compreende o açodamento dos sem-terra, a luta que vêm travando pelo país adentro contra o latifúndio improdutivo, o jogo de avanços e recuos por parte de um governo que anda acendendo muitas velas para muitos senhores, mas pede apenas, a todos os implicados na questão, que voltem, se for o caso, aos bancos escolares e consultem o velho compêndio: o boi é um herbívoro ruminante, só isso. As conseqüências que uma tal classificação possam acarretar é só com o boi e a gramínea; a gramínea sabe perfeitamente o que o duplo estômago do boi vai fazer com ela e não se incomoda, mesmo porque tem consciência de que em determinado momento, como num sonho alquímico, surgirá como carne vermelha; depois disso, os homens que tenham bastante vergonha na cara para que não falte carne vermelha na casa de ninguém. A única coisa que não interessa ao boi e à gramínea são os capangas dos latifundiários e os teóricos do MST, estes com a mania de que o capim é improdutivo, e aqueles com o vezo oligárquico de que trabalhador rural, longe das suas garras, é bandido. Acho que esses caras ainda não entenderam muito bem: o boi no pasto, com toda essa pinta rousseauniana de passeador solitário e esse olho que chega a doer de tanta tristeza, sintetiza a celulose em aminoácidos essenciais — alguém tem idéia de quantas horas Deus ficou sem dormir só para resolver essa equação? Pois é, o boi também não tem, mas vai fazendo o que sabe com toda a generosidade. Na Europa, onde o boi já não pode contar com todo esse mundão de verde que começa a ficar ameaçado entre nós, usam-se o confinamento panóptico e o arraçoamento artificial, avacalhando a carne vermelha. E ainda queriam que a vaca não ficasse louca... Lá fora chegam a chamar o nosso herói de boi "verde"; o nosso boi dispensa — sabe que não é verde, verde é a gramínea, e os dois só querem mesmo é cumprir o seu papel abençoado, dando de comer ao país e ao resto do mundo. Não dá para os pecuaristas, o governo e o MST deixarem de amolar o boi? Ainda ontem, um desses bois que já andou espiando muita cartilha dos sem-terra e ouvindo muita conversa para boi dormir entre os pretensos donos da terra comentava comigo: "Dizem que o bom cabrito não berra, mas eu não sou cabrito. Sou é muito boi, e vou botar a boca no mundo."

365. LUIZ VILELA. CATÁSTROFE. — Vai ser uma catástrofe! — O que eu podia fazer? — Você podia ter falado pra ela não vir. — Eu ia falar uma coisa dessas? — Por que não? — Uma pessoa me telefona falando que quer vir passar uns dias na minha casa: aí eu falo pra ela não vir? — Por que não? — Você falaria? — Claro que eu falaria. — Pois eu não. — Eu falaria: "Escuta, fulana, eu fico muito feliz de você ter se lembrado de mim e da minha casa, mas seria melhor você não vir, porque meu marido não só não aprecia visitas, como também, e principalmente, não aprecia crianças, tanto é que nós não as temos.” — Muito engraçado... Já imaginou eu dizendo isso pra ela ou pra quem quer que seja? — Você não disse; o resultado aí está: eles vêm. — São só seis dias, Artur. — Só seis dias... — Ela quer aproveitar a Semana da Criança. — E nós com isso? — Ela queria dar um presente para os meninos, e aí ela escolheu esse passeio. — Muito bonito: ela dá o presente, e nós pagamos a conta... — Ela me disse: "Mimi, sabe de que os meus filhos estão precisando? Sabe de quê? Eles estão precisando de um banho de interior." — Se depender de mim, eles vão ter é um banho de sangue. — "Você acredita, Mimi, você acredita que até hoje alguns dos meus meninos nunca viram uma galinha de verdade?” — Por que eles não vão numa granja? Perto de São Paulo existem dezenas. — Ah, Artur; você sabe que não é isso. — Então é o quê? — Você sabe que... É como a Dininha disse: "Uma galinha passando na rua, os pintinhos atrás...”. — Galinha passando na rua...  —"A galinha ciscando..." — Essa sua amiga é maluca... — São essas coisas, entende? São essas coisas que ela quer... — É maluca sua amiga. — Não, maluca ela não é não. — Começa pelos filhos. Ou melhor: por ter filhos, já que ter filhos é um ato de insanidade mental. — Ter filhos é um ato de amor, Artur. — Os ratos que o digam. — Ter filhos... — Já começa por aí, por ter filhos; agora, ter sete, sete filhos: isso é a própria loucura. — Por quê? — Porque é. — Eu não acho. — E os nomes? Os nomes dos moleques... — Quê que tem os nomes? — Repete aí pra mim... — Pra quê? — Repete... — Dagoberto, Delmiro, Dilermando, Donato, Durango, Dorval e Durval. — Santa Maria... — Os dois últimos são gêmeos. — Bem feito. Deus castiga. — Eu tenho muita dó da Dininha; muita. Já pensou, ser abandonada nova ainda, com sete filhos pequenos?... — Eu imagino o cara: um dia ele olhou ao redor, viu aquele bando de meninos e aí pensou: "Meu Deus, quê que eu fiz?..." Pegou então a maleta, saiu de fininho e caiu no mato. — Além do mais, a Dininha foi minha amiga de infância, minha melhor amiga. ÍJ um jeito de eu agora ajudá-la; de nós dois a ajudarmos. — Ajudar... — 0 que é hospedar por alguns dias uma família? — Isso não é uma família: é uma horda. — Nossa casa é grande; nós temos recursos, felizmente... — 0 problema não é esse, Mimi; o problema nem é a nossa paz, que eles vão perturbar. — Então qual é o problema? — O problema é que eles vão acabar com tudo! — Acabar com tudo como? — Acabar com tudo, tudo o que tem aqui: acabar com os quadros, com as esculturas, os tapetes, as orquídeas, os bichos; eles vão acabar com tudo! — Como você pode falar isso, se você nem conhece os meninos, Artur? — É preciso? — Você nem sabe como eles são. — É uma equação, Mimi; uma equação matemática. — Equação... — Pensa bem: sete meninos, sete meninos de três a onze anos, sete meninos engaiolados num apartamento no centro de São Paulo: de repente esses meninos são soltos, levados para o interior e despejados numa casa ampla, com jardins, quintal, bichos... 0 que vai acontecer? — Não vai acontecer nada. — Não, não vai não... — Não vai acontecer nada. — Eles só vão acabar com tudo. — Imaginação sua, Artur. — Imaginação... — Você que está imaginando isso. — Os quadros e as esculturas, eu ainda podia levar para um banco, podia fazer isso. Mas e as orquídeas? E os bichos? Como que a gente vai tirá-los daqui? Onde que a gente vai pôr? E quem iria cuidar deles? — Pense um pouco, Artur... — Pensar o quê? — Pense no que seria essa viagem para os meninos... — Por que eu vou pensar nisso? — Você também já foi menino... — Já, já fui, e dou graças por não ter sido menino de capital e por nunca ter morado em apartamento; e, se mais alguma coisa preciso acrescentar por ter visto galinhas desde pequeno. — Você também já foi filho... — Fui, embora não exatamente por minha vontade. Mas, de qualquer forma, posso dizer que ter sido filho foi, pela mãe que eu tive, a melhor coisa de minha vida. — Então? A Dininha também está querendo ser uma boa mãe para os filhos dela. — Filhos... — O quê? — Para que filhos?...  — Para quê?... — Será que não vão um dia parar com essa bobagem? — Se parar, a humanidade acaba. — Alguma objeção? — Se não fossem os filhos, uma hora dessas nós dois não estaríamos aqui. — Nem estaria essa debilóide nos ameaçando com essas sete pragas, com essa catástrofe. — Bom: nós já falamos muito. — Já. — Vamos encerrar? — Vamos. — Eu não vou fazer nada. — Não. — Eles vêm. — É. — Eu até já vou comprar uma lata de biscoitos. — E eu uma caixa de balas. — Balas? Você?... — Balas de revólver, my dear.

366. LUIZ VILELA. FAZENDO A BARBA. O barbeiro acabou de ajeitar-lhe a toalha ao redor do pescoço. Encostou a mão: — Ele está quente ainda... — Que hora que foi? — perguntou o rapazinho. O barbeiro não respondeu. Na camisa semi-aberta do morto alguns pêlos grisalhos apareciam. O rapazinho observava atentamente. Então o barbeiro olhou para ele. — Que hora que ele morreu? — o rapazinho tornou a perguntar. — De madrugada — disse o barbeiro; — ele morreu de madrugada. Estendeu a mão: — O pincel e o creme. O rapazinho pegou rápido o pincel e o creme na valise de couro sobre a mezinha. Depois pegou a jarra de água que havia trazido ao entrarem no quarto: derramou um pouco na vasilhinha do creme e mexeu até fazer espuma. O rapazinho era sempre rápido no serviço mas àquela hora sua rapidez parecia acompanhada de algum nervosismo: o pincel acabou escapulindo de sua mão e foi bater na perna do barbeiro, que estava sentado junto à cama. Ele pediu desculpas, muito sem-graça e mais descontrolado ainda. — Não foi nada — disse o barbeiro, limpando a mancha de espuma na calça; — isso acontece... O rapaz, depois de catar o pincel, mexeu mais um pouco, e então entregou a vasilhinha ao barbeiro, que ainda deu uma mexida. Antes de começar o serviço, o barbeiro olhou para o rapaz: — Você acharia melhor esperar lá fora? — perguntou, de um modo muito educado. — Não, senhor. — A morte não é um espetáculo agradável para os jovens — disse. Aliás, para ninguém... Começou a pincelar o rosto do morto. A barba, de uns quatro dias, estava cerrada. Através da porta fechada vinha um murmúrio abafado de vozes rezando um terço. Lá fora o céu ia acabando de clarear; um ar fresco entrava pela janela aberta do quarto. O barbeiro devolveu o pincel e a vasilhinha; o rapaz já estava com a navalha e o afiador na mão: entregou-os ao barbeiro e pôs na mesa a vasilhinha com o pincel. O barbeiro afiava a navalha. No salão, era conhecido seu estilo de afiar, acompanhando trechos alegres de música clássica, que ele ia assobiando. Ali, no quarto, ao lado de um morto, afiava num ritmo diferente, mais espaçado e lento: alguém poderia quase deduzir que ele, em sua cabeça, assobiava uma marcha fúnebre. — É tão esquisito — disse o rapazinho. — Esquisito? — o barbeiro parou de afiar. — A gente fazer a barba dele... O barbeiro olhou para o morto: — O que não é esquisito? — disse. — Ele, nós, a morte, a vida, o que não é esquisito? Começou a barbear. Firmava a cabeça do morto com a mão esquerda, e com a direita ia raspando.— Deus me ajude a morrer com a barba feita — disse o rapazinho, que já tinha alguma barba. — Assim eles não têm de fazer ela depois de eu morto. E tão esquisito... O barbeiro se interrompeu, afastou a cabeça e olhou de novo para o rosto do morto — mas não tinha nada a ver com a observação do rapaz; estava apenas olhando como ia o seu trabalho. — Será que ele está vendo a gente de algum lugar? — perguntou o rapazinho. Olhou para o alto — o teto ainda de luz acesa —, como se a alma do morto estivesse por ali, observando-os; não viu nada, mas sentia como se a alma estivesse por ali. A navalha ia agora limpando debaixo do queixo. O rapazinho observava o rosto do morto, seus olhos fechados, a boca, a cor pálida: sem a barba, ele agora parecia mais um morto. — Por que a gente morre? — perguntou. — Por que a gente tem de morrer? O barbeiro não disse nada. Tinha acabado de barbear. Limpou a navalha e fechou-a, deixando-a na beirada da cama. — Me dá a outra toalha — pediu; — e molhe o paninho. O rapaz molhou o paninho na jarra; apertou-o para escorrer, e então entregou ao barbeiro, junto com a toalha. O barbeiro foi limpando e enxugando cuidadosamente o rosto do morto. Com a ponta do pano, tirou um pouco de espuma que tinha entrado no ouvido. — Por que será que a gente não acostuma com a morte? — perguntou o rapazinho. — A gente não tem de morrer um dia? Todo mundo não morre? Então por que a gente não acostuma? O barbeiro fixou-o um segundo: — É — disse, e se voltou para o morto. Começou a fazer o bigode. — Não é esquisito? — perguntou o rapazinho. — Eu não entendo. — Há muita coisa que a gente não entende — disse o barbeiro. Estendeu a mão: — A tesourinha. Na casa, o movimento e o barulho de vozes pareciam aumentar; de vez em quando um choro. O rapazinho pensou alegre que já estavam quase acabando e que dentro de mais alguns minutos ele estaria lá fora, na rua, caminhando no ar fresco da manhã. — O pente — disse o barbeiro. — Pode ir guardando as coisas. Quando acabou de pentear, o barbeiro se ergueu da cadeira e contemplou o rosto do morto. — A tesourinha de novo — pediu. O rapaz tornou a abrir a valise e a pegar a tesourinha. O barbeiro se curvou e cortou a pontinha de um fio de cabelo do bigode. Os dois ficaram olhando. — A morte é uma coisa muito estranha — disse o barbeiro. Lá fora o sol já iluminava a cidade, que ia se movimentando para mais um dia de trabalho: lojas abrindo, estudantes andando para a escola, carros passando. Os dois caminharam um bom tempo em silêncio; até que, à porta de um boteco, o barbeiro parou: — Vamos tomar uma pinguinha? O rapaz olhou meio sem jeito para ele; só bebia escondido, e não sabia o que responder. — Uma pinguinha é bom para retemperar os nervos — disse o barbeiro, olhando-o com um sorriso bondoso. — Bem... — disse o rapaz. O barbeiro pôs a mão em seu ombro, e os dois entraram no boteco.

367. LUIZ VILELA. ZOIÚDA. Foi numa noite que ele conheceu Zoiúda. Foi numa noite — e nem poderia ser de outra forma, já que, como as prostitutas e as estrelas, as lagartixas também são seres da noite e só nela ou de preferência nela se mostram - que ele a viu pela primeira vez. Era uma sexta-feira, ele tinha acabado de chegar da rua: quando se aproximou da talha para tomar um copo d'água, lá estava a lagartixa, na parede, perto do vitrô que dava para a área de serviço do apartamento onde morava, no décimo andar. Era esbranquiçada, um pouco mais cabeçudinha que o comum e quase rabicó. Mas foram os olhos, foram os olhos o que mais lhe chamou a atenção: exorbitados, duas bolinhas brilhantes, parecendo duas miçangas. Observou-a mais um pouco, acabou de tomar a água e, o corpo pedindo cama depois dos muitos copos de chope, ele foi dormir. Na noite seguinte — de novo o bar, de novo as conversas e as bebidas, conversas e bebidas que só serviam para matar o tempo e para matar dentro dele alguma coisa que ele não sabia bem o quê, mas que sabia ser essencial —, ao chegar em casa, acender a luz da cozinha e se aproximar da talha, viu de novo a lagartixa, quase no mesmo lugar da véspera. Sim, era ela, ele não tinha a menor dúvida, apesar de estar meio de porre: ali estava o toquinho de rabo, ali estavam os olhos, os olhos desmedidos. "Zoiúda", disse, como que batizando-a. Nela, nenhuma reação, a não ser, pareceu-lhe, estatelar mais ainda os já de si estatelados olhos. E ficaram os dois novamente se olhando, ele pensando se haveria naquela cabecinha algo como o pensamento, algo que... Na terceira noite, domingo, o mesmo bar e os mesmos amigos e as mesmas conversas e bebidas, ele, num momento de quase convulsivo tédio ("isso mesmo", se diria depois, "convulsivo tédio"), lembrou-se de Zoiúda, isolando-se por alguns minutos do ambiente ao redor, um leve sorriso lhe aflorando aos lábios. "O que foi?", perguntou a amiga que estava a seu lado, na mesa. "Estou me lembrando da Zoiúda", ele respondeu. "Aquela dos nossos tempos de faculdade?", perguntou a amiga. "Não", ele disse, "é outra; essa eu acho que nem chegou a prestar o vestibular...". "Zoiúda, Zoiudinha", disse em voz alta, depois de entrar em casa e acender a luz. Como em quase todas as noites, foi direto à cozinha. Mas... Zoiúda não estava lá. Não estava. Ficou meio decepcionado. Tinha certeza que... Chamou-a, uma vez, duas, três, esperando que ela, ouvindo sua voz, aparecesse, vinda lá de fora, da área ou até do paredão do prédio; mas ela não apareceu. "Essas mulheres... A gente não pode mesmo confiar..." Aliás aquela, ele pensou, não só mulher não era, como talvez nem fêmea fosse, pois lera uma vez que nas espécies animais o macho quase sempre tem a cabeça maior; além disso, a cauda... A cauda, a cabeça e tinha ainda mais alguma coisa, alguma coisa que ele até agora, de manhã, no carro, estava tentando lembrar, enquanto se dirigia para a escola (uma escola pública num dos bairros mais longes da capital, onde dava aulas de português para um bando de adolescentes desinteressados e distraídos). Não, não lembrava; podia desistir. Mas também, diabo, que importância tinha aquilo? Nenhuma, nenhuma importância. "Apareceu uma lagartixa no meu apartamento", contou, no intervalo. "Uma?", o colega admirou-se. "Pois lá em casa, uma ocasião, tinha umas 300. Mas aí eles me ensinaram um veneno, e eu pus: não ficou uma só para contar a história. Se você quiser, eu posso te passar o nome”. "Eu tenho pavor", confessou a colega, "eu tenho pavor de lagartixa. Se eu souber que tem uma dentro de casa, eu simplesmente não durmo. Uma vez eu quase telefonei chamando o Corpo de Bombeiros, vocês acreditam?". "Acho que eu sou meio maluco", ele disse, "acho que eu sou mesmo meio maluco" — mas nenhum dos dois estava mais prestando atenção nele. À noite, naquela plena segunda-feira, ele não saiu, substituindo o bar pela TV — a mesmice pela idiotice, pensou. Sentou-se só de short (era outubro, um calorão danado), acomodou-se na poltrona da sala, pegou o controle remoto e ligou a televisão. Algum tempo depois, ao sentir sede, foi até a cozinha e... "Zoiúda!", exclamou, com a alegria de um menino, "você está aí!...". Estava; ali estava ela de novo, próximo à talha, e, como sempre, permaneceu impassível — ou lá dentro, àquela hora, o minúsculo coração também estaria batendo um pouquinho mais forte?... O certo é que, entre aparições e desaparições, entre o atento silêncio dela e as peremptórias declarações dele — "Zoiúda, tirando minha mãe, você é a única criatura que eu amo hoje no mundo" —, Zoiúda passou a ser para ele uma... uma espécie de companhia. Afinal, num apartamento onde havia somente ele de gente e onde, por dificuldade em criá-los, não havia cachorro, gato ou passarinho, ela era uma presença, um ser vivo a quem ele podia dirigir a palavra, embora não houvesse resposta — mas para que resposta? Não queria resposta. Queria apenas falar. Apenas isso. "Né, Zoiúda?” E assim, como nas histórias antigas, foram se passando os dias. Até que, tendo de fazer uma viagem e se ausentar por uma semana, ao voltar, ele não viu mais Zoiúda. Partira para outras bandas? Morrera? Ele não sabia. O fato é que não a viu mais, em nenhuma noite. Sentiu falta dela? Imagine; imagine um homem sentir falta de uma lagartixa... Claro que ele não sentiu. Mas sentiu — tinha de admitir — que aquele apartamento ficara um pouco mais vazio e aqueles fins-de-noite um pouco mais tristes.

368. MACHADO DE ASSIS. Um homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração. No princípio do mês passado, — disse ele, — indo por uma rua,sucedeu que um tílburi à disparada, quase me atirou ao chão. Escapei saltando para dentro de urna loja de belchior.Nem o estrépito do cavalo e do veículo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negócio, que cochilava ao fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele nenhuma história, como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas. A loja era escura, atulhada das cousas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pêlo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dois cabides, um bodoque, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro, havia outras cousas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escuridão. Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava lhe estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais abaixo e acima, de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois. Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras de azedume. — Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela? E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto: — Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo. — Como — interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol? — Não sei que seja sol nem cemitério. Se os canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou vendo que confundes. — Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado. — Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo. Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as idéias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em trilos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado; a rua era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e úmida. O canário, movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito. — Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito? — Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que cousa é o mundo? O mundo, redargüiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira. Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés. Perguntou-me se queria comprar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas. — As navalhas estão em muito bom uso, concluiu ele. — Quero só o canário. Paguei lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul. Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por alfabeto a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas idéias e reminiscências. Feita essa análise filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha conhecimento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as notas, ele esperando, saltando, trilando. Não tendo mais família que dois criados, ordenava lhes que não me interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou telegrama urgente, ou visita de importância. Sabendo ambos das minhas ocupações científicas, acharam natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos entendíamos. Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite, passeava à toa, sentia me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler, acrescentar, emendar. Retifiquei mais de uma observação, — ou por havê-la entendido mal, ou porque ele não a tivesse expresso claramente. A definição do mundo foi uma delas. Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo. — O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira. Também a linguagem sofreu algumas retificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram temerárias. Não podia ainda escrever a memória que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às universidades alemãs, não porque faltasse matéria, mas para acumular primeiro todas as observações e ratificá-las. Nos últimos dias, não saía de casa, não respondia a cartas, não quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e pôr lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico. Também o serviço era o mais sumário do mundo; o criado não era amador de pássaros. Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me. O médico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o criado; a indignação sufocou-me, caí na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que fugira por astuto. — Mas não o procuraram? Procuramos, sim, senhor; a princípio trepou ao telhado, trepei também, ele fugiu, foi para uma árvore, depois escondeu-se não sei onde. Tenho indagado desde ontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ninguém sabe nada. Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com algumas horas pude sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de canário. Indaguei, corri, anunciei, e nada. Tinha já recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa uma das mais belas e grandes chácaras dos arrabaldes. Passeávamos nela antes de jantar, quando ouvi trilar esta pergunta: — Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu? Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doido; mas que me importavam cuidados de amigos? Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular. — Que jardim? que repuxo? — O mundo, meu querido. — Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima. Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior. — De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de belchior?

369. MANUEL BANDEIRA. FRASES. Dos vendedores ambulantes que freqüentavam a Rua da União, dois me interessavam particularmente: a preta das bananas, com o seu vistoso xale de pano da Costa, e o homem dos sapatos. Este chegava com o seu grande baú de folha-de-flandres, abria-o na saleta de entrada e ficava esperando pela freguesia, que eram as senhoras de casa e da vizinhança. Eu gostava de olhar aquela confusão de borzeguins, chinelas e sapatos rasos. Mas, um dia, o sujeito, que era robusto e falava grosso, me interpelou: — Já vai ao colégio? Estuda Geografia? Qual é a Capital do Espírito Santo? Embatuquei, e o sapateiro tripudiou: — Ignora? O que eu esperava, o que eu ouvia dizer em tais ocasiões era: — “Não sabe?” Aquele “ignora”, que eu jamais ouvira, soou-me duro. Senti-me insultado, afastei-me do baú, nunca mais me aproximei do homem. E até hoje implico com esse inocente verbo “ignorar”, sobretudo no singular do presente do indicativo. Outro dia foi meu tio Antonico que me surpreendeu, dizendo ao amigo Fiúza: — Quando você ia colher os cajus, eu já voltava com as castanhas! Surpresa maior, porém, foi o que disse à minha avó unia sua amiga, ouvindo-lhe queixas de achaques que não cediam aos remédios: — Minha Dona França, deixe a natureza obrar! Essas foram frases ouvidas na infância e então me soaram insólitas e inexplicáveis. Adulto, ouvi outras, sem nenhum mistério, mas igualmente surpreendentes. Assim, a de uma dessas pretinhas de Copacabana, cabelizadas e maquiladas, que tratava emprego com a senhora: — A que horas a senhora janta? — Às oito horas. — Não pode ser às sete? — Quem marca o horário das refeições em minha casa sou eu, não a cozinheira. A pretinha então, muito gentil: — Claro, não leve a mal que eu pergunte: não vê que eu sou mulher da vida e tenho de noite o meu trabalho lá fora?

370. MANUEL BANDEIRA. O Enterro do Sinhô. J. B. SILVA, o popular Sinhô dos mais deliciosos sambas cariocas, era um desses homens que ainda morrendo da morte mais natural deste mundo dão a todos a impressão de que morreram de acidente. Zeca Patrocínio, que o adorava e com quem ele tinha grandes afinidades de temperamento, era assim também: descarnado, lívido, frangalho de gente, mas sempre fagueiro, vivaz, agilíssimo, dir-se-ia um moribundo galvanizado provisoriamente para uma farra. Que doença era a sua? Parecia um tísico nas últimas. Diziam que tinha muita sífilis. Certamente o rim estava em pantanas. Fígado escangalhado. Ouvia-se de vez em quando que o Zeca estava morrendo. Ora em Paris, ora em Todos os Santos, subúrbio da Central. E de repente, na Avenida, a gente encontrava o Zeca às três da madrugada, de smoking, no auge da excitação e da verve. Assim me aconteceu uma vez, e o que o punha tão excitado naquela ocasião era precisamente a última marcha carnavalesca de Sinhô, o famoso Claudionor... que pra sustentar família foi bancar o estivador... Me apresentaram a Sinhô na câmara-ardente do Zeca. Foi na pobre nave da igreja dos pretos do Rosário. Sinhô tinha passado o dia ali, era mais de meia-noite, ia passar a noite ali e não parava de evocar a figura do amigo extinto, contava aventuras comuns, espinafrava tudo quanto era músico e poeta, estava danado naquela época com o Vila e o Catulo, poeta era ele, músico era ele. Que língua desgraçada! Que vaidade! mas a gente não podia deixar de gostar dele desde logo, pelo menos os que são sensíveis ao sabor da qualidade carioca. O que há de mais povo e de mais carioca tinha em Sinhô a sua personificação mais típica, mais genuína e mais profunda. De quando em quando, no meio de uma porção de toadas que todas eram camaradas e frescas como as manhãs dos nossos suburbiozinhos humildes, vinha de Sinhô um samba definitivo, um Claudionor, um Jura, com um "beijo puro na catedral do amor", enfim uma dessas coisas incríveis que pareciam descer dos morros lendários da cidade, Favela, Salgueiro, Mangueira, São Carlos, fina-flor extrema da malandragem carioca mais inteligente e mais heróica... Sinhô! Ele era o traço mais expressivo ligando os poetas, os artistas, a sociedade fina e culta às camadas profundas da ralé urbana. Daí a fascinação que despertava em toda a gente quando levado a um salão. Vi-o pela última vez em casa de Álvaro Moreyra. Sinhô cantou, se acompanhando, o "Não posso mais, meu bem, não posso mais", que havia composto na madrugada daquele dia, de volta de uma farra. Estava quase inteiramente afônico. Tossia muito e corrigia a tosse bebendo boas lambadas de Madeira R. Repetiu-se a toada um sem número de vezes. Todos nós secundávamos em coro. Terán, que estava presente, ficou encantado. Não faz uma semana eu estava em casa de um amigo onde se esperava a chegada de Sinhô para cantar ao violão. Sinhô não veio. Devia estar na rua ou no fundo de alguma casa de música, cantando ou contando vantagem, ou então em algum botequim. Em casa é que não estaria; em casa, de cama, é que não estaria. Sinhô tinha que morrer como morreu, para que a sua morte fosse o que foi: um episódio de rua, como um desastre de automóvel. Vinha numa barca da Ilha do Governador para a cidade, teve uma hemoptise fulminante e acabou. Seu corpo foi levado para o necrotério do Hospital Hahnemanniano, ali no coração do Estácio, perto do Mangue, à vista dos morros lendários... A capelinha branca era muito exígua para conter todos quantos queriam bem ao Sinhô, tudo gente simples, malandros, soldados, marinheiros, donas de rendez-vous baratos, meretrizes, chauffeurs, macumbeiros (lá estava o velho Oxunã da Praça Onze, um preto de dois metros de altura com uma belida num olho), todos os sambistas de fama, os pretinhos dos choros dos botequins das ruas Júlio do Carmo e Benedito Hipólito, mulheres dos morros, baianas de tabuleiro, vendedores de modinhas... Essa gente não se veste toda de preto. O gosto pela cor persiste deliciosamente mesmo na hora do enterro. Há prostitutazinhas em tecido opala vermelho. Aquele preto, famanaz do pinho, traja uma fatiota clara absolutamente incrível. As flores estão num botequim em frente, prolongamento da câmara-ardente. Bebe-se desbragadamente. Um vaivém incessante da capela para o botequim. Os amigos repetem piadas do morto, assobiam ou cantarolam os sambas (Tu te lembra daquele choro?). No cinema da Rua Frei Caneca um bruto cartaz anunciava "A Última Canção" de Al Johnson. Um dos presentes comenta a coincidência. O Chico da Baiana vai trocar de automóvel e volta com um landaulet que parece de casamento e onde toma assento a família de Sinhô. Pérola Negra, bailarina da companhia preta, assume atitudes de estrela. Não tem ali ninguém para quebrar aquele quadro de costumes cariocas, seguramente o mais genuíno que já se viu na vida da cidade: a dor simples, natural, ingênua de um povo cantador e macumbeiro em torno do corpo do companheiro que durante tantos anos foi por excelência intérprete de sua alma estóica, sensual, carnavalesca.

371. MARIA LÚCIA DAHL. Acordei com um novo mendigo me pedindo comida pro cachorro. Um rapaz chamado Jonathan, que tem um amigo, Dôuglas, uma amiga, Daiane, e o cachorrinho Bob. Parece até uma família do Texas, por exemplo. Quando eu era garota, só os cães de família tinham nomes americanos: Lassie, Lady, Dick, Diana, influenciados por Hollywood. Os moradores de rua, os chamados ''moleques'' daquela época, se chamavam Zé, Severino, Valdéia, Valdinéia, Josefa, início de nome do pai com início de nome da mãe, feito Noelmar, de Noel com Marli. Isso caiu em desuso. Agora é tudo em inglês, língua que vem se tornando uma espécie de esperanto sem nenhuma ideologia por trás, apenas um abrasileiramento das palavras orais e escritas, sem nenhuma regra, baseado no que se entende, tal qual aquela brincadeira de telefone sem fio que se fazia no colégio. Daiane com a, Dôuglas com acento circunflexo, e assim vai se formando uma nova língua, falada por um novo povo, o das ruas, que mistura raças, sobras de civilizações, que comem sobras, sobras da escravidão que agora dão trabalho em vez de trabalhar, sobras de todas as sobras que sobram pelas ruas sobrando pra todos nós sob a forma de culpa, horror, tristeza, compaixão, medo, indiferença. Existe também um bebê, filho da Daiane, que nasceu prematuro de cinco meses! E veio imediatamente pra rua, isto é, pro chão. Deitado numa colcha imunda, ele conseguiu sobreviver até hoje, herdando fraldas, camisetinhas, leite em pó, esmolas, migalhas, sobras. Mas quem come whiskas é o Bob, que se passa por pastor alemão, como afirmam, orgulhosos. A maioria dos moradores de rua tem cachorros e dedica a eles todo o seu afeto rejeitado pelo mundo ao redor. Os bichos servem também de orgulho, como um filho de mentirinha a quem dedicam toda a esperança de darem certo, enquanto o filho verdadeiro jaz estirado na rua, sem chance. Os cães comem bem, são educados, tomam banho de mangueira no posto de gasolina e se vestem com roupa de grife, da pet shop da esquina. Não são mendigos como os ''pais'' - os seus donos, que atribuem ao cão um pedigree fantasioso que eles nunca tiveram. Existe um outro tipo de morador de rua aqui perto. São de outra geração. Alcoólatras que não cheiram cola, ''coisa de moleque''. São da ''alcoolic generation'', como explicava o Glauber, na Europa, com seu sotaque baiano, cada vez que recusava um baseado. Tem um, elegante, que se chama João Carlos, como qualquer ''doutor''. Dizem que morava num bom apartamento em Botafogo. João Carlos tem amigos que devem ter sido hippies que desbundaram demais da conta. Falam inglês, acham tudo ''more or less'' e lêem O Dia. Têm opiniões próprias. Não descendem de escravos, devem ter sido patrões algum dia, ou descendentes deles. João Carlos tem um cachorro chamado Romeu, também de raça superior, não vira-latas como ele. Encontrei João Carlos, chiquérrimo, de botas, calças com muitos bolsos laterais, sóbrio e de barba feita. Perguntei por Romeu. - Está com a babá - respondeu. - Um menino que eu pago pra tomar conta dele quando saio. Mundo estranho o dos moradores de rua, de ética própria, valores intrínsecos, visão específica. Teria solução política? Começo a suspeitar que não... Só a Consciência transforma. Essa mesma, com C maiúsculo. A consciência individual, de cada um, que não precisa de ídolos, siglas, emblemas, patota, mas só da consciência em si, aquela absoluta, que não é escamoteada e que não erra. E enquanto esse mundo ideal não acontece e sentindo-me totalmente incapaz de mudar o que existe, resolvo comer, sozinha, o Coração Apaixonado de chocolate e ovos moles que o Sabor de Pecado me mandou de presente para o Dia dos Namorados...

372. MARIA LÚCIA DAHL. Dia de votação, da Voluntários ao Quitandinha. Levo menos de um minuto pra votar numa escolinha em Botafogo. Os mendigos de sempre estão espalhados na Voluntários, enquanto passo por algumas pessoas fazendo boca de urna. Pergunto a um dos moradores de rua se ele melhorou de saúde, e ele me responde: - More or less. O cachorro me faz festa. Acho que sou querida nesse meio. Já levei um deles para um abrigo indicado pelo Viva Rio, onde ficou para sempre. Os outros não querem ir. Preferem beber. Dizem pra mim: - Não está na hora ainda. Acho que a hora é mesmo a de morrer, ou um pouquinho antes. Livre do voto num domingo sem chuva, vou caminhar na Lagoa e fico pensando no tempo em que meus pais me levavam pra votar, quando era pequena. Mamãe se vestia com um tailleur e salto alto, vovó, de chapéu, como sempre, meu pai, não. Ele era mais esportivo e sempre me lembro dele de jeans e mocassim. Saíam de casa cedinho e voltavam no fim da tarde, exaustos. Minha mãe, suada de enfrentar a fila do banco onde votava numa época pré-ar condicionado, ia direto pra cama, de mau humor. E enquanto meus pais votavam no Brigadeiro, minha irmã e eu ficávamos cantando a paródia de O pirata da perna de pau, tendo o Getúlio como personagem principal. ''Eu sou o Getúlio, já fui ditador/ eu sou pai dos trouxas, eu sou senador./ Minha galera tem 15 anos de navegação,/ trouxe a miséria, o câmbio negro e a inflação./ Por isso se sou pai dos trouxas, sou mãe dos ricos em compensação/ ao Rolas, já dei muita roupa. Roupa de algodão!'' Se as empregadas chegavam perto, parávamos de cantar para não ouvirmos o discurso a favor do Getúlio. A babá chegava a chorar de desgosto por causa da gente. É claro que não entendíamos uma palavra do que dizíamos, mas adorávamos cantar a música que tínhamos escutado no Quitandinha, durante o Carnaval, em meio a confetes e lança-perfume, rindo às gargalhadas com uma turma de garotos por causa do Rolas, personagem da música, que tinha construído o hotel. Papai achava graça. Vovó dizia ser falta de respeito. Nós adorávamos a polêmica e a discussão, que comentávamos no quarto do hotel, antes de dormir, abrindo a caixa de madeira de lança-perfume Rodouro. - Papai disse que a gente só não pode cheirar. De jeito nenhum - dizia minha irmã. - Por que será, hein? Vamos experimentar? - eu perguntava. Foi minha primeira transgressão. Minha irmã esguichou o lança na beirada do lençol e demos uma cheirada forte. Ficamos às gargalhadas e começamos a dançar no quarto, o ouvido zunindo, cantando O pirata da perna de pau com letra do Getúlio. A babá, que passava roupa no quarto ao lado, entrou furiosa e nos pegou com a boca na botija. Agora, além da letra abjeta que cantávamos a plenos pulmões arriscando acordar o hotel inteiro, ainda cheirávamos lança! Ameaçou chamar papai. Fez um escândalo e disse que podíamos morrer. Tirou o lança de nossas mãos e foi embora, batendo a porta. Nós ainda ficamos com mais duas Rodouros, pois a babá esqueceu que a caixa de madeira tinha três. Mas faltou coragem pra continuar a farra. O escândalo da babá tinha valido a pena. E se a gente morresse, como aquela menina que morreu no colégio e foi enterrada com o uniforme do Sion, na capela? Ou como o Getulinho, filho do Getúlio, que tinha um túmulo no São João Batista que a babá nos levava pra ver? Desistimos do lança. Mas o lençol molhado com ele podia ter nos intoxicado, pois ainda por muito tempo senti o líquido gelando os meus pés. Anos depois, também no Quitandinha, aprendemos uma musiquinha com uma letra trocada que falava da Martha Rocha. E uma vez, na mesma sala de pingue-pongue, nossa turminha cantou a música enquanto ela passava no hall. ''Todo o Brasil se ufana/ dessa miss tão bacana/ Martha, não confunda/ o concurso era de miss e não de bunda.'' A babá nos deu uma bronca de novo. Estávamos rindo de um patrimônio nacional. Martha Rocha era como o Garrincha, o Pelé. Só porque ela perdeu o concurso por causa de duas polegadas, isso não nos dava o direito de criticá-la. Todos concordávamos que Martha era linda. Só queríamos nos divertir. Mas a babá levava algumas coisas a sério - Getúlio Vargas e Martha Rocha eram duas delas. Sagradas. Intocáveis. Volto pela mesma Voluntários, depois da caminhada na Lagoa e da viagem ao Quitandinha, encontro os mesmos mendigos espalhados na rua e despeço-me deles, que me respondem com um aceno: - Bye-bye.

373. MARIA LÚCIA DAHL. Nesses tempos esquisitos de greve, resolvo encarar a fila de um dos únicos bancos abertos em Botafogo. Maior que a dos drogados no Morro do Andaraí pra comprar cocaína. Gente, que fila é aquela que vi no jornal? Pensei que fosse a do INSS. Pois essa aqui está bem parecida. Não tem traficante no fim, mas tem muito camelô se fazendo às custas dessa greve. Pelo menos, que alguém se faça... Esse aqui do lado, se bobear, já ficou mais rico que o presidente do próprio banco, onde peno pra entrar há 40 minutos com as contas na mão. Fica essa discussão se o consumidor ganha ou não ganha com esse jogo... É ruim do consumidor ganhar, hein? Se minha empregada vier no meu lugar para a fila, não almoço por três dias. Não adianta. Quem tem que pagar o plano de saúde milionário sou eu mesma. E sem atraso, senão vou ter que vender a casa pra pagar o hospital. Mas será que vale a pena? Como não consigo escolher entre a casa e o hospital, resolvo ficar na fila. - Quer comer o bolo e guardá-lo ao mesmo tempo, né? - dizia o analista, nos áureos tempos. Mas que bolo, gente! As escolhas agora são muito diferentes. Vai de casa ou hospital? É a falta de um bom mensalão, já que mensalinho nunca deu camisa a ninguém. Por favor, não me levem a mal, eu não estou fazendo crônica pornô. É a realidade dos fatos. Aqui na fila é tudo mensalinho, claro. Mensalão vai ficar na fila? Só se for pra receber o próprio... Pois eu, nem em pé, nem sentada, consigo receber o dinheiro do meu ex-marido que foi exilado político. Mas não era o povo unido que jamais seria vencido, meu Deus? 68 se uniu, botou os homi lá no poder e nada? É por isso que a geração de hoje usa camisetas onde se lê escrito: ''votar é coisa de velho''. Foi isso, deu no que deu... E ainda tenho que ser chamada de velha por causa deles. - Moço, o senhor tem aí um bloqueador de Sol nº 50, entre essas bolsas Vuitton? - pergunto ao camelô, resolvendo curtir o sol. - Lancôme, Davene, Revlon? - Lancôme, por favor. Lambuzo o rosto de Lancôme do Paraguai. Na próxima greve, venho de biquíni e quem sabe trago a toalha pra estender no pedaço da calçada sem cocô de cachorro, depois de pedir licença ao casal de mendigos que mora embaixo de uma tenda de plástico, no meio da rua. - Tá servida, madame? - pergunta a mendiga, mexendo a panela de feijão num fogareiro. - Não, obrigada... Assobiando um pagode, o marido da indigente toma banho numa bica, enquanto o bebê bebe a mamadeira com uma mocinha que deve ser a empregada. Difícil encontrar casal tão integrado nos dias de hoje vivendo sob a mesma falta de teto. O carro do Crivella passa gritando: ''Mandou 22, mandou bem!''. Fico com aquela terrível musiquinha na cabeça. Alguém liga um rádio num rap. As músicas se confundem, juntando as letras que fazem uma canção só, como: ''Passei a mão no Buda e o Buda me deu sorte, manda 22 você também!''. Mas o Crivella não é evangélico? Quem tá confusa agora sou eu. O cara do radinho começa a dançar na fila. Poxa, bem que a mulher do mendigo podia servir uns salgadinhos. O dono do cachorro Sansão vem me contar que a Dalila morreu. Gente, mas isso não foi há muito tempo?, penso, distraída, enquanto ele me conta que Sansão está péssimo com a notícia. Homem gosta de cachorra mesmo, né? A Dalila vai lá, corta o cabelo dele, faz com que ele perca a força, depois o trai de todo jeito, numa época em que não tinha nem antidepressivo e o cara ainda fica arrasado. Vai entender... Um garotinho negro pede R$ 1 pra comer. Dou-lhe R$ 2. A mulher na minha frente diz que são todos cheiradores de cola. Fulmino-a com o olhar. Um rapaz segura o meu braço, de repente, sussurrando algo. Vou logo tirando o relógio, distraída, quando o suposto ladrão me devolve o relógio junto com um panfleto de uma cartomante que traz a pessoa amada de volta em três dias. De volta, moço? Só se for algemado. Compro o jornal e leio que o Cat Stevens foi barrado nos Estados Unidos. Gente, o Cat! Que vinha pro Brasil, ficava com a gente em Búzios... Mas que ele ficou esquisito, ficou, defendendo a pena de morte para o Salmon Rushdie. Quem viu o Cat querendo mudar o mundo cantando It's a wild world. Olha, acho que dessa vez concordo com o Bush. Sei lá o que tem por baixo daquela saia do cantor... Entramos finalmente no banco, mas o sistema sai do ar junto com o outro, o refrigerado, que não quis perder pra ninguém. Desisto do banco, das contas, das multas, do plano de saúde e vou tomar uma cerveja na Cobal, que ninguém é de ferro. Oh, baby,baby, it's a wild world...

374. MARINA COLASANTI. EU SEI, MAS NÃO DEVIA. Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão. A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra. A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos. A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta. A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.

375. MARINA COLASANTI. COMO É MESMO O NOME? Levou o manequim de madeira à festa porque não tinha companhia e não queria ir sozinho. Gravata bordeaux, seda. Camisa pregueada, cambraia. Terno riscado, lã. Tudo do bom. Suas melhores roupas na madeira bem talhada, bem lixada, bem pintada, melhor corpo. Só as meias um pouco grossas, o que porém se denunciaria apenas se o manequim cruzasse as pernas. Para o nariz firmemente obstruído, um lenço no bolsinho. No relógio de ouro do pulso torneado, a festa já tinha começado há algum tempo. Sorridentes, os donos da casa se declararam encantados por ter ele trazido um amigo. — Os amigos dos nossos amigos são nossos amigos — disseram saboreando a generosidade da sua atitude. E o apresentaram a outros convidados, amigos e amigos de nossos amigos. Todos exibiram os dentes em amável sorriso. Recebeu o copo de uísque, sua senha. E foi colocado no canto esquerdo da sala, entre a porta e a cômoda inglesa, onde mais se harmonizaria com a decoração. A meia hilaridade pintada com tinta esmalte e reforçada com verniz náutico exortava outras hilaridades a se manterem constantes, embora nenhuma alcançasse idêntico brilho. Abriam-se os transitórios vizinhos em amenidades que o compreensivo calar-se do outro logo transformava em confidências. Enfim, alguém que sabia ouvir. Relatos sibilavam por entre gengivas à mostra e se perdiam em quase espuma na comissura dos lábios. Cabeças aproximavam-se, cúmplices. Apertavam-se as pálpebras no dardejado do olhar. O ruge, o seio, o ventre, a veia expandida palpitavam. O gelo no uísque fazia-se água. A própria dona da casa ocupou-se dele na refrega de gentilezas. Trocou-lhe o copo ainda cheio e suado por outro de puras pedras e âmbar. Atirou-se à conversa sem preocupações de tema, cuidando apenas de mantê-lo entretido. Do que logo se arrependeu, naufragando na ironia do sorriso que lhe era oferecido de perfil. A necessidade de assunto mais profundo levou-a à única notícia lida nos últimos meses. E nela avançou estimulada pelo silêncio do outro, logo úmida de felicidade frente a alguém que finalmente não a interrompia. No mais frondoso do relato o marido, entre convivas, a exigiu com um sinal. Afastou-se prometendo voltar. O brilho de uma calvície abandonou o centro da sala e coruscou a seu lado, derramando-lhe sobre o ombro confissões impudicas, relato de farta atividade extraconjugal. Sem obter comentários, sequer um aceno, o senhor louvou intimamente a discrição, achando-a, porém, algo excessiva entre homens. Homens menos excessivos aguardavam em outros cantos da sala a repetição de suas histórias. Não acendeu o cigarro de uma dama e esta ofendeu-se, já não havia cavalheiros como antigamente. Não acendeu o cigarro de outra dama e esta encantou-se, sabia bem o que se esconde atrás de certo cavalheirismo de antigamente. Os cinzeiros acolheram os cigarros sem uso. Um cavalheiro sentiu-se agredido pelo seu desprezo. Um outro pela sua superioridade. Um doutor enalteceu-lhe a modéstia. Um senhor acusou-lhe a empáfia. E o jovem que o segurou pelo braço surpreendeu-se com sua rígida força viril. Nenhum suor na testa. Nenhum tremor na mão. Sequer uma ponta de tédio. Imperturbável, o manequim de madeira varava a festa em que os outros aos poucos se descompunham. Já não eram como tinham chegado. As mechas escapavam, amoleciam os colarinhos, secreções escorriam nas peles pegajosas. Só os sorrisos se mantinham, agora descorados. No relógio torneado do pulso rijo a festa estava em tempo de acabar. As mulheres recolhiam as bolsas com discrição. Os amigos, os amigos dos amigos, os novos amigos dos velhos amigos deslizavam porta afora. Mais tarde, a dona da casa, tirando a maquilagem na paz final do banheiro, dedos no pote de creme, comentava a festa com o marido. — Gostei — concluiu alastrando preto e vermelho no rosto em nova máscara —, gostei mesmo daquele convidado, aquele atencioso, de terno riscado, aquele, como é mesmo o nome?

376. MARINA COLASANTI. A MOÇA TECELÃ. Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear. Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte. Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava. Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos  do algodão  mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela. Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza. Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias. Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado. Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta. Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida. Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade. E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer. Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. — Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata. Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira. Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre. — É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos! Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo. Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear. Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins.  Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela. A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta.  Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu. Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

377. MARINA COLASANTI. COMEÇOU, ELE DISSE. Acordou com o primeiro tiro sem saber porque tinha acordado. Trazia porém do sono um aviso de alarme. Sem se mexer, sem abrir completamente os olhos para não denunciar sua vigília, olhou em volta pela fresta das pálpebras. Lentamente percorreu as sombras, detendo-se mais na cadeira, onde as roupas jogadas criavam formas que não lhe eram familiares. Fazia sempre assim quando acordava de repente no meio da noite e o coração descompassado lhe dizia que talvez houvesse algum invasor no quarto. E cada vez se detinha na cadeira. Não havia ninguém. Permitiu-se então abrir os olhos, levantar a cabeça, só pelo prazer de tornar a fechá-los, ajeitando-se no travesseiro. O segundo tiro estalou seco na rua. O som colheu-o no estômago, na cabeça, na pele. E com a pele pareceu eriçar os lençóis, ferir a colcha. Mesmo assim não se mexeu. Um tiro que assalta nosso sono sempre atinge o alvo, ainda que o alvo não sejamos nós, pensou surpreendendo-se com a nitidez do pensamento. Sentia-se atingido, a sensação tão mais importante do que a ordem das palavras. Esperou um instante para ver se a mulher a seu lado na cama se mexia. Mas o colchão continuou imóvel como se vazio. Melhor assim, ela era muito impressionável, se acordasse o assunto acabaria se estendendo no dia seguinte tornando-se difícil de apagar. Ele próprio continuou na mesma posição. Tentou ouvir a respiração dela. Antes que o conseguisse, adormeceu. Talvez tivesse apenas cochilado, questão de minutos, porque logo estava novamente acordado, olhos bem abertos, nenhum descompasso, e a certeza de saber quem lhe entrava quarto adentro. Dessa vez não era um tiro. Rajadas de metralhadora pareciam ricochetear entre os prédios estremecendo os vidros da janela. Um corte no ar, picotes abrindo superfícies que ele não via, não imaginava, recusando-se ainda a pensar carne e sangue. As rajadas seguiam-se a intervalos pequenos. E a cada brecha de silêncio ele desejava que fosse a última, fechando a noite onde ela havia sido rasgada, restaurando integridade da escuridão como o lago restaura sua superfície encobrindo o corpo que caiu. A primeira granada estourou altíssima. Começou, disse mulher. E ele então mexeu-se porque já não era necessário cuidar do sono dela. Começou, respondeu. Continuaram no escuro. Da rua — mas seria mesmo daquela rua?, os sons se alastravam com tal rapidez que poderiam estar vindo da praça, ou de outra rua —, de onde quer que fosse, ali embaixo ou ali perto, chegavam agora tiros de revólver. E gritos. Eram ordens gritadas, iradas, esparsas. Será que não acertam ninguém, perguntou-se ele calado, porque nenhum grito de dor ou de medo lhe chegava e a dor e medo pareciam ser só dele, dele que ali deitado não era a caça de ninguém e se sentia ferido. Desejou que se matassem, que se rasgassem, que se largassem aos pedaços pelo chão. Levantou-se. Não vai, disse a mulher, embora sabendo que ele só iria até a janela e que mesmo assim o chegaria perto dos vidros, protegendo-se atrás da quina de cimento. Não vai, você está louco, uma bala perdida te acerta. Nessa altura não chega, disse ele certo que no alto daquele prédio alto nenhuma bala viria se perder, e ainda assim não ousando aproximar-se nem muito menos debruçar o corpo e esticar o pescoço para vasculhar, vasculhar o escuro e saber, com alguma mínima certeza, o que estava se passando. Entre vidro e cimento olhou para baixo. Acreditou ter visto sombras furtivas. Certamente defendiam-se atrás dos carros estacionados, protegiam-se nos portões, alguns haveriam de correr entre um anteparo e outro, armas nas mãos. Estão lá embaixo, disse para a mulher. Mas sabia que tinha visto o que queria ver, talvez não houvesse ninguém naquele rio negro que era a rua visualizada do alto e ainda por cima encoberta pelas copas das árvores, talvez estivessem mais para lá, além do sinal luminoso que alheio como um farol continuava a trocar de cor. Uma explosão. E quase em cima daquela, outra. Mais fortes, dessa vez. Recuou rápido, meteu-se na cama. Estão usando armamento pesado, disse a mulher como se entendesse de armamento. E ele respondeu, talvez sejam granadas, sabendo muito bem que nunca antes tinha ouvido uma explosão de granada e que não saberia distingui-la de qualquer outra explosão. A fuzilaria pipocou, as balas pareciam ferir chapas de metal. Ao longe, sons semelhantes responderam. Depois explosões em série, um estrondo. E o silêncio. Nenhum carro passava. Eles não encontravam nada para dizer. Pensavam que deveriam tentar dormir porque no dia seguinte, mas como? e se deixavam ficar, tomados por aquele medo que não era medo porque nada iria lhes acontecer mas que era medo porque tudo estava lhes acontecendo. Durante longo tempo ouviram o tiroteio intenso que ora se aproximava, ora parecia afastar-se, quase ocorresse atrás de muros. Aquilo não tinha fim. Como uma guerra, pensou ele encolhendo as pernas sobre o peito, de costas para a mulher. As rajadas multiplicavam-se em ecos, silenciavam de repente, sobrepunham-se. Sentiu um desespero sem conserto apertar-lhe a boca, azedar-lhe a saliva. Como uma guerra, disse em voz alta. E ela não respondeu, mas ele teve certeza de que em silêncio repetia, uma guerra meu deus uma guerra. Uma guerra da qual amanhã certamente não haveria nenhum vestígio nas ruas, nenhuma notícia no jornal. Uma guerra em que todos lutavam com o rosto coberto. Chegaria um momento, na madrugada, quando as pessoas em suas camas estivessem exaustas, olhos ardendo de sono e secura, quando a batalha lá embaixo estivesse perdida ou gasta, chegaria um momento em que não se ouviriam mais tiros só cães latindo, e ele se perguntaria, como se perguntava cada vez, onde estão os mortos, onde, e quantos são, um momento em que afinal esticaria as pernas debaixo do lençol e deitado sobre as costas se permitiria afinal adormecer. Olhou o despertador, mas a fluorescência há muito tinha se esvaído. Que hora será? perguntou à mulher, quando na verdade queria perguntar há quanto tempo estamos aqui e quanto tempo ainda teremos que ficar ouvindo, ouvindo o esfacelamento da noite. É tarde, respondeu a mulher só para dar-lhe uma resposta, ela que também tinha perguntas a fazer mas, para quê? E ele pensou é tarde, e teve vontade de chorar.

378. MARINA COSTA. REDOMA DE VIDRO. E, um dia, eu cresci! Depois da infância, naquela cidade pequena, olhei pela janela da vida e vi um outro mundo que acreditava glorioso. Meus amigos, minha casa, meus bichos de estimação; no auge de minha inocente (ou, quem sabe, ignorante) juventude, ficaram para trás. Eu quis viver o mundo lá fora. É lá, mãe! Lá que está meu futuro!! E, eu vim. E vi. Vi um mundo com jaulas de concreto, que nos trancam, enquanto ladrões andam em liberdade pelas ruas. Vi a miséria humana, que passa por um irmão, sem notar que ele diverge da paisagem. “Ei! – sinto vontade de gritar – este, que te estende a mão, não é só mais um tijolo da parede!” Mas meu grito morre sufocado na garganta, enquanto o homem de terno, imponente, importante, dobra a próxima esquina. Vi que nesta “terra de gigantes”, só eu cuidarei de mim. Não há mais tantos rostos conhecidos com sorrisos de incentivo. Resta a mim somente eu mesma. Talvez possa dizer que venci. Pois entre tantas tristezas e privações, descobri que amizades verdadeiras duram mais que uma simples entrega de diplomas. Chega até a virar um “bom dia” diário, risos na hora do jantar com o macarrão instantâneo de todo dia e um abraço amigo para afastar as saudades de um passado tão presente. Descobri que; como meu pai sempre disse, e eu nunca dei ouvidos, o melhor lugar do mundo é a nossa casa e que o dinheiro é mesmo uma coisa muito difícil de ganhar; apesar de esvair de meus dedos como areia. Isso tudo, me fez crescer de verdade. Agora, às vezes escondida, na solidão de meu travesseiro, eu choro por aquela vida tão boa e tranquila que eu deixei. Que eu tive que deixar. Mas, como adulta que me transformei, respondo a minha colega de quarto que as lágrimas não são nada... apenas uma dor de cabeça que insiste em não me deixar... Ela sorri, pois sabe que eu minto. E eu retribuo seu sorriso amarelo, por que sei que ela sente o mesmo. Mas, apesar das saudades, tristezas, correria, o dinheiro que voa pela janela aberta e responsabilidades, me sinto feliz por ter saído de minha redoma de vidro; pois descobri que o mundo é muito mais real e palpável do que eu jamais supus. E por ter crescido lá, protegida desse mesmo mundo, me tornei mais humana do que muitos jamais o serão. Só não consegui, e não conseguirei nunca, apagar das minhas lembranças o lugar que vivi... Aquele tempo bom que não volta... Saudosismo? É. Após dois longos anos, entre alegres idas e tristes vindas, me pego a pensar, constantemente, no único lugar que me cabe de verdade, sem faltar ou sobrar espaços. Minha redoma de Luz. Minha Cidade querida de vidro.

379. MÁRIO DE ANDRADE. SÃO PAULO, 10.01.42. FERNANDO TAVARES SABINO: Se você quiser continuar sendo escritor, antes de mais nada tem que encurtar o nome. Tavares Sabino, Fernando Tavares, Fernando Sabino. O que é impossível é Fernando Tavares Sabino. Me desculpe esta sinceridade e entremos pelas outras. Muita ocupação, só nesta noite de sábado pude ler os seus contos e lhe escrevo imediatamente, enquanto a impressão é nítida. Saio do seu livro com a convicção de que você é um escritor, é um artista. Não que o livro seja bom, mas é uma estréia excelente, uma estréia promissora, denunciando fartas possibilidades. Antes de mais nada: eu achava que os estreiantes deviam pôr nos seus livros a idade que têm. Que idade tem você? Isso importa extraordinariamente nesse caso como o seu, por causa justamente das possibilidades fartas. Si você está rodeando os vinte anos, de vinte a vinte e cinco como imagino, lhe garanto que o seu caso é bem interessante, que você promete muito. E o livro, neste caso é bom. Mas si você já tem trinta ou trinta e cinco anos, já estudou muito (você parece de fato se preocupar com a expressão lingüistica) e está homem-feito, não lhe posso dar aplauso que valha. Neste caso o livro fica medíocre, sem o menor interesse. É apenas um dos muitos. Seu livro já está muito bem escrito. Não há dúvida nenhuma que você, como bom mineiro (?) tem o sentimento da língua, como cultura e principalmente como estilo, como expressão de pensamento. E tem no que escreve um sabor brasileiro, muito firme, muito nítido e muito atilado. De extremo bom gosto. Quero dizer: você não cai em nenhum exagero de brasileirismo falso. Com um bocado mais de apuro estilístico e de conhecimento técnico da linguagem, das linguagens populares do Brasil, você chegará a ótimo, talvez grande escritor. De uma língua que já é, indiscutivelmente, nacional. O problema, a meu ver, é tanto mais grave no caso de você que nele se intercala o da sua personalidade de ficcionista. Será você de fato um contista?  Este problema é dos mais graves e dos que você precisa resolver pra si próprio. É incontestável que você não tem nenhum conto verdadeiramente forte como assunto.  Cujo assunto imponha o conto por si mesmo, como Os Faroleiros, de Monteiro Lobato, como Pedro o Barqueiro, de Afonso Arinos. Não nego que sejam "contos" os contos de você, mas não parece, pelo livro, que você tenha forte imaginação criadora, grande imaginativa, excepcional faculdade de invenção. Seus contos são leves e delicadas transposições líricas da vida, como o admirável Verdes Anos, ou irônicas transposições realísticas da vida. Estou pensando em Machado de Assis. Seus contos estão longe de ser impressionantes. Longe de prenderem a gente por uma idealidade humana definitiva qualquer. Aí é que a arte, como beleza de criação técnica, interfere definitivamente para impor e justificar um criador. Se você não fizer coisas maravilhosamente bem feitas como técnica, como estilo, como arte de escrever, como bom gosto espiritual, você será apenas "mais" um. No gênero dos seus contos, você tem, a meu ver, descaídas lastimáveis, principalmente para o lado anedótico. Apesar das observações, excelentes, no realismo humourístico com que você esteriotipa gestos e expressões verbais, contos como As Rosas iam Murchar e o Padre Venâncio, são simples anedotas simplórias, de lastimável descontrole e nenhuma autocrítica. Mesmo o caso do telefone que, não posso negar, é muito engraçado e me fez rir bastante, é, em última análise grosseiro, tratado sem tacto, sem delicadeza, bacalhoada de Portugal com arrotos e todas as faltas de medida. Quando você tem, pra salvar seus contos na arte, de abandonar qualquer colorido mediterrâneo e se esquipar no senso de medida dos franceses, e na delicadeza espiritual de ingleses e nórdicos. Mas ainda eu me pergunto si sua tendência é realmente para o conto e não para o romance... Pela faculdade de observação naturalista, pela riqueza de tipos psicológicos, não sei, sinto em muitos dos nossos contistas, e em você, romancistas verdadeiros, que por preguiça, por falta de tomar fôlego, erram de espécie, se dispersam no conto, quando são romancistas legítimos. Não sei se você consegue perceber que no fundo seu livro me interessou muito.  Mais você que o livro, aliás... Conforme a idade, lhe garanto que você pode ir longe.  Mas não como um Jorge Amado, pouco trabalho, ignorância muita, criação de sobra.  Você tem que trabalhar dia por dia. Como um Machado de Assis. E não lhe seria possível botar um bocado mais de responsabilidade humana coletiva nas suas obras?...

380. MÁRIO DE ANDRADE. SERÁ O BENEDITO! A primeira vez que me encontrei com Benedito, foi no dia mesmo da minha chegada na Fazenda Larga, que tirava o nome das suas enormes pastagens. O negrinho era quase só pernas, nos seus treze anos de carreiras livres pelo campo, e enquanto eu conversava com os campeiros, ficara ali, de lado, imóvel, me olhando com admiração. Achando graça nele, de repente o encarei fixamente, voltando-me para o lado em que ele se guardava do excesso de minha presença. Isso, Benedito estremeceu, ainda quis me olhar, mas não pôde agüentar a comoção. Mistura de malícia e de entusiasmo no olhar, ainda levou a mão à boca, na esperança talvez de esconder as palavras que lhe escapavam sem querer: — O hôme da cidade, chi!... Deu uma risada quase histérica, estalada insopitavelmente dos seus sonhos insatisfeitos, desatou a correr pelo caminho, macaco-aranha, num mexe-mexe aflito de pernas, seis, oito pernas, nem sei quantas, até desaparecer por detrás das mangueiras grossas do pomar. Nos primeiros dias Benedito fugiu de mim. Só lá pelas horas da tarde, quando eu me deixava ficar na varanda da casa-grande, gozando essa tristeza sem motivo das nossas tardes paulistas, o negrinho trepava na cerca do mangueirão que defrontava o terraço, uns trinta passos além, e ficava, só pernas, me olhando sempre, decorando os meus gestos, às vezes sorrindo para mim. Uma feita, em que eu me esforçava por prender a rédea do meu cavalo numa das argolas do mangueirão com o laço tradicional, o negrinho saiu não sei de onde, me olhou nas minhas ignorâncias de praceano, e não se conteve:  - Mas será o Benedito! Não é assim, moço! Pegou na rédea e deu o laço com uma presteza serelepe. Depois me olhou irônico e superior. Pedi para ele me ensinar o laço, fabriquei um desajeitamento muito grande, e assim principiou uma camaradagem que durou meu mês de férias. Pouco aprendi com o Benedito, embora ele fosse muito sabido das coisas rurais. O que guardei mais dele foi essa curiosa exclamação, "Será o Benedito!", com que ele arrematava todas as suas surpresas diante do que eu lhe contava da cidade. Porque o negrinho não me deixava aprender com ele, ele é que aprendia comigo todas as coisas da cidade, a cidade que era a única obsessão da sua vida. Tamanho entusiasmo, tamanho ardor ele punha em devorar meus contos, que às vezes eu me surpreendia exagerando um bocado, para não dizer que mentindo. Então eu me envergonhava de mim, voltava às mais perfeitas realidades, e metia a boca na cidade, mostrava o quanto ela era ruim e devorava os homens. "Qual, Benedito, a cidade não presta, não. E depois tem a tuberculose que..."  - O que é isso?... - É uma doença, Benedito, uma doença horrível, que vai comendo o peito da gente por dentro, a gente não pode mais respirar e morre em três tempos. - Será o Benedito... E ele recuava um pouco, talvez imaginando que eu fosse a própria tuberculose que o ia matar. Mas logo se esquecia da tuberculose, só alguns minutos de mutismo e melancolia, e voltava a perguntar coisas sobre os arranha-céus, os "chauffeurs" (queria ser "chauffeur"...), os cantores de rádio (queria ser cantor de rádio...), e o presidente da República (não sei se queria ser presidente da República). Em troca disso, Benedito me mostrava os dentes do seu riso extasiado, uns dentes escandalosos, grandes e perfeitos, onde as violentas nuvens de setembro se refletiam, numa brancura sem par. Nas vésperas de minha partida, Benedito veio numa corrida e me pôs nas mãos um chumaço de papéis velhos. Eram cartões postais usados, recortes de jornais, tudo fotografias de São Paulo e do Rio, que ele colecionava. Pela sujeira e amassado em que estavam, era fácil perceber que aquelas imagens eram a única Bíblia, a exclusiva cartilha do negrinho. Então ele me pediu que o levasse comigo para a enorme cidade. Lembrei-lhe os pais, não se amolou; lembrei-lhe as brincadeiras livres da roça, não se amolou; lembrei-lhe a tuberculose, ficou muito sério. Ele que reparasse, era forte mas magrinho e a tuberculose se metia principalmente com os meninos magrinhos. Ele precisava ficar no campo, que assim a tuberculose não o mataria. Benedito pensou, pensou. Murmurou muito baixinho: - Morrer não quero, não sinhô... Eu fico. E seus olhos enevoados numa profunda melancolia se estenderam pelo plano aberto dos pastos, foram dizer um adeus à cidade invisível, lá longe, com seus "chauffeurs", seus cantores de rádio, e o presidente da República. Desistiu da cidade e eu parti. Uns quinze dias depois, na obrigatória carta de resposta à minha obrigatória carta de agradecimentos, o dono da fazenda me contava que Benedito tinha morrido de um coice de burro bravo que o pegara pela nuca. Não pude me conter: "Mas será o Benedito!...”.  E é o remorso comovido que me faz celebrá-lo aqui.

381. MÁRIO DE ANDRADE. O PERU DE NATAL. O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de conseqüências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres. Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto. Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a idéia de fazer uma das minhas chamadas "loucuras". Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de "louco". "É doido, coitado!" falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada. Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas "loucuras": — Bom, no Natal, quero comer peru. Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto. — Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania... Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo... — Meu filho, não fale assim... — Pois falo, pronto! E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa. Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus "gostos", já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja. Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a... culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral: — É louco mesmo!... Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado:assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão. — Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso! Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só-pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus... Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas. — Eu que sirvo! "É louco, mesmo" pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da "casca", cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru: — Se lembre de seus manos, Juca! Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime. — Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não! Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos... Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado. Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido. Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora. — Só falta seu pai... Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste: — É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família. E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que "vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai", um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso. Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever felicidade gustativa, mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber. Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade! A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor... Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de "bem-casados". Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação. Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!...

382. MÁRIO DE ANDRADE. VESTIDA DE PRETO. Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade. Minha impressão é que tenho amado sempre. Depois do amor grande por mim que brotou aos três anos e durou até os cinco mais ou menos, logo o meu amor se dirigiu para uma espécie de prima longínqua que freqüentava a nossa casa. Como se vê, jamais sofri do complexo de Édipo, graças a Deus. Toda a minha vida, mamãe e eu fomos muito bons amigos, sem nada de amores perigosos. Maria foi o meu primeiro amor. Não havia nada entre nós, está claro, ela como eu nos seus cinco anos apenas, mas não sei que divina melancolia nos tomava, se acaso nos achávamos juntos e sozinhos. A voz baixava de tom, e principalmente as palavras é que se tornaram mais raras, muito simples. Uma ternura imensa, firme e reconhecida, não exigindo nenhum gesto. Aquilo aliás durava pouco, porque logo a criançada chegava. Mas tínhamos então uma raiva impensada dos manos e dos primos, sempre exteriorizada em palavras ou modos de irritação. Amor apenas sensível naquele instinto de estarmos sós. E só mais tarde, já pelos nove ou dez anos, é que lhe dei nosso único beijo, foi maravilhoso. Se a criançada estava toda junta naquela casa sem jardim da Tia Velha, era fatal brincarmos de família, porque assim Tia Velha evitava correrias e estragos. Brinquedo aliás que nos interessava muito, apesar da idade já avançada para ele. Mas é que na casa de Tia Velha tinha muitos quartos, de forma que casávamos rápido, só de boca, sem nenhum daqueles cerimoniais de mentira que dantes nos interessavam tanto, e cada par fugia logo, indo viver no seu quarto. Os melhores interesses infantis do brinquedo, fazer comidinha, amamentar bonecas, pagar visitas, isso nós deixávamos com generosidade apressada para os menores. Íamos para os nossos quartos e ficávamos vivendo lá. O que os outros faziam, não sei. Eu, isto é, eu com Maria, não fazíamos nada. Eu adorava principalmente era ficar assim sozinho com ela, sabendo várias safadezas já mas sem tentar nenhuma. Havia, não havia não, mas sempre como que havia um perigo iminente que ajuntava o seu crime à intimidade daquela solidão. Era suavíssimo e assustador. Maria fez uns gestos, disse algumas palavras. Era o aniversário de alguém, não lembro mais, o quarto em que estávamos fora convertido em dispensa, cômodas e armários cheios de pratos de doces para o chá que vinha logo. Mas quem se lembrasse de tocar naqueles doces, no geral secos, fáceis de disfarçar qualquer roubo! estávamos longe disso. O que nos deliciava era mesmo a grave solidão. Nisto os olhos de Maria caíram sobre o travesseiro sem fronha que estava sobre uma cesta de roupa suja a um canto. E a minha esposa teve uma invenção que eu também estava longe de não ter. Desde a entrada no quarto eu concentrara todos os meus instintos na existência daquele travesseiro, o travesseiro cresceu como um danado dentro de mim e virou crime. Crime não, "pecado" que é como se dizia naqueles tempos cristãos... E por causa disso eu conseguira não pensar até ali, no travesseiro. — Já é tarde, vamos dormir — Maria falou. Fiquei estarrecido, olhando com uns fabulosos olhos de imploração para o travesseiro quentinho, mas quem disse travesseiro ter piedade de mim. Maria, essa estava simples demais para me olhar e surpreender os efeitos do convite: olhou em torno e afinal, vasculhando na cesta de roupa suja, tirou de lá uma toalha de banho muito quentinha que estendeu sobre o assoalho. Pôs o travesseiro no lugar da cabeceira, cerrou as venezianas da janela sobre a tarde, e depois deitou, arranjando o vestido pra não amassar. Mas eu é que nunca havia de pôr a cabeça naquele restico de travesseiro que ela deixou pra mim, me dando as costas. Restico sim, apesar do travesseiro ser grande. Mas imaginem numa cabeleira explodindo, os famosos cabelos assustados de Maria, citação obrigatória e orgulho de família. Tia Velha, muito ciumenta por causa duma neta preferida que ela imaginava deusa, era a única a pôr defeito nos cabelos de Maria. — Você não vem dormir também? — ela perguntou com fragor, interrompendo o meu silêncio trágico. — Já vou — que eu disse — estou conferindo a conta do armazém. Fui me aproximando incomparavelmente sem vontade, sentei no chão tomando cuidado em sequer tocar no vestido, puxa! também o vestido dela estava completamente assustado, que dificuldade! Pus a cara no travesseiro sem a menor intenção de. Mas os cabelos de Maria, assim era pior, tocavam de leve no meu nariz, eu podia espirrar, marido não espirra. Senti, pressenti que espirrar seria muito ridículo, havia de ser um espirrão enorme, os outros escutavam lá da sala-de-visita longínqua, e daí é que o nosso segredo se desvendava todinho. Fui afundando o rosto naquela cabeleira e veio a noite, senão os cabelos (mas juro que eram cabelos macios) me machucavam os olhos. Depois que não vi nada, ficou fácil continuar enterrando a cara, a cara toda, a alma, a vida, naqueles cabelos, que maravilha! até que o meu nariz tocou num pescocinho roliço. Então fui empurrando os meus lábios, tinha uns bonitos lábios grossos, nem eram lábios, era beiço, minha boca foi ficando encanudada até que encontrou o pescocinho roliço. Será que ela dorme de verdade?... Me ajeitei muito sem-cerimônia, mulherzinha! e então beijei. Quem falou que este mundo é ruim! só recordar... Beijei Maria, rapazes! eu nem sabia beijar, está claro, só beijava mamães, boca fazendo bulha, contato sem nenhum calor sensual. Maria, só um leve entregar-se, uma levíssima inclinação pra trás me fez sentir que Maria estava comigo em nosso amor. Nada mais houve. Não, nada mais houve. Durasse aquilo uma noite grande, nada mais haveria porque é engraçado como a perfeição fixa a gente. O beijo me deixara completamente puro, sem minhas curiosidades nem desejos de mais nada, adeus pecado e adeus escuridão! Se fizera em meu cérebro uma enorme luz branca, meu ombro bem que doía no chão, mas a luz era violentamente branca, proibindo pensar, imaginar, agir. Beijando. Tia Velha, nunca eu gostei de Tia Velha, abriu a porta com um espanto barulhento. Percebi muito bem, pelos olhos dela, que o que estávamos fazendo era completamente feio. — Levantem!... Vou contar pra sua mãe, Juca! Mas eu, levantando com a lealdade mais cínica deste mundo! — Tia Velha me dá um doce? Tia Velha – eu sempre detestei Tia Velha, o tipo da bondade Berlitz, injusta, sem método — pois Tia Velha teve a malvadeza de escorrer por mim todo um olhar que só alguns anos mais tarde pude compreender inteiramente. Naquele instante, eu estava só pensando em disfarçar, fingindo uma inocência que poucos segundos antes era real. — Vamos! saiam do quarto! Fomos saindo muito mudos, numa bruta vergonha, acompanhados de Tia Velha e os pratos que ela viera buscar para a mesa de chá. O estranhíssimo é que principiou, nesse acordar à força provocado por Tia Velha, uma indiferença inexplicável de Maria por mim. Mais que indiferença, frieza viva, quase antipatia. Nesse mesmo chá inda achou jeito de me maltratar diante de todos, fiquei zonzo. Dez, treze, quatorze anos... Quinze anos. Foi então o insulto que julguei definitivo. Eu estava fazendo um ginásio sem gosto, muito arrastado, cheio de revoltas íntimas, detestava estudar. Só no desenho e nas composições de português tirava as melhores notas. Vivia nisso: dez nestas matérias, um, zero em todas as outras. E todos os anos era aquela já esperada fatalidade: uma, duas bombas (principalmente em matemáticas) que eu tomava apenas o cuidado de apagar nos exames de segunda época. Gostar, eu continuava gostando muito de Maria, cada vez mais, conscientemente agora. Mas tinha uma quase certeza que ela não podia gostar de mim, quem gostava de mim!... Minha mãe... Sim, mamãe gostava de mim, mas naquele tempo eu chegava a imaginar que era só por obrigação. Papai, esse foi sempre insuportável, incapaz de uma carícia. Como incapaz de uma repreensão também. Nem mesmo comigo, a tara da família, ele jamais ralhou. Mas isto é caso pra outro dia. O certo é que, decidido em minha desesperada revolta contra o mundo que me rodeava, sentindo um orgulho de mim que jamais buscava esclarecer, tão absurdo o pressentia, o certo é que eu já principiava me aceitando por um caso perdido, que não adiantava melhorar. Esse ano até fora uma bomba só. Eu entrava da aula do professor particular, quando enxerguei a saparia na varanda e Maria entre os demais. Passei bastante encabulado, todos em férias, e os livros que eu trazia na mão me denunciando, lembrando a bomba, me achincalhando em minha imperfeição de caso perdido. Esbocei um gesto falsamente alegre de bom-dia, e fui no escritório pegado, esconder os livros na escrivaninha de meu pai. Ia já voltar para o meio de todos, mas Matilde, a peste, a implicante, a deusa estúpida que Tia Velha perdia com suas preferências: — Passou seu namorado, Maria. — Não caso com bombeado — ela respondeu imediato, numa voz tão feia, mas tão feia, que parei estarrecido. Era a decisão final, não tinha dúvida nenhuma. Maria não gostava mais de mim. Bobo de assim parado, sem fazer um gesto, mal podendo respirar. Aliás um caso recente vinha se ajuntar ao insulto pra decidir de minha sorte. Nós seríamos até pobretões, comparando com a família de Maria, gente que até viajava na Europa. Pois pouco antes, os pais tinham feito um papel bem indecente, se opondo ao casamento duma filha com um rapaz diz-que pobre mas ótimo. Houvera um rompimento de amizade, mal-estar na parentagem toda, o caso virara escândalo mastigado e remastigado nos comentários de hora de jantar. Tudo por causa do dinheiro. Se eu insistisse em gostar de Maria, casar não casava mesmo, que a família dela não havia de me querer. Me passou pela cabeça comprar um bilhete de loteria. "Não caso com bombeado"... Fui abraçando os livros de mansinho, acariciei-os junto ao rosto, pousei a minha boca numa capa, suja de pó suado, retirei a boca sem desgosto. Naquele instante eu não sabia, hoje sei: era o segundo beijo que eu dava em Maria, último beijo, beijo de despedida, que o cheiro desagradável do papelão confirmou. Estava tudo acabado entre nós dois. Não tive mais coragem pra voltar à varanda e conversar com... os outros. Estava com uma raiva desprezadora de todos, principalmente de Matilde. Não, me parecia que já não tinha raiva de ninguém, não valia a pena, nem de Matilde, o insulto partira dela, fora por causa dela, mas eu não tinha raiva dela não, só tristeza, só vazio, não sei... creio que uma vontade de ajoelhar. Ajoelhar sem mais nada, ajoelhar ali junto da escrivaninha e ficar assim, ajoelhar. Afinal das contas eu era um perdido mesmo, Maria tinha razão, tinha razão, tinha razão, que tristeza! Foi o fim? Agora é que vem o mais esquisito de tudo, ajuntando anos pulados. Acho que até não consigo contar bem claro tudo o que sucedeu. Vamos por ordem: Pus tal firmeza em não amar Maria mais, que nem meus pensamentos me traíram. De resto a mocidade raiava e eu tinha tudo a aprender. Foi espantoso o que se passou em mim. Sem abandonar o meu jeito de "perdido", o cultivando mesmo, ginásio acabado, eu principiara gostando de estudar. Me batera, súbito, aquela vontade irritada de saber, me tornara estudiosíssimo. Era mesmo uma impaciência raivosa, que me fazia devorar bibliotecas, sem nenhuma orientação. Mas brilhava, fazia conferências empoladas em sociedadinhas de rapazes, tinha idéias que assustavam todo o mundo. E todos principiavam maldando que eu era muito inteligente mas perigoso. Maria, por seu lado, parecia uma doida. Namorava com Deus e todo o mundo, aos vinte anos fica noiva de um rapaz bastante rico, noivado que durou três meses e se desfez de repente, pra dias depois ela ficar noiva de outro, um diplomata riquíssimo, casar em duas semanas com alegria desmedida, rindo muito no altar e partir em busca duma embaixada européia com o secretário chique seu marido. Às vezes meio tonto com estes acontecimentos fortes, acompanhados meio de longe, eu me recordava do passado, mas era só pra sorrir da nossa infantilidade e devorar numa tarde um livro incompreensível de filosofia. De mais a mais, havia Rose pra de-noite, e uma linda namoradinha oficial, a Violeta. Meus amigos me chamavam de "jardineiro", e eu punha na coincidência daqueles duas flores uma força de destinação fatalizada. Tamanha mesmo que topando numa livraria com The Gardener de Tagore, comprei o livro e comecei estudando o inglês com loucura. Mário de Andrade conta num dos seus livros que estudou o alemão por causa dum emboaba tordilha... eu também: meu inglês nasceu duma Violeta e duma Rose. Não, nasceu de Maria. Foi quando uns cinco anos depois, Maria estava pra voltar pela primeira vez ao Brasil, a mãe dela, queixosa de tamanha ausência, conversando com mamãe na minha frente, arrancou naquele seu jeito de gorda desabrida: — Pois é, Maria gostou tanto de você, você não quis!... e agora ela vive longe de nós. Pela terceira vez fiquei estarrecido neste conto. Percebi tudo num tiro de canhão. Percebi ela doidejando, noivando com um, casando com outro, se atordoando com dinheiro e brilho. Percebi que eu fora uma besta, sim agora que principiava sendo alguém, estudando por mim fora dos ginásios, vibrando em versos que muita gente já considerava. E percebi horrorizado, que Rose! nem Violeta, nem nada! era Maria que eu amava como louco! Maria é que amara sempre, como louco: ôh como eu vinha sofrendo a vida inteira, desgraçadíssimo, aprendendo a vencer só de raiva, me impondo ao mundo por despique, me superiorizando em mim só por vingança de desesperado. Como é que eu pudera me imaginar feliz, pior: ser feliz, sofrendo daquele jeito! Eu? eu não! era Maria, era exclusivamente Maria toda aquela superioridade que estava aparecendo em mim... E tudo aquilo era uma desgraça muito cachorra mesma. Pois não andavam falando muito de Maria? Contavam que pintava o sete, ficara célebre com as extravagâncias e aventuras. Estivera pouco antes às portas do divórcio, com um caso escandaloso por demais, com um pintor de nomeada que só pintava efeitos de luz. Maria falada, Maria bêbeda, Maria passada de mão em mão, Maria pintada nua... Se dera como que uma transposição de destinos... E tive um pensamento que ao menos me salvou no instante: se o que tinha de útil agora em mim era Maria, se ela estava se transformando no Juca imperfeitíssimo que eu fora, se eu era apenas uma projeção dela, como ela agora apenas uma projeção de mim, se nos trocáramos por um estúpido engano de amor: mas ao menos que eu ficasse bem ruim, mas bem ruim mesmo outra vez pra me igualar a ela de novo. Foi a razão da briga com Violeta, impiedosa, e a farra dessa noite – bebedeira tamanha que acabei ficando desacordado, numa série de vertigens, com médico, escândalo, e choro largo de mamãe com minha irmã. Bom, tinha que visitar Maria, está claro, éramos "gente grande" agora. Quando soube que ela devia ir a um banquete, pensei comigo: "ótimo, vou hoje logo depois de jantar, não encontro ela e deixo o cartão". Mas fui cedo demais. Cheguei na casa dos pais dela, seriam nove horas, todos aqueles requififes de gente ricaça, criado que leva cartão numa salva de prata etc. Os da casa estavam ainda jantando. Me introduziram na saletinha da esquerda, uma espécie de luís-quinze muito sem-vergonha, dourado por inteiro, dando pro hol central. Que fizesse o favor de esperar, já vinham. Contemplando a gravura cor-de-rosa, senti de supetão que tinha mais alguém na saleta, virei. Maria estava na porta, olhando pra mim, se rindo, toda vestida de preto. Olhem: eu sei que a gente exagera em amor, não insisto. Mas se eu já tive a sensação da vontade de Deus, foi ver Maria assim, toda de preto vestida, fantasticamente mulher. Meu corpo soluçou todinho e tornei a ficar estarrecido. — Ao menos diga boa-noite, Juca... "Boa-noite, Maria, eu vou-me embora"... meu desejo era fugir, era ficar e ela ficar mas, sim, sem que nos tocássemos sequer. Eu sei, eu juro que sei que ela estava se entregando a mim, me prometendo tudo, me cedendo tudo quanto eu queria, naquele se deixar olhar, sorrindo leve, mãos unidas caindo na frente do corpo, toda vestida de preto. Um segundo, me passou na visão devorá-la numa hora estilhaçada de quarto de hotel, foi horrível. Porém, não havia dúvida: Maria despertava em mim os instintos da perfeição. Balbuciei afinal um boa-noite muito indiferente, e as vozes amontoadas vinham do hol, dos outros que chegavam. Foi este o primeiro dos quatro amores eternos que fazem de minha vida uma grave condensação interior. Sou falsamente um solitário. Quatro amores me acompanham, cuidam de mim, vêm conversar comigo. Nunca mais vi Maria, que ficou pelas Europas, divorciada afinal, hoje dizem que vivendo com um austríaco interessado em feiras internacionais. Um aventureiro qualquer. Mas dentro de mim, Maria... bom: acho que vou falar banalidade.

383. MÁRIO PALMÉRIO. A PESCA DO SURUBIM. Hora e tanto já, e nada de peixe. Mas o gostoso era ficar assim na canoa, pensando na vida, imaginando coisas. Passada aquela eleição, ia sossegar. A política matava, acabava com a pessoa. Depois que se metera nela, nunca mais pudera ter uma semana de descanso. Escravo dos outros, do partido, do eleitorado. E os adversários não dormiam, os concorrentes vigiavam. Todos os dias, uma notícia má, nomeações que não saíam, chefes do interior que ameaçavam romper por causa de pedidos impossíveis... E ter de mentir, de prometer... Doutor, doutor... agora é a peixa... é a peixa, sim... engasgava o Gerôncio. Ferra, doutor, ferra! Mas era Paulo quem estava no cabo da vara; sabia que precisava esperar, sentir primeiro aquele tranco surdo trazido das profundidades pela linha de aço e pelas fibras do bambu. Calma... Agora! O pescador abaixou a vara um pouco mais, mais um pouco ainda, para bambear o aço e voltou com ela, num golpe duro, seco, certo. Ladrão! Paulo gritou quando sentiu a vara erguer-se frouxa, sozinha. Lhe falei, doutor... O senhor dormiu no ponto... Fora peixe grande, mesmo. Do muçum, nem notícia: o anzol sem um fiapo de isca... Ferrou de mau jeito, Gerôncio. Mas antes escapar no começo que na hora de embarcar o bicho na canoa. Já-já o safado está de volta. Você trouxe alicate? A idéia do alicate era desculpa. Paulo sabia que Gerôncio não se dava a esses luxos de carregar a porção de ferramentas que pescador de cidade costuma trazer nas capangas. Com a volta do anzol mais entortada ou exatamente como se achava, não seria por isso que o peixe ia escapar da fisgada. Falta de treino, isso sim. Errar logo um peixe de couro! Felizmente, o Rufino não estava perto. Se estivesse... Paulo ajeitou outro torete de muçum no anzolão. Perfeita, aquela enguia preta e encontradiça em qualquer brejo ou resfriado dos rios do Sertão dos Confins. O Lobo, outro fanático pela pesca dos grandes peixes noturnos, tentara aclimá-la em Amburana, inventando um brejo artificial no quintal da casa dele, planejando até uma criação para vender as iscas vivas à companheirada. Mas o muçum só vivia mesmo era pelas bandas do Urucunã, nativo de lá, e tal criação dera em nada. Uma pena, pois, como o Lobo dizia, Deus quando inventou o mundo previu até a pesca do surubim. “Que outra serventia?”, perguntava ele. “Prestem atenção na cobrinha: carne dura, sangrenta, o tubo digestivo num canudo só, de calibre certo para se ajustar aos anzóis fundo-de-agulha e revestido, ainda por cima, desse músculo contrátil, acomodatício, agarrando-se ao aço como guarnição de borracha..." Outro que gostava dum palavrório, o Lobo. E as discussões dele com Rufino? Os peixes em latim, os plecostomus, os bimaculatus... Foi pena você não conhecer o Lobo, Gerôncio: companheirão estava ali! Paulo disse, depois que atirou novamente a isca no centro do rebojo. O senhor fica conversando, Dr. Paulo, e daqui a pouco o peixe passa outra vez a perna no senhor... provocou o maldoso do Gerôncio. Mas o pescador estava prevenido. Sustentava, agora, a vara com ambas as mãos, sem deixar que encostasse na borda da canoa, para que as mínimas vibrações do bambu lhe chegassem imediatas e perfeitas. Ferido na boca pela ferrada malsucedida, o peixe ainda demoraria a voltar e a sucumbir ante a presença do outro muçum carnudo e tentador... Mas havia outros: o rebojo da peroba-rosa nunca deixava ninguém de mãos abanando... Tontura gostosa dava a pinga forte do Gerôncio. E o silêncio, o balançar maneiro do rebojo, o fresco da chuvinha manhosa, a escuridão do rio... Impossível fixar-se numa idéia só, ou concentrar-se apenas na ponta do caniço: os pensamentos libertavam-se naquelas horas de espera, as preocupações sumiam, vinha a suave sensação de leveza e bem-estar. Daí, o irresistível daquelas fugas para as beiras de rio, o vício em que elas se tornavam. Boa vida, a de antigamente! Mas metera-se de uma vez na política, e agora era tocar para diante, que jeito já não havia de recuar. Abandonar, por exemplo, o João Soares... E os compromissos com o Bernardino, esse quase convencido, afinal, da inutilidade da antiga e terrível oposição aos Rochas, já aceitando os argumentos de D. Candinha, já se afastando da briga, dedicando-se mais à clínica e à família... Impossível... Fora ele, Paulo, que aparecera em Santa Rita para açular o pobre, metê-lo em brios... Razão tinha, e de sobra, a mulher do Bernardino, em mostrar aquela má vontade, aquela quase hostilidade... E os outros? O pessoal de Amburana, de Pedra Branca, os companheiros dos vinte e tantos municípios onde fora fundar partido e reforçar a luta contra a situação? Recuar como? Fugir como? Agora, doutor! Ixe, que monstra. Não dê a ponta, não, que a linha arrebenta! berrou de súbito o Gerôncio. Desta vez, a ferrada fora certeira. Ao golpear a vara, Paulo sentiu o soco da fisgada, firme tal e qual machadada de machado novo em tora macia de cedro. E um despropósito de peixe, que a vara se arqueou em curva alta, fechada, atingindo até os gomos atarrancados do cabo. Surubim! E dos manatas, olhe a vara! continuava o escandaloso do Gerôncio. Não dê a ponta, não, doutor! E dos pintados! o deputado gaguejou. Está puxando de esguelha, o ladrão... Duas arrobas, no mínimo. Virgem, é um cavalo de peixe! Sempre com razão, o Aleixo Telegrafista! Ferrada misteriosa. Sim, quem puxava o anzol com aquela força não podia ser bicho deste mundo. Era o caboclo-d’água. O chupão das profundas do rio levara quase metade da vara para dentro do rebojo. Mantê-la em pé, embodocada, as mãos destreinadas de Paulo já quase não o conseguiam e, se o peixe lograsse diminuir de mais um tico o ângulo que o bambu ainda mantinha com o nível do rio, aí então é que nada evitaria o desastre: linha, vara, pescador bastava que este caísse na bobagem de bancar o teimoso), tudo seria engolido de uma vezada pelo horrendo sumidouro... Nos seus bons tempos, Paulo não admitiria aquilo mas teve de aceitar, agora, a demão do Gerôncio. O preto passara-lhe os dois braços rijos pela arca do peito, cruzando as mãos num arrocho definitivo, ajudando a fazer força. Pés calçados no reforço transversal que todo canoeiro prático já deixa pronto, inteiriço, na hora de ocar a tora de pau, o negro bufava: “güente o galho do seu lado, patrão, que do meu lado eu güento”! O bambu estralava que nem taboca no fogo. O cabo de aço três fios doze trançados, decerto presente do Pe. Sommer ao Gerôncio parecia laço em cabeça de boi xucro. Zanzava, doido, cortando o rebojo de fora a fora, enfiando-se por baixo da canoa, procurando a água-braba, fugindo, voltando, regirando agora, desatinado... Recolha a sua linha, Gerôncio! Me largue! Deixe o bicho sozinho por minha conta. Recolha a linha, senão o peixe se embaraça nela! Mas o Gerôncio não largava. Conhecia o tamanho daqueles surubins do rebojo e, pelo tinido da linha, adivinhava o animal que o Dr. Paulo havia ferrado. Tem perigo não, Dr. Paulo. Ei, linhinha macha! Fica pancrácio, fica, bigodeira de jauzão! Ixe, Nossa Senhora, bicho feroso este, cruz! Linha às costas, agora, o peixe esbarrava velhaço, no centro do rebojo, onde a ventosa da água chupava irresistível como boca de sucuri. A vara envergava, envergava, ringia, estalava. ’güenta, doutor! Incomode com a canoa não isso é brinquedo para ela! Se entrar mais água, eu solto a poita... Bicho desgraçado! O repuxo era tal que a canoa embicava, popa levantada, a proa apanhando água. Se o peixe se mantivesse empacado daquele jeito, que nem estorvo em boca de bueiro, o remédio era mesmo soltar a poita para aliviar a canoa e ficar rodando com ela por sobre o redemoinho, até que se cansasse e cuidasse de inventar outra moda. O tempo passava, Gerôncio sem se resolver alargar o companheiro, e a canoa pegando cada vez mais água. Pode me largar, Gerôncio. Solte a poita! Mas não foi preciso: o surubim desembestara, agora num volteio maluco de pião. Lá estava, porém, na argola de arame do cabresto, o girador. A linha de aço se destorcia quando chegava ali, afastando o perigo das crocas. Muito peixe escapa assim, em vara sem girador, a linha arrebentada no melhor da hora... Tempão lutou o peixe antes de pranchear, entregue. A espaços apontava a cabeça à superfície todo feioso de pau preto para, em seguida, remergulhar num último desespero. A vara, porém, empinada, quase a prumo, obrigava-o mais e mais a acercar-se da canoa. Gerôncio deixara, afinal, Paulo gozar sozinho a luta com o surubim já dominado. Me apanhe a carabina, Gerôncio. Tome a vara, tome... O surubim boiou por derradeiro quando boiou bem no centro do rebojo, lá onde as espumas não chegavam. Paulo atirou. Bruto tiro de morteiro que quis ameaçar um ror de iguais respostas nos barrancos mas que mal deu em tímido pingue-pongue de ecos frouxos, porque molhados e apagados logo pela chuvinha que apertava.

384. MÁRIO PRATA. MÁQUINA DE BEIJAR. Não sei se sabem, mas a máquina de beijar existe e existe há muitos anos, fabricada principalmente para os tímidos, retraídos e solitários. As primeiras experiências com esta fenomenal máquina podem ser creditadas a William Cullen da University os Glasgow, que em 1748 através da evaporação do éter etílico em laboratório avançou na sua invenção. Jacob Perkins, um engenheiro americano que vivia em Londres, patenteou a primeira máquina em 1834, usando um compressor de líquido volátil. Nos Estados Unidos o primeiro sucesso nesta área foi desenvolvido em 1844 por Johyn Gorrie. Entre 1850 e 1859, na França - tinha que ser - Ferdinand Carré criou a primeira máquina de beijo por absorção e sucção, dando ao beijo maquinal o sabor de ácido sulfúrico, água e amônia. Fora o tradicional nitrato de prata, é claro. A máquina teve grande desenvolvimento durante a Guerra Civil americana. No Brasil houve uma tentativa de importação durante o governo do Juscelino, sem sucesso. Quer pelo preço, quer pela inutilidade da mesma para os brasileiros que sempre foram muito dados a tais ósculos. Mas agora, fontes fidedignas, ligadas ao Planalto Central, garantem que o presidente Itamar encomendou uma apenas para ele, para evitar públicos escândalos. Uns dizem que a máquina já chegou e se encontra com o dentista dele em Juiz de Fora.

385. MÁRIO PRATA. MONTEVIDÉU. Deu tudo certo. Exatamente como previa a tabela. Os uruguaios vão fazer a final contra o Brasil. Nós e os argentinos teríamos que nos enfrentar antes. Tudo que os uruguaios queriam é esta final no Estádio Centenário. Eles contra os campeões do mundo. Festa maior, impossível. Na já quase madrugada do dia em que o Brasil derrotou a Argentina lá em Rivera, depois do penalti do Edmundo, os carros tocaram buzinas aqui em Montevidéu. Eles fizeram uma festa. E por dois motivos. A Argentina estava fora e a possibilidade da final com os brasileiros bem mais próxima. Os uruguaios não gostam dos primos ricos do lado de lá do Rio da Prata. E adoram os brasileiros. Aqui na frente do hotel, o imenso Cine Plaza anuncia há vários dias a vinda do  corinthiano Toquinho no dia 8 de agosto. O diretor de teatro Aderbal Freire-Filho está sendo esperado segunda-feira para dirigir o grupo da Comédia Nacional. Uma peça grega. As rádios tocam música brasileira o dia todo. Os motoristas de taxi sabem até o time reserva do Brasil. A Globo e a Bandeirantes entram nas casas com parabólicas. E o mais importante. Por pura coincidência, depois de amanhã vai ao ar o último capítulo de Mujeres de Arena, da querida Ivani Ribeiro, cuja morte aqui repercutiu mais do que no Brasil. Gloria Pires e Raul Cortez dublados, conquistaram os corações cisplatinos. A novela está no ar há mais de um ano, toda terça e quinta e o Raul falando espanhol é de matar de rir. Os uruguaios amam o Brasil e os brasileiros. Afinal, isso aqui já foi um estado nosso. Vide Mauá, do grande Jorge Caldeira, o Cafu. Existe a centenária rivalidade, é claro, e quem vai estar dentro do campo não são mulheres de areia, mas homens de aço, na grama perfeita do estádio. Mas eu tenho a impressão que, se o Brasil ganhar, o Centenário não fará o mesmo silêncio do Maracanã de 50, quando Ghiggia e Obdúlio nos tiraram a Copa. É provável que até aplaudam o nosso time. E, se perdermos, espero que o Edmundo não dê porrada em ninguém e estrague a festa dos nossos hermanos, que nos receberam de braços abertos, como naquele gol do Túlio.

386. MÁRIO PRATA. RECEBO, de Lisboa, da minha boa amiga e cantora lírica Luiza Sawaya, um bilhete com um dicionário hilário, desta vez escrito pelos próprios portugueses. Diz Luiza: "Envio esta toalha do Movies Café (ali no novo Saldanha. Ficou excelente) para você saborear o nascente senso de humor português. Estão a melhoraire." Portanto o que segue é coisa de português mesmo. ''Facto: o inglês é a Iíngua mais usada no cinema. Outro facto: poucos portugueses sabem falar bem inglês. Mais um facto: o Movies interessa-se muito por línguas. Conseqüência: tomem lá suas lições de inglês. Can—Subs. Para se dirigir a uma pessoa. Can vem lá? Can't—Adj. Muito usado no verão. Estava um dia can't e abafado. Year—Subs. Acto ou ação de partir. Tive que year emborar. Beat—Verb. Expressão muito usada no norte. Beat ontem na festa. Eye—Subs. Expressão de indignação. Eye que assim não pode ser. Feel—Verb. Pequena corda. Feel dental. Ice—Subs. Expressão de desejo. Ice ela quisesse... Vase—Subs. Expressão de ordenação. Um de cada vase, por favor! So so—Subs. Personagem bíblica. So so e Dalila. Dark — Verb. Expressão popular. Mais vale dark receber. Dick—Subs. Expressão amorosa. Dick vale a pena viver sem ti! Read—Subs. Muito usada na pesca. Para mim, tudo o que vem à read, é peixe. Jack—Subs. Acto de acomodação. Jack estamos aqui, vamos comer. Floor—Subs. Expressão de rejeição. Ele não é floor que se cheire. Loose—Subs. Acto de desligar. Fecha a loose, que já é tarde. Light—Subs. Substância nutritiva. Olhe, eu queria um copo de light, se faz favor. Say—Verb. Dúvida filosófica. Eu só say que nada say. Machine—Verb. Acto de pensar. Machine só, fui aumentado! Mad—Verb. Máxima antiga. Um homem não se mad aos palmos. Suck—Subs. Muito popular no Brasil. Não enche o suck! Rave — Subs. Expressão de indignação. Irritou-se tanto que fiquei cheio de rave! Hype—Subs. Ingrediente de cozinha. Não te esqueças de juntar hype na sopa. Cool— Subs. Parte do corpo humano. Se não te calas, levas um pontapé no cool! Dig—Verb. Tomar uma atitude. Eu geralmente dig tudo o que tenho para dizer. Crash —Verb. Expressão de ameaça. Crash e aparece! Movies—Verb. Expressão de movimento. Pára! E não te movies! Steve—Verb. Eu steve para ir, mas não fui. Estava a chuveire."

387. MÁRIO PRATA. Morreu o Fortuna. Logo agora que eu ia telefonar para ele? Explico. Nos últimos quinze anos fui anotando os telefones de amigos em quatro cadernetas diferentes. Neste fim de semana, depois de muito adiar resolvi fazer uma só agenda, no computador. Pode ser um trabalho sistemático, mas é, também, ao mesmo tempo, triste. Várias pessoas já haviam morrido. Trinta e oito, para ser exato. A maioria, de AIDS. E foi na cadernetinha mais velha, na mais antiga, na mais degringolada que estava o nome do Fortuna. Passei para o computador e pensei: "preciso ligar para o Fortuna". Não deu tempo. Acordei ontem com o telefonema do Caruso. O Fortuna morreu do coração. Fazia tempo que eu não ligava para ele. O final do seu número era 1968. Que ano, Fortuna! Será que ele mudou de telefone?, pensava eu no computador. Não, não deve ter mudado. Se eu conheci uma pessoa que nunca mudou na vida, foi o Fortuna. Era politicamente imutável. Daquela velha e boa esquerda que não olha nem para o centro. Fortuna sempre esteve lá com seu traço pesado, sarcástico, demolidor. Pegava alguns meses de cadeia, mas saia cada vez com o traço e a cabeça melhores. Adorava rabiscar um militar. O Fortuna, você já deve ter lido por aí, foi um dos fundadores do Pasquim há vinte e cinco anos atrás. Mas só vim a conhecê-lo em 79 quando, junto com o Tarso de Castro, tentamos recriar a revista Careta. Não deu certo. Mas gostei - e passei a admirar - aquele nordestino de fino humor que era apaixonado pelo Brasil. Quando voltei de Portugal, há um ano e meio, o Fortuna conseguiu me achar num flat. Tinha publicado um livro, queria trocar pelo meu também recém-lançado. Trocamos telefonemas, chamei algumas vezes 1968 e tudo ficou na conversa. Nunca trocamos os nossos livros. E sábado, juro Fortuna, ao passar o seu telefone para o computador, senti que estava em falta com você: "preciso ligar para o Fortuna". Sei que a essa altura (do céu) você deve estar aí com o Tarso de Castro tomando umas e outras e fazendo Deus rir, desenhando anjos sem trombetas, santos pelados e fazendo alguma gozação com a Nossa Senhora, iconoclasta que era, com um sorrizinho de quem não quer nada. Vou deixar o seu telefone na minha agenda, Fortuna. O coração te levou. Mas parte dele ficou aqui, imortalizado na imprensa brasileira, desde 1968.

388. MÁRIO PRATA. Meu velho amigo e Comandante Fernando Moraes me liga a uma da manhã, sem ao menos perguntar se eu dormia ou namorava, dando uma sonora gargalhada para, em seguida, fazer uma sublime constatação: - Você notou que, no nosso tempo, os bons guerrilheiros eram todos Comandantes? Comandante Guevara, Comandante Fidel... E você viu o nome do lider zapatista no México? Subcomandante Marcos. E eu fui dormir com o Subcomandante na cabeça e a pensar no seu processo de subversão em Chiapas, sem nenhuma subvenção oficial. Não consegui mais subtrair isso da minha cabeça. Por que Subcomandante e não Comandante, já que foi ele  que se sub-autonominou? Deve estar lá no meio do mato com seus Subcabos, Subrrecos e outros novos substantivos, subitamente. Mas, se ele é Subcomandante, ele é subalterno de quem? Quem é o Comandante? Deus? Estava com isso no meu subconsciente, sem conseguir dormir, ainda com a gargalhada do Fernando na minha orelha: seria ele um subchefe? Mesmo em países mais subdesenvolvidos, o homem era sempre o Comandante. Soube que já tentaram subornar o homem que, aliás, chama-se Rafael Sebastián Guillén Vicente, que mais me parece nome de personagem de subliteratura. Mas ninguém vai conseguir substituí-lo. Ele quer submeter os mexicanos a um separatismo. Quer subdividir o México. Terá sustância e substância para tal? Como Chiapas é uma das regiões mais pobre do país, talvez ele esteja com planos bem suburbanos. Mulheres e crianças correm o risco de contrair malária ou serem picados por cobras e insetos que saem do subsolo, complicando a subsistência por lá. Será que o Subcomandante tem submarino, para submergir com a sua revolução popular? Seria melhor que o presidente Zedelli não o subestimasse na subida da serra de Chiapas, e fosse cuidar dos subterrâneos do poder. O Subcomandante já deixou subentendido que conta com 10 mil homens e qualquer outra informação seria subjetiva. Ou isso seria apenas uma jogada subliminar, para subtrair algum dividendo bélico? Informou ainda que não vai se submeter aos três mil homens do governo federal. O Subcomandante não é um homem submisso e nunca participou de nenhuma negociata política e nem de nenhuma sublegenda, como afirmou sub-repticiamente. E na ausência do Subcomandante, quem o substitui? Quem vai ter esta subida honra? PS - Que fique claro que, para escrever este subtexto, usei do subterfúgio  do Comandante Aurélio. 

389. MÁRIO PRATA. - O brasileiro é, antes de tudo, um infiel. Poderia ter dito Euclydes da Cunha, que conheceu na pele o problema. E nas costas. Mas nem todos, diriam os mais jovens. Correto. Mas eu estou a me referir à minha geração, dos meus pais e meus avós. Não é preciso deitar em nenhum divã de psicanalista para entender o que aconteceu com a minha turma. Para nós, no começo dos 60, amor e sexo eram duas coisas completamente distintas. As namoradas não "deixavam" nada. Não se "ficava", naquele tempo, imagine. A gente, depois de uns quinze dias pegava na mão. Beijo na boca, só uns seis meses depois. E ficava nisso. Sexo, jamais, impossível. Todo mundo tinha sua namorada (muitos casaram com elas). Depois do namoro íamos para a "zona". Lá não tinha amor, tinha sexo, com desclalcificadas prostitutas interioranas. Mas aqui na capital, acontecia o mesmo. Sexo com amor não existia. Portanto, para nós a divisão amor/sexo era absolutamente normal. Para nós, até então, uma coisa não tinha nada a ver com a outra. A primeira vez que fiz amor e sexo junto, foi um desastre. A namorada sentou-se na cama e me disse: - Não é nada disso. E começou a falar de coisas que eu nunca havia imaginado. Carinho, por exemplo. Nunca tinha feito carinho numa puta, é claro. Essa namorada de ensinou a fazer amor com sexo. Foi uma grande descoberta para mim. Sei até o dia: primeiro de maio de 68 (eu tinha 22 anos), entre uma barricada e outra lá na USP. Portanto, para a minha geração, no início, traía-se naturalmente, sem culpa. Hoje com um pouco de culpa, com um certo remorso. Se na vida dos meus pais e avós eram normal a infidelidade e as amantes fixas ou eventuais (as esposas sempre sabiam e fingiam que não era com elas), com a nova geração a história é outra. A maior invenção dos anos 90 foi o "ficar". Que inveja! Fica-se com uma hoje, com outra amanhã e ninguém está enganando ninguém, traindo ninguém. Culpa? Nem pensar. Sábia essa geração. Ainda não entendi por que não se libera esse negócio de "ficar" para nós também, mais velhos. Acabaria a infidelidade. "Você me traiu'? "Não, só fiquei". Ou seja, a novíssima geração continua infiel. Só que deram um jeito na jogada. Ficar não é pecado, não está nos mandamentos nem de Deus e nem da Igreja. Mas se eu "ficar", como fica a minha namorada? Mas, como já dizia Zilda Mayo, atriz de pornochanchada, numa célebre entrevista para a revista Homem, "amar não é só colocar lá dentro". Vou "ficando" por aqui.

390. MÁRIO PRATA. Nada me abalou tanto neste ano como o caso Vera Fischer. Parece que o final vai ser feliz. Ela merece. Um ano novo vem aí. Para ela, para o pequeno Gabriel e para todos nós, brasileiros. A primeira vez que vi a Vera, torci contra. E já era na televisão, no concurso de Miss Brasil de 1969. Torci contra porque quem representava o estado de São Paulo era a Maria Lúcia Alexandrino dos Santos (hoje Segall), minha ex-namorada, lá de Lins. Vera foi a Miss número 1 e a minha Luluzinha ficou com o segundo lugar. Depois a Vera se casou com o Perry Salles (na verdade Perilúcio José - ele não vai me perdoar o Perilúcio), que era - e é - meu amigo. Fiquei amigo da Vera. Conheci bem a danadinha. Toda introdução acima para dizer que a Vera era uma das pessoas mais meigas, simpática (gostosérrima, evidentemente) e educada que eu conheci lá pelos anos 70. Tomamos muito chope juntos nos botecos do Rio de Janeiro. Vera estava começando a carreira e era vista com uma puta pela má vontade pelos coleguinhas jornalistas. Começaram a inventar romances absurdos com políticos mais absurdos ainda. Ela segurava a barra e estudava. Estudava teatro. Queria ser atriz. Levava a coisa a sério. Uns dez anos se passaram e a Vera provou ser uma das melhores atrizes do Brasil. Talentosíssima, acima dos contornos loiros do seu escultural (até hoje) corpo catarinense. Quem não se lembra dela no gostoso Eu Te Amo, do Jabor? Tempos depois ela e Perry fizeram uma peça com o meu querido Aderbal Junior (que hoje insiste em ser chamado de Aderbal Freire-Filho). Mais contatos com a Vera. Ela continuava a mesma: um doce português em caldas loiras. De lá para cá, segundo palavras dela mesma, foi chegando à beira do abismo. Não me compete discutir os motivos. Mas já não era mais a mesma Vera. Estava sozinha, dando tesouradas na própria sombra, dizendo absurdos em entrevistas. Estava desorientada e abandonada à própria infelicidade. Felizmente veio lá da Bahia o meu bom Perilúcio para segurar a doiDIVAna. Não sei que drogas levaram a Vera para o tal do abismo. Mas sei que, da Argentina, ela ressurgirá mais linda e talentosa do que nunca para nos dar mais prazer. Que prazer! Muito prazer! Isso foi um hiato na sua vida, Vera. Pode ter certeza que tem muitos jornalistas, como eu, torcendo por você. Pra mim, você continua sendo a Miss Brasil, cada vez mais miss, cada vez mais talentosa, bonita e inteligente. E gostosa. Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima. Até logo, Miss Brasil. Qualquer dia desses a gente se encontra por aí, como se nada tivesse acontecido. Beijão.

391. MÁRIO PRATA. Pelo menos quando disse que "carro brasileiro parece carroça", o Collor acertou. Depois de viver dois anos na Europa, retornando e acostumado com as máquinas européias, resolvi comprar um carro francês aqui. Escolhi o mais barato, um Renault, aquele pequenininho que parece uma baratinha com olheiras, o Twingo. O carro é realmente maravilhoso. Econômico na cidade e na estrada, imenso por dentro, por mais incrível que pareça. Silencioso como um Rolls Royce. Um sucesso, o meu Twingo bordô. Mas logo descobri, estupefato, o seu único defeito: ele peida. O leitor me desculpe a palavra, gorda e sonora, mas só ela para expressar o que o meu Twingo começou a fazer logo no primeiro dia. Peidar. E fedido. Muito fedido. Não é sonoro o gás que ele solta, o que é muito pior. Ele peida em silêncio, traiçoeiramente. E como fede. Um dia ele cometeu tal disparate na garagem do meu prédio e o cheiro subiu pelos elevadores, comigo dentro. Como explicar que não tinha sido eu, para a gorda do 202? Fui até a revendedora, todo constrangido, como quem leva um filho ao psicólogo, explicar o desarranjo intestinal do meu pequeno francês. O funcionário me recebeu muito educadamente e eu nem sabia como colocar o problema para ele. Mas tinha que fazê-lo: - É o seguinte. O meu carro... sabe?, ele... ele... - Peida!, disse o mecânico. Pois é isso aí. Aí ele me explicou que era pela ignição eletrônica. O problema era no catalizador. Todos os carros estavam com aquele probleminha. - Probleminha? Mas eu não posso andar aí pela cidade com o carro a soltar pum toda vez que eu o desligo. - Ele ainda está novinho. Com o tempo passa, o senhor vai ver. Coisa de criança mal educada, eu pensei. A partir dai, eu tinha que explicar para todo mundo que entrava no meu carro, que o problema, que aquele cheiro, era dele e não meu. Tinha gente que não acreditava. As moças, principalmente. Minha filha, por exemplo, morria de vergonha e logo ia explicando para as amigas, antes mesmo de eu dar a partida e a situação constrangedora surgir. Ele era sistemático. Tinha as horas certas para soltar o mau cheiro. Era, principalmente, quando eu parava. Nos sinais, por exemplo. E, as pessoas passavam por trás, olhando para a arrebitada traseira dele já com o dedo no nariz. Vocês já perceberam como o brasileiro olha para o traseiro dos carros importados como se olhassem para a bunda de uma mulher? Quase que têm orgasmos. Pouco a pouco, eu fui me acostumando com os traques do meu Twingo. Foi ficando normal, aquilo. Natural. Quando ele deixava de peidar, eu sentia a falta do cheiro. Chegou um momento que eu quase pedia para ele fazer aquilo. Foram os meus filhos que me chamaram a atenção: pai, ele não peida mais? Não. Só muito raramente. E não é que agora ele parou de vez com as traquinagens? Agora eu não tenho mais desculpas. Se não foi ele, fui eu.

392. MÁRIO PRATA. MONTEVIDÉU. É assim que eu estou me sentindo. Tudo esparramado pelo apartamento depois de 20 dias no Uruguai. Pondo a viola no saco. Na hora do último pênalti, um uruguaio me abraçou, gritando o título conquistado. Disse para ele que era brasileiro, ele se afastou um pouco, me olhou nos olhos, me abraçou de novo e disse: somos todos irmãos. E me sapetou o beijo na testa. Assim são os uruguaios. Irmãos. Preguiça de arrumar as malas, pensando no Túlio, bom de mão e de barriga, mas com o pé torto, infelizmente. Vontade de ficar mais aqui com esses irmãos. A festa deles foi bonita, pá. Era impossível sair à rua na noite de domingo. Bandeiras, buzinas, fogos. Ganharam dos campeões do mundo, diziam. Ganharam do único tetra, o Zagalo, o grande penta. O que pouca gente no Brasil sabe é que a passagem de avião para cá é mais barata que para Belo Horizonte, por exemplo. São duas horas e pouco de vôo. A paz e a tranquilidade do país, tão pertinho daí, é contagiante. Como faz bem olhar as casas e os prédios sem grades na frente. São poucos os roubos. E não se mata para roubar. As pessoas aqui sentam-se nas pracinhas e namoram. Sabem que ninguém vai incomodar. Famílias passeam pelas ruas de noite. As pessoas são bem vestidas, não há miséria. São alegres, felizes. Cultos, informados. Num país com três milhões de habitantes, existem 33 jornais diários. E uma infinidade de revistas. O analfabetismo é de apenas 5 por cento. Tem um médico para cada 300 pessoas. E come-se bem, muito bem. E o escocês custa pouco mais de um real. E não é paraguaio. Odeiam os argentinos, como nós. Um dia vou pedir ao meu amigo brasilinista que faça um ensaio sobre esse ódio que os argentinos despertam no resto na América Latina. Uma certa arrogância, seria? Será que eles se sentem mais europeus que a gente? E qual é a vantagem de ser europeu? Os sérvios também são. Vontade de ficar, trabalhar aqui, passear pela rua, acabar de ler o livro do Cafu (Mauá) sentado num banquinho verde de madeira com a luz de um poste de ferro, daqueles antigos. Olho a desarrumação do meu quarto. Preguiça. Porque fui comprar tanta coisa? Vai caber, agora? E a garrafa de uísque pela metade? E aquele par de luvas, vou usar no Brasil? "No más", dizia a crupiê do Cassino de Carrasco. Não mais. Acabou-se o que era doce. É hora de colocar a viola no saco e fumar o último Nevada aceso com um fósforo Zebra. A zebra do Zagalo. Não vi os penaltis. Para mim bastaram aqueles contra a Itália, lá em Los Angeles. Fui para fora, beber uma cervejinha. Ouvia os gritos. Deles. Arrisquei ver o último, antes de ganhar aquele abraço. A festa foi bonita, pá. Fiquei contente com a vitória deles. Como eles ficariam com a nossa. Levo daqui um beijo estalado na testa, de um beijoqueiro anônimo e irmão. Parabéns Uruguai! Vocês merecem, humildes pescadores de almas latino-americanas.

393. MÁRIO PRATA. Naquele tempo, diria Jesus, não existiam os motéis. Naquele tempo que eu digo, é há uns 30 anos. Principalmente no interior. Mais precisamente em Lins. Pois foi que o fato se deu. Havia lá um médico muito conhecido na cidade (aliás, todo mundo era conhecido na cidade) e que está vivo até hoje. E, desde aquele tempo, era considerado o maior garanhão da cidade. Mas não poderia ir à zona de prostituição, com a reputação dele (de médico, quero dizer). Como é que se fazia, então? Pegava-se uma biscate (meninas que não eram da zona e ficavam zanzando pela cidade, davam por prazer, não cobravam), ia-se para a estrada de asfalto, pegava-se um atalhozinho de terra, uma invernada e pronto. Quebrava-se o galho assim, em tempos idos. Pois numa noite fria o nosso médico-herói assim fez. Disse para a dileta patroa (uma das dez mais elegantes da cidade) que ia ao poquerzinho do clube, como toda quarta-feira. Varreu a cidade com seu Simca Chambord amarelo-cheguei, pegou uma moça e foi para a estrada e foi para o mato tentar, pelo menos, uma trinca de ás. Parou o carro, sairam do carro. Nada de amorzinho. Tudo tinha que ser feito meio às pressas. Tiraram a roupa (fazia frio e ele estava, inclusive, de ceroulas), ele encostou a moça no carro e estavam a começar o serviço quando, lá na entrada da estradinha, entra outro carro, espalhando luz sobre a dupla de amantes clandestinos. Nosso médico se vestiu correndo, tiritando de frio (coito interrompido faz a gente tremer, já perceberam?), a moça idem, entraram no carro, ele fez um a manobra rápida para fugir dali. Nisso, o carro que ia entrando, ao perceber a manobra do Simca e, percebendo que naquele mato já tinha coelho, deu uma marcha a ré e foi embora, procurar outra biboca para bibocar. O doutor saiu novamente do carro, tiraram a roupa de novo. Não deve ter conseguido uma trinca de ás, mas deve ter feito um parzinho de sete. Terminado a consulta, vestiram-se novamente e voltaram para a cidade. O ginecologista ainda teve tempo de passar no clube e fazer algumas rodadas com os amigos e beber umas e outras. Mais outras do que uma, eu diria. Além de mulher, era chegado num Mansion House. Chegou em casa tarde, a mulher dormia, tomou um belo banho quente, colocou o pijama de lã e foi dormir. No dia seguinte, bem cedo, a mulher o acorda: - Onde é que o senhor foi ontem de noite? - No clube, criatura, como toda quarta-feira. - E como é que o senhor pode me explicar esta marca de pneus nas suas ceroulas? Ele não tinha explicação, é claro. Marca de pneu em ceroulas, não tem desculpa. Não há álibi nenhum. O que aconteceu é que na primeira vez que ele se vestiu, não colocou as ceroulas, fez a manobra com o carro e passou por cima delas. Deu desquite na invernada do café. PS - Sei que muitos médicos de Lins vão vestir a carapuça. Ou melhor, as ceroulas.

394. MÁRIO PRATA. Minha queridíssima amiga Maria Lydia Pires e Albuquerque, ilustre dama da noite e do dia paulistano, completou aniversário na semana passada (41, já?) e mandou um convite que é um convite à volta aos anos 50. Veja o questionário que ela preparou para seus convivas: Que veículos era: Jangada, Rabo de Peixe, Impala, Saia-e-blusa, Leite Glória, Belo Antônio, Constelation, Guliveri, Camarão? Dê duas diferenças entre o Gordini e o Dauphine. Numere por ordem de lançamento: Banlon, Orlon, Nylon, Tergal, Helanca, Ráfia. O que era Vicmaltema? Qual o primeiro filme em Cinemascope? Como era um Samba em Berlim? E um Hi-Fi? Numere por ordem de lançamento as modas: trapézio, diretório, saco, império, tubo. Quais os acusados de matar Aída Cury? E Dana de Tefé? E o crime do Sacopã? Quais foram o segundo e terceiro lugar nas eleições presidenciais de 55? O que significavam as siglas: GEIA, SUMOC, ALALC, IAPETEC, JUC, JOC, UPES? No ginásio, estes eram autores de seus livros em que matérias? Aroldo de Zevedo, Ary Quintela, Joaquim Silva, Matoso Câmara. Qual a marca do primeiro radinho de pilha e primeiro gravador aparecidos no Brasil? Quem ganhou de Marta Rocha o Miss Universo de 1954? Quem era a Lurdinha? Que cavalos ganharam duas vezes o Grande Prêmio Brasil nos anos 50? Bastava ser um rapaz direito para ter crédito onde? Quem foi Algodão? E Piedade Coutinho? E Meire Pavão? Onde era vendido o jaquetão Caraveli? Quem fazia a "Bola do Dia"? Quem era o Casal 20 do Ibrahim Sued? O que eram: Papa-fila, Bambolê de Otário, Vaca Leiteira, Guará? Quem era Nino Sevilha e em que hotel roubaram suas jóias no IV Centenário? O que queria dizer: Bidu, Boco-moco, Shazam, Candango? Onde ficavam: Clipper, Isnard, Serva Ribeiro, Ducal, Slopes? O que era uma camisa Volta ao Mundo? De quem eram esses cavalos: Silver, Molenga, Escoteiro, Herói, Trigger? O que faziam as pílulas de vida do doutor Ross? De que cor eram as cadeiras do Cine Paulista na Augusta com Oscar Freire? Número um, excesso; número dois, escassez. O que era? Quem foi o campeão do Centenário? O que perfumava o hálito enquanto limpava os dentes? Quais foram os antecedentes do Jeans e do Tênis? Qual o jingle de: Biscoitos Aymoré, Biscoitos São Luiz, Sabonete Palmolive. Desenhe o símbolo e cante o hino do IV Centenário. O que era uma filipeta? E um gasparino? Quem era o "Corvo do Lavradio"? Que Partidos eram estes: PSP, PRP, UDN, PDC, PTN, PST? O que aconteceu com Andréa Dória, o Presidente, o Vogue, o Comet IV? Quem ganhou a luta Helio Grace x Waldemar Santana? Quem era o "Gigante do Brás"? Quem era o "Gigante Amaral"? Qual o grau dos óculos que você usou para ler este texto? PS - Dedico essa volta aos 50, à memória do meu amigo de Lins, Fernando Iberê do Nascimento (o primeiro a ter lambreta na cidade) e meu companheiro de Economia na USP nos anos 60, covardemente assassinado por um pistoleiro na sexta-feira passada em São Paulo.

395. MÁRIO PRATA. O telefone Celular é uma novidade tão novidade que ainda não entrou para os nossos dicionários. Na última edição do Aurélio ainda se falava no telefone normal. O mestre Aurélio morreu conhecendo, no máximo, um telefone sem fio. Coisa de antigamente. Se você procurar no dicionário, vai encontra assim. Celular: que tem células; celulífero, celuloso. Não fala nada de telefone. Mas a gente pode ir deduzindo que o telefone Celular tem células. Mas isso tudo e todos tem e temos. Várias. Menos o ovo que só tem uma e não fala ao telefone. Porque esse aparelhinho se chama Celular? Eis a grande questão. Poderia se chamar telefone Atômico, ou telefone Molecular. Ou mesmo telefone Celulóide. Mas não. É telefone Celular e não se fala mais nisso. Se o Celular é celulífero, isso deve significar que quem o usa é um celulífero. Ou seja, um viciado em células. Já celuloso seria o sujeito que fica todo metido a besta com o seu Celular. Aquela coisa pegajosa, aquele cara que não larga o aparelho nem para ir fazer as suas necessidades. É o usuário celuloso. Mija com ele na mão esquerda. Diz mais o dicionário: relativo a cadeias penitenciárias. Sistema celular. Agora complicou mais ainda a minha cabeça. Cadeias penitenciárias? Talvez porque outro dia houve uma fuga em massa do Carandiru e eles usavam telefone Celular. Será que o Aurélio já previa isso? O fato é que a coisa pegou e quem não tem está, literalmente, por fora. Fora do ar. É de deixar qualquer um de boca caída e torta. Sim, porque cada vez eles estão menores. Me parece que quanto menor, mais status dá. E, quanto menor, mais longe a voz fica do bocal. O sujeito tem que se entortar todo para a pessoa do outro lado ouvir. Já perceberam? Outra coisa que eu não entendo é por que a secretária eletrônica do Celular se chama Caixa Postal. Que eu saiba, Postal é relativo a correios. E Caixa é caixa. Ou será que o recado fica dentro de uma caixinha, esperando o dono para abri-la? Claro que já inventaram a piada do português que recebe uma ligação da esposa, em pleno Motel e, assustado, pergunta: como é que você sabia que eu estava aqui no Motel? E quando o Celular do amante toca debaixo da cama ou dentro do guarda-roupa? Não há Caixa Postal que o salve. Outro dia li no jornal que um ladrão se escondeu dentro de um sofá e não é que o Celular dele tocou? Preso com a boca na botija. Ou seria no bocal? Agora, engraçado mesmo, é quando está havendo uma reunião de médicos. Todos têm celular, é lógico. E quando toca, ninguém sabe de quem é que está tilitando. Ficam todos os celulosos metendo a mão no bolso, apressados. O cliente não pode esperar. Certo está um amigo meu, arredio a tal novidade: tá louco, meu. A minha mulher vai ficar atrás de mim o dia todo. Só que ele não sabe que, como toda novidade eletrônica, o Celular tem um botãozinho de desligar. Nada melhor do que um Celular desligado. Principalmente quando o médico está fazendo uma operação, com as células do paciente todas expostas.

396. MÁRIO PRATA. Seu Natalino é funcionário público, tem uns cinquenta anos, ganha pouco (é claro) e há vinte anos vinha enfrentando o mais desagradável dos problemas masculinos: a impotência. E o desejo era cada vez maior. Mas não tinha jeito. Na hora H, não conseguia colocar os pingos nos is. Depois de três anos achando que era coisa passageira e constatando que não era, começou uma verdadeira peregrinação para resolver o seu problema, já que a mulher de há muito o deixara por outro, a ingrata. Tentou de tudo, desesperado: médicos de plantão em hospitais públicos, curandeiros, pai (e mãe) de santo, poções mágicas. Barro, águas não sei de onde. Espiritismo. Igreja Universal. Nada. E seu Natalino gostava de fazer sexo. Como gostava. Foi quando ele viu, pela televisão, que se podia fazer implante de silicone e a coisa ficava "uma beleza, tinindo". Mas onde arrumar todo aquele dinheiro? Seu Natalino percorreu hospitais e cidades e até pequenos empresários para o ajudar. Ele tinha vontade, mas não tinha a ferramenta. Era caro. Mas seu Natalino era perseverante, firme. E quem o conheceu garante que o penteado a Clark Gable lhe dava um ar de firme conquistador. Durante dezessete anos seu Natalino batalhou. Depois de muita procura, conseguiu um microempresário que financiaria o material. Não era nem silicone mais, a medicina tinha evoluido muito nesses 17 anos de infortúnio. Mas tinha apenas o material. Seu Natalino recebeu, pelo correio, a prótese em três tamanhos. Pequeno, médio e grande. Faltava o hospital, o médico. O sucesso parecia estar chegando perto. Pois não é que um hospital público da periferia se prontificou a fazer o implante? Mas tinha uma condição: seu Natlino teria que trazer um atestado assinado por um psiquiatra ou psicólogo do Estado, com firma reconhecida, etecétera e tal. Faltava pouco, portanto. Foi quando ele procurou um amigo meu, jovem psicólogo. Faltava apenas um papel e seu Natalino voltaria ao normal. Tiraria o atraso, como ele disse na primeira sessão. Depois da quinta sessão, o psicólogo deu o tal papel para ele. O problema estava mesmo na cabeça (sem trocadilhos, por favor). Foi feita a operação. Um sucesso. Passa um mês, seu Natalino vai fazer uma visita de cortesia ao meu amigo psicólogo e levou até uma garrafa de cachaça. Estava com uma justíssima calça jeans onde se podia notar, escandalosamente, a protuberância. Ele deve ter posto o tamanho grande, pensou meu amigo. - O senhor quer ver? - Não, não, não é necessário. - Faço questão, doutor. - Não, não, dá para perceber. - As mulheres adoram. Estou fazendo o maior sucesso, doutor. Tá uma luta, doutor. E lá se foi o seu Natalino de cabeça (literalmente) erguida. Mais uns três meses se passaram e seu Natalino volta a procurar o meu amigo. - Preciso fazer terapia com o senhor, doutor. - Mas o que foi, seu Natalino. Alguma rejeição? - Não doutor, a coisa tá firme como o diabo gosta. O problema é que eu perdi a vontade. Dá para o senhor me ajudar? O problema continuava na cabeça. Em tempo: acabei de falar com o meu amigo que disse que o seu Natalino teve um excelente natal.

397. MÁRIO PRATA. Sem ter muito o que fazer no carnaval comecei a pensar nos meus números, com os meus botões. A fazer um lista deles. E você, quantos números você é? Nunca pensou nisso? Pare para pensar ou então leia essa numérica crônica. Sim, assim que você nasce, lá na maternidade, começam a te chamar de "o bebê do 209". É o seu primeiro número na vida e seu pai vai jogar no bicho, certamente. Depois, no cartório, na hora do registro, já te dão um outro número, um pouco maior. Sem falar no número do cartório, no número do livro e no da página. Mas esses ainda contam, tem mais gente neles. Na escola, você se transforma em vários números, um por ano. Todo ano tem que decorar o número novo para a hora da chamada. Depois vem o certificado militar que você não pode jamais perder o número sob pena de não poder deixar o país. Mas, para servir a Pátria, de tão outro número, bem no seu peito. No vestibular te dão um número comprido de inscrição e se você entrar na carreira número tal, na faculdade vão te transformar em números novamente. Mas aí você já tirou a carteira de identidade que com outro número vai te acompanhar o resto da vida. Mesmo que você tire segundas ou terceiras vias. Vai tirar carteira de motorista e, lá em cima, indefectível, outro número para gente decorar. Enorme, como sempre. Depois vem a vez de tirar o CIC. Outro número, infindo e difícil de se decorar. E com direito a dígito, ainda por cima. Vai abrir a conta no banco e logo te dão três números. O da sua conta, o do seu cartão de crédito e a maldita senha para o caixa eletrônico. Já contaram quantos dígitos já foram até aí? Mas a coisa não pára por aí. Entra na Internet e você vira números nunca dantes imaginados. Além dos números da senha que você não pode dizer para ninguém, mudam o seu nome para "macprata@spdglnet.com.br". Jamais poderia imaginar usar uma arroba no meu nome. Sinto-me mais gordo ainda. Entra-se sócio no clube. Mais um. O pior é que esse número do clube, ao contrário dos vários outros, já foi de alguém. Vai fazer o seguro-saúde você vira um número obrigatório para médicos e hospitais. Sem falar no número da sua apólice de seguro do carro. Lá no INPS sou um número imenso. E no Sindicato? E pertenço a dois. A placa do carro não deixa de ser mais um número na sua vida, assim como o endereço com CEP (sabe o seu de cor?, sempre perguntam) e tudo. Mais um para o telefone e outro mais complicado para o celular. E tem que decorar a senha para tirar os recados da secretária eletrônica e outro para os da caixa postal do celular. Sem falar o telefone do fax, se for outro. E você tem que guardar muito bem o seu título de eleitor com mais um número. Além da zona e da secção. Se quiser fugir do país de tantos números, precisa de mais um: o do seu passaporte. Até no bingo Pamplona, gente, me deram um cartão de "cliente preferencial". Com um número, é claro. Mas não podemos nos queixar. Nunca marcaram um brasileiro com números na própria pele com fizeram, ainda neste século, com pais e avós de muitos amigos queridos.

398. MÁRIO PRATA. O senhor Mário Jorge Lobo Zagalo é inteligente, competente e honesto. Até aqui, tudo bem. O senhor Mário Jorge Lobo Zagalo, se fosse um cidadão inglês (bochechas vermelhas para tanto, já as tem), seria condecorado por Sua Majestade e se chamaria Sir Mario George Wolf Zacock. Um afônico Sir Wolf Zacock (ele deve saber que cock tem um outro significado em inglês). Único tetra-campeão do mundo, Sir Wolf Zacock tinha tudo para ir cuidar da vida dele e deixar nós (e o mundo) em paz. Mas ele tem um plano na vida: quer ser penta-campeão do mundo. Nós também. Mas podem vocês ter certeza que aqui no Uruguai ele já está sendo alcunhado por toda a imprensa internacional de o único "penta", no outro sentido. E isso, porque Zagallo (que agora colocou mais um "L" no sobrenome) só diz uma coisa em todas as entrevistas que dá, sejam elas coletivas ou exclusivas, sejam para jornais do Brasil, sejam (principalmente) para os 2.711 jornalistas credenciados estrangeiros: - Sou o único tetra-campeão do mundo. Não tenho que provar mais nada a ninguém. Fala isso diariamente. Acho grave essas afirmações. Se não tem que provar mais nada a ninguém, não deveria estar no comando da seleção. Porque a seleção sim, que que provar a cada hora, a cada dia, a cada competição, que é a melhor do mundo. Aqui, em Atlanta ou na França. Sir Wolf Zacock recebe um alto salário "para não provar nada"? De onde vem o dinheiro da CBF? Dos clubes. E o dinheiro dos clubes? Das rendas. E as rendas? Do nosso bolso. Portanto, Sir Wolf, quem está pagando somos nós. E o senhor está a nos desrespeitar. Term um centavinho aí no seu olerite que é meu. O senhor não precisa ir para Paris tentar ser penta. Já é, senhor,infelizmente, um super penta. Para mim e todos os correspondentes estrangeiros que estão aqui. Todos comentam, incrédulos e indignados, a sua arrogância e não entende como a CBF deixa no cargo alguém que não cansa de dizer que é o único tetragalo do mundo: em duas copas, como jogador, era o formiguinha de um ataque que tinha Garrincha, Didi, Vavá, Pelé (Amarildo, em 62) e ele. Em 70, como técnico, existe aquela eterna dúvida que não cabe aqui analisar. E em 94, o Brasil não foi campeão. Não ganhou nada. Foram os outros que perderam. Eu dizia que os colegas internacionais não entendem como a CBF deixa esse homem no cargo, já que ele "não tem que provar nada". Tentei explicar para eles o que significa a palavra "penta" no Brasil. Logo um deles entendeu: - Ah, si, "pelotudo". Zagalo és un "pelotudo", por supuesto! Deixa disso, Zagalo. Prove para você mesmo e para nós todos sua eterna competência. Seja penta, nunca "penta". Ou então mude o discurso, tetragalo, antes de se transformar num tetraplégico da bola e da razão. PS - Esta crônica foi escrita antes do jogo Brasil e Estados Unidos. Que a gente deve ter ganho, por supuesto. Recado ao Maranhão: A entrevista do Ghiggia foi mostrada em dois debates de televisão, aqui do Uruguai. No canal 4 e no 10. Não citaram o meu nome, mas sim o nome do jornal, com destaque, que é o que vale (arght!). O joelho (assim como o amor) está melhor.

399. MÁRIO PRATA. - Mas isso é um Da Silva!!! - O que? - Um Da Silva! - Da Silva, é? Me disse o simpático e informado moldureiro que veio me trazer uma genial reprodução feita pela pintora paulistana Fernanda Lyon, de um Chaim Soutine, aquele, amigo do Modigliani: O Porteiro. Eu fiquei extasiado com o trabalho da Fernanda. Não conseguia tirar os olhos do meu Lyon-Soutine. Mas o homem não tirava os olhos daquele outro quadro amarelo, onde tem um bicho esquisito desenhado que eu nunca detectei exatamente qual. O homem ficou olhando para o Da Silva, passou a mão, viu a data. - Autêntico! De 70, a melhor fase dele!!! - É mesmo, é? Confesso que não sabia quem era ou tinha sido o Da Silva. Mas o quadro dele, amarelo-cheguei, primitivista e autêntico estava ali. - Tem muita imitação por aí. Mas esse é dos bons! Eu tinha um valioso Da Silva em casa e não sabia. - Depois ele foi para o norte, parece que trocava quadros por garrafas de cachaça. Talvez nem esteja mais vivo. O quadro tem sua história. Há muitos anos, o escritor Reinaldo Moraes conheceu um milionário baiano em Salvador que se encantou com ele, pelo seu livro Tanto Faz. Deu o quadro para ele. O quadro veio de carro até São Paulo. Reinaldo achava o quadro horroroso. Deixou no quarto de empregada da mãe dele, na rua Lisboa. Anos depois eu fui morar naquele mesmo apê e o quadro estava lá, num canto, abandonado. Também não gostei dele. Ficou alguns anos em cima de um guarda-roupa. Fui morar em Portugal e o amarelão (como eu o chamava), ficou na casa do arquiteto Fábio Goldman, provavelmente debaixo de alguma cama. Agora ele está lá na minha sala, imponente. "Um dos expoentes do primitivismo brasileiro", como sentenciou o moldureiro. Só que o amarelo não combina com as minhas poltronas verdes. Minha sala está parecendo uma bandeira desfraldada. Mas é um Da Silva, com muito orgulho. Essa história me fez lembrar do Manábu (com acento no "a", sim senhora) Mabe que passou a infância e a adolescência dele lá em Lins. O Mabe era horteleiro, como o pai. Vendia nabos e alface, mas gostava de pintar. Começou pintando gravatas brancas. Aquelas mulheres nuas, aqueles coqueiros, imaginem. Depois começou a pintar telhados de casas linenses, sempre sobre a tutela e as aulas do mestre Kumasaka. Como ele era meio duro (naquela época, é claro), pagava tudo com quadros. Médicos, advogados, funcionários, bancários, etc. Todo mundo tinha pelo menos um ou dois quadros "daquele japonês gordinho". Assim como o meu Da Silva, ficavam jogados nos fundos de garagens úmidas, em cima de móveis empoeirados. Esses primeiros trabalhos do Mabe devem valer uma fortuna, pois só o pessoal de Lins é quem tem. Aquele avião que caiu no Pacífico, pilotado por aquele japonês que já havia caído em Orly, levava, para o Japão, quadros dessa fase do pintor. Agora estão no fundo do mar. Menos em Lins. Conforme o Mabe foi ficando conhecido, os quadros foram mudando de cômodos, até chegarem na principal parede da sala de visitas, logo acima do sofá. Dizem que tem gente lá em Lins que tem 16 Mabe nas paredes. Será que o Mabe não trocaria o meu Da Silva por um quadro dele? Coisa de linense para linense, Mabe...

400. MÁRIO PRATA. O cinema é a arte da ilusão, já disse alguém. É tanta ilusão que eu fico a ver os filmes e imaginar como tudo dá certo nas telas. Nada sai errado. Querem ver? O sujeito que está procurando o taxi, acha na hora. Basta esticar o braço. E o mais grave: a pessoa que vai seguir o primeiro taxi, também leva a mesma facilidade. É clássica a frase: siga aquele taxi! Coisa de cinema. Só no cinema os casais acordam e se beijam e conversam de pertinho. Ninguém escova os dentes, já repararam? Personagem não tem mau hálito nunca. E quando o ator lervanta da mesa no bar e deixa o dinheiro certinho, trocadinho e vai embora sem ao menos olhar para trás? E as crianças que dormem no ato? Encostam a cabecinha no travesseiro e dormem. E os quartos delas que são super arrumadinhos? E as casas não têm empregada. Não sei quem arruma aquilo tudo. E quando o casal desliga a luz no quarto para dormir? Já notaram como o luar é forte? Mais forte que o luar do nosso sertão. Tudo azul, uma beleza. E a janela está fechada, pode notar. Telefone nunca dá ocupado. O sujeito disca e o outro atende no ato. O outro sempre está do outro lado. E o mais interessante é que eles não se despedem. Tocam o assunto e desligam na cara do outro. A pessoa sai para fazer uma compra e sempre tem o que elas procuram. E por que será que em toda briga quebram pelo menos uma mesa? Redonda, geralmente. Já viram cavalo beber água em cinema? Coitados. Xixi e cocô, nem pensar, nunca fazem. E ninguém tira os arreios deles. Colocar colocam, mas tirar, jamais. Roupa molhada no corpo, na cena seguinte já está sequinha. E o melhor, passadinha. Já viu isqueiro falhar em filme? E a velocidade com que a comida pedida no restaurante chega à mesa? Sem falar nos drinques. No cinema todo mundo fala inglês. Inclusive os índios e os extra-terrestres. E as velas, gente, como iluminam! Uma simples velinha ilumina uma sala enorme. Mas o melhor mesmo é a facilidade de se estacionar nas grandes cidades. E estacionam bem na porta de onde têm que ir. Isso em Nova Iorque e São Francisco! Na hora de morrer, o moribundo sempre tem uma frase definitiva para dizer. Ou um segredo. Ou quem é o assassino. Depois tomba a cabeça para o lado esquerdo. Outra coisa que me intriga é quem fecha o saloon. Porque saloon não tem porta de fechar, só aquelas de vai-e-vem. Será que o serviço é de vinte e quatro horas? E como fazem amor rápido, pessoal Em menos de meio minuto os dois já estão mais do que satisfeitos e acendendo um cigarrinho. Todos têm orgasmos. Dois músicos se encontram em algum lugar com dois instrumentos diferentes e começam a tocar. Ninguém afina, pois já vêm afinadíssimos. E cada revolver de seis balas que dispara mais de quinhentas? Sem falar nas espingardas de um cano só. A exemplo dos cavalos, ninguém vai ao banheiro no cinema. E olham que comem e bebem pra burro. Na hora de se atravessar um rio, ele é sempre rasinho, mas quando o herói pula lá de cima do despenhadeiro é claro que o rio é fundo. Nunca vi ninguém morrer, pulando lá de cima. E por que cargas d'água todo cinema brasileiro tem pulgas? Que devem, inclusive, falar inglês tão bem quanto nosso heróis de ficção.

401. MÁRIO PRATA. Como vai, meu filho? Tudo bem, mamãe. E aí? Vamos indo, não é meu filho. Como Deus manda. Aquela enxaqueca, seu pai com o joelho daquele jeito... Mas o importante é a saúde. Dá um abraço nele. E a revista, gostou? Recortei todas as receitas. É bom que já vem furadinha a página, né. Mandei o seu pai comprar um fichário, mas le não está gostando de você escrever aí. Sabe como ele é, né? Quando cisma... E os meninos, como vão. Tudo bem. Já resolveram o que vão estudar? O João está pensando em Filosofia ou... Filofosia? Mas o que faz quem estuda filosofia? Filosofa? É. Mas isso dá dinheiro, meu filho? Será que ele não vai passar o resto da vida morando com você? Você se lembra do seu primo Marcelo que estudou meteorologia - é assim que fala? - tá lá, até hoje. Não tem campo, meu filho. Engenharia ele não gosta? E medicina?, tão bonito. Todo de branco... Ou então Psicologia. Ah, não, meu filho! Psicologia, não. Não tenho nada com isso mas ficar trancado dentro daquelas salinhas ouvindo loucura de gente que a gente nunca viu na frente? Mas a senhora não se confessa todo sábado? Mesma coisa. Não diga heresias, meu filho. Ali, quem está me ouvindo é um representante de Deus. E eu me confesso com ele há 40 anos. Já sabe todos os meus pecados. Nem escuta mais. Às vezes, até dorme. E Banco do Brasil? Futuro garantido, meu filho. Não vê o seu tio Tonico? Aposentado, ganha mais que o seu pai que trabalhou de médico a vida toda. E a Ana, já resolveu o que vai fazer? Moda. Moda? Moda. Moda, meu filho. Como assim? Isso tem curso? Tem mãe. Tem uma escola muito boa aqui. Depois ela quer ir fazer um curso de complementação em Paris. Numa escola que a Marjorie estudou. Lembra da Marjorie, aquela que faz a roupa da primeira dama? E a dona Ruth paga bem para ela? Sei lá, mãe. Deve pagar. Mas a Ana ainda está em dúvida. Pensa em ser atriz também. Meu filho, você quer me matar? Atriz, meu filho? O que é que não vão dizer aqui em Uberaba? Já não basta você escrever numa revista de mulher e ainda vou ter uma neta atriz? E desde quando precisa estudar para ser atriz? Não é só decorar? Você mesmo me disse que para chorar eles passam cebola nos olhos... Ela quer estudar em Nova Iorque. Tem uma escola muito boa lá. E as drogas, meu filho? Ouço cada história de Nova Iorque. Aqueles pretos todos... Fica tranquila, mãe. Eles sabem, o que vão fazer. Vou rezar para Nossa Senhora de Lourdes e duas Salve Rainha. Direito o João não gosta? Podia pegar o escritorio do tio dele aqui que está mais pra lá do que pra cá. Soube, né? Cigarro a vida toda, dá nisso. E a Ana, meu filho? Será que um curso rápido de Corte e Costura. Depois casa, não sabe pregar nem um botão. Mãe, deixa que eles resolvem. Vou rezar, meu filho. Para você também. Minha esperança é que você um dia volte com a mãe deles. Moça tão boa, meu filho, gosto tanto dela... Bem, mãe, eu vou desligar. Tenho que trabalhar. Seu pai está mandando um abraço. (Ouço meu pai gritar ao fundo: "estou nada. Não mando abraço para filho que escreve em revista de mulher"). Então fica com Deus. Olha, mais uma coisa. Se a Ana for mesmo ser atriz, arruma para ela fazer novela na Globo. Mas a das seis, porque as outras... não tenho nem mais coragem de assistir. Um pecado, meu filho. Um pecado. Deus de abençoe. Bença, mãe.

402. MÁRIO PRATA. MONTEVIDÉU - Para começar, vou logo dizendo que acho a palavra joelho horrível. Pense bem: jo-e-lho. Não é feia? Além de proporcioar rimas fáceis e deselegantes. Aqui ele é conhecido como rodillas, que soa bem melhor. O que acontece, é que eu estou com um problema no joelho esquerdo. Desde março. Quatro meses, já. Me colocaram dentro de um tubo de ressonância magnética que deve ter este nome por causa do barulhão que faz lá dentro. O médico me disse que eu estava com o corno posterior lesionado. Coisas no menisco (outra palavrinha feia). Opera, não opera, acabei não operando. Mas é o que eu vou fazer quando voltar ao Brasil. Estou em permanente litígio com ele, o joelho. Toda esta introdução é para dizer que tenho pensado muito no joelho. No meu joelho. Nunca tinha dado muita bola para ele. Mas com o corno estourado você passa a conviver muito mais com a sua própria rótula (eta nome!). Ou, pelo menos, tenta. Você não pode imaginar como um joelho é importante para um vertebrado como a gente. É a rótula que nos dá a rota, que nos traz e nos leva. Começou a me incomodar mais quando cheguei aqui ao frio do Uruguai. Dentro do quarto tem calefação. Mas o joelho sabe que, lá fora, está zero grau. Ele odeia o frio. E sofre, coitado. Ele não, eu. É quando a gente percebe que não consegue fazer nada sem ele. Andar claudicando é o de menos. O pior é quando você pára numa esquina e fica com apenas a ponta do pé apoiada no chão, com a perna meio curvadinha. Parece uma bicha no ponto. Sempre passa um engraçadinho e grita: maricón! E quando a gente começa a atravessar a rua e percebe que não vai dar tempo e não dá para correr? Até para as necessidades mais íntimas, você precisa do joelho. Tem que se sentar com a perna um pouco esticada, porque não dá para dobrar. Experimente fazer xixi com uma perna esticada. Alguma coisa não vai sair certo. Se o sabonete cair no chão, na hora do banho, esqueça. Seus braços jamais chegarão lá embaixo. Enxugar os pés então, nem pense nisso. E, por favor, não tente chutar uma tampinha de coca-cola na rua. Pode ser fatal. Mas a dificuldade maior é para se fazer amor sem a colaboração total e imprescindível do joelho. Pode parecer bobagem, mas para o ato sexual, o joelho é muito mais importante do que o, por exemplo, pênis. Desculpem usar a palavra pênis, que é uma coisa que só médico tem. Perguntam: e o pênis, como vai? Como se o pênis fosse um tio da gente. Mas eu dizia da importância do joelho no ato sexual. De joelhos, por exemplo, nem pensar. Mesmo deitado, virado para cima, sem o joelho você não faz nada. O joelho é quem comanda, quem faz as inflexões todas, é ele quem dá a pressão, faz os movimentos, é ele quem dirige a ação. É ele quem engata a primeira, é ele quem gira para uma marcha-a-ré mais arriscada. O resto não faz nada sem o comando do joelho, a principal alavanca do ato em si. O joelho é o responsável pelo ritmo. É o joelho quem dá o tempo certo. E é nele que você se apoia na hora do orgasmo final e grita. De dor. É impossível ir-se até o belíssimo Estádio Centenário e fugir na hora do sururu. Vou apanhar sentado. É impossível ir-se até a igreja que eu vejo aqui da minha janela e ajoelhar-se diante do altar de Deus e pedir perdão por pensar e escrever tanta besteira. É que a dor é maior que o amor, meu bem.

403. MÁRIO PRATA. Com a Internet surgem novos amigos e amigas. Gente que você fica escrevendo um para o outro, sem saber a cara deles. Pouco a pouco você vai fazendo perguntas até descobrir, por exemplo, que a Seigel, que você achava ser uma gatinha é um professor brasileiro em Toulose, na França, que, a princípio, não tem nada para te oferecer. E há uma solidariedade entre os chamados cibernautas. Muito gente me escreve dando idéias para crônicas, peças de teatro, filmes. Teve um até que se ofereceu a escrever uma novela comigo. Um engenheiro. Desempregado, é claro. Chega de tudo aqui no meu email. De piadas a cantadas deslavadas (de sei lá quem). Outro dia um cibernauta me mandou uma, segundo ele, "classificação corno-biológica". E acrescentou que quem não entender a lista, pode se considerar um "corno-burro". Algumas classificações de cornos que rolam aí pela Internet, são impublicáveis. Vamos às mais maneiras, e veja onde você se enquadra. Mas não se preocupe, esse negócio de corno é uma coisa que colocaram na sua cabeça: Corno Manso - O que vê a mulher com outro e só balança a cabeça. Corno Banana - A mulher vai embora e deixa uma penca de filhos. Corno Xuxa - O que não larga a mulher por causa dos baixinhos. Corno Azulejo - Baixinho, quadrado e liso. Corno Galo - O que tem chifres até nos pés. Corno Prevenido - O que liga para a esposa antes de ir para casa. Corno Atleta - Enquanto ele sai para jogar futebol, o Ricardão (da Argumento Vídeo?) chega para encher a bola. Corno Inflação - A cada dia que passa o chifre aumenta. Corno Político - O que promete: "Eu vou matar esse cara", mas nunca cumpre. Corno Cético - Quando vê a mulher com outro, não acredita. Corno Elétrico - Quando alguém lhe conta que sua mulher está com outro, responde: "Fique frio, que eu estou ligado". Corno Salário - Baixinho e só comparece uma vez por mês. Corno Cebola - Quando vê a mulher com outro, chora. Corno 7 de Setembro - Aquele que a mulher só dá bandeira. Corno Geladeira - O que leva o chifre, mas não esquenta. Corno Iô-Iô - Aquele que vai e volta. Corno Ambulância - Aquele que, quando vê a mulher com outro, sai gritando: "Uau! Uau! Uau!". Corno Justiceiro - Aquele que se vinga, dando. Corno Jibóia - O que dorme entre as pernas da mulher. Corno Bateria - O que fica dizendo: "Vou tomar uma solução". Corno Porco - Aquele que só come o resto. Corno Morcego - Aquele que só aparece de noite para sugar o sangue. Corno Socialista - Aquele que não se importa em dividir a mulher com os outros. Corno Abelha - O que vai para a rua fazer cera e volta cheio de mé. Corno Terremoto - Aquele que, quando vê a mulher com outro, começa a tremer. Corno Brahma - Aquele que pensa que é o número 1. Corno Antarctica - Aquele que não sabe que a sua mulher é uma paixão nacional. Corno Granja - O que dá casa e comida, mas são os outros é que comem. Corno 120 - Aquele que, quando vê a mulher fazendo aquele número, vai ao bar tomar uma 51. Corno Toureiro - Aquele que prefere segurar a vaca. Corno Desinformado - Só ele é que não sabe. Corno Religioso - Aquele que acha que a mulher dá só para fazer caridade. Corno Português - Aquele que, quando lhe perguntam se a sua mulher é boa de cama, responde: "Uns dizem que sim, outro dizem que não".

404. MÁRIO PRATA. Já sabendo que ia ter que deixar o carro na garagem na quarta-feira (final 5), organizei para desenvolver a semana na terça e na quinta. Mas qual não foi a minha surpresa, ao acordar, na quarta, constatar que naquele dia, havia sido contemplado também com o rodízio de água. Tudo bem, vamos colaborar. Sempre gostei dos rodízios. Atualmente o meu favorito é do Poncho Verde, numa travessa da Giovanni Gronchi, no Morumbi. Para quem gosta de se entupir de carne, nada melhor. Mas, voltemos aos carros, que rodízio de carne não tem rodízio. Por enquanto. Dizem que a poluição não caiu tanto assim e que alguns congestinomanto continuaram. Tenho a impressão que aconteceu como aquela piada do Garincha, no jogo contra a Russia, no mundial de 58, na Suécia. O técnico Feola explicou como o Garrincha tinha que fazer para chegar até a área dos comunistas. Dada a explicação, Garrincha perguntou: Seu Feola, avisaram os russos? Acho que com o plano das autoridades aqui em baixo, aconteceu o mesmo. Esqueceram de avisar o ar. O ar não devia estar preparado, foi pego de surpresa. Talvez se a operação for usada mais vezes, o ar caia em si, literalmente. O ar é abstrato, não se engana facilmente. O ar não lê jornal. Enfim, o ar não estava sabendo de nada, mesmo passando por ele as ondas das imagens da televisão. Mais ou menos assim: o ar, já viciadão, necessita de certos poluentes por dia. Com menos carros, deve ter cafungado mais dos incautos que estavam na rua. Com o tempo a gente pega ele de jeito. Mas, na minha modesta opinião de rodizeiro contumaz, o mais importante, foi uma lição de civilidade que o paulistano deu. Cinquenta por cento, deixaram seus carros em casa. Isso sim, é coisa de primeiro mundo. Colaborar com as autoridades. Sim, porque o brasileiro odeia regras e leis. Sempre dá um jeitinho nelas. Desta vez, não. Se é para no bem de todos e felicidade geral do ar, diga ao Feldman que fico. Na garagem. A meta era reduzir a poluição e o congestionamento em vinte por cento. Chegaremos lá, civilizadamente. Comigo, podem contar. Sugiro às autotidades competentes (e às incompetentes também), outros rodízios em São Paulo. Rodízio de assalto: na segunda-feira só podrão ser assaltadas casas com final 1 e 2. Na terça, casas com finais 2 e 4. Teríamos, assim, uma redução de vinte por cento nos assaltos a casas. Rodízio no extermínio: Na segunda só poderão ser exterminados menores com idade ímpar. Na terça, idade par. Na terça, pardos. E assim por diante. Rodizio na corrupção: Na segunda, corrupção de 5 a 10 por cento. Na terça, de 15 a 20. Ad nauseam. Teríamos uma redução, portanto, como sempre, em 20 por cento nas corrupções. Oficiais ou não. Rodizio de torcida organizada: nos jogos de quarta, só podem apanhar torcedores com identidade com final 1 e 2. Nos jogos de quinta, final 2 e 4. O sujeito vem com um pau pra cima do menino e ele logo saca a identidade: "meu dia de apanhar é sabado, não vem não". Vinte por cento a menos de porradas, já é um bom avanço. Só espero que o Poncho Verde não faça rodízio do rodízio na base de segunda feira: não servem picanha e maminha. Na terça, alcatra e costela, etc. Na quarta não saí de casa e nem tomei banho. Mas estou limpo com a minha consciência. O paulistano provou, mais uma vez, que, quando quer, colabora. É civilizado.

405. MÁRIO PRATA. MONTEVIDÉU. Não tenham dúvidas. Nesta Copa, ontem encerrada, sem público em geral e na geral, e com a proibição do televisionamento para os próprios uruguaios, o único acontecimento de destaque, foi a mão na bola do Túlio. Túlio, apesar de não ter o mesmo talento de Maradona, entra, definitivamente, para a história do futebol sulamericano e mundial. Mão naquilo, aquilo na mão, aquilo naquilo. Não foi a mão de Deus. Foi a de Cristo, para quem Túlio se converteu recentemente no alto da sua cobertura na Barra, mergulhado numa piscina tão cinematográfica como seu gol. A imprensa mundial, aqui presente, não fala noutra coisa desde a última segunda-feira. Foi o semanal assunto nos bares, restaurantes e até mesmo da roleta do Cassino. Só o Túlio desmente com a maior cara de pau (aqui se diz "lata"), afirmando que foi com o peito. O peito da mão, por supuesto. Ou talvez tenha sido uma homenagem ao FH que se elegeu usando a mão aberta e agora anda com a mão tão fechada. - Luiz Carlos, da Jovem Pan, entre um chá e outro, dizia que aquilo não vale nem em futebol, nem em volei ("carregou" a bola) e nem em basquete, já que ele estava dentro do garrafão há mais de três segundos. - Um reporter peguntou ao Dunga o que ele tinha a declarar. Dunga, mais para Zangado e Mestre, disse que, quando o Maradona fez o dele com a mão, ninguém veio perguntar nada para ele, Atchim. - O pai do juiz Alberto Tejada, que tem o mesmo nome do famoso filho, já declarou, lá em Lima, que o filho "estava esperando há já algum tempo o momento para retirar-se da arbitragem devido ao seu extenuante trabalho como urologista". Pois é, gente, o homem é urologista, acostumado a trabalhar com toques de dedos. - Maradona ficou indignado quando Zagalo comparou o gol de Túlio com o que ele fez contra a Inglaterra. E disparou chamando Zagalo de senil: "O problema é que eu fiz com mais qualidade. Se o Zagalo viu naquela oportunidade é porque tinha menos anos que agora, que já não vê nem como anda seu time em campo". - A Federação Argentina de Futebol, mandou seu árbitro (que estava cotado para a final de ontem) voltar imediatamente para Buenos Aires. E ele voltou, de mãos abanando. - Tejada (a quem Silvio Luiz na transmissão pela Bandeirantes passou a chamar de "Tejadito queridito", depois da mão de Cristo) foi sincero: "vi o jogo pela televisão, depois. Parece que foi mesmo com a mão. Foi um erro meu. Assumo os fatos com responsabilidade. - Estão dizendo por aqui que Tejada deverá apitar a final do Campeonato Paulista e "receber uma homenagem" do senhor Ricardito Teixeira, "genro do homem". - Um imenso anúncio de uma página no jornal uruguaio El Pais, mostra a famosa foto de Túlio amortecendo a bola com a mão. O texto diz: "Encomenda para o senhor Tejada". Mais abaixo a foto de um belo par de óculos. - Já um jornalista local e humorista nas horas vagas, tem uma explicação mais psicológica e sexual para o fato: "o problema é que os jogadores de futebol ficam muito tempo concentrados, longe de suas mulheres e se acostumam resolver tudo com a mão mesmo. Sorte nossa e do Túlio. Porque esta Copa América, durante muitos anos, será conhecida como a Copa da Mão do Túlio. Coisas de Cristo, com certeza. PS - Não podemos deixar de destacar a performance dos Estados Unidos nesta Copa. Aliás, lá, em todos os esportes, costuma-se usar as mãos.

406. MÁRIO PRATA. - Aproveita agora, meu bem, para me pedir, quando vou para a sua casa, para levar seis latinhas de cerveja e seis camisinhas (que você, absolutamente, não irá usar numa só noite. Quiça, no mês). - Aproveita agora, tesouro, enquanto eu ainda tenho disposição para levantar à uma da manhã (da sua cama), pegar meu velho Chevette e ir comprar Maalox Plus para você. - Aproveita agora, gracinha, porque eu chego de uma festa à uma da manhã e quero fazer amor com você e você não acorda. Aproveita agora, que, um dia, vou chegar à uma da manhã, já amada. - Aproveita agora, amor, enquanto eu ainda levo Coca-Cola na cama para você toda manhã, com todas aquelas pílulas barra-pesadíssimas que são o seu café da manhã. - Aproveita agora, rapaz, que eu ainda faço amor quando você, bêbado, me acorda as três da manhã. - Aproveita agora, menino, que eu ainda tenho paciência de esquentar a sua comida no micro-ondas e depois lavar os pratos. - Aproveita agora, garotão, que eu ainda não reclamo quando deixo dois recados na sua secretária e você não responde. - Aproveita agora, meu amor, enquanto eu ainda tenho paciência de ficar ao seu lado no domingo vendo três ou quatro jogos de futebol. - Aproveita agora, garanhão abatido, que nestes mesmos domingos eu fico no sofá vendo os mesmos gols mais de dez vezes e louca para ir ao cinema. - Aproveita agora, baby, que eu não te mando praquele lugar quando você chega na minha casa às quatro da manhã e acorda o prédio todo. - Aproveita agora, babaca, quando eu deixo de ir ao cinema ou ao teatro para ficar conversando com seus amigos chatos no bar da esquina. - Aproveita agora, idiotinha gostoso, enquanto eu suporto com um sorrizinho, quando você broxa. - Aproveita agora, chato de galocha, enquanto eu ainda faço supermercado e feira para você. Enquanto você dorme. - Aproveita agora, seu sem-vergonha, enquanto eu compro camisas e cuecas para você. E, às vezes, lavo. - Aproveita agora, desgraçado, enquanto eu corto as unhas dos seus pés. - Aproveita agora, bandido, que eu ainda não o apresentei para os meus país e você não tem que me pedir em casamento. - Aproveita agora, meu velho, enquanto eu ainda espremo seus cravos. - Aproveita agora, coroa metido a jovem, enquanto você tem uma namorada vinte anos mais nova do que você. - Aproveita agora, meu amigo, enquanto eu ainda enrolo o cigarro para você. - Aproveita agora, bobo, enquanto eu ainda não estou dando bola para aquele seu amigo que está a fim de mim. - Aproveita agora, interiorano, que eu não uso batom por você não gosta. - Aproveita agora, hipocondríaco, que eu ainda não tenho úlcera. - Aproveita agora, seu mão-fechada, enquanto eu ainda pago os jantares para você. Sem falar nas bebidas. - Aproveita agora, seu fora-da-lei, enquanto eu dirijo para você na cidade e nas estradas, enquanto você dorme do meu lado. - Aproveita agora, seu frio e gelado, enquanto eu vou ao cinema com você ver o Van Dome, quando eu queria mesmo era ver a Romy Schneider. - Aproveita agora, queridinho, enquanto eu ainda prego botões nas suas camisas. - Aproveita agora, enquanto eu ainda estou aproveitando. PS - Aviso aos meus amigos cibernautas. Fui publicar aqui o meu e-mail (apesar de errado) e recebi mais de duzentas mensagens via Internet. Agradeço a todos (de coração), mas não está dando para responder para todo mundo. Me perdoem.

407. MÁRIO PRATA. Na noite anterior havia trabalho feito um mouro. Acordei e estava um verdadeiro calor senegalesco. Depois de tomar uma boa duma ducha escocesa, quase dormitar num banho turco, fazer a minha ginástica sueca, passar a minha água de colônia, vesti meu terno azul turquesa de casimira inglesa (que fora um presente de grego de uma amante argentina), cuidei do meu pastor alemão, do pequinês, do dinamarquês, do meu gato siamês e, com uma pontualidade britânica, deslizando sobre o tapete persa, sai para fazer um negócio da china. Logo voltei. Deveria ter saído com a minha refrescante bermuda, minhas sandálias hawaianas e o autêntico chapéu panamá. Evitaria o calor, aquela tortura chinesa que só um bom sorvete de creme holandês refrescaria. Ou teria sido melhor o terno príncipe de gales, para evitar uma gripe espanhola ou uma febre asiática? A polaca gostaria mais. Foi bom ter voltado. Meu periquito australiano e o meu canário belga, famintos, pediam semente de maconha colombiana. E minha galinha de angola, o resto da linguiça calabresa, resquício de um sanduiche americano com um pouco de salada russa e molho inglês, cortado com o meu afiado canivete suiço. Hamburguer, nem pensar, que é para inglês ver. Acabei me atrasando, chupei uma mexerica (ou era uma tangerina ou, ainda, uma bergamota?). Brinquei de sombra chinesa e quase dormi. Para acordar, ligo a televisão, vejo um pouco do esporte bretão, descasco uma lima da pérsia, fico em dúvida entre o pão sírio e o pão francês, conto até dez em algarismos romanos e depois em algarismos arábicos e resolvo fazer um filé à parmegiana. Abro a janela veneziana, preparo um uísque paraguaio e ali, numa autêntica noite americana, tal e qual um tigre asiático, dou um sorriso amarelo, brinco com o porquinho da índia de porcelana inglesa e me sirvo à francesa. Depois, balanço na poltrona de cana da índia com a cuba libre. Mas, como o pato vai ser à califórnia, com pimenta malagueta ou pimenta-do-reino, misturado com arroz marroquino (ou à grega?), preparo a milanesa e tudo bem. Vai cravo da índia? Será que o melhor mesmo não seria um filé à cubana, para depois enfrentar uma montanha russa, arrotando couve de bruxelas? Com a chave inglesa abro a porta emperrada, levo no bolso o meu soco igualmente inglês e saio ao encontro da minha cidade, do meu brasil paraguaio. Coisa de primeiro mundo. PS - Segundo pesquisa rápida, na França não existe nada parecido com o nosso pão francês; nenhum americano jamais comeu um sanduiche americano; as saladas russas não têm nada a ver com a nossa salada russa; o calor diminuiu muito no Senegal; em Parma não se faz filé à parmegiana; as janelas de Veneza não são nada venezianas; na Suécia não se faz ginástica como aqui; a linguiça da Calábria é totalmente diferente; os ingleses não estão mais pontuais assim; não se fazem mais bons negócios na China; o pessoal do Panamá deixou de usar chapéu há muito tempo;não se vende mais couve em Bruxelas; na revolução, comeram todas as 117 galinhas de Angola; ultimamente, o príncipe de Gales anda de saia; na França entra-se à francesa e serve-se à brasileira; nunca vi mexerica nem em Tanger e nem em Bérgamo; não existe mais gripe na Espanha e nem febre na Ásia; Cuba não está assim tão livre e filé à cubana é um sonho do passado e não dá mais para enfrentar uma amante argentina nem com uísque paraguaio.

408. MÁRIO PRATA. O que eu mais gosto, quando compro um carro zero, é ler o Manual de Instruções. É melhor que ler bula de remédios para a cabeça. No Manual está tudo explicado, claro, definitivo. Você fica sabendo como cuidar do seu carro para que ele viva vários e vários anos. Fico pensando que nós e o nosso corpo humano também deveríamos ter um Manual de Instruções, para a gente se cuidar. Algo parecido com os manuais dos carros. Por exemplo: assim como se ensina a trocar um pneu, o Manual de Instruções do Corpo Humano (o MICH) poderia muito bem ensinar a gente a trocar a própria perna, evitando, assim, ida a médicos e hospitais. Além das filas e economia de tempo e dinheiro. Antes de ensinar você a trocar a própria perna, alguns avisos: - Parabéns, você está de posse de um novo corpo. Desejamos que ele lhe traga todas as satisfações que imaginou, ao escolhê-lo. - O tempo que você irá dedicar à leitura deste manual será amplamente compensado pelos ensinamentos e as novidades técnicas que irá descobrir. - Se algum item não for suficientemente claro, os técnicos dos Distribuidores que formam nossa rede terão o prazer de lhe fornecer qualquer dado complementar que deseje obter. - Todas as instruções contidas neste manual são de vital importância para sua segurança e para garantir longa vida ao seu corpo. Segundo o MICH, a troca de uma perna seria assim: 1 - O macaco e a chave de perna estão no interior do compartimento chamado de médio glúteo, na parte traseira do corpo. 2 - O macaco está alojado por cima da bacia. Para extrair-lhe, afrouxar ligeiramente seu nervo de fixação e deslocar-lhe para cima; depois livrar-lhe do seu suporte inferior. Em alguns corpos o macaco está protegido com uma cobertura que é necessário retirá-la previamente. 3 - A chave de perna está prendida acima da coxa esquerda. 4 - A perna de reserva encontra-se na parter traseira inferior do corpo, dentro de um orifício. 5 - Para ter acesso à mesma: 6 - Afrouxar a porca 1 utilizando a chave de ossos; previamente desprender também as cartilagens. 7 - Puxar horizontalmente e para trás do gancho de segurança 2 e baixar o suporte próximo à bunda. 8 - Para reinstalá-la inverter as operações anteriores. 9 - Para imobilizar as pernas, aplique o freio de estacionamento. 10 - Para imobilizar os braços, coloque a alavanca de mudanças na primeira marcha. 11 - Afrouxar ligeiramente os ossos do joelho: retirar previamente a pele com a mão ou com a chave de ossos; para isso, introduzir o extremo em um dos orifícios da periferia. 12 - Para levantar o corpo, coloque o macaco horizontalmente e insira a aleta movel 1 da sua cabeça em quaisquer dos orifícios 2 situados na parte inferior do corpo (o mais próximo à perna que vai ser substituída). 13 - Comece a girar o macaco com a mão até apoiar a sua base no solo (levemente debaixo do corpo). Sobre uma superfície suave, coloque entre esta e a base do macaco uma prancheta. 14 - Introduzir a extremidade da chave de ossos na guia 3 do macaco e gire algumas voltas até separar a perna do solo. 15 - Remova os ossos. 16 - Retire a perna. 17 - Instale a perna de reserva abaixo da bacia e gire-a até fazer coincidir os orificios de fixação do corpo com o osso da perna. Colocar de novo a pele. 18 - Posicione bem os ossos e depois abaixe o macaco. 19 - Com o corpo sobre o solo, ajuste definitivamente os ossos , levante a cabeça e tenha uma boa viagem!

409. MÁRIO PRATA. MODA—USO, hábito ou estilo geralmente aceito, variável no tempo, e resultante de determinado gosto, idéia, capricho e das interinfluências do meio (Aurélio). Ninguém melhor que os brasileiros para inventar moda. Só não inventam um modelo novo de guarda-chuva. "Inventar moda", em si, já é uma expressão bem nossa. E vocês já notaram que as palavras e expressões aqui no Brasil também são uma moda? Variam, como diria o mestre Aurélio, com o tempo. Palavras mudam de significado e sentido "da noite para o dia", "num piscar de olhos", sem que ninguém "saque" quem foi que "curtiu" isso ou aquilo. Acho que em nenhuma língua uma palavra muda tanto de significado com o passar dos anos. Não é preciso ser tão "gagá" assim para se lembrar que, quando uma pessoa levava um susto ou se admirava com algo, dizia "cáspite!". que veio, mais tarde, a dar no ''orra, meu!". Se a coisa era chata, tudo não passava de uma "maçada", ou porque não dizer "pau". Mas essas são palavras que depois viraram "bregas", ou, em outros tempos, ''cafonas". Hoje diriam que não são nada ''radicais". Ou, se voltarmos para o começo dos 70, eu diria que esse papo está "bocomoco". Mas, alguns anos antes, se você quisesse "aparecer", diriam que você estava ''carteando marra". ''Morou?" Ou, se você for mais jovem, "sacou?" ''Ficou por dentro?" Ou está mais "por fora que dedão de franciscano?" Lembram do tempo em que tudo que era bom virava ''hiper"? Até supermercado. ''Bacana", né? Bacana mesmo são as atuais ''gatinhas", que já foram ''pequenas" no começo do século. Naquele tempo, "tempo do onça", o país ainda não tinha tanta ''bossa'', nem mesmo a nova. E foi nessa época que tudo era o "fino", incluindo aí um programa de televisão, O fino da bossa. Para os desajeitados. sobrava o "grosso". ''Programa" também era um namorico rápido com as garotas. Mais ou menos como "ficar" hoje em dia, quando ''o buraco é mais embaixo". Mas todo mundo era muito mais ''criativo''. Foi naquele tempo que todo mundo ''administrava" tudo. Tinha gente que administrava até a ''paquera". Foi logo depois que qualquer coisa era ''micro" isso ou ''macro" aqulio. Era um tempo onde a gente demorava para ''cair a moeda". Não era o ''máximo"? Mas a gente sempre ''caía na real". ''Podes crer", ''amizadinha"! Bons tempos, quando se podia ''dar um tapa" com cuidado para ''não dar bandeira". Depois